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O NASCIMENTO DO PACIENTE O experimentalismo praticado entre os séculos 17 e 19, alimentado por teorias cada vez mais consistentes, busca nao apenas encontrar novas respostas para antigas perguntas, mas também formular novas questdes. Criam- se, assim, as primeiras metodologias para desvendar os complexos mistérios do funcionamento do corpo: a idade das meras suposi¢des agoniza, o cliente toma lentamente o lugar do paciente (do latim, patior=aquele que sofre, € nao que é passivo). As questées formuladas com o singelo como, comecam a ser feitas com o incémodo por qué. Cada 6rgao do corpo precisa explicar nao s6 como parti- cipa do conjunto dos outros érgaos, mas por que funcio- na de certa maneira e nao de outra. Ha certa unanimidade entre os historiadores em atribuir ao inglés William Harvey (1578-1657) o titulo de pai da medicina moderna. Ecom ele que a medicina comega a ser tratada, embora timida- mente, com o status de disciplina cientifica. Pela primeira vez, gracas as suas exaustivas pesquisas, o funcionamen- to correto da circulacao sangiiinea é descrito. No século seguinte, a acumulagao de conhecimentos sobre cirurgia e patologia é expressiva. Thomas Sydenham (1624-1689), chamado de “Hipécrates inglés”, defende a pratica clinica centrada na observagao direta e objetiva do paciente, para depois tratar da sua doenga, e provoca uma tempestade de criticas, Em circulos pretensamente cientificos da épo- 75 ca, era quase uma aberragao considerar 0 paciente um sujeito, e nao apenas um corpo fisico no qual se proces- sam reacées bioquimicas e elétricas. No século 18, o médico aleméo Samuel Hahnemann faz sua revolucao particular ao questionar os métodos vi- gentes de tratamento, que davam pouca importancia a in- dividualidade do doente e, com isso, atrai a ira dos cole- gas ortodoxos e dos apotecarios, estes receosos de perder fregueses dos remédios convencionais. Hahnemann inspi- ra-se no principio Similia similibus curantur, ja conhecido por Hipdcrates e Paracelso, para criar a sua teoria, que batiza de homeopatia, em oposigao a da alopatia (termo também criado por ele), segundo o qual o similar - e nao o seu oposto - cura 0 similar. No ideario homeopatico nao existe a separacao entre a doenga e o doente, principio que nao deveria ser esquecido pelos médicos alopatas, pois esta é, talvez, a mais importante contribuigaéo da homeo- patia. Mesmo gozando no Brasil a condigao legal de espe- cialidade médica, a homeopatia continua a enfrentar o ce- ticismo da medicina tradicional, que atribui seus efeitos aos mesmos conseguidos com o uso de placebos, quando muito, pois nado véem nela nenhuma base cientifica. Praticamente tudo sobre a estrutura e o funcionamen- to do corpo humano ja é conhecido no come¢o do século 19, cuja decodificagao coroou o trabalho solitario e muitas vezes incompreendido de cientistas que se sucederam na busca da racionalidade do seu oficio, exorcizando tudo que o impedia de impor-se como 0 Unico método capaz de enfrentar as doengas. Se, de um lado, a satide do pacien- te foi beneficiada com a racionalidade dos diagnésticos, do tratamento e dos prognésticos, de outro, sua impor- tancia como pessoa era pouco lembrada. Nao parecia haver espago, no tratamento da doenga, para a atengao ao doente, atitude cliché que ainda perdura, pois como 76 lembra a médica americana Rachel Naomi Remen, o mé- dico nao é ensinado a assumir, como parte da sua fungao, a responsabilidade de prover o crescimento do paciente como pessoa, ou seja, a percepcao de que ele é mais do que a sua doenga, vale dizer, da doenga do seu corpo. Até 0 inicio do século 20 a ciéncia médica estava con- taminada pela teoria de Descartes da separagao men- te/corpo que Santo Agostinho levou as ultimas conse- qiiéncias misticas. Para o filésofo francés, a medicina é — ou deveria ser — uma ciéncia exata, e 0 corpo uma ma- quina da qual, como a do relégio, se espera um funciona- mento preciso. Essa viséo mecanicista contribuiu para radicalizar a oposi¢ao entre o corpo, com leis de funcio- namento supostamente conhecidas, e a mente, cujos mistérios insondaveis sé poderiam ser conhecidos por Deus. O fundamento da teologia agostiniana repousa nessa oposi¢ao, s6 que a visao biologicamente correta nao é entre mente e corpo, e sim entre corpo e organis- mo, porque quando dizemos que temos um organismo, precisamos nos lembrar que somos um corpo ao qual a mente esta inexoravelmente integrada, e nao separada. A luz dessa dicotomia, fica mais facil entender por que o médico, ao deter-se apenas no (mau) funcionamento do organismo, esquece-se de que 0 paciente é mais que um conjunto de orgaos que precisam de tratamento: ele tem um corpo que nao apenas se opoe, mas transcende 0 or- ganismo, individualizado que é pela personalidade. A relagao do doente com o seu corpo e, por extensao, com sua singularidade, estabelece-se de forma dramati- ca: a crenga, desmistificada, de que pode ficar doente — infortunio reservado aos outros - atira-o num vortice de inquieta¢ao existencial. Parte integrante do ego, 0 corpo, na classica explicacao freudiana, nasce com a sua desco- berta, Com a doenga, ego e corpo experimentam um do- 77 loroso processo de ruptura, sensacao nova e estarrecedora, Dissociado do corpo, o ego, Freud ja advertiu, torna-se fraco e vulneravel, contribuindo para agravar os sintomas da doenga. Passamos entao a falar dele como seus senho- res absolutos, e que portanto ele nao pode ser examinado, rasgado, costurado, manipulado, na condigado de mera maquina com engrenagens emperradas. As religides orientais ensinam que a felicidade sé pode ser alcangada com 0 aniquilamento do ego, aprendizado que inclui 0 altruismo com o prdprio corpo e uma parado- xal tentativa de adequé-lo a perfeicao espiritual (tantrismo, ioga etc.). Para nés, herdeiros do ideal da perfeicao sagra- da helénica, a descoberta traumatica de trair esse ideal e de ele ser um servo rebelde, adoecendo sem autorizacao, € sempre traumatica: nosso corpo passa a ser algo como um outro de nds mesmos, regido por leis que escapam a compreensao. Como observa o pensador e tedlogo Hubert Lepargneur (1), “a doenca levanta apenas de maneira mais aguda um problema de todo ser humano, a oportuna e necessaria dialética entre a aceitacdo e a recusa do corpo Para a auto-identificagao. A pessoa é ao mesmo tempo visivel e invisivel.” A compreensao dessa dialética, que po- deriamos chamar de “distanciamento”, é fundamental para 0 médico entender como a sua colaboragao € importante para que o paciente se reconcilie com o seu corpo e néo o veja como 0 territério estranho que passa a odiar. Manter 0 controle sobre o corpo é esperancga magica de garantir o seu funcionamento perfeito, mas infelizmen- te nao somos seus senhores, Ao contrario, o dominio que pretendemos ter sobre ele nos torna ainda mais seus es- cravos. O certo é que, com a chegada da doenga, essa troca de auloridade fica incontestavel. Naomi Remen ano- ta que, ao provocar dor ou fraqueza, a doenga exige a aten- ¢a0 do individuo para determinada parte do corpo e suas 78 necessidades e ele sente raiva Porque seu corpo se recusa a obedecer todos os seus comandos. Perder a inocéncia em acreditar que nossa individualidade sé pode ser mantida enquanto formos saudaveis é experiéncia terrivel. A doen- ga € a materializagao de um destino que nos desindi- vidualiza: nossa vida comega a girar em torno de mera combinacao de frios diagnésticos com imponderaveis prog- nésticos. E af que entra em cena o saber médico, que nem sempre inclui a necessidade de nao separar o doente da doenga, pois a teoria académica esta centrada na relagao médico/doenga. Embora muitos professores tentem corri- git essa distorgéo, sua voz é ainda fraca. O pensamento académico continua o mesmo de duzentos anos atras: 0 médico é preparado para se relacionar com a doenga, nao com 0 paciente. Por sua vez, a distingao entre doenga gra- ve e menos grave nao tem repercussao naquilo que o pa- ciente espera receber do médico: tenha ele uma gripe ou um cancer terminal, sua necessidade de atengao, apoio e conforto nao pode ser dosada em fungao do seu estado: o que ele precisa é sentir-se como um pdlo atuante da co- municagao com seu médico. 79 nais de Catalogacao na Publicagdo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) 0 médico e o paciente : breve historia de uma relagao delicada / 9. C. Ismael. ~ 2. ed. rev. € ampl. - Sio Paulo : MG Editores, 2005. Bibliografia, ISBN 85-7255-038-0 1. Doentes ~ Cuidados 2. Medicina - Historia 3. Médico e pa- ciente I. Titulo, CDD-610.696 05-1946 NLM-W 62 OW 6 indice para catdlogo sistematico: 1, Médicos e pacientes 610.696 Compre em lugar de fotocopiar. Cada teal que vocé da por um livia vecompensa seus autores © 05 convida a produzir mais sobre 0 tema; ‘neentiva seus editores a traduzit, encomendat e publicar outtas obras sobre o assunto; © Paga aos livieitns por estacar e levat até voc® livios Pata sua informacdo e seu entietenimento. ‘ada eal que voce dé pela fotocopia nao autorizaa de un tivo financia um crime © ajuda a matar a producao intelectual

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