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a praticada psicoterapia infantil Indbia Duarte Ingeborg Bornholdt Maria da Graca Kern Castro 6.1.4 — O brinquedo Diversas teorias procuram explicar por que as criangas brincam; muitos estudiosos se preocupam diante desse processo natural da espécie humana, comum em todas as culturas. Ha divergéncias entre teorias ¢ estudiosos. No entanto, vemos entre eles mais uma complementagao do que propriamente uma discordancia sobre © tema, Assim, visando a uma compreensao mais global sobre o brincar ou 0 brinquedo, inclufmos autores de diversas orientagGes, sem, contudo, perder a énfase nos princfpios psicanaliticos que norteiam nossa prética psicoterépica. 6.1.4.1 — Conceituagdo, fungéo e classificacéo do brinquedo Spencer e Schiller (in Hegeler, 1966) manifestam que o jogo é uma descarga de energia: como a crianga no necessita realizar 0 esforco dos adultos para ganhar a subsisténcia, dispde de um caudal de energias que néo sabe como usar e que deve ser esgotado. A esta teoria se opée a teoria re- creativa, que considera o jogo infantil como um descanso da fadiga do tra- balho. Karl Groos (in Valentine, 1966) sustenta a DRopate coerieatetbicere card valioso porque prepara para atividades posteriores mais sérias, Hegeler (1966) afirma que a recreco e o descanso podem ser incluidos no conceito de jogo, mas que este nio se limita aos dois aspectos. Considera © jogo real das criancas muito semelhante & atividade criadora de qualquer artista. Ainda segundo Hegeler, 0 jogo promove a estabilidade emocional por No jo- g0, a crianga pode ser aquele que faz. coisas boas, agradaveis, ou quem pro- A PRATICA DA PSICOTERAPIA INFANTIL. 87 porciona prazer aos demais, Ao exteriorizar suas ansiedades e temores (que ‘so causas inconscientes de angiistia e perda de energia) durante o brinquedo, ‘os temores tornam-se menos assustadores. Diz este autor que se conseguimos extrair 0 que nos atemoriza, vé-lo, experimenté-lo, 0 objeto em conflito teré perdido a viruléncia que Ihe € atribufda, quando desconhecido. Hegeler exemplifica este fato com o brinquedo de bombardeio, na época da guerra, através do qual as criancas, extraindo de seu interior a ansiedade resultante de uma situaco atemorizante, controlavam e compartilhavam seu medo com seus companheiros. O autor atribui a resisténcia das criangas aos impactos da guerra ao fato delas exteriorizarem sua tensao por meio do jogo. i afirma uma crianga nao s6 joga _repetir situagdes agradaveis, mas também para elaborar as que Ihe resultaram -dolorosas ou traumaticas. Winnicott (1966) aspectos relevantes 4 fungdo do brinquedo. de externa ou con nhos, servem & funcdo de auto-revelagio e de comunicagao com o nivel pro- fundo, inconsciente. Tsaacs (1965) opina que, para obter maior compreensao do que 0 jogo significa realmente para a crianga, devemos consideré-lo em relacao com seu presente imediato e a sua necessidade difria de adaptagio ao mundo que a rodeia. 88 Mostra esta autora que: 1° jogando, as criangas fazem coisas que con- dzrto & un eee SVE pEREE OT OPORERTARIID) 2° ecbats © jogo aumenta o conhecimento do mundo; a crianga sadia e feliz explora constantemente tudo que a rodeia; 3° muitas brincadeiras sao de indole so- ‘ial e pertencem ao mundo da fantasia, ili a Melanie Klein (1962) demonstrou que 0 jogo espontineo de imagina- cdo cria ¢ estimula as primeiras formas do pensamento que se expressa no jogo do “‘faz-de-conta”, ou “como se...”, Afirma ainda que neste jogo a crianga volta a criar, em forma selecionada, os elementos de situacées passa- das que podem envolver sua necessidade emocional ou intelectual pelo pre- sente ¢ adapta pouco a pouco os detalhes & situaco presente do jogo. Rela- ciona esta capacidade de evocar o passado com o desenvolvimento da forga ou poder de evocar o futuro. Assim sendo, o jogo é importante no que con- ceme ao desenvolvimento do raciocfnio hipotético, & atitude cientifica e do sentido de realidade, Piaget (1971) afirma que o jogo € essencialmente assimilacdo predomi- nando sobre a acomodacéo, ¢ enfatiza o jogo como um ato de inteligéncia, subordinando-o ao desenvolvimento intelectivo. Lebovici (1985, p. 14) define 0 jogo como “uma ago livre, sentida como ficticia e situada fora da vida habitual, capaz de absorver totalmente a0 jogador; agio despojada de todo interesse material e de toda utilidade, que se realiza em um tempo e em um espago expressamente circunscritos; desenvol- ve-se com ordem, segundo regras estabelecidas e incentiva, na vida, relagdes de grupo que com satisfagdo rodeiam-se de mistérios, 0 que acentua, me- diante o disfarce, 0 alheio que so a0 mundo habitual.” Diz ainda Lebovici (1985, p. 14) que se 0 jogo é tao importante para a crianga deve ser considerado também como a “expresso dos modos atuais da organizago de sua personalidade, e como um modo estruturante em rela- do &s organizacdes mais tardias.”” Muitos autores classificaram os jogos infantis de diferentes maneiras, de acordo com suas teorias explicativas. Um dos exemplos temos em Groos (in Piaget, 1964), seguido poste- riormente por Claparéde com a classificagio dos jogos, segundo as tendén- cias que eles concretizavam, ou seja, conforme seu conteiido, Em uma pri- meira categoria, foram agrupados os jogos sensoriais, os motores, os inte- lectuais, os afetivos ¢ os exercicios da vontade, sendo caracterizados como jogos de experimentagio ou de funcées gerais. A segunda categoria, a dos A PRATICA DA PSICOTERAPIA INFANTIL 89 Jogos de fungées especiais, compreende os jogos de luta, perseguicao, corte sia, os sociais, familiares e de imitagao. Piaget (1964, p. 139) critica tal classificaco devido “‘a ser quase im- possfvel situar numa s6 destas divisérias, ao mesmo tempo, nao s6 a multi- dao de casos intermédios revelados pela observacao cotidiana, como até certos jogos considerados classicos.”” Quérat (in Piaget, 1971) baseou sua classificacéo na origem dos jogos e distinguiu trés categorias: os jogos de hereditariedade; os de imitagao sub- divididos em jogos de sobrevivéncia social e de imitagdo direta; e os jogos de imaginacao, subdivididos quanto as metamorfoses de objetos, as vivifica- ges de brinquedos, &s criagdes de brinquedos imaginérios, as transforma- g6es de personagens e & representaco em ato de estérias e contos. Piaget (1971) critica Quérat por ser tal classificagdo dificil de ser defi- nida ¢ inaplicdvel em detalhes. Diz Piaget que todo jogo simbilico é um coi- sae outra ao mesmo tempo; a imitagdo de situacdes reais aparece misturada & imaginagdo de novas cenas. Stem (in Piaget, 1971) divide os jogos em duas grandes classes: os jo- gos individuais e os sociais. Entre os jogos individuais, distingue diversas categorias, por ordem de complexidade crescente: — conquista do corpo (jogos motores com 0 préprio corpo como ins- trumento); — conquista das coisas (jogos de destruigao e jogos construtivos); — jogos de interpretacao (metamorfose de pessoas e coisas). Os jogos sociais abrangem: — jogos de imitagao simples; — 08 jogos de papéis (interpretacées); — 08 jogos combativos. Piaget (1971, p. 143), discute esta classificagao estrutural por achar di- ficil de ser mantida, pois, segundo ele, a diferenga entre o jogo simbélico in- dividual ¢ 0 jogo simbélico de muitos € uma questo de grau. “Todo jogo: simbélico, mesmo individual, acaba mais cedo ou mais tarde, por ser uma representagdo que a crianga dé a um socius imagindrio, sendo todo jogo sim- bélico coletivo, mesmo quando bem organizado, algo proprio do simbolo in- dividual.” Eiihler (in Piaget, 1971) classifica os jogos em cinco grupos: 12 fun- cionais; 2° de ficgo ou de ilusao; 3° receptivos; 4° de construgao; 5? coleti- vos. Esta classificacio nao permite, assim, uma delimitagdo precisa entre os diversos jogos infantis, sendo ainda discutivel a colocagdo de jogos de construco, pois, ainda segundo opinido de Piaget (1971) tais jogos parecem se situar numa Area fronteirica, entre os jogos e as condutas nio-lidicas. 90 Piaget (1971, p. 148) apresenta sua classificagdo com base nos trés ti- pos de estrutura que caracterizam os jogos infantis: 0 exercicio, o simbolo ¢ aregra: 1 — 0 jogo de simples exercicio, no qual nao ha intervengdo de sim- bolos ou ficcdes ou regras, caracteriza as condutas animais, e 6 0 primeiro a aparecer na crianga. 2 — O jogo simbélico, que implica na representago de um objeto au- sente, nao existe no animal, e segundo Piaget, s6 aparece no se- gundo ano de vida. 3 — Os jogos com regras que supdem, necessariamente, relagdes so- ciais ou interindividuais. Explica Piaget que 0 jogo simbélico inclui um conjunto de elementos sens6rio-motores, 0 jogo com regras pode ter 0 contetido dos jogos simbéli- cos, “mas apresentam a mais um elemento novo, a regra, tio diferente do simbolo quanto este pode ser do simples exercicio, e que resulta da organi- zagao coletiva das atividades hidicas. 6.1.4.2 — Evolucgdo ou desenvolvimento infantil e do brinquedo Como néo podemos dissociar crianga e brinquedo, também nao pode- mos, aqui, entender a evoluco da atividade Iidica sem associé-la ao cresci- mento daquele que executa essa atividade, Anna Freud (1971) escreve que: 1 — O brinquedo principia com 0 bebé, como uma atividade que gera prazer erético, abrangendo a boca, os dedos, a visio, toda a superficie da pele. E levado a efeito no proprio corpo da crianga — atividade auto-erdti- ca — ou no corpo da mie, sem uma distinco nftida entre ambos, sem ordem ou procedéncia dbvias a tal respeito. 2 — As propriedades do corpo da mie e do corpo do filho so transfe- ridas para alguma substincia macia, que serve como primeiro brinquedo da crianga — 0 objeto de transigio, que € catexado com a libido narcisista com a libido objetal. 3 — O apego a um objeto especifico de transicao se desenvolve che- gando a um gosto indiscriminado por brinquedos macios de varios tipos que so acariciados e maltratados como objetos simbélicos, catexados com libido € agressfo. Afirma a autora que por “‘serem objetos inanimados e nfo revida- rem, habilita a crianga a expressar toda a gama de ambivaléncia para com eles.” A PRATICA DA PSICOTERAPIA INFANTIL o1 4 — Gradativamente, o apego a brinquedos se dissipa, salvo na hora de deitar, quando continuam facilitando a passagem da crianga da participagao ativa, no mundo externo, para o recolhimento narcisista necessério ‘a0 sono, Escreve Anna Freud (1971, p. 74) que “durante o dia, o lugar desses brinquedos é progressivamente ocupado por materiais que nao possuem em Si 0 status do objeto, mas servem as atividades do ego ¢ as fantasias nelas subjacentes,”” Escreve, ainda, que tais atividades sofrem uma seqiiéncia cro- noldgica de acordo com o crescimento infantil e as energias instintivas cor- Tespondentes de cada fase evolutiva: a — brinquedos que oferecem oportunidades, para atividades do ego, Como encher, esvaziar, abrir, fechar, ajustar, misturar, sendo o interesse ne. Tes deslocados das aberturas do corpo e suas fungées; b — brinquedos que se movem, que fornecem prazer na mobilidade; ¢ ~ material de construcdo, que oferece oportunidade, tanto & construe go como A destruigio, e correspondem & ambivaléncia da fase anal-sa- distica; d — brinquedos que servem a expressio das tendéncias ¢ atitudes mas- Culinas ¢ femininas correspondentes & fase edipica. — A satisfacao direta ou deslocada, detida na atividade Nidica, cede Progressivamente o seu lugar ao prazer no produto terminado da atividade, sendo este elemento pré-requisito a0 bom Tendimento escolar da crianca; ~ A aptidio lidica transforma-se em aptidio para o trabalho, apés a aquisicao de algumas faculdades adicionais. (Anna Freud. 1971, p. 76): a — “controlar, inibir ou modificar os impulsos: b — executar planos preconcebidos com uma consideraco mfnima pela falta de retribuicao imediata de prazer e maxima consideracao pelo prazer no resultado final; ¢ ~ realizar no 6 a transicao do prazer instintivo ao sublimado, mas também a transicao do princfpio de prazer ao principio de realidade.” Na comparagio entre os filhotes de animais, Isaacs (1965) relaciona o fato de que os animais que podem aprender mais sio também os que mais brincam. Observa esta autora que os animais com instintos fixos e herdados nio brincam, nfo havendo modificagdes quanto & evolugdo da espécie. As. Severa que quanto mais indefesos e dependentes do cuidado dos pais séo os filhotes de uma espécie animal, e maior o tempo que necessitam deste cuida- do, mais inteligentes e adaptaveis so os membros individuais da espécie, re- gendo-se menos por formas de conduta fisica e herdadas, Para Isaacs, (1965, p. 15), 0 jogo € 0 trabalho da crianga, e o meio pelo qual cresce e se desenvolve; afirma que “‘o jogo ativo pode ser considerado 92 como sinal de satide mental e sua auséncia, como defeito inato ou enfermi- dade mental.” Hegeler (1966, p. 1 i Y _mental’’, e acrescenta que, para o desenvolvimento infantil, ““é o brinquedo mais do que uma forma de divertimento — é um meio de compreenso ¢ re- Melanie Klein (1962) diz que as alteracdes progressivas nas reagdes da crianga durante as primeiras semanas e primeiros meses demonstram que ha um grau considerdvel de integragio na percepgdo e conduta, e sinais de me- méria e antecipagdo. Diz que desde entao a crianga se dedica cada vez mais aos jogos experimentais, que servem como método, nao s6 de adaptaco & realidade, como também um meio de expressar a fantasia. Segundo Reca (1961, p. 56), 0 we lui com a maturaco do sistema nervoso e com o desenvolvimento intelectual e afetivo-social da crianga. Diz esta autora que, i i Winnicott (1966) mostra que em estado saud4vel, hé uma evolugao dos fendmenos transitérios e do uso de objetos para a capacidade total de brincar da crianga. Diz ele que ‘‘é muito facil constatar que as brincadeiras séo de importancia vital para todas as criangas e que a capacidade de brincar é um sintoma de satide no desenvolvimento emocional” (p. 19: 224) Aberastury (1971, p. 13) valoriza os jogos da primeira infancia, en- contrando neles a base da vida amorosa adulta. Diz que “‘o jogo do primeiro ano de vida dé as bases do jogo e as sublimagées da infancia e conduz aos jogos de amor”. As criancas abandonam paulatinamente o mundo dos brin- quedos, que € substitufdo pelas experiéncias amorosas dos adolescentes. Erik Erikson (in Lebovici, 1969, p. 32) distingue trés fases sucessivas na evolugao dos jogos infantis: _ fundamental para a crianga resolver os problemas emocionais que fazem \ parte do desenvolvimento” (p. A PRATICA DA PSICOTERAPIA INFANTIL 93 2 — Desenvolvem-se em princfpio, na ‘‘auto-esfera’”, quando a crian- a explora sensagées extero ou interoceptivas relacionadas com seu corpo ou com as pessoas que realizam seus cuidados corporais. 22 — Quando brinca na “‘microesfera”, a crianga utiliza pequenos jo- g0s representativos, exteriorizando suas fantasias. © — Quando atinge a “‘macroesfera”, a crianca utiliza suas relagdes com 0 adultos e aborda o processo de socializagao. “Sa 6.1.4.3 — Dindmica do jogo ou brinquedo Os mecanismos analisados no jogo infantil sio comparéveis, segundo diversos autores, aos mecanismos observados nos sonhos. Os brinquedos sao vistos como meios para alcangar o inconsciente infantil. Fenichel (1966) expde sobre o “princfpio da multiplicidade de fun- gdes’”, onde diz que o organismo tende a inércia, ou seja, tende a conseguir © mAximo de efeito com o minimo de esforgo. Achamos importante relacio- nar este principio com o brinquedo, uma vez que, segundo o autor, entre di- versos atos possiveis: € eleito aquele que melhor se presta A satisfacao si- multanea de exigéncia do mundo externo e do interno, isto é, das pressées ambientais e das necessidades internas. Fenichel assevera, ainda, que nenhum fenédmeno mental carece de co- nexées inconscientes. O ego pode conseguir a substituicio de um impulso, nao s6 por outro que seja menos prejudicial, como também por um impulso ‘compatfvel com o ego, um impulso organizado e inibido em seu fim, Segundo Freud (1932), toda etapa consciente tem um inconsciente pre- liminar. Todos os processos mentais se originam no inconsciente e s6 me- diante certas condigGes se tomam conscientes. Surgem diretamente de neces- sidades instintivas, ou em resposta a estimulos externos que atuam sobre im- pulsos instintivos. Para os autores atuais, a expresséo mental do instinto é a fantasia in- consciente. Esta € 0 corolério mental, o representante psiquico do instinto. Nao hé impulso, nem necessidade ou resposta instintiva que nao seja vivida como fantasia inconsciente. Melanie Klein, 1962). Melanie Klein adota 0 ponto de vista de Ferenczi, de que a identifica cao priméria, que é a precursora da simbolizagao, surge do esforgo da crian- ¢a para voltar a descobrir em cada objeto seus préprios érgios e seu funcio- namento; adota, também, o ponto de vista de Emest Jones, de que o princi- pio do prazer toma possivel que dois objetos diferentes sejam equiparados devido a um vinculo afetivo de interesse. Melanie Klein demonstrou, por 94 meio de material clinico, em que forma a funco simbélica priméria dos ob- jetos internos capacita a elaboragao de fantasias pelo ego, permitindo que as sublimagées se desenvolvam em jogo e manipulagao. Em sua opiniao, a sim- plicidade dos jogos permite & crianca usé-los em muitas situacées diferentes, e que, através deles, é possfvel conhecer os trabalhos da mente infantil. “HA uma considerdvel analogia entre os meios de representacio usada no jogo e nos sonhos, e na importincia da realizacio de desejos em ambas formas da atividade mental.” “As criangas esquizofrénicas nao so capazes de praticar jogos no verdadeiro sentido da palavra. Executam certas ages monétonas (...) e a realizagéo do desejo associada a essas acGes € predominantemente a negacao da realidade e uma inibigao da fantasia. Nestes casos extremos, nao se conseguem as personificagées.” (Melanie Klein, 1962, p. 132) Observa, ainda, (1962, p. 145), que “‘nas criangas neuréticas h4 intensa repressao das fantasias masturbatérias, inibidas pelo sentimento de culpa, re- sultando daf a inibicao no brinquedo e na aprendizagem comum (1962, p. 145). Waserman (1978) diz em “Pensando en Jugar”*, que semelhante ao que ocorre no sonho é a elaboraco secundaria a que pe ordem e dA conti- nuidade as construgées do brinquedo. Por isto, aparentemente o brinquedo se mostra com a contextura de um acontecimento racional. Todo o material in- consciente € submetido 4 elaboracgao secundéria antes de aparecer como brinquedo” (p. 38-39). Segundo este autor, “thé uma relagdo frégil e étima entre o impulso origindrio a brincar — que surge possivelmente da tendéncia a descarga dos desejos inconscientes ¢ da necessidade de dominio dos acon- tecimentos traumdticos — e a elaboragdo secundaria — que surge da instan- cia censora na primeira t6pica.”” Afirma que os jogos que sofreram excessiva pressio do pensamento pré-consciente sao os brinquedos estereotipados que j4 foram interpretados pela censura (...)”” “No jogo criador h4 certos elementos que permanecem no mistério, 0 que indica sua aproximidade as zonas criativas da personalidade e é necessé- tio um cuidado de ndo interromper esse mistério para permitir que dele surja um novo significado. Deve-se deixar que 0 casulo se abra em seu préprio tempo” (Waserman, p. 39). (O jogo de criangas normais mostra um equilibrio melhor entre a fanta- sia e a realidade, revelando que pode influenciar na adaptacdo infantil. Afirma Melanie Klein (1962, p. 146) que “‘as criangas normais quando nao podem alterar a situacio real, s4o mais capazes de a suportar, porque sua fantasia mais livre lhes proporciona um reftigio e também porque a maior * Trabalho preparado especialmente para “Ateneo de Agrupo” de 28 de agosto de 1978, publicado na Revista Argentina de Psicologia. Ano XII, n° 33. . ‘A PRATICA DA PSICOTERAPIA INFANTIL 95 descarga que possuem para suas fantasias masturbatérias em forma de ego sinténico — jogo outras sublimag6es, dé-Ihes maiores oportunidades de gratificacio.”” Isaacs (1962, p. 86) refere que podemos observar, pela conduta da crianga diante de um impulso instintivo, que ‘‘a alucinagdo ndo se detém na mera representagéo, mas que a conduz a efetuar, detalhadamente, o que faria com 0 objeto desejado que imagina ter obtido (fantasias).” Acrescenta que “parece provavel que a alucinacao atua melhor nos momentos de tensio ins- tintiva menos intensa. A medida em que a tenséo aumenta, intensificam-se as necessidades e a alucinagao est4 exposta a desaparecer.” A desilusio que traz a satisfagdo alucinatéria é o primeiro impulso para a adaptagdo & reali- dade; diz a autora que a alucinac&o, de uma forma ou de outra, desaparece e se transforma numa adaptacao as condigées externas reais. Isaacs (1965, p. 111) estuda a fantasia no jogo e escreve que “‘muitas criangas séo completamente felizes, comunicativas e afetuosas, © que s6 apresentam ocasionais ataques de desafio, temores injustificados ou negli- géncia na higiene.” Observando o brinquedo destas criangas, conclui a auto- ra que “‘o jogo é a valvula de seus desejos e temores ocultos. Algumas ve- zes, estes se exteriorizam vivamente nos jogos familiares que representam ao pai, a mie e aos filhos, com todo o drama de suas fantasias reprimidas.”” O autor diz (p. 112) ainda que ‘‘a descarga destas tensdes fntimas no jogo torna mais facil as criangas pequenas atemperar sua conduta na vida real.” Afirma que de todas as importantes funcdes do jogo, esta é a princi- pal, e ‘“é triste_para essas criangas cuja ansiedade é tao grande que nao po- dem brincar. Podemos considerar sua incapacidade de se unir a outras crian- gas nos jogos imaginativos e criativos como um dos sinais mais seguros de ives _dificuldades interiores, que tarde ou cedo perturbarao seriamente a {ice emai ants Seige conkea'e cutie eategoucl Milner (1965, p. 109) escreve que a crianga nao conhece a existéncia dos limites, descobrindo-os, gradual e intermitentemente, através do jogo. Concorda com Rank (1932) quando este afirma que tanto o jogo como a arte vinculam o mundo da irrealidade subjetiva com a realidade objetiva, fundin- , do harmoniosamente os bordes, mas sem confundi-los. Assim, “o ser huma- \ no em evolugao se torna capaz de admitir deliberadamente ilusdes sobre o \ que esté vendo acontecer; entrega-se, ele proprio, as experiéncias, dentro do | espago-tempo limitado do drama ou do quadro, ou do conto (...)”. Ainda segundo Milner (1965), 0 proceso pelo qual o interesse da crianga € transferido de um objeto original a um secundério, depende da identificagdo do objeto primério com outro que € diferente, mas que o indi- 96 viduo sente emocionalmente como se fosse 0 mesmo. Milner cita Emest Jo- nes € Melanie Klein que, seguindo as formulagées de Freud, escrevem sobre esta transferéncia do interesse e a atribuem ao conflito com as forcas que profbem 0 interesse no objeto original, assim como a perda real do mesmo. Esta identificacéo, de um objeto com outro, é tida como a precursora do Alerta Melanie Klein (1965, p. 21) sobre o fato de que 0 ‘uso dos sim- bolos deve ser considerado em cada crianga em conexiio com suas emogées € ansiedades particulares e com sua situacio total.”” Diz que “‘a andlise do jogo mostra que o simbolismo permite a crianga transferir interesses, fantasias, ansiedades e sentimentos de culpa, sendo este um dos fatores que torna o brinquedo tao essencial & crianga.”” Afirma ainda que “‘o jogo e as agoes, to- da a conduta infantil so meios de expressar 0 que 0 adulto manifesta pre- dominantemente pelas palavras.”” Zalliger (1968, p. 95) mostra que as excitagées instintivas se elaboram no jogo através das representagGes, ou pelo caminho das representagdes ver- bais. A crianga “pensa” de diferente maneira que os adultos, pensa de uma maneira pré-ldgica, animica-antropomérfica e mégica. Enquanto joga, a_ crianga falsifica_a-realidade-segundo seu mundo ideal ¢ instintivo e toma a ilusGo por realidade, podendo 0 jogo da invengio e elei¢ao préprias confir- mar 0 magico do pensamento infantil. “ ‘das associag6es_(verbais) do-adulto; as’ criangas representa e elaboram normalmente seus conflitos nos jogos de elei¢éo.e invengao prépr ~~ Winnicott (1966, p. 161) focaliza a angiistia como um fator na brinca- deira infantil e diz que ela est4 subjacente na brincadeira infantil. Afirma que ‘‘a amegada de um excesso de angtistia conduz a brincadeira compulsiva ou a brincadeira repetida, ou a uma busca exagerada dos prazeres que per- tencem a brincadeira; se a angustia for muito grande, a brincadeira redunda em pura exploragio da gratificagao sensual.” Liberman, Podetti, Miravent e Waserman (1984) dao uma importante contribui¢éo & compreensio do jogo, quanto ao seu aspecto semistico, pro- curando unificar adequadamente os modelos da psicandlise classica com os modelos comunicacionais da lingiifstica. Estes autores observaram, ao estudar o brinquedo, que, sob 0 ponto de vista temético, acontece uma série de coincidéncias: “‘h4 jogos que tratam especificamente elementos do complexo de Edipo tardio, outros cujo tema é © complexo de Edipo precoce com objetos parciais, brinquedos cuja temdtica sao as fantasias relacionadas & procriacdo e nascimento de bebés, etc...” (Li- berman, 1984, p. 17). Segundo os autores, estas similitudes ndo conseguem abranger toda a variedade formal que apresentam brinquedos com 0 mesmo A PRATICA DA PSICOTERAPIA INFANTIL 97 contetido. Por isto, eles acharam necessério diferenciar sistematicamente dois niveis: 1 “um € 0 nivel de onde surge 0 material, o nivel de fantasia incons- ciente de onde se desenvolvem os conflitos correspondentes a cada etapa da evolucio da vida e 2 outro € 0 nivel de codificacdo desta fantasia incons- ciente na estruturagao do “‘sintagma do brinquedo”. Neste ultimo, afirmam 0s autores, o importante € ver como se organiza o jogo como uma gramética que pode servir de veiculo a diferentes mensagens sem que, necessaria- ae haja uma correspondéncia entre o nivel da fantasia e o tipo da codifi- ‘acdo””. (Liberman, 1984, p. 17). ee a “qualidade Iidica” foi estudada nas trés areas semidticas: sintética, semfntica e pragmitica, 6.1.5 — Conclusées — Em sfntese, podemos concluir que a interpretacdo, no trabalho eee segue a diregio oposta a do trabalho onirco ¢ da atividade Ii- ‘Conte Iatente ++ expresso do mundo intero 4 — Fantasias Mecanismos: | = imagem dice dos conte dos latentes ~ dramatizagSo = deformasio onfca ou lidica, que implica em: = deslocamento 22 — Tendo por base 0 estudado até aqui, podemos sintetizar o proces- so do desenvolvimento infantil, privilegiando, nesta trajet6ria, nossa com- preensio sobre a atividade Nidica. No primeiro ano de vida surgem os jogos fundamentais que fundamen- tam 0 desenvolvimento posterior da atividade liidica e de toda a atividade sublimatéria. Quando o nené nasce, necesita se adaptar a um mundo novo, o qual deverd conhecer e compreender. Suas capacidades perceptivas vao forjando uma nog&o desse mundo, mas sua incapacidade-motriz limita sua possibili- dade de explorago. Muitas de suas tentativas de explorar se achario na base de sua futura atividade de jogo. Em tomo dos 4 meses comega sua atividade ltidica. Aconteceu algo fundamental na vida mental da crianca: os objetos funcionam como simbolos , a0 mesmo tempo, se produz em seu corpo mudangas que facilitam seu exame do mundo. Comega a ser capaz de controlar seus movimentos, coor dena o movimento com a visao e j4 pode, com bastante certeza, aproximar a mao ao objeto que previamente focalizou com seus olhos sempre que este se encontre perto. Observamos que a crianga inicialmente brinca com ela mesma, com seu préprio corpo e com o corpo da mae, como extensio sua, Este brinquedo vai favorecer-seu-autoconhecimento e do mundo circundante;_gradativamente permite a diferenciacio entre 0 eu e 0 néo-eu._ a Em sua evolucao, num perfodo intermedifrio entre a atividade auto- erética e a atividade propriamente hidica, surge o que Winnicott chama de “objeto de transigéo”’, que tem a fungao de servir de elo entre a crianga € a onder é sua primeira atividade Nidica, e nela elabora a 0 objeto que pode perder. , 0 Tuto Do corpo do nené, saem sons que agora € capaz de repeti-los uma e outra vez, Ao escuté-los, sua expressio muda. Tais sons — laleos — sao sua primeira tentativa de expresso verbal. Como a palavra comeca a ser um ob- jeto concreto para sua mente, pode brincar com ela. Sua repetigao é um jogo verbal — pode fazer com os sons 0 que ja experimentou com os objetos. A crianga experimenta e brinca também com movimentos corporais amplos. Uma das brincadeiras comuns desta fase ¢ a de “esconde-escon- de” — A crianga se esconde ou embaixo dos lengéis ou atrés de algo. Cada ato de “desaparecer” é sentido como uma perda, um corte, e cada aparecer, anguistia da separ A PRATICA DA PSICOTERAPIA INFANTIL, 99 como vefculo, um encontrar algo perdido.* Repetindo diversas vezes 0 jogo, _, nicomegne sere desaparece pode voltar a apare- cer, Acredita que a mae que saiu, que ndo esta presente, voltaré. Este mesmo ~contetido pode ser notado em outras atividades Nidicas, como, por exemplo, no esconder objetos e procuré-los, atiré-los longe de seu alcance ¢ reencon- tré-los, ou no simples fechar e abrir de olhos, tais brincadeiras correspondem A fase na qual os conflitos normais do desenvolvimento so, exatamente, 0 desmame e a separacdo temporal da mae. Quando a crianga domina melhor seus movimentos, pode se locomover livremente em seu ambiente familiar, mostra sinais evidentes de independén- cia. Ea fase do caracteristico “nao” infantil. Nesta fase, os brinquedos adquirem um valor simbélico satisfazendo a curiosidade que a crianga tem em relacao ao seu préprio corpo. Ela prefere brinquedos que oportunizam atos como “‘esvaziar, encher, abrir, fechar, ajustar, misturar’’,Associado a este aspecto, a crianca sente prazer de mani- ‘pular materiais de construgdo, que permitem tanto a construgao como a des- truicdo: a atividade ltidica expressa a ambivaléncia da fase, na qual a matu- racdo exige da crianca aprender a controlar seus esfincteres; deve, ao mesmo tempo, agradar sua me e lutar por sua independéncia, Tais fases evolutivas nao so estanques, elas se intercalam, se sobre- pem umas as outras, elas aparecem associadas a outras de perfodos anterio- res e/ou posteriores. Aos 3 anos, aproximadamente, a organizagio genital est4 se desenvol- vendo, Tanto 0 menino como a menina sentem-se empurrados a experiéncias genitais e as sublimam através do jogo; brincando, representam suas fanta- sias da vida amorosa de seus pais e deles mesmos, 0 nascimento do filho, as atividades de masturbacao. _A simbologia da vida genital € muito rica entre os 3 ¢ 5 anos. O jogo da crianga se amplia e se complica nesta época; a intensidade do mesmo e a riqueza de sua fantasia permitem avaliar sua harmonia mental. Seu psiquismo (cal ponioedo} ds inept gee ee ambas teme perder, necessita conservé-las, recuperé-las, revivé-las, refazer a angiistia que 0 provocam, e assim abundam em detalhes os objetos reais fantAsticos que recriam na atividade liidica. As tipicas brincadeiras de casinha, de papai.e de mamée, de doutor, etc..., surgem numa fase onde € importante a definicio de papéis. Elas ex- * Deve-se recordar aqui o jé oélebre brinquedo do carretel descrito por Freud (1920) em “Mais Além do Prinefpio do Prazer™. 100 pressam através de brinquedos as tendéncias e atitudes masculinas e femini- “nas correspondentes & fase edipica. Mesmo havendo predominancia das atividades simbélicas nesta fase, notamos, j4 ai, um certo interesse pelos jogos com regras fixas, que vao pre- dominar na fase escolar, As regras dos jogos nao sé treinam a crianga Para uma aceitagéo das normas da familia, da-escola, da-sociedade, como também servem para esta- belecer um equilfbrio, um controle de principio da realidade que deve pre- dominar A curiosidade pelo conhecimento é a continuagao da curiosidade que sentiu a crianga 2 até os 5 ou 64 10s. Com a aprendi- ~~ O caminho que a crianga percorre vencendo obstéculos ou recebendo vantagens no brinquedo simboliza o caminho na vida real que percorreré, até chegar ao éxito ou ao fracasso. Desta maneira, simboliza o manejo de suas forgas nesta luta da adaptac4o e conquista do mundo. _Vemos, por exemplo, nos jogos de damas e de xadrez que o motor in- consciente € a necessidade de enfrentar os pais, entrar em seu mundo de adultos e competir comeles. No brinquedo, cada crianga elege seu posto ou papel de acordo com suas modalidades e com as capacidades de luta e de conquista frente a0 meio ambiente. “Aos 10, 11 anos, © mundo dos brinquedos é abandonado paulatina- mente €, na puberdade, qi se meninas se unem, as experiéncias realidade. Muitos adultos temem que isto levard a crianga a ser, na realidade, aquilo que assume enquanto brinca. Exemplo disso temos no preconceito de que “‘meninos nao brincam de boneca e que meninas nfo podem brincar com revélver”, porque “é coisa de homem”; que a crianca que brinca de mocinho € um delingiiente em potencial e assim por diante. Para contestar tais preconceitos, tomamos a comparaco entre brinque- do e sonho. Os dois tém a fungao de elaborar situagGes traumiticas e realizar desejos e ambos revelam o mundo interno, as fantasias inconscientes. Podemos nos assustar com 0 que sonhamos tanto quanto os pais que observam um brinquedo de seu filho. O brinquedo, no entanto, nao assusta e inquieta somente adultos mas 4 propria crianga com o que pode fazer “no mundo do faz-de-conta”. A ansie- A PRATICA DA PSICOTERAPIA INFANTIL 101 dade est4 subjacente nos jogos infantis e dé colorido especial ao comporta- mento infantil. Ha criangas que s6 brincam quando perto de adultos; outras brincam isoladas; algumas repetem monotonamente atividades que no pode- rfamos chamar de brinquedo. No brinquedo esteriotipado*, a crianga nao se aventura em algo novo, desconhecido, repete situacdes semi inovagées. Limita-se permanecendo sem — ‘evolugdo. Assim, o brinquedo esteriotipado pode ser compreendido sob dois aspectos complementares — por um lado é um “‘sintoma’” de conflitos no resolvidos, atuantes ¢ o proprio simbolo da luta infantil. Mas por outro ado, Jrente ao novo e aparentemente est trangiiila. , Ocorrendo o brit espontaneo, 1 crianga jé deve ter aceito 0 desa~ fio e a possibilidade de errar, de tentar ¢ ai ( desenvOl fais IENND Re procetaa’ de scordo com pasos criticos. H& mudangas decisivas nos momentos de eleicao entre 0 progresso ¢ a re- gressao, entre a integrac&o e a desconfianga, € o brinquedo ainda é um meio natural de que dispée a crianga em sua luta didria A procura da adaptaco.

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