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B. BACZKO, PHILIPPE BOUTRY, GIORGIO COSMACINI, SERGIO GIVONE, STEPHANE MICHAUD, HEINZ-GERHARD HAUPT, SIDNEY POLLARD, FABIENNE REBOUL-SCHERRER O HOMEM ROMANTICO Direccdo de Francois Furet ‘Tradugio de MIGUEL SERRAS PEREIRA EDITORIAL, e1 PRESENCA CAPITULO V O MEDICO por Giorgio Cosmacini Filosofia da natureza e ciéncia médica © nosso século - escrevia em 1858 Ippolito Nievo — veio a0 mundo de maneira bizara: quer fazer frente aos irmos mais velhos e mostrar que, para quem procura a novidade a todo o custo, a tarefa nunca escasseia. A verdade € que derrubs todos os sistemas, todos 0s raciocinios que ocupavam os eérebros ainda hé cinguenta anos; @ Por meio dos mesmos homens concebeu a ideia de alcancar fins perfeitamente con. trarios. Abundardo assim os empiricos [ Até mesmo para uma testemunha da época sem iniciagio filosofica especial, como «ra 0 caso do octogenério protagonista das Confissdes de um Italiano, as coordena, das filoséficas do dealbar do século XIX pareciam claras: uma neo-sistematica om Mptura com o esprit de systéme do século Xvit, tendo por contrapartida um empi- rismo difuso. O tempo designado pelo nome de «romantismo» parecia tet-se formado Entre 08 pélos opostos da especulacdo metafisica e da auto-evidéncia empitica, O que fia mais verdade ainda no campo dessa ciéncia recém-nascida ~ a biologia, assim baptizada por Gottfried Reinhold Treviranus, em 1802 ~ que se dria, ainda que incor. rendo em erro, ter origem numa ramificagao do tronco da Naturphilosophie. Se a Shlosofia da natureza> era «uma metafisica neoplatonizante», com uma concep¢do do mundo «unitiria e vitalista>, a nova «ciéncia da vida» no ia «muito alémy ds hipsteses ou da observacdo e da intuigdo genial»?, Charneira epistemolégica entre a abordagem intuitiva ¢ observacional dos fac- {os naturais ¢ a especulacdo racional sobre os mesmos factos, tal era a «razio Sensfvel» roméntica, que 0 jovem Hegel, futuro construtor de uma enciclopédia das ciéncias global e articulada, chamara a suplantar a «razio abstracta» ilumin Tata we trabalho de construgdo do enciclopedismo®. Abstracedo, para o jovem Hegel, era o confinamento do cientista no «gabinete do naturalista, 0 qual dis. Poe, segundo um fim tnico (onde a natureza envolveu num lago concordante uma infinita multiplicidade de fins), os insectos mortos, as plantas secas, os animais embalsamados ou conservados em alcool». Sensibilidade era, inversamente. a referéncia a0 «livro vivo da naturezam, de acordo com «o modo por que cada ser ; L Nievo, Le confssioni d'un italian, Einaudi, Trim, 1956% , 651. ldlicos meus (N. do Auto). A. Zanardo, L’idealismo tedesco: Fichte, in Storia dell flosofta divigida por M. Del Pra vol. Oy Vallardi, Milgo, 1976, p. 9, CER, Legros, Le jeune Hegel ela naissance dela penste romantque, Editions Ousia, Bruxelles, 1980. 147 vivo — as plantas, 0s insectos, os animais, as aves ~ vive a sua vida individual, satisfaz as suas necessidades, acasala, faz em Suma 0 que cumpre a todas as espé- cies vivas fazer’ Esta pgina de Hegel permite-nos delinear ab initio as intimas relacdes que man- tinham com o naturalismo os fil6sofos do idealismo alemao. A filosofia da natureza € a cigncia médica, a cavalo entre os séculos XVIII e XIX, punham-lhe questdes pre~ ‘mentes. Punha-as também e sobretudo a doutrina elaborada pelo médico escocés John Brown e difundida na Alemanha por outro médico de sucesso, Melchior Adam Weichard, € por um poligrafo sem preconceitos, seguidor de Lavoisier, Christoph Girtanner. Brown, professor em Edimburgo, que morrera aos cinquenta e dois anos em 1788, construira uma neo-sistemética baseada num empirismo incipiente, precisamente no sentido que ndo deixaria de acentuar, referindo-se retrospectivamente aos pressu- postos filoséficos mais destacados do periodo romintico, 0 sébio octogendrio Di Nievo. Querendo «fazer como Newton», Brown pretendera, com efeito, adoptar 0 método newtoniano de investigagdo e explicacdo dos fenémenos; daf a sua recorrente invocacao de Bacon ¢ da «si filosofia», ou seja, do método empirico-experimental, Mas ficara Jonge de aplicar as cigncias da vida a metodologia prdpria do empirismo anglo-escocés. A excitabilidade, por ele definida como a propriedade fundamental dos seres vivos e como compardvel & forca da atraccfo universal newtoniana, era considerada uma averdade de facto universal» dotada de auto-evidéncia empirica, e no como principio explicativo devendo set por sua vez objecto de explicagio. A exci- tabilidade browniana, longe de se tornar uma propriedade fisiolégica experimental- mente demonstrada, permanecera assim uma «forga axiomética»’, uma esséncia metafisica. Apesar deste vicio de origem, a excitabilidade governava todo o sistema, Possuida pelo cérebro e pelos nervos, transformava-se, nesta perspectiva, de passiva em activa mediante a acgéo dos estimulos exercida pelo meio ambiente ou pelo contetido das cavidades ou canais do organismo: ar, alimentos, sangue. Esta activacaio, ou excitagio, era a vida: , «pequenos deménios auxiliares do grande deménio, sem cuja colaboragao 0 pecado original nao teria podido entrar no Parafso». A satide era um paraiso perdido, a doenca o pecado perdedor. Mais vigorosamente ainda, e com uma insisténcia sim. bolica ndo-desinteressada, a arte da satide era uma «medicina do espitito» posta 20 servigo da religitio; enquanto tal, 56 deveria ser exercida por médicos «cristios ger- minicos» ~ como Ringseis ¢ os seus adeptos (Gores, Windischmann, Leupold, Dollinger) — animados de espitito de cruzada contra os médicos «materialistas» — como Lukas Schénlein, sucessor de Ringseis na citedra de Medicina Clinica de Wiirzburg ~ e contra os seus métodos iniquos: 0 estetoscépio, o bisturi da autdpsia, a lente microsc6pica, a relojoaria do pulsimetro, os reagentes quimicos de laborat6rio®, A medicina anatomo-clinica ¢ experimental nascente, que se servia de instrumentos € métodos como os referidos, marcava ja as duas distincias, que gradualmente se iriam alargando e tornando irreversiveis, perante esta medicina romantica. Contudo, era do romantismo médico que extrafa algumas das concepgdes e nogdes que sobreviveriam ao seu ocaso: 0 conhecimento da relaco integrada organismo-meio (homem-natureza) como referente da satide; a ideia de uma patologia degenerativa ou parasitéria, a nogo de malignidade clinica. Num entrelagado ideolégico-cientifico cheio de alegorias e de «simpatias u versais», 0 legado do pensamento do poeta Novalis, ceifado aos trinta anos de idade © Ibid, pp. 96-8. % Ibid, pp. 99-100. * Ibid, pp. 102 152 Pela tisica, em 1801, remetia para o brownismo: [hiperlestenia e astenia estavam em relagao uma com a outra enquanto corpo e alma; por isso, mais do que oporem-se, sobrepunham-se e co-pertenciam-se. O super-homem de Novalis deveria, no seu cami nho para Deus, libertar-se do corporal, tomar-se asténico, adoecer. O homem doente ¢ra um homem superior, espiritualizado gracas a debilitago induzida pela doenca, Esta titima, na Weltanschawung romantica, que Ihe reconhecia um estatuto privile. giado, era celebrada como a mais refinada e sublime experiéncia do homem. «As doengas» ~ afirmara Novalis —

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