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{I | Mauro Martins Amatuzzi AEDIEORA 2: Edigao por uma PSICOLOGIA /HUMANA E preciso que a Psicologia busque se aprofundar naquilo que é caracteristicamente humano. Do contrario ela nao podera contribuir no dialogo dos que buscam saidas verdadeiras para os problemas pessoais e sociais que enfrentamos em nosso mundo conturbado. E preciso que ela se debruce sobre os sonhos que alimentamos em nosso intimo, sobre nosso desejo de uma vida mais digna, sobre o sentido que queremos dar as nossas vidas, sobre as formas como podemos, de verdade, dar andamento as nossas mais legitimas aspiragdes. E isso nao apenas em termos individuais, mas, também, em termos da comunidade que constituimos, entre nés humanos e com a natureza, mae que nostodeia. Este livro procura resgatar para a Psicologia - como estudo e pratica de desenvolvimento da pessoa humana — aquilo que nos vem da tradigaéo humanista. Procura ‘9 sentido que pode ter o humanismo para a Psicologia (capitulo 1), ¢ os fundamentos. desse sentido numa fenomenologia da fala e do silencio (capitulo 2). Busca aplicar, em ‘seguida, 0 que foi ai levantado ao campo da pesquisa do humano (capitulos 3, 4 € 6), a psicoterapia (capitulos 5 e 7), construgaode uma psicologia popular (capitulo 8), e ao esforgo de construir uma comunidade verdadeiramente humana (capitulo 9). Por uma PSICOLOGIA Humana Mauro Martins Amatuzzi DIRETOR GERAL Wilon Mazalla Jr. COORDENACAO EDITORIAL. Willian F. Mighton COORDENAGAO DE REVISAO Erika F. Silva REVISAO DE TEXTOS Vera Luciana Morandim R. da Silva EDITORAGAO ELETRONICA Sofia Cavalcante REVISAO DE FILMES Rosangela A. Santos CAPA Fabio Cyrino Mortari Dados Internacionais de Catalogagao na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Amatuzzi, Mauro Martins Por uma psicologia humana / Mauro Martins Amatuzzi. -- Campinas, SP: Editora Alinea, 2008. 2* edigio. 1, Psicologia humanista 1. Titulo. 01-4247 CDD - 150.198 indices para catalogo sistematico: 1. Psicologia humanista. 150.198 ISBN 978-85-7516-243-9 Todos 0s direitos reservados & Editora Alinea Rua Tiradentes, 1053 — Guanabara ~ Campinas-SP CEP 13023-191 — PABX: (0xx!9) 3232.9340 e 3232.2319 www.atomocalinea.com.br Impresso no Brasil Agradego aos editores das revistas abaixo mencionadas ¢ a diretoria ANPEPP juntamente com a Dr* Regina Maria Leme Lopes Carvalho, a ermissao de retomar textos ai publicados originalmente, para a composi¢ao presente livro: Arquivos Brasileiros de Psicologia Estudos de Psicologia (PUC-Campinas) Psicologia em Estudo Psicologia: Teoria e Pesquisa Prometeo ~ revista mexicana de psicologia humanista y desarrollo humano Coletaneas da ANPEPP. presentacao. ipitulo I. Humanismo e psicologia \pitulo IT. Siléncio e palavra .. Da fala ao siléncio surgimento do secundario...... A compreensao. ipitulo IIL. Investigago do humano ... ipitulo IV. Pesquisa do vivido pitulo V. Atendimento psicoterapico.... ‘A palavra foi feita para calar..... Escutar é abrir-se para o mundo, e responder upitulo VI. Versio de Sentido .... Compreendendo a VS a partir de sua histéria hist6ria e outras abordagens Tentativa de defini¢ao .. Para uma fundamentagao teéric: Principios gerais para 0 uso da Versio de Sentid Capitulo VII. Etapas do processo terapéutico A problematica... O material... Os caminhos da anilise....... Os resultados... O alcance desses resultados. Confirmagées externas ConsideragGes finais. Capitulo VIIL. Psicologia popular. Capitulo IX. Processos humanos ... O que é processo Os processos na vida A explicag4o psicoldgica do processo.. Processos grupais Processo comunitario e outros 4mbitos...... m sobre todos os humanos que em salas de aula, em ruas € , em sessOes de psicoterapia, em reunides de sindicatos, em ‘ec igrejas traduziram em atitudes seus compromissos e valores. a de tudo um manifesto a favor do existir humano em 0, numa arrojada aventura iluminada e nutrida pela palavra. juro Amatuzzi tem sido assim, um psicdlogo que filosofa, em tiplas atividades como professor, pesquisador, conselheiro € liste nao é apenas mais um de seus livros; constitui uma sintese nificados atribuidos, ao longo de mais de trés décadas, a consistentes no sentido de um engajamento com pessoas ¢ dades na lida diaria pela recuperagéo da dignidade humana. foram, certamente, as versdes de sentido, mas nunca em ento do sentido do proprio viver, como valorizagao do cotidiano nstrugao de experiéncias pessoais. - Os capitulos que compédem esta obra mantém a énfase no smo como uma perspectiva de abordagem ao psicolégico, na ‘a como definigdo primeira do ser humano, na investigagao do ido como possibilidade de uma apreensio compreensiva do diano, no processo como historicidade critica e constitutiva. Por uma Psicologia Humana & um titulo que marca a Mificagao do autor com a praxis de uma atividade profissional, O cuidar ... Criando bolsdes de humanismo . Referéncia: cuja matriz de pensamento substancia um compromisso com desenvolvimento de uma abordagem interdisciplinar aos problemay e ao desenvolvimento humano, aplicada a individuos, grupos ¢ comunidades. Isso, em esséncia, define 0 proprio surgimento di Psicologia Humanista em sua retomada dos valores renascentistas, com énfase na recuperagao da importancia do homem em seu tempoe contexto, valorizado em sua totalidade. Sim, quero a palavra Ultima que também é tao primeira que jé se confunde com a parte intangivel do real. Ainda tenho medo de me afastar da légica, porque caio no instintivo eno direto, e no futuro: ainvengao do hoje ¢ © meu Unico meio de instaurar o futuro. Clarice Lispector em sua Agua Viva parece traduzir de maneira simples e ainda assim magnifica a importancia de um livro como este, em que da palavra emerge a confirmagao do vivido em sua concretude atual e do transcendente como devir humano. De um ponto de vista estritamente pessoal, julgo imprescindivel também reverenciar 0 homem Mauro Amatuzzi, meu colega e parceiro num processo em que a cronologia do tempo é de menor importancia face a grandeza do inusitado, das vivéncias diversas, das contradigdes feitas de encontros e desencontros, da magia em momentos de descoberta académica. Em meio ao turbilhdo das pesquisas, dos relatorios, das reunides administrativas, sobrevive o aconchego de abragos essenciais, de olhares certeiros, a nos acalentar a certeza de que ainda nos importamos com o outro, este amigo que pode ainda ser cumplice nas horas, tantas vezes vazias e despidas de significados, em que o humano parece escapar de dentro de nossos papéis ¢ desempenhos. Vera Engler Cury O texto a seguir corresponde originalmente a uma palestra pronunciada na JV Jornada de Psicologia Humanista, promovida pelo Centro de Psicologia da Pessoa e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em agosto de 1988, ¢ depois publicada em Arquivos Brasileiros de Psicologia, 41, (4), pp. 88-95, set./nov. de 1989, com 0 titulo O significado da Psicologia Humanista, posicionamentos filoséficos implicitos. Ainda gosto bastante dele. Parece-me que ele aponta para a largueza do territério de uma Psicologia realmente Humana. Fiz pouquissimas modificagGes, somente para adaptar o texto ao novo titulo. Hoje creio que & melhor falarmos do Humanismo na Psicologia, do que da Psicologia Humanista. essencial do que quero dizer a respeito desse assunto pode ser colocado em algu- mas poucas proposigées. E a primeira é a inte: o homem nao é um “bicho que fala”, mas le ¢ a propria palavra, isto é, ele é palavra. Reen- tro aqui uma idéia que é tanto de Heidegger ymo de Buber: nao é a linguagem que se encontra homem, mas 0 homem que se encontra na lin- uagem. A segunda proposi¢ao é que isso nao é poesia” ou jogo de palavras, como talvez possa parecer, Trata-se de uma afirmagao muito precisa, jue nos coloca num outro ambito de considera- Ges, ou seja, que implica mudanga radical de pon- to de vista. E a terceira é justamente que essa 10 Mauro Martins Amatuzzi mudanga radical de ponto de vista 6 0 que mais caracteriza a con- tribuigao do humanismo para a psicologia. Nao se trata, com efeito, nem de uma mudanga de objeto, nem de uma mudanga de método, e nem mesmo, quem sabe, de uma mudanga tedrica. Trata-se na rea- lidade de uma mudanga na relagdo com o objeto. Essa mudanca 6 capaz de assumir em determinados momentos 0 mesmo método, s6 que num contexto onde o sentido global é outro, o que faz com que a visdo resultante (a teoria, nesse sentido) seja outra, mais abrangente, capaz de conter as vis6es anteriores, s6 que como parciais, ¢ reco- nhecidas como parciais. Nessa nova visio a teoria, alias, se torna ela mesma relativa: nao se trata mais de teorizar, como um fim. A teoria passa a ser ela também um momento de algo mais amplo, que 6 0 que afinal importa. E esse algo mais amplo é antes um compromisso que uma teoria. Uma das coisas que subjaz a essas proposigdes 6 que a consideracao do sentido é fundamental. Para compreender 0 ser humano, tenho que lidar com questées de sentido. A consideragdo do ser humano em termos de causa ¢ efeito, antecedente e conseqiiente, parte e todo, por mais cabivel, correta ou verdadeira que possa ser, nao da conta do que seja o ser humano como totalidade em movimento. Em outras palavras: posso explicar certas ocorréncias humanas ou comportamentos a partir de “causas” internas ou externas (motivagGes inconscientes ou configuragdes de estimulo, por exemplo), posso analisar relagdes de antecedente-conseqiiente (como por exemplo 0 efeito de uma recompensa), ou posso explicar certas coisas em fungao das relagdes parte-todo (como por exemplo quando digo que o modo de ser de uma pessoa é a repercussao individual de problemas ou situagées coletivas bem caracterizaveis). Posso ainda descrever como é que tudo isso se articula numa espécie de historia geral de conflitos e fantasias, e que se aplicaria a todas as pessoas ou a maioria (psicologia do desenvolvimento). Cada uma dessas coisas é valida e possivel, e de fato é feita, com muitas pesquisas, certamente. Mas nenhuma delas em separado, e nem todas somadas, dio conta do ser humano como totalidade em movimento. Algo fica faltando, e nao é algo que possa ser cumprido dentro de cada um daqueles enfoques. Nao é tanto que essas explicagdes estejam incompletas. Sim, até estdo, e haverd sempre mais a Por uma Psicologia Humana u pesquisar nessa linha. Mas a incompletude a que me refiro é de outra ordem. Talvez “explicagdes” dessa natureza nao bastem, e por mais que somemos explicagdes nao estaremos entendendo ainda o principal desafio que se coloca para nés face ao nosso viver: 0 que vamos fazer com nossa vida? Que sentido vamos dar a ela, ¢ de tal forma que nao nos isole de um sentido mais global? Sob esse enfoque o ser humano nos aparece nado como resultante de uma série de coisas, mas como, fundamentalmente, o _ iniciante de uma série de coisas, ¢ os desafios daquilo que ele deve criar no so respondiveis com explicagées daquele tipo. O homem 86 aparece naquilo que ele tem de mais proprio, com a questo do sentido, nio com a questao da causa explicativa. A relagao explicativa se refere ao homem como resultado, como repertorio, ou como recebido, e, portanto, em definitivo, ao homem como passado. Nao se refere ao homem atual, ao homem desafiado, ao homem tendo que responder e posicionar-se, ao homem presente (face a um futuro). Este homem atual, presente, desafiado, interpelado, em movimento, é 0 que encontra as questdes de sentido: essas so as quest6es presentes, que surpreendem o homem como existente (nado apenas como natureza, como diria Merleau-Ponty). Dizer que o homem é um “bicho que fala” (0 que equivale a dizer que é um “animal racional”) é ficar no ambito das explicagoes, e portanto, do homem como resultado. Mas isso nao é ainda o homem atual. S6 poderemos chegar a ele mudando 0 ponto de vista e assumindo as questées de sentido que definem sua atualidade. O que cle fala? O homem atual, presente, existente, € constituido pelas questdes de sentido. Ora, a palavra é exatamente a questio do Sentido. Por isso o homem atual se encontra na palavra, e nio o contrario. E na decifragao de suas questdes de sentido que o homem pode se instaurar em sua atualidade. Mas é preciso tomar cuidad essa decifragaéo pode ser vivida como uma redug&o ao esquema explicativo onde apenas encontraremos 0 homem-resultado, e nao o homem em sua atualidade. Isso, para Merleau-Ponty, seria permanecer no nivel da palavra secundaria, da fala inauténtica, do falar sobre, da fala sobre falas. A fala sobre falas é ainda um discurso No passado. A decifragao do sentido sé sera um discurso no presente fe for vivencial, experiencial, uma vivéncia do préprio sentido 12 Mauro Martins Amatuzzi criando novos sentidos. E enfrentando os desafios que vou decifrando os sentidos e criando novos sentidos. 4 decifracao dos sentidos que permanece no atual identifica-se com o enfrentamento dos desafios, e nao é apenas um estudo deles. O homem atual, portanto, encontra-se no assumir as questdes de sentido e isso significa uma reviravolta completa de perspectivas (do homem-resultado para 0 homem-atual). E é exatamente essa reviravolta que faz o sentido do humanismo na psicologia. Antes de passarmos para um outro ponto, gostaria de trazer aqui uma consideragao paralela que pode nos ajudar a compreender essa questo que acabo de formular. A diferenga que existe entre essas duas perspectivas é a mesma que existe na consideragao da cultura como resultado (ou como produto), e da cultura como ato cultural. Uma coisa é estudar os produtos culturais (objetos, maquinas, obras de arte, utensilios, ou outros produtos como a ciéncia, a religiao, ou as estruturas de parentesco ou estruturas de relagdes de trabalho etc.) de algum grupo social ou sociedade. Aqui estamos estudando a cultura de um povo como algo dado, e, portanto, acabado. Outra coisa completamente diferente (embora possa incluir a primeira) é ser agente cultural, produzir cultura, inserir-se num movimento vivo de produgao cultural. A diferenga entre essas duas coisas é clara. Ora, acontece que o termo “cultura” pode ser definido em uma dessas duas diregées, originando-se dai muita confusdo. A cultura que é vista pelo estudioso nao tem nada a ver coma cultura que é praticada pelo agente cultural. No primeiro caso temos um produto acabado e mais ou menos estatico: é a cultura como produto cultural. No segundo, temos a cultura como contetido de um movimento incessante, algo em constante mutagiio. No primeiro caso fazemos historia no sentido de retratar um passado (ou algo acabado), no segundo fazemos histéria no sentido de construira historia em curso. Ea historia que fazemos retratando s6 tem sentido em fungao da historia que estamos construindo. A cultura de um povo nao é algo feito, mas algo que se faz, e reduzir uma coisa 4 outra é, na realidade, esmagar o potencial criativo de um povo, e tentar estagnar um movimento, impedindo que esse povo enfrente seus verdadeiros desafios, A cultura ha que ser definida como um processo vivo e nao como um conjunto de produtos acabados. O ser humano tem que ser captado em seu movimento, € isso s6 pode ser feito movimentando-se, inserindo-se num Por uma Psicologia Humana 13 processo. O homem como resultado, ou a cultura como produto, nao sao ainda o homem atual ou a cultura que se faz. Acredito que 0 sentido do humanismo em psicologia é 0 de nos colocarmos na postura do atual, do presente, do atuante, do em curso; e todas as explicagées s6 terao valor como instrumentos para isso, mesmo que, como instrumentos, permanecam aquém dessa atualidade. Voltemo-nos agora para o Humanismo, e vejamos 0 que essa palayra nos sugere. Podemos encontra-la usada pelo menos de quatro modos diferentes em relagao a Psicologia. 1. No sentido estrito o Humanismo é um movimento cultural, europeu, tendo seus primérdios ja no século XIV, e que esteve intimamente ligado 4 Renascenga. Mas é talvez dai que 0 termo tenha se generalizado, podendo ser aplicado a qualquer filosofia que coloque o homem no centro de suas preocupagdes, ou como um adjetivo aplicavel a outros movimentos, como é 0 caso da “psicologia humanista” (ou do humanismo na psicologia). O movimento cultural da Renascenga precisa ser entendido em fungio de seu contexto. De algum modo ele aparece como uma espécie de reac&o contra um sobrenaturalismo medieval que naquela época significava um desprezo pelo que é humano: nada das coisas desta vida é importante a nado ser aquilo que aqui é uma aquisi¢ao de méritos para a vida futura, eterna, apds a morte. A vida presente, nesse sentido, nao é levada a sério em sua consisténcia propria, ndo tem valor nenhum em si mesma. O préprio homem, em si, em seu corpo, nao precisa ser cultivado, uma vez que seu destino é a morte; 0 importante é cuidar da alma imortal. As coisas do mundo sao transitérias e um cendrio passageiro para as coisas eternas, que s&o as que importam. A arte, a ciéncia, a politica, a beleza, a flexibilidade corporal nao so coisas que devam deter o interesse do sabio, mas sim, as coisas eternas, sobrenaturais, as virtudes da alma. A satide do corpo, a maturidade psicolégica nao sao importantes a nao ser como substrato minimo para as virtudes que nos preparam para a vida eterna. O humano, o temporal, este mundo sao assim 14 Mauro Martins Amatuzzi altamente desvalorizados em favor do espiritual, do eterno, do sobrenatural. A cultura antiga, representante desse humano, era, assim, mais ou menos desprezada, ou entao era lida como um simbolo ou apelo de algo outro, maior. Nao que isso tivesse caracterizado a Idade Média toda. Mas eraa forma como uma face do pensamento medieval foi lida a partir do ponto de vista da Renascenga e do Humanismo. Uma nova necessidade nos faz freqiientemente caricaturar a visdo anterior. Seja la como for, esse humanismo nasceu sob a bandeira da revalorizacao do humano, o que significava na pratica um retorno aos classicos, e 4 cultura paga greco-romana. O que é humano tem um valor em si mesmo, © nao como mero suporte ao sobrenatural; este mundo nao é apenas um cendrio provisério e sem importancia para algo que nao tem nada a ver com ele; 0 tempo, 0 que se constréi paulatinamente, o crescimento humano sio importantes (o tempo, e nao a eternidade, é onde se constroem as coisas, € estas coisas que construimos). O homem é corpo tanto quanto alma, e é como um todo que ele tem que ser cuidado. Virtude é 0 desenvolvimento das potencialidades humanas, endo algo acrescentado de fora. Para alguns isso representou uma rejeigao da visao teoldgica das coisas, e no século XX isso é representado pelo humanismo ateu (cujo exemplo mais contundente é Sartre). Para outros essa revalorizagao do humano, do mundo, do tempo nao se define por um posicionamento anti-religioso ou ateu. Existe todo um humanismo cristo segundo o qual é na trama deste mundo que realidades definitivas esto sendo construidas (e um exemplo eminente desse humanismo em nosso século é Teilhard de Chardin). De qualquer forma essa revalorizacaio do homem, das coisas do homem, da historia humana, daquilo que aqui efetivamente se faz, da atualidade do humano, nao se relaciona necessariamente com uma posicao religiosa ou anti-religiosa. O que polariza esse movimento é justamente uma volta a atualidade do humano, e um acreditar que esse é 0 caminho. 2or uma Psicologia Humana 15 2. Erich Fromm fala do humanismo nao como um movimento localizado na Europa do século XIV. Ele fala de uma tradigéio da ética humanista que encontra representantes em praticamente todas as épocas do pensamento ocidental. Ele proprio pretende ser um pensador que se insere nessa tradi¢aio. “Na tradigao da ética humanista”, diz ele, predomina a opiniao de que oconhecimento do homem éa base para o estabelecimento de normas e valores (1947, p. 31). “Normas e valores” aqui referem-se 4 quest’io do caminho, por onde vamos, que é a questéo do sentido. Na tradigao humanista essa questo se responde a partir de um conhecimento do homem. E Fromm continua: Os tratados de ética de Aristételes, Spinoza e Dewey [...] sao por isso, ao mesmo tempo, tratados de Psicologia (Id. ibid.). O equacionamento € 0 encaminhamento desses problemas sao ao mesmo tempo ética e psicologia. Etica, porque seu contetido € a questo do sentido, do por-onde-vamos; e psicologia, porque para isso nos debrugamos sobre o homem buscando um conhecimento de sua natureza. Um pouco antes Erich Fromm havia dito: Na ética humanista o bem éa afirmagao da vida, o desenvolvimento das capacidades do homem. A virtude Consiste em assumir-se a responsabilidade por sua prépria existéncia. O mal constitui a mutilagao das capacidades do homem; © vicio reside na irresponsabilidade perante si mesmo (Id. ibid., pp 27-8). Rogers e Maslow aproximam-se bastante de semelhantes concepgdes. No fundo existe uma crenca no homem, uma confianga no que nele se manifesta. A expressaio tedrica disso € a tendéncia atualizante de Rogers, ou o conceito de auto-atualizagao de Maslow. O que esté na raiz do humanismo nfo é, pois, apenas um postulado tedrico, ou uma hipétese, mas uma atitude concreta em favor do homem. Isso é mais fundamental que as teorias que a partir dai se constroem. Teorias diferentes sobre o homem podem ser consideradas humanistas. O que as une nfo € tanto que todas aceitem determinadas afirmagées, mas uma atitude. Por isso Fromm fala de uma tradigao ética: ha valores envolvidos, mais que afirmacgdes abstratas. Ha posicionamentos e compromissos, e nado 16 Mauro Martins Amatuzzi apenas teses cognitivas (isso nao quer dizer, é claro, que esses posicionamentos devam ser ingénuos: existe toda uma elaboragao critica posterior que tende a confirmé-los, € isso no proprio Erich Fromm). - André Amar, numa visao de conjunto da histéria da psicologia publicada num diciondrio de psicologia francés, situa quatro momentos dessa histéria. O da Psicologia Aumanista, que, na sua consideragao, é o que vem da Idade Média ou mesmo da Antigiiidade grega, e vai até o comeco da psicologia cientifica; caracteriza-se basicamente por um posicionamento ético, isto é, por uma ndo-dissociagdo entre uma pesquisa objetiva, digamos, e um posicionamento de valores: é a psicologia brotando do contexto de uma ética, de uma visao do sentido da existéncia. O segundo momento é 0 da psicologia cientifica.onde exatamente se da essa ruptura entre a objetividade cientifica e a ética. Ele situa depois, como terceiro e quarto momentos, a psicandlise e a Psicologia fenomenolégica, e neste ultimo, principalmente, comegam a reaparecer coisas do primeiro momento. E curioso notar que esse autor, sendo europeu, nao fala da psicologia humanista tal como esse conceito aparece nos Estados Unidos, como algo bem especifico, mais do que no sentido de Erich Fromm, inclusive. Sua classificagao sugere também que além de um posicionamento ético indissociavel, uma psicologia humanista implicaria uma. critica a atitude cientifica. Retomaremos a esse ponto. Vemos que esses trés sentidos de humanismo convergem. em seu denominador comum, apontam para o mesmo: ponto, tém o mesmo “sentido”. . Mas concentremo-nos agora, entdo, na psicologia humanista no sentido restrito e contemporanco do termo. E aqui dois livros que se tornaram classicos, por exemplo, Psicologia Existencial Humanista, de Thomas Greening, e A Psicologia do Ser, de Abraham Maslow. E 0 tempo ¢ a década de 1960 nos Estados Unidos. Tempo de guerra do Vietna; crise moral, de valores. O pais envolvido por uma guerra considerada absurda pelo povo americano. E esse Por uma Psicologia Humana 17 questionamento nao era apenas tedrico: teve inumerdaveis manifestagdes pessoais e coletivas, as quais certamente tiveram uma importancia para a retirada das tropas americanas do Vietna. Tudo isso representou um grande questionamento coletivo do sentido da presenga americana no mundo, Uma crise ética. Esta psicologia humanista surgiu como uma reagio, a partir da insatisfagao sentida face aos dois conjuntos tedricos mais importantes em psicologia: 0 behaviorismo e a psicandlise; bem como face a uma descrenca nas possibilidades da filosofia. Nao se tratava de negar as descobertas feitas no behaviorismo e na psicandlise, mas de um sentimento de que eles, permanecendo em suas perspectivas originais, nado traziam as respostas de que se precisava: o ser humano com seus questionamentos atuais nao estava 14, por mais validas que fossem as explicagdes ai dadas. Poderiamos dizer que essa psicologia, permanecendo nos quadros de sua ortodoxia, podia nos dizer como treinar um soldado, ou porque um soldado ficava perturbado quando voltava da guerra, mas nio era esse 0 problema do povo americano. O problema era qual o sentido da guerra, ¢ qual o sentido da vida e da morte (ou da minha vida e morte, ou de meu filho ou de meu marido). E aqui a psicologia tradicional nao ajudava muito. E tudo isso ' era urgente: os jovens estavam morrendo, ¢ 0 holocausto ja estava no horizonte. Quanto 4 filosofia, para Maslow pelo menos, ela aparecia como um conjunto de palavras apenas, sem nada de mais concreto. Quando o humanismo afeta a psicologia, entao, resulta dai nio ina teoria especifica, nem mesmo uma escola, mas sim um lugar ¢omum onde se encontram (ainda que com pensamentos diferentes) todos aqueles psicélogos insatisfeitos com a visio de homem " Implicita nas psicologias oficiais disponiveis. O rétulo especifico de icologia humanista é apenas um episddio, diria momentineo, de {go que tem um sentido maior: a presenca de uma atitude humanista interior da psicologia. Mauro Martins Amatizzi Penso que posso colocar esse sentido maior em quatro pontys: 1. A primeira parte do livro de Maslow tem por titulo exatamente “Uma jurisdigao mais ampla para a psicologia’, e os dois capitulos que compéem essa parte sfo: “Para uma Psicologia da satide”, e “O que a psicologia pode aprender com os existencialistas”. Trata-se, no fundo, de admitir quea psicologia possa trabalhar a questo dos fins, da sade, da auto-realizagao, € nao apenas dos meios, da doenga ou Jo ajustamento minimo. Mas isso tudo é aquest&o do “para onde vamos”. A psicologia nao pode ser apenas um conjunto de conhecimentos técnicos a servigo de qualquer finalidade; & enquanto toma para si também essa questiio que ela se fiz afinal uma ciéncia do homem, e nao antes. Isso tem a ver com a neutralidade ética da ciéncia coro alguma coisa a ser redimensionada (e acredito que essa questo nao se aplique apenas as ciéncias humanas). A ci€ncia sé é eticamente neutra formalmente, abstra itamente. O ato cientifico concreto nunca é neutro: ele se insere num contexto de sentido e serve a alguma direcao do caminher humano. Para nos convencermos disso, basta que consideremos os critérios de financiamento de pesquise, Mas essa no neutralidade vai mais longe e toca na propria questao do alcance do saber: aquilo que eu vejo depende do Ponto de vista a partir do qual me coloco para olhar. E so dentro de um posicionamento de compromisso com 0 se: humano como um todo (coisa que nao é nada abstrata, mas acarreta até posi¢des politicas) que meus olhos se abrer para determinados aspectos do ser humano, ou que me disponho a pesquisar determinados problemas e de um determinado modo. 2: Husserl foi um dos que iniciou um questionamento da aplicagao do método cientifico a realidade humana. Nao se nega a validade das conclusdes. Mas se discute 0 alcance delas. Aquilo que elas afirmam caracteriza o ser humano? Para Husserl, a originalidade da consciéncia fica fora do alcance do método das ciéncias naturais exatamente por sua realidade intencional (que sé é captada através da questo do sentido). Por uma Psicologia Humana 19 A atitude cientifica define um tipo de relagao (a relacdo objetificante) que ndo capta a pessoa atual mas apenas o ser humano como resultado. Para Buber, o centro da pessoa sO se revela no ato da relagdo. As afirmagées cientificas podem ser verdadeiras mas nao caracterizam aquilo que é especificamente humano. A maneira como costuma ser tratado o processo de comunicagao dentro de uma abordagem cientifica seria um exemplo interessante. O processo pode ser dividido em seis momentos: 1) o da mensagem intencional a ser comunicada; 2) o da codificagio da mensagem; 3) a comunicacio ou expressao propriamente dita; 4) a recep¢ao da comunicagao através das janelas sensoriais; 5) a decodificagdo no nivel central superior; e 6) a compreensdo da mensagem. Tenho seis coisas diferentes e bem especificas (¢ um distirbio de comunica¢ao pode ser situado em um desses seis estgios). Por mais util que possa ser tal esquema, em termos de compreensao do que vema ser a comunicacao ou mesmo 0 ato expressivo, nada de mais falso do que esse retrato. Para nao falar sendo de um aspecto, a propria mensagem depende dos Ppassos seguintes, neles se transforma, nao esté plenamente constituida independentemente deles. Ela s6 se torna 0 que é quando ja nao é mais pura mensagem intencional (mas ja & comunicagao, por exemplo). A ciéncia tradicional nao tem como lidar com isso. Um outro exemplo é 0 do gesto significativo: 0 dedo que aponta para a lua, por exemplo. Idiota é aquele que, quando aponto para a lua, olha para meu dedo. A esséncia de um gesto s6 ¢ dada fora dele. Olhando para o dedo, por mais que 0 analise e disseque cientificamente, nao chegarei a lua, e portanto, nem mesmo 4 realidade de minha mao atual como gesto, como presenga. Ora, o homem é essencialmente um gesto, em sua presenga ou em sua existéncia, Ele é um atribuidor de sentido, e é assim que cle constitui um mundo e se constitui a si mesmo na relagao com o mundo. Se separarmos as coisas, compartimentalizando-as, nao mais veremos a realidade significativa, a atual, 0 presente. Nada mais diferente de um movimento que um retrato, nada mais diferente de um ser vivo que um cadaver. 20 w Mauro Martins Amatuzzi A diferenga entre a pesquisa objetiva e a participante também ilustra a mesma questo. Nao se trata apenas de uma diferenga de método para se conseguir 0 mesmo resultado. O saber produzido é concretamente outro, o assunto pesquisado é outro, o possuidor do saber é outro. Trata-se de uma diferenga na forma de conceber a relacgao humana e 0 conhecimento. - Gosto de entender a atitude fenomenolégica por comparagao com a atitude ingénua ea critica. Segundo a atitude ingénua, existe um mundo independente, constituido por si mesmo, e como tal cognoscivel (e Maslow fica ainda nessa atitude, ao que parece; é o prego que ele paga por nao ter sido um pouco mais filésofo). J4 na atitude critica, sabemos que o que percebemos desse mundo depende de nossos referenciais. Costuma-se referir a Kant, com sua critica ao conhecimento, para 0 nascimento mais forte dessa atitude; é preciso relativizar 0 conhecimento e estudar os referenciais através dos quais ele se da. Creio que a atitude fenomenolégica vai além da critica, e eu a formularia assim: é sé na interagao que teremos 0 verdadeiro conhecimento. O conhecimento compée a interagao humana com o mundo, é um aspecto dela. Uma interagiio sem conhecimento é pobre e de um nivel inferior, e ilude se nao nos dermos conta disso. O humanismo em’ psicologia aponta para uma atitude fenomenolégica. - E so nessa postura totalmente diferente que se revela o homem no que ele tem de proprio, Aquilo que se revela ai é uma totalidade em movimento, uma criatividade, e nado completamente isolavel de totalidades mais abrangentes. 0 homem como pessoa atual é 0 homem como palavra, isto é, como abertura para algo outro, onde corpo e alma sao indissocidveis (nao podendo ser compreendidos um sem 0 outro); é ato e no resultado (isto é, existe na interagdocom © mundo e com os outros homens); é busca de sentido, atribuigao e comunicagio de sentido, criagéo de mais sentido. No fundo, a meu ver, a Ppresenga do Humanismo na Psicologia é a presenga de uma saudade. Saudade do homem atual, desafiado no presente em telagdo ao sentido de sua vida. Capitulo jammed pees Siléncio e Palavra Juntamente com a questo do sentido, temos também a questao da palavra, no menos importante para caracterizar oO humano, Nada entenderemos do “aparelho significatério” (expressdio que poderia substituir a de “aparelho psiquico”) sem levar em conta a intencionalidade ¢ a linguagem. Esse texto foi publicado originalmente em 1992, na revista. Estudos de Psicologia (PUC-Campinas), 3), pp. 77-96, com 0 titulo O siléncio e a palavra. Fago aqui pequenas alteragées de detalhes apenas para melhor expressar 0 que esta sendo exposto. No item III, quando se trata do secundario, houve modificagdes um pouco maiores, mas mesmo assim consistiram apenas em acréscimos de algumas poucas frases visando explicitar a relagao do tema com a psicologia e a psicoterapia. ste capitulo poderia ter o seguinte subtitulo: uma leitura de Merleau-Ponty a partir das preocupagdes de um psicoterapeuta. De , ele nao pretende reconstituir 0 pensamento © Merleau-Ponty em seu contexto proprio ea ir das questdes que ele se colocava. Mas visa jonder a uma pergunta como “em que esse fil6- nos faz pensar, a nds psicoterapeutas?”, ou que ele pode nos ajudar a pensar nossas pré- questdes?”. E claro que essa elaboracao pres- uma primeira leitura dos textos a partir da algumas pistas foram surgindo. Uma dessas 1s @ aidéia de siléncio, nao apenas como ausén- ruidos, mas como algo positivo e embriond- 2 Mauro Martins Amatuzzi tio no plano das significagdes. Nao pretendemos seguir tdas as pistas, mas comegaremos por esta. Essa maneira de ler um autor (j4 falecido) no é isenta de Tiscos e armadilhas, Contudo penso que poderemos evitd-las se levarrM0S em conta que as preocupages que nos guiam néo so necessariamente as do autor lido e que devemos tomar cuidado para nao misturar as'COisas, atribuindo a ele pensamentos que serao nossos, mesmo duando suscitados por ele. A pesquisa foi feita basicamente em quatro textos: Fenome/tlogia da Percepeao (FP), A Estrutura do Comportamento (EC), Sobre a Fenomenologia da Linguagem (FL), a Linguagem Indireta e as Vo2es do ‘Silencio (LIVS), os quais foram citados a partir da edigdio em portugues, se bem que algumas vezes a tradugio tenha sido modificada levar!do em conta 0 original francés. Vamos formular agora, a titulo de hipoteses, algumas afirmagdes que poderdo nos orientar no comeco dessa |¢itura. Veremos depois 0 que os textos nos dizem a respeito. Aplena expressividade ou nao da fala, ou seja, sua autenticidade, pode ser descrita a partir de sua relagdio como pré-verbal que a mobiliza. Este algo que a precede ¢ a mobiliza, posto que nao-verbal, pode ser denominado, numa aproximagio primeira, de siléncio. A fala é ruptura de um determinado siléncio. Do siléncio total do viver biolégico emerge uma regig® que vem a ser a inten¢Go significativa (ou intengiio de significar), E essa intengdo que remete a fala como a sua origem. Quando falamos de significado, referimo-nos, na realida(e, a0 aspecto conceitual, abstrato, de algo que & mais vasto e, er” sua concretude, envolve outros aspectos, pois é também sentin €nto, experiéncia de valor, desejo, intengaio. A maneira pela qual a fala se une a esse algo mais amplo 0 expressa e lhe da forma, é aquilo qu® the constitui sua significdncia, ou significatividade, digamos assim. Uma fala ser4 tanto mais significativa, quanto mais estiver diretamente conectada com essa porgio emergente de siléncio» (Ue coloca o falante face a um mundo novo. Prefiro aqui o t@rmo cancia, ao invés de significagiio, porque este ultimo é ainda limitado ao aspecto conceitual daquilo que quero dizer. Ao falar> 40 apenas faco signos a partir de uma intengao ja pronta, Na verdade a Por uma Psicologia Humana 23 fala auténtica decide e desencadeia algo. Ela nao apenas traduz, mas cumpre, da andamento a uma intengdo, tornando-a, de certa forma, passado como mera intengiio, e dando origem a novas intengdes no interior de um movimento. De que se trata, na realidade? Que siléncio é esse e como ele germina num falar? Nao é a esse siléncio que importa chegar no pro- cesso terapéutico, para que ele possa ser falado e assim desencadear o Viver criativo? Da fala ao siléncio 1. Eis como Merleau-Ponty fala desse siléncio: Perdemos a consciéncia do que ha de contingente na expressao e na comunicagao, seja na crianca que aprende a falar, sejano escritor que diz e pensa pela primeira vez alguma coisa, finalmente em todos aqueles que transformam em palavras um certo sil&ncio (FP, p. 194). A crianga que aprende a falar nao apenas incorpora signos Novos ao seu repertério: ela tem acesso a um novo modo de tomunicagao e de relacdo com o mundo. Esse exemplo vem ao lado daquele do escritor quando diz e pensa pela primeira vez alguma Gisa, o que é diferente de simplesmente repetir o ja pensado ou de fier um novo arranjo, mas que, na verdade, nada cria de novo. Trata-se sempre do acesso primeiro 4 palavra. E mesmo “quando usamos para isso palavras j4 conhecidas, se realmente #slamos dizendo algo pela primeira vez, ¢ assim criando para nos ‘Ugnificados, émais verdade dizer que a fala contribui para modificar sentido comum das palavras, do que dizer que ela é constituida por ws sentidos comuns (FP, p. 190). Quando a fala ¢ original cla faz evoluir a propria lingua. Esses is casos de acesso a palavra (0 da crianga e do escritor) sdo slamente exemplos de todos aqueles que ‘ransformam em palavras certo siléncio. Um certo siléncio. Nao todo siléncio, nem quer siléncio. Um certo. Perdemos consciéncia do que ha de ie € novo no ato realmente expressivo. 24 Mauro Martins Amatuzzi E logo em seguida Merleau-Ponty acrescenta: Nossa vista sobre o homem permaneceré superficial enquanto nao remontarmos a esta origem, enquanto nao encontrarmos, sob o barulho das palavras, © siléncio primordial, enquanto nao descrevermos o gesto que rompe esse siléncio (FP, p. 194). O siléncio primordial é, por assim dizer, a alma da palavra pronunciada, é aquilo que se concretiza e adquire sentido no mundo com 0 discurso. A ruptura do siléncio que da origem 4 fala nao é propriamente a eliminagao do siléncio, mas uma realizagao dele. _ _ 2.Merleau-Ponty da, dentre outros, os seguintes exemplos da fala originaria: a do apaixonado que descobre seu ‘sentimento, a do escritor e do fildsofo que despertam a experiéncia primordial anterior as tradigdes (FP, p. 189). Nesses exemplos 0 siléncio pré-verbal que mobiliza e dé vida a fala é identificado como o sentimento que o apaixonado descobre (tevela-percebe) e a experiéncia primordial (anterior as tradigées) que 0 escritor ou filésofo despertam (acordam, trazem a vida ou 4 consciéncia). O sentimento preexistia, mas quando descoberto ele adquire um estatuto existencial novo. A esta luz, antes de ser pronunciado, ele era um pré-sentimento. S6 agora ele é assumido como tal, com esse sentido. A experiéncia primordial preexistia, mas s6 quando desperta é que ela tem acesso a um outro nivel e se realiza no compromisso da pessoa. S6 quando pronunciados é que sentimento e experiéncia adquirem sua realidade determinada e plena. Descobrir 0 sentimento e despertar a experiéncia primordial s4io também formas de romper 0 siléncio. Quando rompido o siléncio se revela pois como sentimento ou experiéncia. Nao como conceito ou idéia. Estes mais 0 exprimem posteriormente do que o constituem. 3. O siléncio esta para a fala assim como a inspiracdo esta para a obra de arte. A inspiragao antes da obra é uma inquietagao apenas, um determinado estado de procura, e o artista s6 sabe definitivamente © que ele queria pintar depois do quadro pronto. A inspiragao o guia, mas nao é um quadro interior. O pintar é 0 ato criativo,O artista sé tem um meio de se representar a obra na qual trabalha: é necessdrio que ele a faca (FP, p. 191). E ainda: A expressao estética confere ao que ela exprime a existéncia em si (FP, p. 193). Por uma Psicologia Humana 25 Com a fala auténtica ocorre algo semelhante: A fala, naquele que fala, nao traduz um pensamento ja feito, mas o cumpre (FP, p. 189). Ou: O prdprio sujeito pensante esta numa espécie de ignorncia de seus pensamentos enquanto nao os formulou para si ou mesmo falou e escreveu, como mostra o exemplo de tantos escritores que comegam um livro sem saber ao certo © que escreverao nele (FP, p. 188). 4. Dois tipos de expressdo descrevem esse siléncio: 1. um certo vazio da consciéncia (FP, p. 194); um voto (desejo) instanténeo (FP, p. 194); um vazio determinado (FL, p. 134); um certo vazio (FL, p. 134); uma certa caréncia que procura se preencher (FL, p. 194); ¢ 2 intengao significativa nova (FP, p. 194); intengao de falar (FP, p. 185); intengo significativa em estado nascente (FP, p. 20 intengao significativa que poe em movimento a fala (FP, p. 194). Eis alguns textos onde aparecem essas expressdes: Para o sujeito falante exprimir é tomar consciéncia; nao ‘exprime somente para os outros, exprime para que ele proprio saiba 0 que visa. Se a palavra quer encarnar uma intengo significativa, que 6 apenas um certo vazio, nao é somente para recriar em outrem a mesma falta, a mesma privagio, mas ainda para saber de que ha falta ¢ privacio. [...] Para a intengéo significativa, voto mudo, trata-se de realizar um certo arranjo dos instrumentos jé significantes ou das significacées j4 falantes [...] suscitando no ouvinte o pressentimento de uma significacao outra e nova, e, inversamente, promovendo naquele que fala ou escreve a ancoragem da significacao inédita nas significacées jA disponiveis. [...] Exprimo quando, utilizando todos esses instrumentos jé falantes, faco-os dizer alguma coisa que nunca haviam dito (FL, pp. 134-135). A intengao significativa é mais de ordem dinamica, do desejo, lo que de ordem cognitiva, conceitual. E a fala é primeiramente o dlesencadeamento de algo dessa ordem dinémica, mesmo que possam esultar dai pensamentos. * A intencao significativa em mim (como também no ouvinte que a reencontra ao me escutar), mesmo que deva em seguida frutificar em “pensamentos”, no momento é 26 27 Mauro Martins Amatuzzi ior uma Psicologia Humana apenas um vazio determinado a ser preenchido pelas palavras 0 excesso do que quero dizer sobre aquilo que jé foi dito (FL, p. 134) (destaque do autor). Ena Fe enomenologia da Percepgao: Da mesma forma que a intencéo significati mos Int ignificativa que ih ee pati do Outro nao é um pensamento explicte, jue icla que procura se preencher, da mesma nee retomada por mim desta intengao nao é uma operagao am Pensamento, mas uma modulacao sincrénica de minha ncia, uma transformagio de meu ser (FP, p, 194), 5. O que precede a fala origi i ‘a original e a habita dando-lhe vi mk ae Merleau-Ponty, nao € O pensamento, Este ee sal i , ie aa verdadeiramente © que pensamos quando o dizemos, O que htsee i: € pois uma mobilizacéo Para falar (intencao significativa ‘0 nascente, desejo, caréncia, vazio, siléncio primordial) ie intengao de falar sé se encontra numa experiéncia "como a ebulicdo de um liquido, quando na densidade do ser, zonas de vazio se it (FP. p 208) constituem e se deslocam para fora uma capacidade de auto-ultrapassamento, A ; : ns Al falante) é aquela na qual a intengio significativa se ones ra em estado nascente. Aqui a existéncia se polariza bets eer “ nao pode ser definido Por nenhum © natural. [...] Esta abertur: ; é ‘a sempre recriad; [. rt Pr jada nia Plenitude do ser & o que condiciona a primeira palavra da como a dos conceitos (FP, p. 207). E em outro lugar: E necessério pois reconhecer como fato ulti Poténcia aberta e indefinida de significar, ito gone tempo de captar e de comunicar um sentido, pela qual ohomem fe transcende em diregdo a um comportamento novo, ou em regio a0 outro, ou em diregio a seu préprio pensam, através de seu corpo e de sua palavra (FP, p. 204), oe 6. Recuamos pois da fala auténtica para a intengao de falar que ¢um certo vazio, um desejo, um siléncio determinado, que por sua vez emerge da natureza ou do passado como um salto qualitativo pressupondo uma abertura na propria natureza. E pela fala original que o homem se transcende a si mesmo em dire¢4o a um sentido Hoyo. Isso nao é um mero movimento cognitivo. E um movimento existencial. Reconhecemos ai alguns niveis: * oda fala auténtica; * o do sentimento ou experiéncia nomeados pela fala; * o da intengdo significativa na fala; * o da intengdo significativa em estado nascente, caréncia, vazio, siléncio determinado; e * oda abertura ou poténcia aberta e indefinida de significar ou de se transcender. Na verdade 6€ dificil distinguir todos esses niveis. B nossa Onsideracao que incide em separado sobre “partes” de um processo em que concretamente eles estdo interpenetrados. Se por vezes Sonseguimos separar um momento como anterior a outro, sera mais Gomo momento de gestagao e nao propriamente algo outro. * » Do siléncio a fala 1. No caminho de volta do siléncio a fala um primeiro aspecto é 0 mistério da expressao. Merleau-Ponty usa expressdes como “lei mnhecida” e “milagre”. Em nossa arqueologia fenomenoldgica, ndo da fala chegamos ao siléncio ¢ suas raizes, por camadas que se fam. E podemos voltar. Em tudo isso descrevemos processos, € as descrigdes tém certamente um referente identificdvel. Mas, em itivo, ndo explicamos 0 ato expressivo. A intengao significativa nova s6 se reconhece recobrindo-se de significagées ja disponiveis, resultadas de atos de expressio anteriores. As significacées disponiveis se entrelacam repentinamente segundo uma lei desconhecida, e de uma vez por todas um novo ser cultural comecou a existir. O pensamento e a expressao constituem-se pois 28 simultaneamente, quando nossa aquisicao cultural se mobiliza a servigo desta lei desconhecida, como nosso corpo de Fepente se presta a uma gesto novo (FP, p. 194). E uma capacidade do corpo humano apropriar-se, em uma série indefinida de atos descontinuos, de nticleos significativos que ultrapassam e transfiguram seus Poderes naturais. Este ato de transcendéncia se encontra Primeiramente na aquisigao de um comportamento, depois na comunicagéo muda do gesto: & pela mesma poténcia que o Corpo tanto se abre a uma conduta Nova quanto a faz compreender a testemunhas exteriores. Nos dois casos um sistema de Poderes definidos de repente se decentra, se rompe e se organiza sob uma lei desconhecida, tanto ao sujeito quanto a testemunha exterior, e que se revelaa eles nesse exato momento [...]. A linguagem coloca o mesmo problema: uma contragao da garganta, uma emissio sibilante de ar entre a lingua e os dentes, uma certa maneira de movimentar nosso corpo se deixa de repente investir de um sentido figurado, © 0 significam fora de nds. Isto ndo 6 nem mais nem menos mmilagroso que a emergéncia do-amor no desejo, ou do gesto nos movimentos desordenados do comeco da vida (FP, p. 204), 2. Como esta lei desconhecida atua? Ela trabalha sobre significages disponiveis fornecidas pela cultura, (que abstratamente consideradas constituem a lingua como parte principal de um sistema de signos), reorganiza os signos em fungao de uma intengao significativa nova, e os fazem dizer algo que nunca antes disseram. E € por isso que as falas realmente expressivas acabam contribuindo para a propria evolugio da lingua. Significagdes disponiveis, isto é, atos de expressio anteriores, estabelecem entre os sujeitos falantes um mundo comum ao qual a palavra tual e nova se refere [...]. O sentido da fala nada mais é do que 0 modo como ela maneja este mundo linguistico ou como ela modula sobre este teclado de significagées adquiridas (FP, p. 197). E como foram adquiridas essas significagdes? Como todos os gestos significativos que langam o ser humano no nivel propriamente humano: um comportamento novo (de outra ordem de complexidade), um gesto mudo, a linguagem, como vimos no texto anterior (FP, p. 204). Mauro Martins Amatuzzi Poruma Psicologia Humana 29 (As significagées se tornam disponiveis) quando, em seu tempo, foram instituidas como significagses a que posso recorrer, como significagdes que tenho — e o foram por uma operacao expressiva do mesmo tipo. [...] Exprimo quando, utilizando todos esses instrumentos ja falantes, fago-os dizer alguma coisa que nunca haviam dito (FL, p. 135; cf. também FL, p. 136, e FP, p. 207). 3. E importante ressaltar aqui o condicionamento que a lingua iisponivel representa, para que possamos depois ultrapassa-lo na ira expressdo. - en traz consigo uma atitude, um determinado modo de se Welacionar com o mundo, e suas palavras, antes de carregarem um onceito abstrato, trazem uma significagao emocional presa a elas, tudo isso resultando da sedimentagao dos atos expressivos que vém Ponstituir o conjunto de significages disponiveis. é (As diferencas entre as diversas linguas) no representam diferentes convengées arbitrérias para exprimir 0 mesmo 7 pensamento, mas sim diferentes maneiras parao corpo humano a de celebrar o mundo e finalmente de o viver (FP, p. 198). hi Ao vivermos numa lingua, portanto, somos subsidiérios de li experiéncia acumulada que a constitui. Isso nada mais é que a munidade cultural na qual crescemos e vivemos e que identemente determina nossas condutas. : Isso que estamos aqui chamando de contetido de uma lingua, modo de ser sedimentado por ela (pela comunidade na qual 0s), pode se verificar até mesmo no nivel das palavras. Sem ida as palavras denunciam um modo de recortar 0 mundo e ito de se comportar. Merleau-Ponty fala da atitude que elas m e de seu significado gestual, linguageiro, que capta uma cia emocional. E é sobre esse significado gestual que se ri posteriormente um significado conceitual (cf. FP, p. 190, 197). A lingua transmite diretamente, concretiza, um modo de se wlonar com o mundo (FP, p. 201). F 4, Mas ao mesmo tempo que isso se relaciona com um. estilo de (a conduta ai sedimentada), relaciona-se também com estilos ais, Temos no sé 0 estilo de nossa lingua, mas também nossos i proprios. Quanto a isso podemos dizer que cada um tem sua 30. Mauro Martins Amatuzz) lingus Opri: i. ites i Pee Constréi, com a forma que usa sua lingua, seu jeito 0 é ‘ 2 it Solaris Portugués) de falar, o que equivale a dizer, sey € se relacionar ou de construi ’ ; ruir 0 mundo. E t i um segundo nivel de determinacd nis anenae ad , Tmina¢ao: somos tributarios na comunidade onde fomo: iali rice a tein 's SOcializados, m: é Oprii meee maa ', Mas também de nossa Propria maneira de existir desse pensamento, i Sotaque do flésofo (FP, p. 190), roeunde © tom, 0 sedimentagao e uma experiéncia adquirida. No caminho de volta do siléncio a fala, indivi, i ie a de ee discurso expressivo), ou de um pensamento — ‘versal (no plano de um discur: Sfico) ‘ 80 filos6fico), para alé i = , lém dos estilos, é Preciso que passemos pela concretude de uma determinada expressio, | Se houver um pensamento universal (para além dos estilos), sera retomando 7 esfor¢go ; expressdo e tilos), id. fe d Si comunicagao tal como foi te r ingua que o entado por uma [i obteremos, assumindo todos os equivocos, todos os ; ; deslizamentos de sentido le uma tradigao lingiiisti ido de q a tradi i igao lingiiistica é - m 2 te ita e 198 lustamente medem sua poténcia de expressao Hira Psicologia Humana 31 ____ Mas isso que vale para a filosofia (sé chego ao universal passando jielo particular), vale também para o esforgo de compreensiio profunda deuma pessoa em psicoterapia. O desejo sé aparece nas entrelinhas do eatilo, ___ Oque importa no momento, nessa viagem de volta do siléncio 4 fila, 6 nos darmos conta de como ele vai se revestindo de nificados, passando pela cultura e pela histéria pessoal. Mas se estamos considerando a fala auténtica, a expressao nao termina ai. 5. A expressao é, na verdade, um tatear em torno de algo que lente, mas sem se apropriar e conter plenamente. Isso sera ante na hora de pensarmos a compreensao. Por ora fiquemos algumas indicagdes de Merleau-Ponty. Se ela (a lingua) quer dizer e diz alguma coisa, nao é porque cada signo veicule uma significagao que lhe pertenceria, mas __ porque todos juntos aludem a uma significagao, sempre em Sursis se considerados um a um, e em rumo a qual eu os _ultrapasso sem que nunca a contenham (FL, p. 132). No que se refere a linguagem, se o signo se torna Significante por sua relagao lateral a outros, o sentido sé urge entao a intersecgao e como no intervalo das palavras (LIVS, p. 143). O sentido, quando é novo, nfo est contido pelas palavras, 6 indicado por elas, e isso mesmo representa 0 caminhar do ano. O que queremos dizer [...] nao é sendo o excesso do que sobre 0 que jd foi dito (LIVS, p. 175). 6, Finalmente a “determinagao” ultima da fala auténtica. O que ienta ela? O que ela faz, ou cumpre? Que exprime pois a linguagem se nao exprime pensamentos? Elarepresenta, ou melhor ela é.a tomada de posicao do sujeito no mundo de suas significacées [...]. O gesto fonético realiza, para o Sujeito falante e para aqueles que o escutam, uma certa ‘estruturacao da experiéncia, uma certa modulagao da existéncia, @xatamente como um comportamento do meu corpo investe para mim e para o outro os objetos que me cercam de uma certa lignificacao (FP, pp. 203-4). 32 Mauro Martins Amatuzz) Psicologia Humana (Na poténcia aberta de significar) o homem se transcende em diregao a um comportamento novo ou em diregdo ao outro ou em direcao a seu préprio pensamento através de seu corpo e de sua palavra (FP, p. 204). nee fi . . fala da crianca que pronuncia sua primeira palavra, a do Tomada de posigao do sujeito, estruturagio da experiéncia, nado que descobre seu sentimento, a do “primeiro modulagao da existéncia, transcendéncia em direcéio ao comportamento, homem que falou”, a do escritor e do filésofo que despertam a novo. Essas afirmagdes mostram o carter existencial, comprometedor, periéncia primordial anterior as tradigdes (FP, p. 189, nt.5). envolvente, decisério da verdadcira expresso. Dizer realmente algo ¢ tomar posi¢ao, e com isso entrar num mundo novo, pelo menos no que diz respeito a um aspecto particular. A fala auténtica depende mais do “eu posso”, do que do “eu sei”, diz também Merleau-Ponty (FL, p. 133), Com a fala auténtica o homem, apoiado no contexto cultural e em sua propria experiéncia pessoal, os transforma e os leva adiante, No caminho de volta do siléncio a fala, encontramos pois: * uma lei desconhecida; * significagdes disponiveis que esto no sujeito como uma possibilidade corporal ou esséncias emocionais; * aquilo que a lingua usada contém como atitude recebida ou modo de ser (a presenga da cultura); * os estilos pessoais ou modos de ser da experiéncia pessoal, também como recebidos e constituintes da expressio (a pre- senga da histéria pessoal); * a expresso como um tatear em torno de um sentido nunca plenamente contido em palavras; e, finalmente * uma tomada de posigao do sujeito (que transfigura todas as ), cada fala que rompe o siléncio langando o falante numa nova Merleau-Ponty chama a isso fala auténtica ou originaria. E dentre os exemplos possiveis Sfio essas falas assim densas que se identificam com o ito; nesses momentos expressivos a fala ndo traduz um lento ja feito, mas o cumpre (FP, p. 189), ela é a efetuagéo do ento, como também diz Merleau-Ponty, e é por isso que s6 sei 0 (em se tratando de pensamento novo, nascente) quando o issim como um artista sé sabe o que quer pintar depois que 0 quadro, ou um poeta 86 sabe, em definitivo, o que quer dizer, jue escreveu o poema. E essa fala expressao origindria que i desejada mobilizagao do ser em diregao a sentidos novos esta no secundario, e com ela seu existir. A pessoa nao encontra a, E as questdes que nos ocorrem agora sao: 4. 0 que é exatamente essa expressio segunda (que nao cumpre tudo o que a originaria cumpre), e como ela se tornou possivel? . 'b. podemos separar claramente dois tipos de fala, uma auténtica € outra nao, ou trata-se mais de duas dimensGes aparentes em qualquer fala, de forma que possamos encontrar um solo de autenticidade mesmo em uma expressao segunda? determinagdes anteriores). Ocorre que a maioria de nossas falas ndio tem essa densidade da fala verdadeiramente expressiva e nova. Como se introduz ai no mundo de nossa linguagem a fala banal, corriqueira, empirica, mais t ou menos repetitiva, que no acrescenta nada nem langa a pessoa em um compromisso novo? 2. Vejamos entao como Merleau-Ponty introduz a distingao. $ noe wimeiro texto ¢ o seguinte: O surgimento do secundario 1. Tudo 0 que dissemos até agora refere-se a fala auténtica, aos momentos realmente expressivos da fala: a primeira fala pronunciada com sentido, cada fala onde um novo sentido se cria ou esta se Ha lugar, é claro, para se distinguir uma fala auténtica, que formula pela primeira vez, e uma expressao segunda, uma fala Sobre falas, na qual consiste o ordindrio da linguagem empirica. Somente a primeira é idéntica ao pensamento (FP, p. 189, nt. 4). 34 Mauro Martins Amatuzz| -- Nesse texto 0 que se opée a fala auténtica é uma expressio segunda. Em outros lugares aparecem termos como fala origindria opondo-se a uma fala derivada. A expressio pode ser segunda, ou derivada em relagao a uma primeira. A palavra constituida, tal como funciona na vida cotidiana, sup6e preenchido o passo decisivo da expressio 3 (FP, p. 194), portuna chamada de um signo pré-estabelecido, ndo o é Certamente podemos imaginar um homem que sé falasse iara.a linguagem auténtica. E, como disse Mallarmé, amoeda automaticamente; mas isso seria ou efeito de danos cerebrais, como ta que se passa em siléncio de mao Th mee bbe aha no caso dos afasicos, ou entao nao seria uma lin: iguagem propriamente Yerdadeira palavra, aquela que significa, que tor dita, como € 0 caso de macacos que “aprendem a falar”, ou de Evo na coisa, nao é, aos olhos do uso empirico, sendo perturbagdes genéticas muito severas e no entanto compativeis como. cio, visto que nao vai até o nome comum. A linguagem é uso mais ou menos mecanico de algumas poucas palavras. A r si mesma obliqua e auténoma e, se Ihe ocorre significar linguagem segunda, contudo, ao contrario disso tudo, é comum em tamente um pensamento ou uma coisa, trata-se apenas nossa vida. E nossa linguagem ordindria, corriqueira, pela qual uma capacidade secundaria, derivada de sua vida interior. designamos objetos e interagimos no cotidiano. Estamos falando fato 0 escritor, como 0 tecelao, trabalha as avessas: pois de uma possibilidade comum, nao extraordinaria, de quem quer jocupa-se unicamente com a linguagem € ae trilha que tenha tido acesso a fala. j-se de repente rodeado de sentido (LIVS, p. 145). Uma outra caracteristica dessas falas é que elas, ainda que as vezes complexas, na verdade nao trazem nada de novo, Sao falas que nao exigem de nds nenhum verdadeiro esforgo de expressio (FP, p. 194), Passem-me 0 sal, vou comprar pao, que horas s40?, quanto custa? ~ sao exemplos de falas de manutengao, e sua compreensiio é imediata por qualquer pessoa que seja da mesma comunidade lingiiistica. Sio instrumentos de nosso cotidiano viver, do manuseio social de objetos em fungao de nossas necessidades. E sio Jalas sobre falas porque correspondem ao uso derivado de palavras que originariamente na comunidade foram expressivas, a servigo de necessidades também derivadas, nesse sentido que nao procuram romper algum siléncio primordial. Com elas ndo ha necessidade de significagdes novas, Merleau-Ponty as chama de falas banais. lotemos, de passagem, que aqui surgem dois sentidos novos de 0”. O primeiro é0 da linguagem empirica, que significa mas nao gente um sentido novo. E 0 siléncio com que passamos para los a moeda conhecida e gasta. Outro ¢ 0 siléncio da verdadeira porque ao tornar presente um sentido novo ela nao significa nomes comuns. E obliqua, o sentido novo surge nas as, € por isso mesmo esta fala faz evoluir a lingua. Mas como se forma essa expresso segunda, esse uso significagdes disponiveis, como uma fortuna adquirida. A ir destas aquisig6es, outros atos de expressao auténtica Vivemos num mundo onde a palavra esta instituida. Para 1 ee vse (FF. p.207) todas essas falas banais possuimos em nés significagdes j4 formadas. Elas somente suscitam em nds pensamentos segundos; e estes, por sua vez, se traduzem em outras tantas Palavras que no exigem de nés nenhum esforco verdadeiro de expresso, e nao pedem de nossos ouvintes nenhum esforgo de compreensao (FP, p. 194). § expressOes originais se sedimentam em aquisi¢gdes , significagdes disponiveis, as quais poderao ser retomadas juagem empirica derivada (expressio segunda), ou entdo ntalizando expressGes novas onde havera, neste caso, uma agao do sentido dos instrumentos culturais. 36 Mauro Martins Amatuzzi A palavra (fala) enquanto distinta da lingua, é esse momento em que a intengao significativa, ainda muda e toda em ato, revela-se capaz de incorporar-se a cultura, minha e de outro, capaz de me formar ede forméa-lo, transformando © sentido dos instrumentos culturais. Por sua vez torna-se “disponivel” porque, retrospectivamente, nos daa ilusio de que estava contida nas significacdes ja disponiveis, quando na verdade, por uma espécie de astiicia ela as esposara apenas Para infundir-Ihes uma nova vida (FL, p. 136). A expresso segunda, seja no sentido da linguagem empirica ordindria pela qual prosseguimos nosso cotidiano, seja no sentido de uma fala que de fato nao cria um sentido novo (mesmo quando as vezes 0 pretenda, como é 0 caso do discurso circular da pessoa que Procura terapia), 6 uma possibilidade que se insere na propria natureza da linguagem do homem. E, finalmente, para alargarmos um pouco mais o Ambito de possibilidades dessa expressao segunda, citemos dois textos, um anterior e outro posterior a “Fenomenologia da Percepcao”. No primeiro, para elucidar a questiio das telages alma/corpo, Merleau-Ponty evoca as relagdes conceito/palavra. Nos dois casos nao podemos separar os dois termos como se fossem duas coisas ou substancias. Eles se unem naquilo que é 0 concreto: 0 comportamento humano (para os termos alma/corpo), e a fala viva (para os termos conceito/palavra). Esse concreto é a operagéo constituinte na qual percebemos depois os dois termos como “produtos separados”. Assim sendo, cada grau de complexidade do comportamento humano (operagaio constituinte do corpo/alma) seria corpo em relagao ao grau mais complexo, e alma em relaco ao menos complexo, assim como cada fala efetiva (operagiio constituinte do conceito/ palavra) é palavra (vocabulo) em relacao a falas posteriores e conceito (pensamento) em relacao a falas anteriores. Os dois pares sao inseparaveis, mas os distinguimos para compreender o proprio dinamismo da operacdo em questao (0 comportamento ou a fala). O corpo em geral, assim como a palavra (vocabulo), seria o adquirido; e a alma em geral, assim como 0 conceito (pensamento), seria 0 sentido novo que se instaura. Um nao vive sem 0 outro, mas nao so duas operagdes nem duas coisas, mas dois momentos de nossa consideragio, necessarios para compreender a cologia Humana. dade da operagao. Nesse contexto a expressao “linguagem ’ aparece significando a materialidade das palavras, por iO 40 conceito/pensamento que seria o sentido. A “fala viva” e ‘4 0S reine. Ai o sentido novo adquire corpo e se tora entdio um ido, disponivel para operagées ulteriores. Pode-se certamente comparar as relacées entre a alma e ) Corpo comas relagées entre o conceito ea palavra vocabulo mot), mas com a condi¢ao de se perceber, sob esses pro- tos separados, a operacao constituinte que os une, e de se ncontrar, sob as linguagens empiricas, acompanhamento xterior ou vestimenta contingente do pensamento, a fala (parole), que 6, somente ela, a efetuagao do Pensamento, le 0 sentido se formula pela primeira vez, funda-se assim IMO sentido, e se torna disponivel para operagées ulteriores , p- 243). fala viva citada aqui ¢, evidentemente, a propria operagao \iva no sentido auténtico do termo. E a linguagem empirica mo 0 “corpo” dessa operagac “acompanhamento exterior ou fa contingente do pensamento”. E sob ela que devemos ta “fala viva” se quisermos chegar ao sentido. Aqui a empirica nao é, pois, sin6nimo ou exemplo de fala banal, go que esta presente também na fala auténtica. 1d na fala uma camada superficial que devemos ultrapassar legarmos ao sentido. O texto nao é completamente claro a mas creio podermos dizer que, desde que se trate de fala e ‘Mero automatismo ou rea¢do mecanica, podemos procurar ” que esta sob a “linguagem”. O tatear em tomo do sentido Se procura pode nos parecer linguagem empirica no sentido sio segunda, mas contém algo vivo, um sentido em », um siléncio que procura se romper. Ora, esse parece ser 0 ico da pessoa que procura terapia: seus falares parecem idos no secundario, um falar-sobre que nao tem desencadeado ‘mas que por ja ser um tatear (quando na terapia), aponta par outro texto é bem posterior 4 “Fenomenologia da 0”. Ele mostra que um discurso teérico, abstrato ou mesmo , pode ficar aquém do que pretende resolver se nao for truto da 38 Mauro Martins Amatuzz) sologia Humana elaboragao de uma experiéncia concreta, de um vivido que inclui fala secundaria nao cria significados novos mas apenas conhecimentos, experiéncias anteriores, valores. Ou seja, se no for Xecuta (ou aplica) significados antigos. Por isso ela nao exi- uma auténtica operagio expressiva. Nao basta que articule ge esforco especial de expressao nem de ere ce corretamente conceitos ou fatos observados, diriamos. E preciso que ma como outra sao imediatas (a fala _novalliextey tudo isso seja feito como auténtica ‘operacio expressiva. Sendo Bepressio € também de inate Data perde-se a relevancia, a significdncia. Ora, isso é também uma forma 4 fala secundaria é uma ee ain - ccna de secundario: ficar aquém dos problemas que se desejava resolver, ‘hatureza da linguagem humana. Falas origi por mais complexo que possa ser o discurso, Um discurso cientifico, dari te, e isso é necessario para a vida cotidiana; ou mesmo filoséfico, corretos do ponto de vista formal, podem ser pun ee a ossibilidade da linguagem existe também irrelevantes, nao significantes, inoperantes diretamente, ey causa ae da capacidade de significar (a fala) que ne Jancis a0 “dives? uso se ae secundarios. Até mesmo a ciéncia pode nao “dizer” nada. decorre de um distanciamento do siléncio originario: é pos- jivel falar assim distanciado de si, mas esta fala nao envolve em significagdes disponiveis que sdo depois usadas se- © que queremos dizer no se mostra, fora de toda palavra, como pura significacao. Nao é senao 0 excesso do que vivemos pessoa como um todo e nem a compromete; sobre o que ja foi dito. [..] (No campo do pensamento politico, uma fala sera inauténtica quando se esperaria, pelo contexto da por exemple) toda asioe todo oxrhrchneto do passam fel onde ela se enconra, que ela fosseplenamente expres conhectnarto tod sr noses penta oes es en ecatinno ingano pelo tio valores) e querem propor valores que nao tenham tomade ap cclibersdamente ou nao), ela deixa es Corpo em nossa histéria individual e coletiva, ou bem, o que di Gxpressiva, ¢, de fato, naquele momento, 0 suj no mesmo, escolher meios por um calculo e Por um proceder de um contato com seu proprio siléncio; : otc aio inteiramente técnico, acabam aquém dos problemas que + no entanto, por ser apesar de tudo expressiva (a sa desejavam resolver (LIVS, p. 175). plenamente), a fala secundaria, mesmo quando peer Haas, gs : 4 NORE) contém em sua concretude pistas dinamicas para o que pode- A possibilidade do secundério se instala até mesmo no interior popterm do discurso cientifico, filoséfico, politico ou técnico. E nesses casos Baz.2 Set tuténtico ou otiginel. © que determina isso, como sempre, é ele ndo ser uma operacao diretamente expressiva (ou seja, estar desconectado do siléncio que é © excesso do que vivemos sobre 0 que ja foi dito). Mas nesse préprio vazio, creio, podemos ver, dissimulado, 0 sopro da vida. As possibilidades do secundario nao se limitam pois as falas Corriqueiras necessarias em nosso cotidiano. Mas se esses alargamentos sao validos, entdio podemos ver, até mesmo sob a linguagem corriqueira, uma certa expressividade: a da manutenc¢io do vivo. E é por isso que embora “segunda”, Merleau-Ponty ainda usa 0 termo “expressao” quando fala de “expressdo segunda”, 5. Desses textos de Merleau-Ponty ficam pelo menos sugeridas algumas proposigées de interesse para 0 psicélogo terapeuta: Sreio que podemos acrescentar que a fala de uma pessoa que psicoterapia é um tatear em torno de um significado, um de expressdo, que no entanto nao chega a ser plenamente cedido. Esse tatear, contudo, aponta para uma diregdo que é 0 gnificado em gestacao. Cabe ao terapeuta favorecer essa , OU ao menos no atrapalha-la. Mas como? a. ee A a. ompreender profundamente significa ouvir o siléncio em qualquer fala. 40 Quando ouvido é que ele é realmente dito, e isso é umi mobilizagao do ser. Ouvir nao é um ato de inteligéncia ou do pensamento, mas um participagao existencial em um movimento de gestacio ou parto no plano do sentido. E pelo conjunto de minha resposta interativa qué mostro que ouvi. Ela sera a elaboragdo de meu siléncio face ao outro que me dirige a palavra. Creio que os textos de Merleau-Ponty apontam para isso. 1. A compreensiao vai além dos significados ja conhecidos dos instrumentos falantes, ou seja, dos termos usados. Ela atinge uma fonte, o centro do discurso, um sentido novo. Com o exemplo da compreensio de um texto filoséfico, ele escreve: qui que aparece aquela nota de rodapé em que Mae compreensio sO se aplica & fala auténtica. Nas falas nfio ha necessidade de um esforgo de compreensao. & verdade que em expressies segundas podemos encontrar m nticleo de autenticidade, isso que ele diz da compreensio da ica se aplica pelo menos em parte 4 compreensao de qualquer 0 que o que muda, no caso da pessoa em terapia que tenta se mas de fato nao o consegue de forma satisfatori & que os ypontam para um centro realmente, mas eles nao so ainda ”, e por isso a expressiio nao € completa. : Um outro texto, também sugestivo, nos diz que a i oua discurso auténtico é como um “encantamento”. Somos ! pelo discurso, sentimos sua necessidade, embora nao prever onde ele vai chegar. Nem o sujeito falante pensa fala, nem o ouvinte pensa no que est ouvindo. oO pensar do eu proprio falar, e o do ouvinte, seu compreender. S6 depois, do discurso, quando o ouvinte acorda, por assim dizer, é que ir pensamentos sobre 0 discurso. O fato é que temos o poder de compreender para além do que pensamos espontaneamente. Alguém sé pode nos falar numa linguagem que j4 compreendamos: cada palavra de um texto dificil desperta em nés pensamentos que nos Pertenciam antes, mas essas significagdes se enlacam as vezes num pensamento novo que as remaneja totalmente; somos. entao transportados ao centro do livro, reencontramos a fonte (FP, p. 189). “O orador nao pensa antes de falar, nem mesmo enquanto \, sua fala é seu pensamento. Da mesma forma o scent © concebe a propésito dos signos. O “pensamento’ do fador € vazio enquanto ele fala, e, quando alguém 1é um xxto para nds, se a expressao é bem-sucedida, nao teremos lum pensamento & margem do proprio texto, as palavras pam todo nosso espirito, elas vem preencher exatamente a espera e sentimos a necessidade do discurso, mas nao famos capazes de prevé-lo e somos possuides por ele. ° fim discurso ou do texto serd.o fim de um encantamento. So entao oderdo surgir pensamentos sobre o discurso ou sobre o exto; antes o discurso era improvisado eo texto ompreendido sem um tinico pensamento, 0 sentido estava sente em toda parte, mas em nenhum lugar posto por ele \esmo (FP, p. 190). te trecho enfatiza o cardter direto da compreensao. Ela nao xiva, somos transportados pelo discurso. O maximo que 08 fazer, creio, 6 nao impedirmos isso. E uma forma de 0 lir seria determo-nos reflexivamente em cada palavra. Um texto jor de Merleau-Ponty cabe bem aqui: Este ser transportado ao centro do discurso e descobrir 0 sentido para além dos significados parciais nao é como a resolucao de um problema. No problema a incégnita aparece pela sua relagao com os termos conhecidos do problema, quase mecanicamente. Na compreensao de uma pessoa nao é assim. Aqui é sé na medida em que me aproximo do sentido que as palavras vao se mostrando como signos que realmente apontam para ele. Antes nao. Nao ha nisso nada de compardvel a resolugéo de um problema, em que se descobre o termo desconhecido por meio de sua relacao com termos conhecidos. Porque o problema sé pode ser resolvido se for determinado, isto é, se © cotejo dos dados designar ao desconhecido um ou varios valores definidos. Na compreensao do outro, o problema é sempre indeterminado, porque somente a solugéo do problema fara aparecer retrospectivamente os dados como convergentes, somente o motivo central de uma filosofia, uma vez compreendido, da aos textos do fildsofo o valor de signos adequados (FP, p. 189). 42 Mauro Martins: Amatuzzi jcologia Humana 43 © que com demasiada deliberacao procuramos nao 0 ‘idade de atos que é essa compreensao de gestos, ¢ 0 fato de essa obtemos, nao faltando pelo contrario idéias, valores, a quem dade operativa confirmar o outro no seu significado, e a mim souber absorver, meditando na vida, o que de sua fonte em minha compreensao. espontanea se libera (LIVS, p. 175). F = 2 i q ® J A comunicagao ou a compreensao dos gestos se obtém ela reciprocidade de minhas intengGes com os gestos do tro, de meus gestos com as intengées legiveis na conduta lo outro. Tudo ocorre como sea intengao do outro habitasse meu corpo, ou como se minhas intengdes habitassem o seu .,]. O gesto esta diante de mim como uma pergunta: ele me \dica alguns pontos sensiveis do mundo e me convida a me nir a eles. A comunicagéo se completa quando minha nduta encontra neste caminho seu préprio caminho. Ha nfirma¢ao do outro por mim e de mim pelo outro. [...] Nao mpreendo os gestos do outro por um ato de interpretagao lectual (FP, pp. 195-6). 3. Mais adiante entretanto ele fala do esfor¢o de compreensao, As palavras banais nao exigem de nés nenhum verdadeiro esforgo de compreensio. Ja vimos esse texto acima. Para todas essas falas banais Possuimos em nés significagées j4 formadas, e essas falas bamais nao exigem de nds nenhum esforco verdadeiro de expressao, e nao pedem de: Rossos ouvintes nenhum esforco de compreensao (FP, p. 194). Nao hi oposigao entre o carater direto da compreensio e o fato de que as vezes cla exige esforgo. O que se acrescenta aqui como caracteristica do compreender, quando ele exige esforgo, é que ele supde uma abertura para o novo, que é coisa que néo é necessaria no simples caso da linguagem ordinaria. Podemos ent3o acrescentar essa abertura para © novo como uma outra caracteristica da compreensio, 4.E preciso citar de novo aqui um texto que também ja. lemos, onde essa abertura para 0 novo vai aparecer como um movimento do préprio ser, uma transformagao mais global, portanto, do que ade um simples pensamento. ‘om 0 gesto lingiiistico ocorre algo parecido. Acompanho a @ se comunica em sua intencionalidade, e com isso confirmo-a zer confirmando-me em meu compreender, numa espécie de dade de pensamento em ato. Essa confirmagao aqui nao éclaro, uma concordancia com 0 que 0 outro diz em termos de também suas idéias. Isso seria um pensamento segundo. isso sim que quando compreendo posso pensar junto. ler é participar do sentido. Em resumo, sido caracteristicas da compreensao: ela vai além do entendimento dos significados literais e transporta-nos para o sentido novo apontado por eles; ela tem um carater direto; (Na compreensao da fala de outra pessoa) nao & Primeiramente com representagdes ou com o pensamento que eu me comunico, mas com um sujeito falante, com um certo estilo de ser e com o mundo que ele visa. Assim como intengao significativa que pds em movimento a fala da outra pessoa nao & um pensamento explicito, mas uma certa caréncia que procura Se preencher, assim também a retomada por mim dessa mas implica abertura para 0 novo, e, portanto, saida da atitu- intencéo nao é uma operagio do meu pensamento, mas uma Se ctidiana; eran agp rt ” geste elaéuma transforma¢ao global do ser (junto comas transfor- acgdes do falante) e nao apenas um ato do pensamento; implica uma reciprocidade operativa na qual os interlocuto- res se confirmam em suas intengGes significativas. A retomada da intengao significativa do outro, na compreensio, nao é uma operacdo do pensamento, e sim uma transformagaio mais global do ser que acompanha a mutagao daquele que esta se comunicando. 5. A seguir Merleau-Ponty compara a fala com o gesto, dizendo que ela é um gesto lingilistico. No contexto dessa comparagao aparece como compreendemos o gesto. E 0 que gostariamos de destacar é lemos comentar esse liltimo ponto dizendo que quando essa Ao ocorre, o siléncio se aquieta, a pessoa esta como ja para um mundo novo, ¢ novas intengdes podem comegar a se 6 O movimento existencial que se procura desbloquear na ia. a) TTT O ponto de partida deste capitulo é 0 interesse em conhecer melhor as formas de investigagao do humano, e com isso avangar nessa pratica. Com essa intengdo permito-me retomar aqui, com modificagées, 0 texto de uma palestra proferida na Universidade Federal do Ceara, no final de 1993, e publicado na revista Estudos de Psicologia (PUC-Campinas) com data de setembro de 1994, /1(3), pp. 73-77, com 0 titulo A investigagdo do humano: um debate. Vamos manter aqui 0 tom coloquial que tinha 0 texto da palestra. ) de professor orientador de projetos de acgao em Psicologia. Que posturas episte- démico. do estou dangando estou fazendo uma io do humano. Seria entao o dangar um iGncia? Se o for nao saboreio a danga, e onhecimento resultante seja mais pobre que eu poderia adquirir se dangasse sem de conhecimento cientifico. io que ha aqui algumas coisas a se r. Uma é que ha varios caminhos para a 46 Mauro Martins Amatuzz| ina Psicologia Humana 47 investigagao do humano. A ciéncia, com certeza nao é 0 unico, ¢ indiscutivel. Bastava que se fizesse uma observacado talvez nem mesmo o mais rico. A poesia é uma forma de investigar natica, e com regras de precisao. Os fatos podem ser olhados de humano; a literatura, o teatro também. A amizade é uma forma de 1 neutra. A natureza est ai, ela funciona de acordo com leis que investigar o humano; a luta politica, o lazer, o esporte. A psicoterapia mem pode descobrir objetivamente, e, ao contrario da filosofia, também. Ha muitos caminhos. 4 procedimentos objetivos néio so passiveis de interminaveis O resultado dessas investigagdes, porém, nao é sempre do \issdes. Podemos ter normas confidveis para dirigir nossas a¢des. mesmo tipo. E essa é a segunda coisa que queria considerar. Quem , a ciéncia nasceu gerada no utero da filosofia, e opondo-se a danga, conversa com amigos, pratica esporte, faz politica com certeza do isso para garantir uma nova forma de vida social ou as aprende muito sobre o humano. Mas esse saber se encontra nele as $ novas que tomava a inquietag¢do humana. vezes de forma somente tacita. E o saber do homem de experiéncia, Em seu bergo a ciéncia ja se anuncia como una: os fatos que o habilita a reagir de formas mais adequadas quando diante de 0S € sociais nao so diferentes dos fatos naturais, e portanto algum desafio novo. Mas nao necessariamente esse saber se sabe de ser investigados da mesma forma. E claro que nao foi assim forma refletida. iimples desde o comego. A filosofia quis guardar o humano para Ha uma diferenga entre o saber tacito, experiencial, e 0 saber entregar apenas o nado humano para a ciéncia. Mas acabou explicito, representado para o préprio sujeito. Este ultimo também ndo essa disputa, pois a ciéncia pretendeu abarcar tudo, ¢ seu pode mostrar diferengas quanto ao grau em que é assegurado de tigio foi muito grande. A filosofia acabou ficando desacreditada forma objetiva ¢ publica. Ele pode, de fato, ser obtido por meios que iuitos. O “ser” (objeto da filosofia) nfo ajudava muito: ta nao dependam da experiéncia subjetiva, de modo que qualquer Jugio da vida social, como os “fatos” (objeto da ciéncia). E pessoa possa verificar que é assim, ou melhor, possa ser convencida avel foi preferido pelos principes. : de que os fatos demonstram tal coisa. E uma questio de légica Pouco a pouco, entretanto, e nao sem a influéncia dos poetas € aplicada aos fatos. A sofisticagao desse ultimo tipo de saber é a literatos (Gusdorf, 1990), comegou um movimento que ciéncia. A humanidade construiu uma ciéncia, um saber objetivo e licava a originalidade do humano. O que é proprio do humano publico, e que pode ser apropriado por quem o estuda. E mais. Na §e deixa captar pelos métodos da ciéncia. Mas ento nao pode complexidade de nossa vida atual, esse tipo de saber se tornou necessario, indispensdvel, insubstituivel. A nossa sociedade nao poderia funcionar sem ele. A nossa sociedade tal como ela é nao poderia subsistir e manter-se em movimento sem o saber produzido pela ciéncia (e por sua filha dileta, a tecnologia). Mas estamos correndo demais. Antes mesmo da ciéncia havia uma forma de saber, mais baseada no pensamento e na experiéncia de vida, mas que se pretendia geral, universal. Uma reflexio rigorosa sobre as coisas. Era a filosofia. S6 que, de repente, a filosofia comegou a parecer algo nao certo, nao seguro, e nao pratico para oe ce % atender as necessidades dos homens (fossem elas pragmaticas ou de iposta pelas ciéncias humanas é do tipo sujeito-sujeito, pois ° conhecimento). O pensamento nao tinha um juiz que decidisse sobre aqui é um outro sujeito. O tipo de objetividade que se pode ter é, seu acerto ou erro. Foi assim que apareceram os fatos. Os fatos \ uma objetividade que nasce de um entendimento entre decidiriam. E esses fatos poderiam ser medidos objetivamente e de iijeitos, é uma objetividade que brota de uma inter-subjetividade. O idar com a autodeterminacdo, com a liberdade, com a slividade etc. E as ciéncias humanas foram nascendo do seio da fa, que entio foi rebatizada pelos humanistas como ciéneia . E os cientistas humanos, ao contrario dos cientistas naturais, savam o discurso simples de uma ciéncia una. Digamos que a lo pressuposta pela investigagao nas ciéncias naturais ¢ do tipo ito-objeto. O objeto é uma parte do mundo; o mundo existe em si; 0 to pode captar suas leis objetivamente, sem que haja nenhum ilvimento, mas apenas, digamos, um olhar. Ja a relagado 48. Mauro Martins Amatuzzi sicologia Humana 49 mundo das ciéncias humanas nao é 0 mundo em si, mas 0 mundo tal como experienciado pelo homem e, portanto, carregado de significados. Nao é natureza mas é mundo (mundo é natureza mais significado humano). Em vez de fatos, temos os fenémenos. Os fatos na verdade sao derivados. O que é primeiro sao os fendmenos. Os fatos cia mais dialética, quando as conclus6es sao estabelecidas a s6 sdo obtidos por abstragao. A experiéncia primeira é de fendmenos, de uma interagdo com os sujeitos, isto é, eles sao convidados a isto é, a coisa tal como vista, tal como experienciada. E mar as conclusdes e de alguma forma participam delas. sera trabalhando em cima disso que chegaremos aos fatos. Pretende-se interessante notar que esses desdobramentos (filosofia/ ciéncia, com isso transcender a relagdo sujeito-objeto e se chegar a uma outra natural/ciéncia-humana) nao eliminam o ponto a partir do qual que é mais primitiva que esta, e que por ser mais primitiva nos d4 © desdobramento. O surgimento da ciéncia nao eliminou a acesso a uma verdade mais radical. No fundo as ciéncias humanas (por mais que a ciéncia tivesse nascido por oposigao a ela), mas estudam nao o mundo como natureza, mas a relagio homem-mundo, finir-se ou pelo menos repensar sua identidade. O surgimento Nio é possivel abstrair 0 homem que estuda, e considerar somente 0 abordagem fenomenoldgico-hermenéutica do seio da ciéncia objeto puro. Se nas ciéncias naturais se pretende evitar ao maximo 0 minou a abordagem empirico-analitica, nem mesmo impediu que envolvimento do pesquisador, nas humanas 0 que'se tem a fazer ¢ tirar rdagem pesquisadores continuassem se ocupando de assuntos proveito desse envolvimento. E uma outra concepgiio de ciéncia, outro i8 (86 que dentro de seu enfoque proprio). Parece que as coisas modelo epistemoldégico, outro paradigma (Chizzotti, 1991). , no ficam nunca perfeitamente resolvidas. As pesquisas em ciéncias naturais foram, ento, chamadas de ie desdobramento no interior da pesquisa cientifica nao estava empirico-analiticas. E quando aplicadas ao ser humano podem ser de 2 firmeza estabelecido, quando novas necessidades surgiram. tipos: estatisticas ou de andlise de comportamento. As pesquisas en} /comecou a questionar foi que esse conhecimento todo (seja ele ciéncias humanas foram chamadas de fenomenoldgico-hermenéuticay O-analitico, seja ele fenomenolégico-hermenéutico) é muito porque no fundo lidam com significados de experiéncias e fazen) Neo coma acai concreta. Quer isso dizer que ele ainda fica fora interpretagGes (isto é, explicitagao de significados ou desdobramento dé i0 pratica. Ha ainda uma separagao entre 0 ato de pesquisar (0 sentidos). Foram também chamadas de existenciais ou mesmd oduzir o conhecimento) ¢ a atuagao concreta hist6rica (0 ato de humanistas (ver por exemplo Polkinghorne, 1982), porque buscam @ nhecimento). Isso torna a atuagiio, e conseqiientemente toda significado dos fenémenos para os humanos com eles envolvido! profissional concreta, mera execugao externa do que foi Também foram chamadas de “qualitativas” (Alves, 1991), por oposiciid pelos sabios. E faz dos “sabios” os detentores do poder do as “quantitativas”. Os que se colocam nesta abordagem empiricd ento. Ou, pior ainda, da o poder do conhecimento aqueles que analitica consideram que 0 termo “quantitativo” aplicado a eles restring) ¢ financiam as pesquisas. Mas os profissionais da area de muito 0 que fazem, pois eles podem trabalhar também com an io conseguem aquietar suas questdes nascidas da lida com 0 qualitativa. Mas a isso os praticantes da abordagem hermenéutica dize aceitar tranqiilamente serem como autématos dos sabios dos que nao se pode confundir andlise qualitativa com pesquisa qualitati laboratorios, meros aplicadores de conhecimentos. Algo esta A anilise qualitativa pode se dar no interior da maneira convencional (| isso tudo. Essa ciéncia toda ainda esta longe da agao fazer ciéncia, ja a pesquisa qualitativa 6 um outro modo de se fa! idora concreta. E isso foi sem divida influenciado por um ciéncia, inteiramente diferente, e nao sé diferente quanto senvolvido no interior de movimentos politicos procedimentos técnicos. ios. Foi ficando mais clara a oposig&o entre conhecimento fio concreta, entre uma relacéio meramente cognitiva entre Penso eu que pode haver duas tendéncias em pesquisas desse ido tipo, o fenomenoldgico-hermenéutico: uma tendéncia mais ca, quando as conclusées sao principalmente baseadas na w@ de dados dos depoimentos registrados dos sujeitos, e uma 50 Mauro Martins Amatuzy) er o humano, e o humano concreto que somos € que temos nds, nao teremos que tomar as asas do simbolo, cujos idos nunca se esgotam (pois ndo so meros signos), der o que da poesia nao coube na ciéncia, o que da arte, da religiosidade também nao? Nao ser que existe uma certa ia inserida essencialmente no modelo até hoje vigente de ja ele empirico-analitico, fenomenolégico-hermenéutico, ou ragmatico)? Nao sera que ao invés de pensarmos em possuir idoria nao deveriamos pensar em sermos possuidos por uma da qual, no entanto, podemos nos aproximar com respeito? agem seria essa? 3 formas de escuta desenvolvidas por René Barbier nos msar. Ele é um socidlogo, especialista em pesquisa-a¢ao, ¢ de se considerar um psicossocidlogo. Segundo ele essas 3 e escuta sio necessdrias para que nos aproximemos do que queremos estudar. Ele denomina a primeira de escuta eo-clinica”. Nao basta buscar a coeréncia, ou compreender es que existem entre os fendmenos que observamos no na sociedade (e eu acrescentaria: também no individuo). No joe ¢ no envolvimento com a agio é preciso desenvolver uma ensivel ao que acontece com as pessoas em sua pratica. Essa entifico-clinica vai além do que poderiamos chamar de \ciocinante (principalmente se esse raciocinio sé langa mao esta estabelecido). O outro tipo mencionado por ele é a filoséfica”. E uma escuta dos valores tltimos das pessoas e 9, ou seja, aquilo para que, a partir do que, a pessoa faz questao de favor do que aceita correr 0 risco de perder algo importante 1992, p. 209). Aqui também langamo-nos num plano que 0 do puro cognitivo. E preciso ouvir 0 que move as ‘4 partir de dentro. E o terceiro tipo de escuta € a ica”. Consiste em ficar atento ao novo na vida do grupo, as jonantes, minoritarias, que questionam o ja estruturado. homem e mundo, e uma relag’io mais englobante, transformadora. () conhecimento é, enquanto sozinho, constituinte da relago merament¢ cognitiva, mas por outro lado ele é apenas um componente, da relagdo mais englobante e transformadora. Mas, e isso é fundamental, é enquanto inserido numa agdo transformadora que o conhecimento concreto e vai mais longe. O verdadeiro conhecimento é 0 que faz part de uma relagdo mais que meramente cognitiva com 0 real. Isso tudo fo| clareando uma nova concepgdo de ciéncia, de pesquisa e dé investigagao, e também de pratica. E essa nova concep¢ao foi chamadi de dialética ou pragmatica. Foi dentro dessa concepgao que surgiram pesquisa-participante, e a pesquisa-acao (Astolfi, 1993; Gamboa, 1991), E os estudos teéricos dentro dessa nova concep¢do tomaram out fisionomia também: foram denominados estudos criticos e visat também uma transformagao mais global. Dentro dessa nova perspectiv a acao concreta (a psicoterapia, por exemplo) péde ser vista comi pesquisa ou investigag’o. O ato de pesquisar e 0 préprio processi terapéutico, por exemplo, no so coisas diferentes, Esta em jogo ut novo modelo epistemoldgico. Nao ha uma separacao entre a pesquisa ¢ agao; pelo contrario a acao desenvolvida como pesquisa passa a ser mail critica, qualitativamente superior, e mais eficaz. E por outro lado 0 conhecimento assim gerado, mais verdadeiro. Isso muda muita coisa, inclusive 0 modelo de relatérid cientifico, 0 modelo de registro de dados, 0 proprio modelo di interagéo concreta na coleta de dados, e a propria atuacig profissional. Existem modelos diferentes disso tudo para os paradigmas. Sera que termina aqui essa andanga dos modos de pesquisar humano? O que podemos prever como novos passos que virao? E aqui 86 podemos ousar, pois estamos nos arvorando em profetas, tentand detectar pequenos sinais dos tempos. Falo do que imagino e de com interpreto pequenos sinais. Todas essas formas de saber no esgotatt) aquele conhecimento de vida, saber tacito que decorre da experiénel; vivida, de que falavamos no comego. Ha ainda muita coisa que dai nid passou para o plano do saber representacional explicito. Nao sera qu todas essas formas de saber explicito (filosofia, ciéncia natural, ciéne| humana, dialética) nao teriam em comum que todas elas ficam ainda ¢ algum modo submersas no fluxo histérico? Nao serd que pai A escuta mito-poética é aquela que esta atenta a vida sJacional e simbélica de um grupo, de uma populac’o, ea forma © as pessoas so solidarias, como trocam mitos, simbolos, sens, a fim de criar condigGes diferentes daquelas que Ihes 52 Mauro Martins Amatuz: As vezes sao os mitos e simbolos os tinicos meios de termos acesso a algo que nao esta dominado ou plenamente conhecido e que, no entanto, é fundamental para se entender 0 que acontece, ou 0 que esta por acontecer. Creio que a integragao dessas 3 formas de escuta sé é possivel s¢ uis a do Vivido estivermos envolvidos numa pesquisa conjunta, que nao exclud ninguém, e que é a0 mesmo tempo uma pratica em busca de significados mais abrangentes, dentro de uma postura de quem quer, com humildadg, participar de um movimento e de uma sabedoria que ja estao ai. Uma psicologia humana passa muitas vezes por uma abordagem fenomenolégica, seja no sentido mais puro de um olhar para a consciéncia ¢ os significados do suje- ito entrevistado, seja no sentido em que esse olhar é determinado pelas indagagdes que habitam o pesqui- sador. Na verdade uma coisa necessita da outra. Esse capitulo tenta mostrar isso numa linguagem que, mesmo sendo te6rica, pretende clarear os rumos da pesquisa e da pratica. E quer fazer isso como numa primeira expresso apenas reflexiva. a das coisas que caracteriza uma psicolo- de inspiragao fenomenoldgica é a im- fncia dada ao vivido. Acredita-se que s ele seja melhor guia para nossas ag6es € para nossos pensamentos do que con- idéias construidas mais ou menos artifi- ‘Amatuzzi, 1996). Dai a importancia da ue tenha por objetivo uma aproximagao e a conseqiiente expressao do que nele ido como significado potencial face a blematica trazida pelo pesquisador. E a indagacaio que o vivido se manifesta. que é 0 vivido? E nossa reagao interior juilo que nos acontece, antes mesmo que 54 Mauro Martins Amatuzz) Psicologia Humana tenhamos refletido ou elaborado conceitos. Hesitei ao escrever “nossa reagao” ao invés de “a reacdo da pessoa”. Sai do impessoal @ escrevi “nds”. Nossa reagao. Sai da postura objetiva e neutra, e estou evocando a experiéncia minha e do leitor, a experiéncia comum, nossa. Todos podemos saber de que estou falando, mesmo que isso’ seja de dificil definigao. Reagimos por dentro aquilo que nog acontece. Isso é 0 vivido, a experiéncia imediata. E como nos sentimos. ‘as essa palavra sentimento, embora possa ser usada aqui, é . O sentimento se distingue claramente do pensamento. Uma entir, outra coisa ¢ pensar. Pois bem, o vivido esté num plano ciéncia onde o sentir e o pensar nao se distinguiram ainda. E entido ele é tanto sentimento como pensamento, sem ser m dos dois. E sentimento e pensamento potenciais. E a raiz 0 sentimento como do pensamento. Sim, porque o sentimento pode ser elaborado, recebendo a influéncia dos pensamentos bes, E, como tal, ele estara distante da experiéncia imediata, lexiva. Se denominamos 0 vivido de sentimento é, entio, para ui-lo do pensamento elaborado, ou da elaborag4o posterior orre. Apenas por isso. Vivido, experiéncia imediata, sentimento primeiro: a cia de se retornar a isso fica mais clara, ent’io. E como se emos deixando de lado tudo aquilo que colocamos em cima $ primeiro, para voltarmos 4 pureza original, digamos assim, nitir que essa pureza original dé vida a tudo que se segue a igindo possiveis distorgdes, clareando a relatividade das g6es. A pesquisa fenomenoldgica pretende voltar ao vivido, gando as elaboragdes que se fazem a partir dele, mas Essa reagao interior ja é alguma coisa da ordem da consciéncit Nao estamos nos referindo a reagdes externas, fisicas ou fisiolégicas, mas a rea¢Ges internas. Algo que podemos sentir. Poderiamos talve7) falar da face interior, ou psicolégica, de nossa reagdo. Mas aqui quas¢ que ja existe uma tomada de posig&o em relacgio a questdo do paralelismo psico-fisico (Dutra, 2000). E nao é essa a intengao, Relativizemos, pois, nossas maneiras de falar. O que importa é aquilo 4 que estamos nos referindo, como uma experiéncia de cada um. Um outro aspecto é que se trata da reagao imediata. Nao a reagio construfda, nem a reaco pensada. E 0 que eu sinto, diretamente, a forma como avalio, diretamente. Para além das mediagdes pensadas, para alén) das minhas escalas de valor. E nao se trata também daquilo que eu possit pensar depois para “domesticar” a experiéncia, ou reduzi-la ao familiar, lo-as provisoriamente entre parénteses, para revé-las depois, Finalmente, dissemos que é nossa reagao interior aquilo qué \quela fonte primeira. Dai as coisas podem ficar mais claras. nos acontece, e nao simplesmente aquilo que acontece. A diferengaé Mas como chegar ao vivido sobre algum tema de investigagao? justamente a conex4o com nosso centro pessoal. Buber dizia qué a mais claro se examinarmos primeiro 0 que acontece com ele aquilo que me acontece é palavra que me é dirigida (Buber, 1982, p. 44). Hil NO das significagdes. O seu percurso psicolégico. coisas que nos tocam e das quais nao temos a menor consciéncia. i File sozinho nao existe, uma vez que 6 sempre acompanhado de um tocar meramente fisico. Para que possamos falar de vivido como ‘ignificagao. A funcdo da pesquisa consiste em substituir sua reagao interior, é necessario um outro nivel de comunicagid ‘jo contextual imediata, pela significagéo do contexto envolvendo a subjetividade, é necessdrio que tenha acontecido algo pelo pesquisador, dialogicamente. Vamos construir isso que seja portador de um sentido potencial para mim (ainda que sej /passo. apenas o sentido de um espanto). Com 0 vivido estamos no plano do izer que o vivido é sempre acompanhado de alguma significado, e nao simplesmente no plano dos eventos mec&nicos, fio significa dizer que nao temos acesso direto a ele. digamos assim, ou objetivos. O vivido nao éa reacdo muscular, mas acesso ja é uma forma de significa-lo, tanto por parte do reacao psicolégica, mental, espiritual, antes de qualquer claboragiid Sujeito que o vive, como por parte do pesquisador (ou do posterior com raciocinios. A reagao psicolégica imediata. Por iss) que reflete sobre ele). Por isso devemos dizer que 0 vivido “se falamos também de experiéncia imediata, e de sentimento (ver po) intro de nés, ele se expressa, e assim assume um significado. E exemplo Rogers & Kinget, 1975, pp. 61-3). 10 de se dizer que ele se constitui como vivido pleno, pois éa 60 Mauro Martins Amatuzz| iologia Humana, esté ainda fazendo uma pesquisa propriamente fenomenoldgica. Esta ecorte da existéncia foi bem selecionado), deve possibilitar ocorre quando ele pesquisador ou pessoa que reflete, guiado pela isfio mais clara do assunto, e conseqiientemente, um indaga¢ao que o mobiliza, atravessa 0 depoimento, por assim dizer, ¢ lento mais efetivo na agao. parte em busca do vivido ali contido, sem se desviar para a busca dos ‘88a visio mais clara do assunto é 0 que o pesquisador busca, a padres coletivos, ou elementos da histéria escondida. Mas como ess¢. uma questo que esta tendo significado para ele. A partir dai ele ivido nao tem consisténcia sem uma estrutura ou contexto de interlocutores vivos (ou memorias documentadas) com quem significados, 0 pesquisador procura dizer inicialmente este significado ialogar em torno da experiéncia vivida, ¢ assim produzir suas para 0 sujeito, tal como ele se mostra no depoimento; e depois, por uma , E quando o interlocutor assume a mesma intengfio de espécie de trabalho de abstracdo conceitual, vai se desprendendo do cle sai também beneficiado por ela. Ele sai compreendendo-se contexto concreto do sujeito, para expressar seu significado mais geral, ‘© capaz de agdes mais efetivas). Por isso, dentro da luz Esse significado mais geral é 0 que aparece no contexto mais amplo da jolégica, nao ha diferengas essenciais entre pesquisa e existéncia humana, naquele aspecto que esta sendo problematizado pelo ito psicolégico ou psicoterapia. A aproximagio do vivido pesquisador, a partir de seu contexto. A luz sob a qual se 1é 0 depoimento ia mudangas. E como uma volta a fonte, “as coisas mesmas”. é, ent&o, uma luz que permite atravessar a materialidade empirica do proprio depoimento, chegar ao vivido que ele expressa, e depois, abstraindo-se do contexto concreto deste sujeito, buscar os significados gerais em relagéo a existéncia humana problematizada pelo pesquisador. Mas esses significados gerais, assim construidos pelo pesquisador, devem dar conta do vivido concreto dos sujeitos, ou seja, devem ser suficientes para dizer e clarear esse vivido de um ponto de vista mais abrangente (e capaz de incluir outros possiveis sujeitos nessi compreensio). Nada impede que esse ponto de vista mais abrangente poss incluir uma consideracdo do coletivo (em pesquisas tematicas) ou dil hist6ria individual (em estudos de caso). Mas na pesquisa propriamenté fenomenoldgica essas consideragdes, quando for 0 caso de clay ocorrerem (devido ao tipo de delimitagéio do objeto ¢ de alcance dij pesquisa), serdo apenas instrumentais ou intermediarias, e nao finais, Onde termina, entao, a pesquisa do vivido? Com que tipo dé afirmagao ela se encerra? Nao é coma afirmagao de um fato, mas col a afirmagao de uma possibilidade de compreensdo (ou um conceito) que se estende para além dos sujeitos estudados naquela amostra, assim que entendo o que Husserl chamava de esséncia. A pesquisi fenomenolégica, em psicologia cientifica, descreve uma esséncia, partir de depoimentos concretos de pessoas falando de sua experiéncias (ou escrevendo ou manifestando de qualquer forma qui seja). O que ocorre é que tal descrigao, se o objeto foi bem escolhidi limento Psicoterapico Este capitulo retoma anotagées feitas para um curso sobre esse tema na Universidade Estadual de Maringa, em abril de 1999, logo depois publicado na revista Psicologia em Estudo, da mesma Universidade, em edigao especial, 4(1), pp. 67-81, com o titulo Abordagem fenomenologica no atendimento psicoterdpico. A reflexio aqui apresentada baseia-se numa compreensao da fala e da escuta. Toda fala efetiva e plena da vida social a um sentimento ou a uma intengdo anteriormente vivida de forma ainda vaga. Fazendo isso permite a manifestagao de um aspecto novo da realidade vivida pela pessoa e mobiliza sua ago. O pensamento que ela transporta inclui emogiio. O atendimento psicoterpico caminha em dire¢ao a falas que cumpram essa fungao. Isso se faz pela escuta aberta de um terapeuta comprometido como pessoa nessa relagio. Dai resulta um verdadeiro didlogo e é ele que sera, na verdade, terapéutico. Foram feitas pequenas modificagdes no texto no sentido de complementar referéncias bibliograficas. a foi feita para calar base dessas consideragées é uma go do processo de significar, na fenomenologia. O atendimento 6 uma ajuda ao proceso de ar que de alguma forma ficou lo, e nado esta mais conseguindo sozinho. Quando a pessoa vé , ela se transforma e passa a estar indo de forma diferente. $4 Mauro Martins Amatuz/| ii Psicologia Humana 68 Duas frases de Clarice Lispector ilustram bem essa concepcad do processo de significar: e também — por que nao? — fago uma pesquisa ou me dedico a Se nao o fizer 0 sentimento permaneceria vago, sufocador. nilo expressar de algum modo, o impacto da realidade fica parado ) de mim, me sufocando e me impedindo de continuar a viver. quanto nao for dito ou atualizado na plenitude de um dizer uma presentificagéo, um sentimento permanece vago ¢ dor. A partir do momento em que ele é dito, algo se transforma, . O proprio sentimento deixa de ser vago e sufocador. E da utros sentimentos. Cecilia Meirelles também, em um de seus poemas, faz uma Jamentar que outra, a amada, nao tivesse percebido o que suas escondiam, e que, no entanto, segundo a amante, é forte e \0, talvez ndo capturdvel pelas palavras, mas certamente visivel Entao escrever é 0 modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando 0 que nao é palavra. Quando essa nao-palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescoua entrelinha, podia-se com alivio jogar a palavra fora. Mas ai cessa a analogia: a nao palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva entao é ler distraidamente (Lispector, 1985, p. 41). O que é que a palavra pesca? A nao-palavra. O que é uma coisa co. que € outra? A seqiiéncia do texto nos faz aprofundar na comparagao} quando essa nao-palavra morde a isca... As vezes a nao- palavra nao mordea isca. Nao é sempre que a palavra realmente diz alguma coisa. Aj vezes ela é vazia, oca de realidade. Existem palavras e palavras. Nen} delas. sempre a palavra pesca a nao-palavra. Quando consegue, algo se disse, _ Nunca eutivera querido/ dizer palavra tio loua: / bateu-me ou algo se escreveu. Quando consegue, a palavra esta sendo plenament¢ ; vento na boca, / e depois no teu ouvido. // Levou somente a palavra, cheia de sentido, cheia de vida, cheia de realidade. Um escrito. jalavra, / deixou ficar o sentido. // O sentido esta guardado / no sabe bem quando ele realmente escreveu alguma coisa, e quando eld y com que te miro, / neste perdido suspiro / que te segue simplesmente colocou sinais graficos sobre o papel. Ea diferenga entre lucinado, / no meu sorriso suspenso / como um beijo palavra efetivamente expressiva ea palavra malograda. A psicoterapia ¢ jalogrado. // Nunca ninguém viu ninguém / que o amor pusesse a busca de se passar dos discursos vazios aos discursos transformadores, Uo triste. / Essa tristeza nao viste, / e eu sei que ela se vé ates Nao tanto transformadores dos outros, mas transformadores daquele gente vento / fechou teus olhos também... (Meireles, mesmo que os pronuncia. Todo esforco do terapeuta é um esforgo de ser esta Completa, 1994, p.1 18). um interlocutor que favorega a essa passagem. A psicoterapia é uma / \ palavra eo sentido. O dito e 0 vivido. O corpo ea alma, diria pescaria das nao-palavras que importam para a pessoa. E uma pescaritl ju-Ponty. A nao-palavra de Clarice seria 0 sentido de Cecilia. A com as palavras de que no momento dispomos. O processo segue com conduz o sentido, vive pelo sentido. Mas este nao esta preso na palavras-iscas, de uma néo-palavra a outra ndo-palavra, até que s¢ | como num carcere. Ele voa solto no olhar, no rosto, no suspiro, chegue a um centro a partir do qual tudo fica diferente. teza bem visiveis. Mas... s6 se aquele vento fechou teus olhos Numa outra frase Clarice diz mais: m. A palavra conduz o sentido, mas pode nos fechar os olhos ‘ entido. Como o vento. / -palavra foi feita para calar. Im outro poeta, este argentino, Alberto Juarroz, diz que a da palavra é maior do que simplesmente designar as coisas. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o ir- reproduzivel, é sentir até o Ultimo fim o sentimento que perma- neceria apenas vago e sufocador (Lispector, 1984, p. 191). Escrever é tentar entender. Procurar entender é procuraf reproduzir 0 que nao pode ser plenamente reproduzido. E colocat: guia presenca. num quadro 0 pér-do-sol até que possamos entender o que é 0 proprio El oficio de la palabra, / mds allé de la pequeria miseria / y la por-do-sol. Escrever é sentir até o fim aquilo mesmo que ja sentimos, yequeria ternura de designar esto 0 aquello, / es un acto de amor: E para poder sentir tudo que eu digo, falo, pinto um quadro, fago um ear presencia (Juarroz, 1980, p. 27). 66. Mauro Martins Amatuajf ologia Humana, 67 E ele comenta isso dizendo: ir o ser da coisa, seu sentido. A palavra (Jogos, razao) ¢ © sentido desvendado. Mas para Platao e Aristoteles essa foi feita, e a palavra passou a ser vista como mero rétulo 0 conceito. A linguagem deixou de ser um modo de se lidar coisas, para ser apenas © sistema convencional de sinais Jo para designar, contetdos ja pensados, sinais esses que tm lade de facilitar a comunicagao na sociedade. A palavra foi endida como se referindo ao conceito e nao mais 4 coisa. E 0 La palabra es el hombre. Si esto es asi, la poesia seria el modo més amplio, el modo més comprensible y creo que abarcador... Abarcador de qué? La respuesta cémoda seria: de lo real. Pero aqui hay otra cosa que a veces descuidamos y es que la palabra crea realidad. Entonces: no sélo abarcador sino también enriquecedor, ampliador de lo real (Juarroz, 1980, p. 30). E eu comentaria Juarroz dizendo que a palavra captura realidade, nos pde em contato com ela, mas ao mesmo tempo, fazent foi entendido como uma maneira de se apropriar da essCncia. isso, ela amplia o real, ela o tora visivel e 0 modifica. Ai entio elf | era eterna, para Plato, por exemplo. O modelo perfeito das compreendo, eu vejo. Mas 0 que vejo? rfeitas. Passou a haver ent&o, no entendimento das pessoas, Muitas vezes dizemos: “descobri um mundo novo”, mesmi psigao entre o pensamento puro e a linguagem. O pensamento que nada tenha mudado objetivamente. A realidade paree pensar) visa esséncias eternas e imutaveis. A posse delas por transfigurada. E a palavra, ou entendimento expresso por ela, que cri onceito (= nous, mesma raiz que pensar). Pensar passou a ser esses mundos. Uma experiéncia nova, a partir de um novo Angulo ¢ Jo como um abrir-se para as esséncias eternas. E a linguagem visdo: uma nova realidade. falar) ficou sendo algo que pertence ao mundo passageiro e A palavra foi feita para calar. flo da comunicagao. O falar nao desvenda o sentido; é 0 Retomemos isso. A palavra cria. Cria presenga. Enriquece ( lento que faz isso, mas separando-se da coisa concreta. Essa real. Isso nos remete para a historia das concepgées sobre a palavril 0 (segundo Coreth 1969-1973, pp. 26-34) i Resumidamente, houve 3 fases. /19. Primeira fase. Na Grécia antiga, assim como na Biblia, alias, { se inicia uma mudanga. Terceira fase. Humboldt, em 1835 palavra era vista como uma coisa. Uma coisa que eu posso possuir, por Coreth), ira afirmar: as linguas nao séo propriamente meios de que interfere com aquela outra coisa que esta ld fora. Por isso 0 que el) a verdade ja conhecida, mas antes instrumentos para descobrir ° digo afeta a realidade. E como se eu possuisse a alma das coisas sconhecido. Para Heidegger, j4 em nosso séc. 20, 0 entendimento tivesse dominio sobre elas. Isso foi visto depois como pensamenti Compreendido como uma abertura para o Ser que se revela. Ora, magico. A crenga infantil e ingénua de que meu pensamento teil gem: a capacidade basica do ser humano de se abrir para o poder sobre a realidade. Mas isso é na verdade uma caricatu oisas. Por isso ele dird: “o homem habita na linguagem”, e nao: posterior do pensamento antigo. Vimos com os poetas como no homem, Para Merleau-Ponty 0 que existe atras da pensamento que se expressa tem o poder de transformar a realidad: loé ‘opensamento. Este est Da palavra. O que existe por tras € Foi apenas 0 modo de conceber isso que estava talvez pout 0 de significar, ou seja, a mobi izagao para falar, 0 desejo. Eo explicado. Mas por causa disso comegou uma idéia diferente. Wittgenstein dira que o jogo de linguagem proprio as ciéncias Segunda fase. Na Grécia mesmo comecou-se a fazer ul (com a verificabilidade externa pelos fatos) nao é 0 tmico separagdo entre a natureza (fysis, a coisa em si) e a palavra (Jogos, I; existem outros jogos de linguagem (0 da arte, o da ética, o da aquilo que expressa a coisa natural). Mundo é diferente de Palavri) }etc.). Se o jogo das ciéncias exclui como verdade tudo que nao Heraclito foi uma espécie de transigdo. Para ele, falar (/egein, mest i icado, isso nao corre nos outros jogos, pois cles representam raiz que logos, a razio da coisa) nao era ainda uma designagil 108 diferentes. Nessa 3* fase, entao, retomam-se as verdades da posterior e externa do objeto ja sabido, mas era justamente o ato dh fase. Mauro Martins Amatuzz) Juarroz, © nosso poeta argentino, escreve: Utilizo el término pensar para significar la capacidad del hombre de interpretar, de traducir en palabras la realidad (grifo meu), no como sistema légico 0 racional, sino como Persecucién, como posibilidad de infinito desvelo en pos de encontrar un sentido ala realidad. ¥ entiendo por sentido no una formula, ‘ni una explicacién, sino simplemente el que las cosas son asi porque deben ser asi. O sea que el pensar es para mi la apertura humana, creadora, que consiste en el reconocimiento de Ia realidad que no puede darse sin que al mismo tiempo yo la esté creando (Juarroz, 1980, p. 40). E ele diz também: : Esa capacidad del hombre de crear Ia realidad en base a su interpretacién por médio de simbolos es lo que llamo pensar. Pero todo eso al mismo tiempo estd cargado de un infinito peso motivo. Toda palavra tiene una dimensién emotiva [...] El hecho de pensar y de expressarse es infinitamente emotivo: no hay bensamiento sin emocién. En ese sentido entiendo pensar (uarroz, 1980, p. 41), i E poderiamos resumir dizendo que nao ha palavra viva que seja Sem emogao, pois ela interfere com a realidade, cria um mundo novo, mais do que simplesmente retrata a realidade. Se ficarmos na mera palavra, ento estaremos matando sua vida. Adélia Prado tem um poema que se Chama “Antes do nome”: Nao me importa a palavra , esta corriqueira. / Quero 60 espléndido caos de onde emerge a sintaxe, os sitios escuros onde nasce 0 “de”, o “alids”, 0 “o”, o “porém” eo “que”, esta incompreensivel muleta que me apdia. / Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. / A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. / Em momentos de graca, infreqiientissimos, se poderd apanhé-la: um peixe vivo com a mao. Puro susto e terror (Prado, 1991, p. 22). A palavra foi inventada para ser calada, pois através dela eu entendo e dou sentido ao espléndido caos, aos sitios escuros, 4 coisa mais grave, surda-muda. Quando ela pode ser, com plenitude, aquilo que tem a vocacdo de ser, sera como um peixe vivo na mao, puro jicologia Humana terror. A tarefa do terapeuta é favorecer palavra que seja ‘que nasceu para ser: um momento fugaz que nos abre os olhos realidade, e muda tudo. Oprimeiro sentimento basico que gostaria de partilhar com aminhaalegria quando consigo realmente ouvir alguém. Acho que esta caracteristica talvez seja algo que me é inerente e JA existia desde os tempos da escola primaria. Por exemplo, _lembro-me quando uma criancga fazia uma pergunta e a professora dava uma étima resposta, porém a uma pergunta inteiramente diferente. Nessas circunstancias eu era dominado por um sentimento intenso de dor e angustia. Como reagao, eu tinha vontade de dizer: Mas vocé nao a ouviu! Sentia uma espécie de desespero infantil diante da falta de comunicagao que “era (e é) tio comum (Rogers, 1983, pp. 4-5). - Ouvir realmente. Nos podemos ouvir, porque nosso aparclho livo esta em ordem, mas nao escutar, ou ndo ouvir realmente, ido nao atravessamos Os sons € ndo vamos até a alma da pessoa que , ou até seu coragao. Ficamos nas palavras-vento, como aquele do poema de Cecilia Meireles. Ele nao entendeu nada. O vento seus olhos. O que houve com a professora de Rogers? Um mero voco de comunicacao como se ela tivesse confundido as palavras? mente nao. Ela entendeu corretamente todas as palavras. Mas nao ila pessoa. Ouviu o significado, nao ouviu o sentido. Merleau-Ponty ja havia dito algo semelhante. Dizia ele que ouvir realmente (como diria Rogers) é necessario: reencontrar sob as linguagens empiricas, acompanhamento. exterior ou roupagem contingente de todo pensamento, a palavra viva que é sua efetuacao, onde o sentido se formula pela primeira vez, se funda assim, e se torna disponivel para _ operacées ulteriores (Merleau-Ponty, 1972, p. 227). i Mauro Martins Amal sologia Humana A linguagem empirica, a fala como som mensuravel, é ape o acompanhamento exterior do pensamento. A fala como pala’ viva, esta é a propria efetuagdo do pensamento. E nela que o sentid se formula pela primeira vez, e se constitui tornando-se ent disponivel para outros atos de viver. Quando aquilo que dizemos 1) é realmente ouvido, é como se nao tivesse sido plenamente dito, como sea fala tivesse ficado entalada no fundo de nossa garganta, |! viver nao pode se desenrolar. ‘nos alca a condigo propriamente humana. Simbolizamos o emos discutir o real, e assim transformar nossa relagao com ao mesmo tempo que o falar faz isso, ele também nos _do real. Para olharmos o que se passa, afastamo-nos um © que quer dizer tudo isso? Aproximagao e afastamento sao pectos de uma relagdo diferente com o real, que a capacidade f nos permite. E nessa relagdo diferente que aparece o ‘ado, o sentido. E entdo o que era simplesmente real passa a ser undo organizado e com sentido. que faz o psicoterapeuta? Ele nos ajuda a perceber como 10S nosso mundo, e como nossos problemas se prendem a ‘omo fazemos isso. Se eu, como pessoa em processo itico, puder entender isso, entio terei condigdes de ser diferente. Mas vamos ver, com Ricoeur (1977), como é que vai se mani- © um mundo com sentido, para além do simples real da rela- \ediata, quando entramos no universo da linguagem. O primeiro distanciamento que a linguagem opera em relagdo | é 0 distanciamento da significagdo. Quando falo significo, lo signos, e assim me afasto, olho um pouco mais de longe, |. Pela mediagio dos signos me afasto da imediaticidade da , digamos, animal. Mas com o evento da fala, resintetizo a ide: eu a re-encontro como designada por mim. Aqui temos 0 0 simplesmente como fala. Ouvir, aqui, é entrar em contato que a pessoa diz. E se sou da mesma comunidade lingitistica jorre sem maiores problemas porque também uso os mesmos de signos com os quais analisamos a realidade. Falo a mesma |e entendo o que a pessoa esta dizendo. as a fala opera um segundo distanciamento. E que quando os arrumamos 0 que dizemos de acordo com um estilo préprio. js expresses e€ construgdes que gostamos mais. Usamos um um género. Isso nos pde um pouco mais distantes do real fo. E o distanciamento operado pela composigao, a que jponde discurso como obra. Como obra literaria. Se levarmos ta isso, entdo o ouvir verdadeiro tem que levar em conta 0 to da relacio € o estilo proprio da pessoa. Ouvir entao nao sera lesmente entrar em contato com o que a pessoa diz, mas entrar ontato com o que ela quer dizer através de todo esse modo com a crianga que nao teve sua pergunta respondida? Ela podg voltar a insistir algumas vezes, ou podera desistir. E se desisil acabard por esquecer sua pergunta verdadeira, e, pior ainda, acaba por substitui-la pela pergunta que a professora diz ter ouvido, pensard que esta sim foi a pergunta correta. Paulo Freire diria que professora foi ent&o a “opressora” que fez 0 menino se distanciar ¢ sua verdadeira palavra. i Separarmos 0 mero significado do significado pleno no ajuda a compreender o ouvir. O mero significado fica no nivel di palavras, enquanto o significado pleno se prende a toda preseng Significante da pessoa. Receber o significado pleno, e nao apenas ( mero significado, é ouvir realmente a pessoa. A resposta que broly deste ouvir bem pode ser chamada de interpretacao simbélica porqu reune 0 que eventualmente estava separado. O texto de Rogers continua assim: Creio que sei porque me é gratificante ouvir alguém. Quando consigo realmente ouvir alguém, isso me coloca em contato com ele, isso enriquece minha vida (Rogers, 1983, p. 5). ; Ouvir realmente é igual a entrar em contato, que é igual 4 enriquecer minha vida ou deixar-se tocar. Voltaremos a isso mais tarde, No prosseguimento dessa fenomenologia do ouvir e do responder, pec¢amos agora ajuda a Paul Ricoeur. Ele vai nos falar doy niveis de distanciamento que o discurso opera em relagio o real, Entendamos bem isso. Falar significa dar um sentido as nossas experiéncias © portanto nos aproxima delas, permitindo-nos lidar construtivamente e criativamente com clas. Tira-nos da condigio: 2 Mauro Martins Amatuzz\ ina Psicologia Humana 2B Isso exatamente € 0 quarto nivel de distanciamento operado la. A fala, deixando de ser sé do outro, nos afeta e questiona. iga a que tomemos uma posi¢Ao. Permitindo que a presenga total jitro me atinja como um projétil, ougo-me a mim mesmo recriado sse encontro. E o distanciamento operado pela comunicagiio ou ato direcionado de fala, a que corresponde 0 discurso como afio. A fala do outro o distanciou de sua realidade imediata e, proprio de dizer nesse momento ¢ nessa situagao. E isso pode nao ser igual ao mero significado das palavras. Quantas véezes em brigas ouvimos 0 outro dizer: mas vocé disse isso! E nao nos sentimos compreendidos. O que acontece? A pessoa joga na cara da gente as) palavras e nao o sentido. O verdadeiro ouvir vai além do significado imediato das palavras. Ricouer fala ainda de um terceiro nivel de distanciamento que para ele é 0 que ocorre quando escrevemos. Ao escrevermos alguma coisa ou gravarmos de qualquer forma o momento fugaz de uma fala, nds construimos um texto que poderd ser usado por outras pessoas de forma mais ou menos independente das intengdes imediatas de seu autor. O significado de um texto nao se prende mais ao que seu autor tinha consciéncia de ter pretendido. O texto escapa a individualidade do autor. Este muitas vezes se surpreende com tudo que disse e nao sabia. Esse é 0 distanciamento operado pela escrita, ou qualquer forma de fixar 0 que foi dito. A ele corresponde o discurso como texto. Existe um “mundo do texto”. E mesmo quando falamos, aquilo que dizemos tem essa dimensao de texto que remete a um mundo talvez insuspeitado pelo autor. Quem sabe sejam essas as dimens6es coletivas do que dizemos. Mas mesmo coletivas, sio eminentemente pessoais, pois se enraizam em nds. Aqui 0 ouvir tem que ir mais longe, entao. Ouvir realmente, aqui, significa entrar em contato com o mundo da pessoa. Com aquele espacgo mental ou campo semantico onde ela habita mesmo sem conhecer tudo que ha ali. E nds podemos entrar em contato com esse mundo mesmo sem termos que dizé-lo de que recebé-la afeta a pessoa. Se como ouvinte nao fui afetado, forma organizada. Ele se constitui de tudo que é recebido pela pessoa, io ndo ouvi realmente. Mas nao apenas as pessoas nos falam, mas também de tudo que foi construido por sua historia pessoal, pela nbém os eventos do mundo nos falam. histria de suas emogGes, sentimentos, reagdes, e pelo seu momento presente em que nos fala. Nao “saberemos” de forma representada ¢ discriminada tudo isso, mas podemos entrar em contato. E como entrarmos na casa de uma pessoa. Em sua moradia pessoal. Em seu modo de ver, organizar 0 mundo, estar nele, agir. Ela esta neste mundo, e podemos, ouvindo, entrar nele como um todo. O mundo do. outro tem coisas em comum com o nosso mundo, e tem coisas que lhe sao proprias. Mas justamente por isso, ouvir com essa profundidade nos obriga a questionarmos nosso proprio mundo pela aproximagao. do mundo do outro. ouvir-se a si mesmo € ainda ouvir ao outro que se comunica igo. Se eu nao me ougo no que cle diz, cle nao foi ainda mente ouvido. Estamos aqui no limiar da resposta e temos que recorrer a er. A fenomenologia do ouvir se expande em fenomenologia do mitindo a interpelagao do outro, sinto a necessidade da osta. Seu discurso jA nao esta nele. Esta agora em mim. O ‘ontro humano est4 eminentemente presente em nossa relagdo com mundo. O que ocorre em mim que estou ouvindo é uma jilizagao. Tanto em minha vida pessoal, como aqui diante da oa como interlocutor. Para Buber a palavra verdadeira é a palavra dirigida, e é por Aquilo que me acontece é palavra que me é dirigida, Enquanto coisas que me acontecem, os eventos do mundo sdo palavras que me sao dirigidas. Somente quando os esterilizo, eliminando neles o germe da palavra dirigida, é que posso compreender aquilo que me acontece como uma parte dos eventos do mundo que nao me dizem respeito (Buber, 1982, p. 44). A outra pessoa é uma presenga que me fala, uma presenga a mim gida. E s6 quando elimino esse fator de presenga dirigida, e portanto ilgo que me toca, que eu posso olhar um acontecimento de forma “4 Mauro Martins Amatuzzi neutra, como algo que nado me diz respeito. Essa objetividade so é possivel gragas 4 supressio mais ou menos artificial da relagdo mobilizadora. Mas 0 prego que se paga é nao tocarmos o centro dinamico da pessoa. Em psicoterapia, se quisermos tocar 0 centro dinamico da pessoa, é portanto necessario que nos deixemos tocar, Tomar conhecimento intimo de um homem significa entao, principalmente, perceber sua totalidadade enquanto pessoa determinada pelo espirito, perceber o centro dinamico que imprime o perceptivel signo de unicidadea toda sua manifestacao, a¢gao e atitude. Mas um tal conhecimento intimo é impossivel se o outro, enquanto outro, é para mim o objeto destacado de minha contemplagio ou mesmo observacio, pois a estas Ultimas esta totalidade e este centro nao se dao a conhecer: o conhecimento intimo sé se torna Possivel quando me coloco de uma forma elementar em relagdo com 0 outro, portanto quanto ele se torna presenca para mim (Buber, 1982, p. 147). S6 ougo plenamente quando o outro se torna presenga atuante para mim. Ai entao, sinto a necessidade da resposta. Mas neste momento central do dialogo, uma bifurcagao ¢ possivel. Se precipito a resposta estrago tudo. Nao dou tempo suficiente a esta mobilizagiio e atuo através de uma ligagéio direta. Minha respostit sera apenas 0 efeito do discurso ou da presenga do outro. Mas se, ao contrario, ainda espero, entao permito que surja 0 novo, € 0 que surgir sera verdadeiramente resposta ¢ nao efeito. I} somente aqui que se fecha 0 elo dialdgico. rsdo de Sentido Este capitulo retoma um trabalho originalmente apresentado em Aguascalientes, no México, no 8° Encontro Latino-Americano da Abordagem Centrada na Pessoa, em outubro de 1996, logo depois do encontro da Associagio Nacional de Pesquisa e Pés-Graduagiéo em Psicologia (ANPEPP) daquele ano, onde foi também discutido. Foi publicado como um capitulo das Coletineas da ANPEPP, caderno 9, com o titulo O uso da versao de sentido na formagiio e pesquisa em psicologia (pp.11-24). Esse cademo foi organizado pela profa. Regina Carvalho, tem como titulo Repensando a formacdo do Psicélogo: da informagdo a descoberta, publicado em Campinas, SP, Editora Alinea, 1996. O texto parte de uma preocupacdo com a busca de caminhos para pesquisas de tipo qualitative. Propde-se a examinar teoricamente um tipo de relato que vem sendo usado como instrumento pratico tanto na formago como na pesquisa, denominado Versao de Sentido (VS). Aqui conto um pouco de sua histéria, e busco uma justificativa para seu uso. Fiz algumas pequenas modificagdes no sentido de atualiza-lo e adapta-lo a este livro. O atendimento psicoterapico de orientagao fenomenolégica ¢ formado por elos dialégicos desse tipo. As outras falas que visati) apenas conferir a compreensao, manter a comunicagao ou clarear @ sentimento so preparagées para a resposta, ou ja sao implicitamente a resposta, ou entao nao tém sentido terapéutico algum. enho trabalhado ha algum tempo com Vers6es de Sentido (VS), como instrumento econémico e de uso facil, no acompanha- teflexivo de atendimentos terapéuticos, de les educativas e docentes, e de trabalhos pos. A experiéncia se espalhou, ¢ hoje mu- legas a praticam em atividades de formagao iséo, € comega também a ser usada em . Contudo também nfo faltam os oposi- 16 Mauro Martins Amatuzzi tores, argumentando que o termo é em si contraditério, ou que a VS nao pode servir como forma de acesso ao processo vivido. A expe- tiéncia de quem ja lidou com esse tipo de relato do vivido, entretanto, fala a favor de sua fecundidade para a formago e pesquisa, tanto no campo clinico como no educativo ou.de assessoria a grupos. O que me proponho aqui é: 1. redizer o que é exatamente uma VS, 2. contar um pouco de sua histéria, fundamentando-a em uma historia anterior, e 3. buscar uma justificativa teérica para seu uso. Gostaria de ter como pano de fundo 0 conjunto de desafios encontrados em uma iniciagao cientifica de abordagem qualitativa, seja a pesquisa, seja a pratica profissional. Nao vejo porque uma iniciagiio, para ser cientifica, deva comegar pelo manuseio de tabelas, freqiiéncias e testes estatisticos, quando 0 que se visa é um aprendizado de penetragaio de significados. Nao vejo porque, também, esse aprendizado deva ser separado de uma iniciag&o a pratica de atendimentos ou de uma experiéncia de envolvimento com processos grupais. Entendemos por Versio de Sentido (VS) um relato livre, que nao tem a pretensao de ser um registro objetivo do que aconteceu, mas sim de ser uma reacdo viva a isso, escrito ou falado imediatamente aps o ocorrido, e como uma palavra primeira, Consiste numa fala expressiva da experiéncia imediata de seu autor, face a um encontro recém-terminado. Compreendendo a VS a partir de sua historia Tudo comegou com o convite, feito a alguns colegas recém-formados, para uma pesquisa-em-agdo a respeito do desenvolvimento pessoal. Isso se faria através de um grupo onde discutiriamos semanalmente nossas experiéncias em atendimento psicolégico. Combinamos que essas discusses seriam feitas nao a partir do telato da sessao, mas a partir de um relato condensado do que, para 0 a Psicologia Humana 1 \peuta, tinha sido o essencial do encontro terapéutico. Houve ‘icamente dois motivos para isso. Um, bastante trivial. Estavamos los cansados de fazer relatérios mecanicos de sesso, como era gido nos estagios. E 0 outro motivo se referia 4 questo do sentido. que “fazia sentido” para estarmos conversando? E antes disso: 0 “fazia realmente sentido” para nds estar escrevendo logo apés 1atendimento? A resposta parecia ser: 0 que de primeiro nos vinha hente, agora, com o distanciamento da presenga face-a-face do nte, e antes que nos tivéssemos envolvido em uma nova atividade. is: algo que nos desse uma visdo de conjunto do que acabara de yntecer ali. Escrever isso foi experimentado como significativo. Fazendo isso, e discutindo nossos atendimentos a partir de tais latos, algumas coisas foram ficando mais claras. O que fazia ido registrar era diferente daquilo que escreviamos quando, de moria, tentavamos reproduzir a seqiiéncia dos fatos de forma ut ‘a. O que fazia sentido registrar era o sentido vivo, presente no rio ato de escrever. E era esse sentido que expressava melhor o amento do processo. _ Foi isso que nos levou a formulagiio de que o “sentido que essa” 6 sempre presente. Um registro mecnico nao o pode -, pois ele s6 contém o passado. E s6 através de nosso presente odemos estabelecer contato vivo com 0 sentido de um encontro. 0 contato vivo que é util na formacio. _ Mas isso equivale a dizer também que, se eu quiser ter um ido vivo do sentido vivido numa sessao terapéutica, este sd Jerd ser uma versio atualizada no presente, do sentido vivido l4.O ilo sera tudo memoria apenas, ou esquecimento. O tinico acesso isivel ao sentido vivo de um encontro se da através de versdes iais dele, no vivido de quem o reatualiza. Aquele grupo de colegas, naqueles anos de 1989/90 na USP, ja realizado uma exploragao em acao da experiéncia do sentido. E foi publicado em 1991 em um artigo que teve por titulo: O ido-que-faz-sentido: uma pesquisa fenomenologica no processo peutico (Amatuzzi; Solymos; Ando; Bruscagin & Costabile, 1991). Gostaria de prolongar hoje aquelas reflexdes para fazer face a imas objecdes que surgiram depois, em encontros com outros gas. E principalmente a duas delas: 78 Mauro Martins Amatuzzi - 0 sentido nao tem versao (e portanto a VS nos distancia do sentido vivo), e, 2. a VS nao nos da acesso ao que de fato aconteceu (e portanto nao serve como instrumento cientifico de pesquisa). A VS éuma versio do sentido vivido de um encontro, através do sentido vivido logo depois (¢ por isso mais facilmente surpreendido), Mas ela podera ser também apenas memoria, se nao for atualizada em outro didlogo vivo. Isso também foi experimentado naquele grupo. Ao invés de a sessio ser trazida ao grupo como um objeto a ser analisado (através de um relatério), era lida a VS, e a ela reagiamos com comentarios livres, inclusive do proprio terapeuta. Esses comentarios foram se revelando ser de dois tipos, quando mais uteis. No que diz respeito ao terapeuta (autor da VS) foi interessante constatar o poder de evocacao que a VS tinha. Era como um registro condensado do vivido, ¢ que permitia 4 pessoa nao apenas lembrar-se do ocorrido, mas também, falar disso de forma viva, atual, como pela primeira vez, explicitando detalhes do vivido. E por parte dos outros membros do grupo constatamos que os raciocinios ou interpretagdes causais nao ajudavam, muito, pelo menos no primeiro momento. Mais valia simplesmente dizer, de forma simples e presente, o que se tinha ouvido a partir da leitura da VS, ea reago que ela havia provocado. A partir dai se iniciava um didlogo que cumpria aquilo que, com Buber, poderiamos chamar de “presentificagao” do sentido ou dos significados vividos (agora em novo contexto interlocucional). S6 quando isso estivesse realizado, é que outras formas de consideracio ou raciocinio se faziam tteis no acompanhamento reflexivo da experiéncia. Em um outro grupo posterior, tratando-se de uma experiéncia didatica (desta vez na PUCCAMP, em 1995), constatamos que aquilo que para o autor da VS podia inicialmente parecer sem sentido se lido para terceiros, para os outros que ouviam de fato transmitia muito exatamente a qualidade do vivido, mesmo que nao houvesse ali informagdes sobre o empirico do que tinha acontecido. Isso aconteceu mais ou menos assim. Numa sala de aula do curso de p6s-graduagao em psicologia clinica, alguns alunos estavam trabalhando com versGes de sentido para acompanhar experiéncias semanais de atendimento clinico, educativo ou de assessoria a grupos. Haviamos feito um rapido “treino” para escrever VSs no. yma Psicologia Humana 19 eco do curso. Quando um determinado aluno foi ler sua VS pela eira vez, ele hesitava muito, e, com muitas explicagGes, dizia que ‘yia sentido em ler aquilo para outras pessoas. Por fim foi pedido ele a lesse assim mesmo, e, sem comentarios, ouvisse 0 que os gas tinham a dizer acerca do que tinham ouvido. Ao final dessas dos colegas, o primeiro declarou estarrecido que eles tinham 0 essencial daquele encontro, mesmo sem saber nada de seu do. Pessoalmente comecei a pensar que uma VS bem feitaé uma ic de radiografia fenomenoldgica de um encontro. Até agora pretendo estar afirmando que: 1. Uma VS é uma forma de contato vivo com o sentido de um encontro. 2. Osentido para o qual aponta uma VS se torna atual quando ela é colocada num contexto de interlocugdo presente. 3. Ela tem o poder de transportar o vivido de forma condensada. Ela evoca lembrangas e desdobramentos de sentido em seu autor, e passa para os ouvintes um sentido essencial, mesmo quando nao passa detalhes fatuais. Mas outras coisas também pudemos constatar naquele primeiro . Vejamo-las: 4. Uma VS pode ser re-escrita pelo seu autor sem que ela deixe de ser uma VS. Verificamos que 0 seu autor pode torné-la atual, e nesse ato poderd haver novas explicitagdes ou desdobramentos de sentido. Em suma, pode haver versdes de versdes de sentido. Isso 6 importante do ponto de vista da pesquisa. No fundo o método qualitativo de pesquisa consiste em re-escrever sucessivamente a mesma coisa (ou fazer sucessivas leituras) até que se chegue a uma depuragiio do significado que se procura. E quando é 0 préprio sujeito que faz isso (sozinho ou em interlocugao), nfo seria de estranhar que se acrescentassem eventualmente significados novos ao mesmo vivido. 5. Mas poderia ser uma VS re-escrita por outra pessoa? Poderiamos talvez dizer que a transcrigao feita por um pesquisador seria tio mais apropriada quanto mais ele tivesse participado da re-criagao do sentido através de um grupo de interlocucdo, na medida do possivel com a presenga do autor. Permanece valido, no entanto, que re-escrever (ou x . Posteriormente a esse grupo, que durou aproximadamente um Mauro Martins Amatuzzi transcrever) 6 fazer uma outra versio do mesmo sentido, a partir do atual ponto de vista de quem o faz. O trabalho com VSs em grupo (ou numa dupla) pode ser equivalente a uma supervisdo. Isso também foi constatado por membros do grupo de trabalho com VS, e que, por outro lado, estavam em supervisdo com outra pessoa. 0. que se dizia é que a discussao no grupo estava sendo mais significativa do que aquela que a pessoa tinha em sua supervisao. Foi por causa disso também que muitos colegas passaram a usar a VS como método de supervisao, ¢ alguns chegaram a levar trabalhos em congressos sobre essa experiéncia. ano, trabalho prosseguiu de outras formas. Uma das formas mais significativas foi o trabalho com seqiiéncias inteiras. A conclusao foi que, a partir da andlise de séries de VSs, referentes a um mesmo processo, é possivel descrever, de un) ponto de vista mais fenomenologico, esse mesmo processo, As versGes de sentido, sesso por sessao, olhadas em conjunto depois de terminado 0 processo, possibilitam uma visao mais condensada do todo, e ao mesmo tempo rica em detalhes experienciais (embora nao em detalhes fatuais). Um trabalho nesse sentido ja foi publicado (ver cap. VII), e outros estéo en) andamento. Uma questao importante que aqui se coloca é de se saber se ¢ possivel descrever um processo do qual participaram pelo menos duas pessoas, a partir das VSs de apenas uma delas, Se entendemos por processo a seqiiéncia de fatos ocorridos, objetivamente considerados, e envolvendo todas as pessoaj em relago, ent&o certamente que a descrigao feita a partir de VSs seria muito parcial. Mas se processo se referir nao a fatoj objetivos, e sim a seqiiéncia de significados vividos dw encontro para encontro, e se esses significados foren) entendidos como sendo do encontro, e nao de cadi participante em separado, entéo podemos hipotetizar que (i série de VSs nos dé acesso ao desenho do processo. Cada V§ P ima Psicologia Humana 81 sera aqui realmente apenas uma “versao” do sentido do encontro, e é enquanto tal que ela deve ser analisada. E claro que significado ou sentido do encontro é um conceito de dificil apreensao. O que é isso na pratica? No entanto é ele que mais interessa na avaliagdo de um processo: o que cada encontro possibilitou em relagdo a um movimento de conjunto, e como esses elos se articulam na cadeia. E no caso de um processo terapéutico, sera principalmente o significado que 0 encontro teve para o cliente que ira definir seu sentido. Ora, 0 terapeuta como tal é uma pessoa voltada para isso, e é nesse papel que ele faz suas versGes de sentido. Elas podem ser, portanto, aqui de particular relevancia. Mais pesquisa seria aqui necessdria, envolvendo comparativamente VSs de terapeutas e de clientes (ou de todos os participantes do grupo), sem divida. No entanto eu ousaria dizer, teoricamente, que a natureza das coisas aqui em jogo é tal que as VSs de um participante apenas podem nos dar um razoavel acesso ao sentido do processo como um todo, desde que sejam lidas sob esse ponto de vista. Preciso acrescentar aqui que, atualmente, ja existem pesquisas envolvendo VSs de clientes ou participantes de grupo, por exemplo: Alves, 1996; Prebianchi & Amatuzzi, 2000; Macédo, 2000. Mais pesquisa seria aqui necessdria, envolvendo comparativamente VSs de terapeutas e de clientes (ou de todos os participantes do grupo), sem divida. No entanto eu ousaria dizer, teoricamente, que a natureza das coisas aqui em jogo é tal que as VSs de um participante apenas podem nos dar um razoavel acesso ao sentido do processo como um todo, desde que sejam lidas sob esse ponto de vista. Preciso acrescentar aqui que, atualmente, ja existem pesquisas envolvendo VSs de clientes ou participantes de grupo, por exemplo: Alves, 1996; Prebianchi & Amatuzzi, 2000; Macédo, 2000. 8. Ha uma outra conclusao a que pudemos chegar, no entanto, que torna relativas todas as anteriores. E que a | uma Mauro Martins Amatuz7) coisa que se vai aprendendo a fazer, assim como se aprende a chegar a uma fala auténtica a partir de um habito anterior de falas inauténticas, mecanizadas, e sé indiretamente expressivas. Nao basta uma simples instrugao para que 4 pessoa esteja pronta para escrever uma VS. E comum que ela comece fazendo relatos de observa¢do neutra, ou mesmo elaboragées légicas a respeito do ocorrido. E sd. pouco a pouco que a VS vai se aproximando de uma fala expressiva da experiéncia imediata, Nossa historia com esse instrumento pode nos dizer algumas coisas aqui. Uma primeira é que justamente if aprendendo a fazer VSs é ir aprendendo a lidar de forma viva com 0 significado das coisas e, conseqiientemente, if aprendendo a relagao psicolégica. Isso parece importanté no aspecto pedagdgico da formagao. Em segundo lugar, se deve dizer que a VS nao ¢ tao varidvel em seu valor expressivo quanto o seria a fala direta ni presenga do cliente. O recuo no qual ela é feita (sob o climi: do encontro, mas sem a presenga do interlocutor) permil¢ mais facilmente seu carater expressivo. Além disso cla ¢ passivel de “corregdes” no grupo de acompanhament reflexivo (supervisao). E finalmente, é importante dizer que uma boa anilise d¢ qualquer documento deve levar em conta as caracteristici de seu valor heuristico. Pré-historia e outras abordagens Rogers, em 1951, em seu “Psicoterapia Centrada no Cliente", utilizou-se também de relatos livres do proprio cliente para ilustt) 0 processo. Segundo ele, foi espontaneamente que uma determina cliente escreveu apés cada sessio. No fim do processo de 8 sessdes ( terapeuta recebeu todos esses escritos que serviram, entao, pil mostrar como as coisas se passaram “aos olhos do cliente”. Eis cor ele apresenta os manuscritos: \ima Psicologia Humana Depois desta primeira entrevista, ela (a cliente) escreveu, de forma bastante completa, suas impressdes, e mostrou o relato ao conselheiro antes do segundo encontro. O conselheiro a incentivoua continuar realizando esses informes pessoais depois de cada entrevista, para incrementar nosso conhecimento da terapia. Disse a ela que quanto mais sincero fosse o informe, implicando afirmacées positivas ou negativas, mais valioso seria © registro. Nao se voltou a mencionar o informe nas entrevistas seguintes, e o conselheiro sé os recebeu ao final dos contatos terapéuticos. O relato é extensamente auto-explicativo, mesmo que a autora o interrompa por momentos com comentarios (Rogers, 1972-1951, pp. 88-9). A cliente fez algo que se aproxima um pouco de nossas VSs, e foi utilizado depois num estudo de carater eminentemente litativo. Algumas express6es chamam a atengdo: informes oais, sinceros, para incrementar nosso conhecimento. Infelizmente essas sessdes nado foram gravadas para que se sse comparar os informes escritos com as gravagGes, e nciar assim nao s6 o que a gravacao tem a mais, mas também o 8 informes tém a mais, e que nao poderia nunca ser gravado. Bastante cedo também nos Estados Unidos 0 videotape foi do como instrumento e técnica a servigo da terapia. Um dos consistiu em recapitular a sesso, com sua ajuda, junto com 0 euta ou o cliente, permitindo novos insights sobre a relagado. Isso na técnica de supervisio, a Interpersonal Process Recall (IPR), na década de 1970. Segundo um comentario de Bernard & ear, em seu livro sobre a supervisio (1992, p. 26), embora o do parega comportamental, ele tem também um aspecto i, P fac FA menolégico, pois assume que as proprias pessoas sio os s intérpretes de suas experiéncias. Eles dizem também que loxalmente tal técnica permitia um acesso mais livre ao vivido 0 da propria sesso, pois diante do video o terapeuta permitia facilmente que os insights emergissem de dentro de si mesmo. de uma re-experienciagao da sessao diante do video. E 0 do presumivel, podemos deduzir, é que os comentarios assim apds a sessdo, com o distanciamento do contato imediato, Onavam sentimentos ou lembrangas vividas 14, mas nao zadas, € que, portanto, nao apareciam na gravagio. 84 Mauro Martins Amatuzz) ina Psicologia Humana 85 a atividade em questao, escreva, o mais espontanea ¢ ramente possivel, baseando-se em seus proprios sentimentos ; momento, o que lhe parece ter sido 0 essencial deste encontro abou de acontecer”. Ou: “escreva livremente acerca do acabou jcontecer”; ou ainda: “escreva como vocé esta, face a esse intro que termina”. E importante que o proprio autor experiencie nificancia do que ele esta escrevendo ou falando. Qualquer iliva de “instrugao” deve ser apenas 0 come¢o de um processo em go a um texto ou depoimento cada vez mais expressivo da riéncia imediata face ao encontro, e que seja ao mesmo tempo ificativo para quem escreve. Aum texto assim produzido, nés o denominamos uma “versdo mntido” porque ele pode ser um indicador indireto (mas o mais que podemos dispor) do sentido do encontro. Ele é uma verséo itido do encontro, tal como ele existe no presente da experiéncia | pessoa. E 6 quando utilizada dessa forma que uma VS pode ser astrumento Util em pesquisa e formagao. Podemos entdo falar de versdes de sentido como método. liste essencialmente em versar e conversar sobre o sentido até te chegue a uma presentificagao dele suficiente em relagdo ao sperado daquela atividade. Versar e conversar: fazer versdes mtido, e “‘con-versar” a partir delas fazendo novas versdes. ntificagdo: palavra de estilo buberiano, que quer dizer, aqui, jtar experiencialmente os significados, isto é, néo apenas os conceitualmente, mas torna-los presentes vivencialmente. trata do acompanhamento critico de uma experiéncia O mesmo pode ser constatado com o uso de questiondrios aplicados a clientes e terapeutas logo apds a sessao. As perguntag mencionadas em estudos como os de Heppner, Rosemberg ¢ Hedgespeth (1992) ou de Stiles, Reynolds, Hardy, Rees, Barkham @ Shapiro (1994) e que ja constituem instrumentos padronizados visam colher dos clientes ou dos terapeutas, imediatamente apés a sessio ¢ ja n4o na presenga um do outro, seus sentimentos, pensamentos ou avaliagdes acerca do encontro recém-terminado. E claro que aj respostas continham dados muitas vezes diferentes dos qué apareciam nas gravagoes. A VS segue esse mesmo espirito, sé que ela é feita de forma mais livre, nao padronizada, ¢ a partir daquilo que a propria pessod considera importante. Tentativa de definicdo Como produgéo, uma VS € a fala, 0 mais auténtica possivel, que toma como referéncia intencional um encontro vivido, pronunciada logo apés sua ocorréncia.Fala auténtica: é important que seja uma fala expressiva da experiéncia imediata, fala primeiti, original, esponténea, e no necessariamente um raciocinio, teorizagdo, cumprimento de instrugdes ou relatério. Referénel intencional: esta fala é expressiva da experiéncia imediata, face a U encontro. A situagao: uma relag4o interpessoal, uma aula assistid um grupo, ou mesmo qualquer encontro com um objeto significativa, Esta fala é pronunciada Jogo apos a ocorréncia do encontro, e tendo. como referéncia. A situagao interlocucional que define o encontro j nao é exatamente a mesma; 0 sujeito nao esté pressionado pe necessidade da resposta, e nesse sentido esta mais livre para Uf acesso a sua experiéncia imediata. Como produto, a VS sera um texto expressivo da experiéne! imediata, escrito ou gravado por iniciativa da propria pessoa, oi) solicitado por um interlocutor. A rigor poderia ser qualquer tipo (f produgao simbélica. Como poderiamos solicitar uma VS de um cliente, de i) supervisionando, de um auxiliar de pesquisa, ou de um participat| de grupo? Uma possivel maneira simples seria pedir a ele que “loy © sujeito mais bem preparado e disponivel para 0 proximo iro. Se se trata de pesquisa, a presentificagaio esperada é aquela odemos buscar uma justificativa tedrica para a versao de sentido fenomenologia da linguagem inspirada em Martin Buber ¢ e Merleau-Ponty. Em dois artigos reuni alguns elementos que 386 Mauro Martins Ami icologia Humana preparam essa tarefa (Amatuzzi, 1991 ¢ 1992). Mas agora quero su r em que diregdes podemos desenvolver essa fundamentagao. (© reconhecimento da identidade,- revela essa propria Para além dos elementos simbélicos do discurso, a fala, cot) de no ambito da interlocugao (as vezes até para o proprio ato, € um simbolo. Quer isso dizer que nao apenas ela cont \ua fala tem essa funciio reveladora, isto é, reunidora de niveis elementos que, advertida ou inadvertidamente, remetem a ouli s de identidade). coisas (elementos simb6licos), mas que em si mesma ela “retij\@! © caso de uma VS, enquanto potencialmente ouvida por outras pée junto uma série de coisas que antes estavam separadas, e 0 (oupelo menos pelo seu préprio autor), elao da aconhecer, em intencionalmente (simbolo). Quanto mais a fala se cumpre coil menor profundidade, tornando disponivel seu existir em simbolo, menos importantes serdo seus elementos simbélicos. Quilill \0 projeto envolvido pelo encontro. No caso de um terapeuta, mais ela exerce sua fungdo simbdlica, menos aparecem elemeil a a tornd-lo mais disponivel para o préximo encontro na simbélicos inadvertidos. em que foi ouvida por alguém (e compreendida), ou ao menos Aafirmacao, como ato, retine sujeito e predicado, permitindo ti siada conscientemente por seu autor. Em supervisao, pois, a VS conhecimento maior. A designagao retine sujeito e objeto num me} autor, traz seu projeto, da-o a conhecer nesse novo contexto mundo de significados; sem ela 0 objeto permaneceria totalmi locucao. E esta é justamente uma das finalidades da supervisio. estranho e nao integrado ao mundo de significados do sujcito. O aning ite lembrar que o distanciamento calculado no qual é feita a reune 0 ouvinte € 0 arauto com aquilo que é anunciado, e que se faz, jlita o aparecimento de aspectos até entéo mais ou menos entdo, intencionalmente presente aos dois. Um pedido retine a pesso idos do projeto. quem ele se dirige com uma caréncia solicitante do sujeito, aii segundo lugar a palavra também pée junto passado, presente ignorada. Mas ha outras coisas que sao postas juntas ao mesmo tel ), Bla torna atual o projeto a partir de suas taizes no passado, e nesses atos todos. No pedido, por exemplo, a caréncia do sujeito par 0-0 em diregfio ao futuro, Ela cumpre uma atualizacdo, € tanto até nao ser ignorada, mas a outra pessoa aguardava que a primeiti) ito mais compromete o falante. Dai porque uma VS precisa ser manifestasse para que elas duas se reunissem num vinculo omo fala auténtica, que compromete o falante como numa provimento ou subordinagao. O proprio pronunciamento do pedido quem o faz implica o reconhecimento de uma caréncia e de necessidade do outro, ou seja, implica a decisdo que assim seja. Isto um ato que reine no sujeito uma série de coisas em seu mundo inter Eassim por diante. Em varios niveis a fala reune, e poderiamos dizer ela pde junto esses niveis também. E por isso, alias, que ela leva adianl experiéncia, desdobrando significados. E isso também que signif estar em processo. Pensando em nosso problema que é a fundamentacio verso de sentido, podemos dizer que a fala, como ato, péde juil retine, coisas em 3 niveis. Em primeiro lugar e basicamente, ela pde junto pessoas. A permite o reconhecimento das pessoas em relagao a um proj Quando falo e sou ouvido, minha fala me da a conhecer naqul| intengdes que constituem meu existir nesse momento: e isgi ilhado em uma relagdo. Ao mesmo tempo, pois, que reine possibilidade de uma nova re-experienciagio. E esse poder sera jaior quanto mais apropriado e facilitador for o contexto dialdgico ila, estou tomando posi¢ao em uma situagao atual, mas sem ir que tudo que nisso esta implicado se faga presente (se retina). 88 Mauro Martins Amal Psicologia Humana 89 s nos colocarmos na perspectiva de Buber (1982-1953), 0 » de uma relagiio nao se encontra propriamente em nenhum irticipantes. Em cada um, segundo ele, existe apenas 0 ipanhamento secreto da propria conversagao”, que é seu 9 subjetivo ou psicolégico. O sentido de uma relagdo -se somente neste encarnado jogo entre os dois, neste seu Entre }), De nosso ponto de vista, isso aponta para o fato de que 0 lo deve ser buscado numa leitura do segundo tipo acima citado, esma inserida num contexto relacional. Finalmente, quando se busca 0 sentido de processos, deve-se com séries de VSs. Elas permitem um olhar de sintese muito imediato ¢ rapido do que o que se poderia obter a partir de Ges. 0 que resulta disso tudo para o uso de VSs na formagao e na io cientifica? ; f convicg’io minha que, apesar de as explicagdes serem aqui is (porque se referem a algo nao convencional em pesquisa), se se iniciar alguém a uma abordagem do sentido, é preciso comegar do exatamente isso, € nao outra coisa. E preciso que a atividade de iio seja de mesma natureza que a pretendida, ¢ nao diferente. oO ode diferir aqui, para uma iniciagao, seria o carater de menor risco, mos assim, da atividade pedagégica. Ora, é exatamente isso que as como método possibilitam. Antes de se atender um cliente, por plo, pode-se iniciar fazendo versdes de sentido da propria situagao jal de formagaio: e ja estaremos lidando com algo da mesma natureza ue aquilo que ira acontecer no atendimento. E a conversa que ocorre isnas sessdes de acompanhamento equivale a um. “treinamento” de ‘com significados. Coisa andloga se pode dizer a propésito da iagio cientifica, quando se trata de pesquisa qualitativa ou ymenolégica. Em nossa experiéncia pudemos perceber a indidade do uso de VSs para uma abordagem do sentido, tanto na magzio como na pesquisa. Meus modelos de relacionamento aprendidos em outras relagées, exemplo, tendem a se fazer presentes nesta. Mas se nao me dou coil disso (isto é, se isso nao é significado de alguma forma por mi minha tomada de posigao perde em autonomia, e os relacionament anteriores tendem a se fazer presentes inadvertidamente através (| elementos simbdlicos da fala (no mais das vezes somente decifravi por peritos). Uma VS “traz” para 0 novo contexto de interlocucao (0 aqui vivido anterior (no 14). E nao ¢ raro vermos uma verdadeira reedi¢) das mesmas relagGes vividas la, entre essas pessoas aqui. Em suma, 0 poder da VS se fundamenta no poder da fil Quanto mais auténtica ela for, tanto mais poder direto ela tera (isto aquele que decorre de sua funcao simbdlica como ato), e menos pot indireto (isto é, aquele que decorre de seus elementos simbdlicd inadvertidos). Principios gerais para o uso da Versdo de Sentido O que resulta disso tudo para a andlise de VSs para fins (i pesquisa? O contexto ideal para sua “interpretagao” (compreensio di sentido que ela transporta) é o de uma interlocugao onde ela e seu aut) se fazem presentes. E nessa nova interlocugao que se reedita o sentidy mesmo quando implicando novas falas mais explicitas. E isso qui acontece em supervisdo, e é isso que pode também acontecer cil) pesquisa. E preciso que se aceite entretanto a figura do “parceiro” de pesquisa. Nesse novo contexto se “versa e conversa”, tendo a mest referéncia intencional, até se chegar a explicitagdo pretendida. Um outro ponto importante é que a VS pode ser “lida” em dol niveis. Ela transmite primeiro a vivéncia de seu autor. Mas num segund nivel, ela transmite 0 sentido da relagao vivenciada pela pessoa. E nesy segundo nivel que ela merece, mais apropriadamente, 0 nome di “versao”: ela sera uma versao do sentido da relagao, ou seja, a versild desta pessoa. A leitura que se faz depende do nivel em que o pesquisado} se coloca, 0 que por sua vez depende do objetivo da pesquisa. lo Vil as do Processo Terapéutico Por quais etapas passa o individuo que, estando plenamente envolvido numa relac4o terapéutica, se propde a explorar sua experiéncia visando superar alguma situagao pessoal vivida como problematica? E possivel descrever essas etapas a partir de Versdes de Sentido das sesses escritas pelo terapeuta? Para responder a essas questdes examinaremos, neste capitulo 3, seqiiéncias de Versdes de Sentido. Para isso retomo um texto que foi originalmente publicado na Revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, da Universidade de Brasilia, em 1993, 9(1), pp. 1-21, como titulo Etapas do processo terapéutico: um estudo exploratorio. Fiz apenas pequenas modificagSes nesse texto para adapta-lo a esta publicagao. blematica te estudo se desenvolveu no interior de um terapeutas que toda semana se reunia para sobre seus atendimentos. A sistematica dessa era tomarmos como ponto de partida breves sintéticos da experiéncia imediata do uta, escritos imediatamente apds o lento. A esses relatos demos o nome de s de Sentido (VS). A expectativa era que o de fazer VSs nos colocaria, a cada um, mais 10s do movimento que constituia 0 processo itico com aquele cliente em particular e, ao 0 tempo, nos ajudaria a estarmos mais 2 Mauro Martins Amatuzz| a Psicologia Humana 93 Da mesma maneira que muitos psicdlogos se interessaram pelos aspectos constantes da personalidade [...] também eu me interessei, desde muito tempo, pelas constantes que intervém na modificagao da personalidade. [...] qual é o processo em que essas modificagdes ocorrem? (Rogers, 1961, p.108). disponiveis a ele no préximo encontro. Esta era a dimensao de “formagdo” que esse grupo tinha. Havia, no entanto, ainda uma outri expectativa. O que essas VSs poderiam revelar do processo s@ analisassemos séries mais ou menos longas delas? Foi com umi) pergunta como essa que nos propusemos a trabalhar quando pudemoy dispor de trés seqiiéncias de VSs praticamente completas, ¢ qué Em outras palavras: existe alguma regularidade na forma como abrangiam, cada uma, um processo de atendimento desde 0 comegd m as mudangas terapéuticas? Para fazer isso Rogers deixa de lado até o fim. caminhos e opta por um terceiro. O primeiro caminho corresponde As possibilidades de andlise de um material como esse sao, sett} ntagdo em vigor nas pesquisas até entao: saber alguma coisa sobre divida, maiores que as que desejamos aqui apresentar. Nossa anilisé rocesso pelo estudo dos resultados (idem, p.109). Foram medidos nao naquele momento, contudo, restringiu-se a um aspecto apenas: podiat} resultados finais, mas intermediarios. No entanto, face aos as VSs nos mostrar um “desenho” do processo, do comego ao fim, ett] sitos de Rogers, isso levava apenas a cortes fotograficos que nao termos de etapas ou fases vividas pelo cliente na relagio com @ viam 0 movimento. terapeuta? A resposta a que chegamos foi positiva. E 0 que noj propomos agora aqui é refazer esse caminho com a preocupa¢ao de determinar, 0 mais exatamente possivel, o seu alcance. Ha ja quase 40 anos Rogers (1958), num trabalho pioneiro, §\ dedicou a descrever as etapas do processo terapéutico. O cap.5 de se Tornar-se Pessoa, publicado originalmente em 1961, traz o prime texto desse seu trabalho, que foi feito entre 1956 ¢ 1957. Eis como ele apresenta: Mesmo esta ultima técnica (medidas intermedidrias) forneceu-nos poucas indicagdes quanto ao processo em si mesmo. Estudos sobre resultados segmentados sao ainda medidas de resultados e, por conseguinte, fornecem poucas _ indicagdes sobre a maneira como se opera a transformacao (Idem, p. 109). ; E a maneira como se opera a transformagdo que também esta weocupando aqui. O segundo caminho é 0 da formulagao tedrica, acompanhada, lo possivel, de observacio clinica (idem, p.109). E Rogers considera ertamente isso é possivel, a partir mesmo de varios quadros de cia tedricos. No entanto nao é isso que mais interessa quando ita de um campo de investigag4o novo (idem, p. 110). Considera ele que, como abordagem primeira em um novo io, 0 importante é que Se nos capitulos precedentes 0 processo terapéutico é encarado de um ponto de vista quase exclusivamente fenomenolégico, a partir do quadro de referéncia do paciente, este capitulo procura captar aquelas qualidades de expressao que podem ser observadas por outra pessoa e situa-se, portanto, num quadro de referéncia externa (Rogers, 1961, p.107). Trata-se portanto de analisar 0 processo terapéutico vivi pelo cliente na relagio com o terapeuta, mas no tanto do ponto vista das percepgdes dele mesmo (0 que Rogers chama aqui perspectiva fenomenoldgica), mas sim a partir de uma anilise (| outra pessoa possa fazer. No entanto o que ele pretende estudar é processo em si mesmo, 0 processo através do qual a personalidade altera (Rogers, 1961, p.108). Diz ele també: nos fixemos nos acontecimentos, que nos aproximemos dos fenémenos com o minimo de preconceitos possivel, que assumamos a atitude observadora e descritiva do naturalista, recorrendo a inferéncias pouco diferenciadas (low-level inferences) que parecem mais conaturais ao material estudado (idem, p. | 10). cE interessante como isso se aproxima do que, numa linguagem ite da de Rogers, vem a se chamar de pesquisa fenomenoldgica: imar-se dos fendmenos descritivamente, sem idéias

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