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SAO FRANCISCO DE’ASSIS Jacques Le Goff; Sao Francisco seria 0 santo mais mo- derno da Igreja? Ecologista na sua fas- cinagao pela natureza, anticonsumista na radical opgao pela simplicidade, defensor da liberdade de espirito, da alegria, da vida comunitdria, foi um feminista de primeira hora na relagao com Santa Clara e a ordem das claris- sas. Francesco di Pietro di Bernardone, filho de comerciantes italianos da ci- dade de Assis, mudou nao s6 o con- ceito de santidade e devogdo, mas a atitude da Igreja e dos leigos diante do sagrado na virada do século XII para o século XI. A fraternidade franciscana, a con- sagracdo 4 pobreza e uma lideranca dinamica alternando a solidao e a in- sergdo social a partir da pregacao nas cidades da Umbria o fixaram como uma das mais cultuadas figuras reli- giosas do Ocidente. Ao resgatar a hist6ria do “Pobre de Assis”, através de quatro ensaios, Jacques Le Goff nos mostra que se S40 Francisco foi mo- derno é porque seu tempo foi “produ- to de um lugar e de um momento, a Italia comunal em seu apogeu. Nesse contexto, trés fendmenos sao decisivos para a orientagao de Francisco: a luta de classes, a ascensao dos leigos e 0 progresso da economia monetaria”. “Sempre fui fascinado por Sao Francisco, um dos mais impressionan- tes personagens do seu tempo e da Historia Medieval (...) Francisco foi, muito cedo, aquele que, mais que qualquer outro, me inspirou o desejo de fazer dele um objeto da histéria to- tal, exemplar para o passado e para o presente”, escreve Le Goff ao justificar SAO FRANCISCO DE Assis Jacques Le Goff SAO FRANCISCO DE ASSIS Tradugao de MARCOS DE CASTRO 10* EDIGAO ESD? LTO RA REEL CLOOR Db RIO DE JANEIRO + SAO PAULO 2011 CIP-Brasil. Catalogacao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Le Goff, Jacques, 1924- 1466s Sio Francisco de Assis / Jacques Le Goff; 10°ed, traducdo de Marcos de Castro. ~ 10" ed. ~ Rio de Janeiro: Record, 2011. Tradugio de: Saint Frangois d’Assise ISBN 978-85-01-05883-6 1, Francisco, de Assis, Santo, 1182-1226 - Biogeafia. 2. Santos cristdos ~ Biografia. 1. Titulo. CDD ~ 922.22 01-0350 CDU~922:235.3 Titulo original francés SAINT FRANCOIS D’ASSISE Copyright © 1999 by Editions Gallimard Todos os direitos reservados Proibida a reprodugao, armazenamento ou transmiss4o de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorizagao por escrito. Proibida a venda desta edigao para Portugal e resto da Europa. Direitos exclusivos de publicagéo em lingua portuguesa para o Brasil adquiridos pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina 171 ~ Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 ~ Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literdria desta tradugio Impresso no Brasil pny ISBN 978-85-01-05883-6 s A y 7A aus Seja um leitor preferencial Record ee Cadastre-se e receba informagées sobre iat nossos lancamentos € nossas promogoes. EDITORA APILIADA Atendimento e venda direta ao leitor mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002 SUMARIO Prefdcio 9 Cronologia 15 FRANCISCO DE ASSIS ENTRE A RENOVAGAO E OS FARDOS DO. MUNDO FEUDAL 21 A PROCURA DO VERDADEIRO SAO FRANCISCO 41 Em busca do verdadeiro Sao Francisco, [43]. — $40 Fran- cisco em seus escritos, [45]. — O problema das biografias, [49]. — Vida de Sao Francisco, [58]. — A conversao, [62]. — Da primeira 4 segunda Regra, [69]. — Francis- co e Inocéncio III, [71]. — Santa Clara, [77]. — Mila- gres e peregrinagées, [78]. — O quarto concilio de Latrao, [80]. — A Regula bullata, [86]. — Para a morte, [87]. — As obras e a obra, [92]. — Sao Francisco medie- yal ou moderno? [101]. Tl. JACQUES LE GOFF O VOCABULARIO DAS CATEGORIAS SOCIAIS EM SAO FRANCISCO DE ASSIS E SEUS BIOGRAFOS DO SECULO XIII 119 Definigao e alcance da pesquisa [124]. — Os elementos do vocabulario das categorias sociais [136]. — Ensaio de interpretagdo, [163] FRANCISCANISMO E MODELOS CULTURAIS DO SECULO XIII 183 Modelos ligados ao espaco e ao tempo, [188]. — Mo- delos ligados 4 evolugéo da economia, [198]. — Mode- los ligados a estrutura da sociedade global ou civil, [205]. — Modelos ligados a estrutura da sociedade religiosa, [213]. — Modelos ligados a cultura no sentido préprio, [216]. — Modelos de comportamento e de sensibilida- de, [224]. — Modelos ético-religiosos propriamente di- tos, [231]. — Modelos tradicionais do sagrado, [237]. — Conclusio, [240]. SAO FRANCISCO DE ASssIS PREFACIO ‘meio século, quando comecei a me interessar pela Idade sou duplamente interessado pela personagem de Sao Fran- Assis. Primeiro pela personagem histérica que — no cora- virada decisiva do século XII para o XIII em que nasceu de Média moderna e dinamica — sacudiu a religiao, a civi- 0 e a sociedade. Meio religioso, meio leigo, nas cidades em desenvolvimento, nas estradas e no retiro solitdrio, no cimento da civilizagao urbana combinado com uma nova itiea da pobreza, da humildade e da palavra, 4 margem da Igreja is sem cair na heresia, revoltado sem niilismo, ativo naquele ponto fervilhante da cristandade, a Italia central, entre Roma e a io de Alverne, Francisco desempenhou um papel decisivo no Iso das novas ordens mendicantes difundindo um apostolado para a nova sociedade crista, e enriqueceu a espiritualidade ma dimensdo ecolégica que fez dele 0 criador de um senti- ) medieval da natureza expresso na religiao, na literatura e na . Modelo de um novo tipo de santidade centrado sobre o Cris- | ponto de se identificar com ele como o primeiro homem a v Os estigmas, Francisco foi uma das personagens mais im- onantes de seu tempo e, até hoje, da histéria medieval. JACQUES LE GOFF Mas o homem também me fascinou, renascido em seus es- critos, nas narrativas de seus bidgrafos, nas imagens. Aliando simplicidade e prestigio, humildade e ascendéncia, fisico comum e brilho excepcional, apresenta-se com uma autenticidade aco- Ihedora que permite imaginar uma abordagem simultaneamente familiar e distante. Na atrag4o que exerce sobre todo historiador — e nao escapei dela — a tentacao de contar a vida de um ho- mem (ou de uma mulher) do passado, de escrever uma biogra- a ques fa chegar 4 verdade, Francisco foi desde muito cedo o homem qus-mais que qualquer outro, inspirou- iografia tradicional anedotica e superficial), historica’e huma- amente exemplar em relagao ao pasado ¢ ao presente, O que lado, eu estava absorvido por uma reflex4o e trabalhos de histo- riador de um cardter mais geral e, de outro, existiam excelentes biografias de Francisco, obras principalmente de historiadores italianos e franceses. Como eu continuava a imaginar ¢ a construif\nen) cisco, contentei-meé com abordagens rapidas e indiretas, surgidas altas,ém publicagdes em italiano e em francés de ifusa ao me satisfazendo, hoje, o fato de ter investido o essencial de meu cometimento biografico em um Sao Lués muito diferente por seu heréie eee aren uma vez mais solicitado pela amizide de Pierre Nora, resolvi-me pela publica- ¢4o do conjunto de textos que consagrei a $40 Francisco. Esta publicagao se insere numa atividade de historiador de- sejoso dé refletir, renovando-a, sobre a histéria de Sao Fran- milénio, artcoradas em um tecido histérico auténtico e longe =e a : : eee Y 8 das elucubragdes pseudomilenaristas nas quais S40 Francisco que ele nos transmite no limiar do terceiro SAO FRANCISCO DE ASSIS 11 m seu lugar. Entre essas novas abordagens se distinguem de Jacques Dalarun e de Chiara Frugoni (ver a Biblio- , COM as quais se manifestou minha comum sensibilida- iscana, apesar dos questionamentos diferentes. Prefaciei | Francisco de Chiara Frugoni que acaba de ser publicado ty udugao francesa e que insiste sobre o homem e a docu- Mago iconografica. Jacques Dalarun escreveu uma longa Mtagdo e explicagéo (atil para a leitura desta coletanea) fA nova edigdo de meu principal texto sobre S40 Francis- mpre em italiano, pelos frades das Edizioni Biblioteca scana (Milo, 1998). fim, atendendo ao amAvel convite de Prune Berge, aca- #ravar um disco sobre Sao Francisco de Assis na nova o da Gallimard, “A voix haute”. Qiatro textos estdo reunidos aqui. O primeiro, aparecido € em italiano no numero especial da revista internacio- le teologia Concilium, em 1981, consagrado a Francisco de ini ho contexto histérico, esforca-se para definir resumidamen- i lugar “entre as renovagées e os fardos do mundo feudal” Yitada do século XII para o XIII em que se enfrentam a reno- 0 da sociedade, de que Sao Francisco foi um dos principais € tradig6es as quais ele nado escapa — homem e santo re dilacerado. © segundo, 0 principal, é uma apresentagao geral de Sao cisco sob forma cronolégica, portanto biografica, mas que Sho Francisco em seu contexto geografico, social, cultu- ist6rico. Expde de modo tao claro e simples quanto possfvel blemas de seus escritos e de suas biografias, intimamente o8 sua imagem e A interpretagdo de sua personagem, e 08 principais temas de suas concepgées e de sua ativida- Sse texto s6 apareceu em italiano, na série de retratos po- 12 JACQUES LE GOFF pularizados de grandes personagens da hist6ria, I protagonisti, em 1967, e recentemente republicado, como disse acima. E uma tentativa para aproximar e apresentar[o verdadeiro Jao Francis- co ou ainda, uma vez que meu esforco de autenticidade objetiva nao se livra de uma interpretacio — Sao Francisco. Os dois outros textos mostram um S&o Francisco vivo e enfocam sua influéncia no meio franciscano do século XIII, quando os conflitos internos da Ordem, prolongando as di- ferengas de interpretag4o da pessoa e das intengées do fun- dador, chegam a atingir as contradic6es e as lutas da Idade Média central. Francisco e a ordem franciscana tém uma his- toria dramdatica que agita sua época. Espero ter mostrado esse drama. Um dos textos, apresentado em um coléquio em Saint- Cloud em 1967 e publicado nas atas semiconfidenciais do co- Iéquio em 1973, é um estudo de vocabulario (*O vocabuldrio das categorias sociais em SAo Francisco de Assis e seus biégra- fos do século XIII”). Situar, fazer compreender, elucidar as palavras dos homens do passado é uma das tarefas primordiais do historiador. Ora, Francisco, que pretendeu agir sobre a so- ciedade de seu tempo, exprime-se oralmente ou por escrito e sua utilizagao de palavras, de idéias e de sentimentos é valori- zada nesse texto que langa luz sobre os instrumentos de que ele se serviu para tocar aquela sociedade e transformé-la. E um vocabulario de agao. ~~ Por fim, examinei a influéncia do franciscanismo primitivo sobre os modelos culturais do século XIII (conferéncia em Assis em 1980, publicada no volume dos Studi francescani de Assis em 1981). Trata-se de um esbogo de todo o universo cultural dessa €poca e de situar a presenga de Francisco e de seus discfpulos nesse universo. A semelhanga da personagem e de sua Ordem preocu- SAO FRANCISCO DE 4 13 pada em apreender globalmente a sociedade e a cultura e de agir sobre todo esse terreno, tentei_ uma abordagem global em uma perspectiva social dessa historia. E, sem incorrer, espero, em anacronismo, pretendi que res- Soasse nestas paginas o eco, nos dias de hoje, da voz e da agao de Francisco e de seus irmaos em nossas interrogagées no limiar do terceiro milénio. CRONOLOGIA 1181 ou 1182. Nascimento em Assis de Francesco (Giovanni) Bernardone. 1180-1223. Reinado na Franga de Filipe Augusto. 1182. Parsifal ou O Conto do Graal, de Chrétien de Troyes. 1183. ‘Tratado de Constanga, entre Frederico Barba-Roxa e as. cidades da Liga Lombarda. 1184. Pedro Valdo, fundador dos valdenses, é condenado pelo papado como herege. 1187. Saladino reconquista Jerusalém vencendo os cristaos. 1189-1191. Terceira cruzada. 1196. Comegaa reconstrugao em estilo gotico de Notre-Dame de Paris. 1198-1216. Pontificado de Inocéncio III. 1200. A burguesia e a populagao de Assis se revoltam contra os nobres: tomada de Rocca e inicio da luta contra Pertisia. 1202. Batalha de Ponte San Giovanni. Francisco é preso em Pertsia. Morte de Joaquim de Fiore (Gioacchino da Fiore). Leonardo Fibonacci, de Pisa, compée 0 Livro do dbaco (Liber abaci). JACQUES LE GOFF 1203-1204. Os cruzados da quarta Cruzada se apoderam de 1204. 1205. 1206. 1208-1229. 1209. 1210. 1211. 1212. Constantinopla. Doenga de Francisco. Unificagio da Mongolia por Gengis Khan. Partida de Francisco para a Apiilia. Visita Spoleto e vol- taa Assis. Conversao de Francisco: invocagao ao crucifixo de San Damiano,” encontro com o leproso, reniincia aos bens paternos. No Concilio de Montpellier, S40 Domingos decide com- bater a heresia catara pelo exemplo e pela pregagao. Cruzada contra os albigenses. Invocagéo do Evangelho em Porcitincula. Bernardo de Quintavalle e Pietro Cattani tornam-se os primeiros companheiros de Francisco. Francisco vai a Roma com seus doze primeiros disci- pulos e obtém do papa Inocéncio III a aprovagio ver- bal para a primeira Regra dos Frades Menores (perdida). Proibigao aos professores parisienses de ensinar a meta- fisica de Arist6teles, condenagao como hereges dos pro- fessores universitarios pantefstas, os Amauricianos. Na dieta de Nuremberg, Frederico II, rei da Sicilia, é proclamado imperador [do Sacro Império Romano- Germ§nico]. Cruzada das Criangas. Vitéria em Las Navas de Tolosa dos cristaos espanhdis sobre os muculmanos. *Embora em francés se traduzam todos os nomes de santos, como em portugués, quando o Autor se refere a nomes de igrejas, como neste caso, mantém o original italiano, Manter a lingua original em relacdo aos nomes das igrejas também é um habito em portugués, por isso usamos 0 mesmo esquema na tradugdo. (N. do T:) a213- 1214. 215. 1216. 217. SAO FRANCISCO DE ASSI: a Santa Clara toma o habito em Porcitincula. O navio de Francisco, dirigindo-se 4 Terra Santa, é des- viado de sua rota pela tempestade na costa dalmata. 1217. Jaime I, o Conquistador, torna-se rei de Aragao. O conde Orlando de Chiusi doa Alverne a Francisco. Partida de Francisco para 0 Marrocos. Tendo ficado doente na Espanha, ele volta a Itélia. Batalha de Bouvines. Quarto concilio de Latrao, ao qual Francisco teria as- sistido. Provavel pregagdo aos passaros, em Bevagna. Concessao pela monarquia inglesa da Magna Carta (Magna Charta). Morte de Inocéncio III em Pertisia. O novo papa, Ho- nério III, teria acertado com Francisco a indulgéncia de Porcitincula. Capitulo de Porcitincula: s4o enviados missiondrios para além das fronteiras da Italia. Em Florenga, 0 cardeal Ugolino convence Francisco, que ia para a Fanga, a fi- car na Itélia. 1219-1220. Francisco no Oriente (Egito, $40 Joao d’Acre). Vi- 1220. 1221. sita, provavelmente, os lugares santos. Francisco fica sabendo, em Acre, do martfrio de muitos de seus irmaos no Marrocos, e dos conflitos que se manifestam na Ordem, na Italia. Entrega a Pietro Cattani a diregéo da Ordem, da qual 0 cardeal Ugolino € nomea- do protetor pela ciria romana. Morre Pietro Cattani. Frei Elias se torna 0 novo minis- tro-geral da Ordem. Francisco redige uma nova regra, que nao € aprovada nem pela Ordem nem pela ciria 18 JACQUES LE GOFF pontificia (Regula non bullata). Redagdo e aprovagao da regra da Ordem Terceira. 1222, 15 de agosto. Francisco prega na grande praca de Bolonha. 1223. Francisco redige uma nova regra, aprovada pelo papa Honério III (Regula bullata). 25 de dezembro.Francisco celebra o Natal em Grécio.* 1224. Nas montanhas de Alverne, Francisco recebe os estigmas. 1225. Francisco, doente, passa dois meses junto de Santa Cla- ra na Igreja de San Damiano, onde compée o Céantico do irmdo Sol. Os médicos do papa cuidam dele sem su- cesso em Rieti. Transportado para Sena, redige seu Tes- tamento (no fim de 1225 ou comego de 1226). 1226. Morte de Francisco em Porcitincula. 1228, 16 de julho. O cardeal Ugolino, agora papa Gregério IX, canoniza Francisco. Primeira Vita (Legenda) de Francisco por Tomas de Celano. 1230, 25 de maio. O corpo de Francisco é depositado na suntu- osa basilica de Assis, a cuja construgao Frei Elias da infcio. 28 de setembro. Na bula Quo elongati, Gregorio IX in- terpreta a regra de Francisco com um sentido moderado e nega toda forga de lei na Ordem dos Frades Menores ao Testamento de Francisco. *Ver-se-4, no correr do texto, que os nomes de pequeninas localidades italianas foram mantidos no original, quase sempre. As excegGes s4o os lugares muito cita- dos em portugués em varias passagens mais populares da vida de Sao Francisco, quase sempre com adaptag4o para nossa lingua. E 0 caso de Grécio (Greccio), por causa mesmo dessa famosa celebragio de Natal, de Gibio (Gubbio), por causa da popularissima historinha do lobo mau que Francisco transforma em lobo bom, de Alverne, adaptagio tradicional de séculos para o nome do santudrio de La Verna, de Porcitincula e talvez alguns poucos outros. (N. do T.) 1234. 1248. 1251. 1260. 1263. 1266. SAO FRANCISCO DE ASSIS 19 Canonizagao de Sao Domingos (morto em 1221). Segunda Vita por Tomés de Celano. Tratado dos milagres de Sao Francisco por Tomas de Celano. O capitulo geral dos Frades Menores reunido em Nar- bonne confia a Sao Boaventura, ministro-geral da Or- dem, a redagdo de uma “boa” vida de $40 Francisco que substituird todas as outras. A vida composta por Sao Boaventura é aprovada. A vida de autoria de SAo Boaventura é imposta como tinica Vida canénica, e é ordenada a destruigao de to- das as biografias anteriores. I Francisco de Assis entre a renovag4o e os fardos do mundo feudal 9 de Assis nasce no coragio do periodo do grande to do Ocidente medieval e em uma regiao forte- por esse desenvolvimento. s dor de hoje, a primeira manifestagao desse de ordem demografica e econémica. Desde cerca desigualmente de acordo com as regiGes, mas de ir € as vezes explosiva — como na Italia do norte nero de habitantes aumenia, dobra, sem alimentar material e espiritualmente esses : nto, € primeiro um progresso rural num que a terra é o fundamento de tudo. Progresso princi- lativo, extensivo: um grande movimento de ar- terras abre novos espacos cultiwados, clareiras do em 1981 em Conciliwn — Revue internationale de théologie, © agora com corregées e sugest6es de Eric Vigne:. [No Brasil, apare- ©9, do mesmo ano de 1981, da edicao brasileira de Concilium, Vo- PP. 5-15, sob o titulo “Francisco de Assis entire as inovagées ¢ a ‘mundo feudal”, trad. de Efraim F. Alves. 24 JACQUES LE GOFF nascem ou sao aumentadas na cobertura florestal da Cristandade. A solidao tem de ser procurada mais adiante. HA também pro- gressos qualitativos, mas que quase nao atingem as regiGes escar~ padas do ber¢o de Francisco: a charrua com rodas e com aiveca SAO FRANCISCO DE ASSIS 25 trés setores em vias de “industrializagdo”, a construgao, o de tecidos e o curtume, um pré-proletariado manobravel, sem de- fesa contra a subordinagao do “justo salério” ao “justo prego” — que é apenas o prego de mercado determinado pela oferta e dissimétrica substitui nas planicies o arado de pouca eficiéncia, o Hl * a procura — ¢ contra a dominagao dos “empregadores”. Eum novo sistema de atrelar permite substituir 0 boi pelo cavalo, mais - froca¥ que atrai ou suscita feiras e mercados alimenta- produtivo, novas culturas s4o introduzidas na rotatividade tor- nada trienal, os progressos dos pastos artificiais permitem o de- senvolvimento da criagao. Tudo isso mal aflora na montanhosa Umbria. Mas os moinhos se multiplicam 14 como alhures, pro- porcionando um infcio de mecanizac4o nos campos ¢ nos vales. As populages aumentadas agrupam-se em aldeias, em aglomera~ ‘Goes concentradas — freqiientemente penduradas nos montes — “em volta da igreja © do castelo. Eo incastellamento.. Consequencia espetacular do desenvolvimento demo- grafico e econémico € principalmente um poderoso movimen- to de urbanizagio. Mais decisivo do que a irbanizagao superficial “do mundo greco-romano, parecendo mais com o que seriam as grandes ondas de explosio urbana do século XIX, e em seguida como na Antigiiidade e na afta vredia, centros militares e administrativos, mas antes de tudo nticleos econémicos, politi- cos e culturais. Para evocar apenas uma das conseqiiéncias reli-_ giosas desse fendmeno urbano (que desaparecerd na Itélia no s€éculo XIII, enquanto se mantém na Inglaterra, ainda fracamente urbanizada): a personagem do santo bispo, ligado ao poder epis- copal das cidades de tipo antigo. (KSsantidad® ligar-se-A mais a ci 10 aceitd-la; santos burgueses, s: ae des mendicantes, ou ao recusd-la: santos eremitas. Acidade é um canteiro onde se desenvolve, pela divisio do trabalho, um artesanato numeroso e miltiplo, do qual nasce, nos fos pela retomada de um comércio de longo e médio raio de “agao, que da um peso cata ver Mator na societtade urbana aos jercadores que dominam esse comércio. A cidade €0 principal las trocas econ6micas. que recorrem sempre mais a_um “meio de troca essencial: a moeda. Os mercadores, nessa Cris- tandade fragmentada em que as moedas so numerosas, criam Togo entre eles um po de especialistas da moeda: os cambis- tas, que vao se tornar banqueiros, substituindo nessa fungao os _Mosteiros — que até entao cumpriam o papel de estabelecimen- tos de crédito correspondentes as modestas necessidades da alta Tdade Média —, e os judeus, a partir desse momento confina- dos ao recurso de emprestar para os pequenos gastos de consti- “mo, quer dizer, 4 condic4o de “usurdrios”, assumida também por um ntimero crescente de mercadores cristaos. Mundo do dinhei- To, a cidade se torna também o mundo do mercado de trabalho, ‘no qual o ntimero de trabalhadores que recebem salério incha sempre. Centro econémico, a cidade é também um centro de poder. Ao lado e, as vezes, contra o poder tradicional do bispo e do senhor, freqiientemente confundidos numa tinica pessoa, um grupo de Bone os cidadios ou burgueses, conquista “liber ivilégi = Sem contestar 0s fundamentos econémicos e politicos do sistema feudal, nele introduzem uma variante, criadora de liberdade (Stadtluft macht frei, dizem os alemaes, “o ar da cidade torna livre”) e de igual- 26 JACQUES LE GOFF dade (o juramento cfvico, o juramento comunal dao aos iguais ‘os mesmos direitos), na qual a desigualdade que nasce do jogo econdmico e social se funda nao sobre o nascimento, o sangue, mas sobre a fortuna, imobilidria e mobilidria, a posse do solo e jas, do dinheiro. nizagao, a cidade medieval € povoada de imigrantes mais ow menos recentes, que se renovam em um ritmo rapido. Os ho- mens e as mulheres da cidade perderam suas raizes, sao campo- s que imigraram. Quant 82, pro- vavelmente —, essa nova sociedade est4 a ponto de ultrapassar sua fase de crescimento anarquico, de fmpeto selvagem ao esté- gio de institucionalizagio, ainda que na Itdlia, no que diz res- peito tanto as corporacoes de artesaos e de mercadores (arti) como A organizago politica (comuni), o movimento tenha co- megado mais cedo do que em outros lugares, Para citar apenas uma amostra simbélica em Pertisia, a grande rival de Assis na €poca de Francisco, o primeiro edificio conhecido da comuna, 0 Palacio dos Cénsules (depois Palacio do Podestade), é de 1205, quando Francisco tinha 23 anos. Entretando, a sociedade camponesa nao permanece imével. Ainda que 0 inurbamento, a imigragao urbana, tenha atrafdo uma parte da populagao rural para as cidades, os que continuaram no campo conseguiram, também eles, isengdes de seus senhores e, para os servos, liberdade, Mas a reacao dos senhores diante das dificuldades financeiras e a ago crescente das cidades sobre © contado, territério rural deles, fazem aumentar a exploragao econémica sobre a maioria das categorias sociais camponesas. Diante dessa sociedade nova, e nessa sociedade nova, que fazem a Igreja e o mundo eclesidstico? De certo modo, a Igreja SAO FRANCISCO DE ASSIS 27 foi a primeira a se transformar. O que se chama a reforma gregoriana — que ultrapassa amplamente, no tempo e emi con ade eleitoral dos = ¢ dos abadesem relagio aos leigos S40 fenémenos significativos. Os esforgos de elimi- le todas as pressoes econdmicas € sociais reunidas sob a " etiqueta de simonia nao sao menos importantes. E essencial, sobretudo, a luta contra o que se chama nicolafsmo.* Nao se " fata apenas de um progresso moral ¢ espiritual que 0 combate contra a incontinéncia dos clérigos representa. Proibindo 0 ca- samento ¢ 0 soncubinato a primeira das trés ordens que defi- nem desde 0 infcio do século X10 esquema tripartido dos oratores, bellatores e laboratores — “os que rezam”, “os que combatem” e “os que trabalham” —, a Igreja separa fundamen- talmente os clérigos dos leigos pela fronteira da sexualidade. Mas a reforma gregoriana representa ao mesmo tempo-a aspiracdo a uma volta as origens — Ecclesia primitivae forma— © A realizagdo da verdadeira vida apostélica — Vita vere apos- tolica. E, diante da tomada de consciéncia quanto aos vicios da Sociedade crista — clérigos e leigos —, a retomada do processo de cristianizacao. E também, no amanhecer que se segue ao ano 1000, “uma nova primavera do mundo” (Georges Duby). Esse : movimento se comunica ao conjunto da sociedade por intermé- *O Autor emprega o termo no sentido mais simples, que ¢ 0 sentido geral contem- Pordnco: a pritica dos que, nos séculos X e XI, no admitiam o celibato eclesids- tico (0 termo se enraizaem hereges da Asia Menor, sobretudo Efeso e Pérgamo, no século I, cuja doutrina Sao Joio condena severamente no Apocalipse como licen- ciosa e que foram chamados nicolaitas pelos Padres da Igreja). (N. do T.) i 28 JACQUES LE GOFF dio das instituig6es de paz. A reforma gregoriana é, numa pala- vra, a institucionalizagao desse movimento e sua assimilagao pela sociedade crista ao longo de todo o século XII. Masa reforma da Igreja é também uma resposta 4 evolugio do_ miundo, um esforco de adaptacao as mudangas que surgem fora dela. ~—respostr ¢emr primeirotugar institucional. Reveste-se de J trés aspectos principais: a fundacao de novas ordens religiosas, i © surto do movimento canOnico € a aceitagao da diversidade Sees. SS SSC —s —~—astivvas ordens pretendem marcar uma volta a regra origi- nalde Sao Bento caja enfase recata sobre otrabattro manual, tra- “Palho que reencontra seu lugar ao lado da opus dei, e sobre a ‘ionais da riquezamonistica como o estilo artistico € arqui- teténico depurado contrastando com a exuberdncia da escultura, das miniaturas e da ourivesaria do barroco romano. Das duas ordens novas mais importantes, uma, a dos cartuxos, fundada por Bruno em 1084, temo sentido de reencontrar um estilo de eremitismo primitivo, mais tarde, sob Guigues II, prior de 1173 a 1180, uma ascese de quatro “graus espirituais”: a leitura, a meditag’o, a oragio e a contemplacdo. A segunda Ordem, a de Cister, fundada por Robert de Molesme em 1098, soba influén- cia de Sao Bernardo, que seria abade de Claraval de 1115 a 1153, alia o sucesso econdmico a reforma espiritual. O “deserto” cisterciense se situa em vales onde a ordem constréi moinhos e, recorrendo a mecanizagio a fim de liberar mais tempo para a vida espiritual, desempenha um papel no progresso tecnoldgico, particularmente no dom{nio da metalurgia. A ordem se adapta @ nova economia rural, especialmente quanto as pastagens e a produgo lanfgera, e difunde um novo tipo de exploragdo: 0 SAO FRANCISCO DE ASSIS 29 celeiro, que abriga para os irmaos conversos* gado, colheitas, utensflios e instrumentos de trabalho. $e o monaquismo reformado cria melhor equilfbrio entre o tra- ge ros omnes aalaaseii a ‘sila vez, um equilibrio novo entre a vida ativae a vida contemplativa, i ‘uidado das aimas] € a vida comunitaria. Se as re; fas em fo de Laon, por Norberto de Xanten,** se inscrevem em um contexto rural — incentivam a pratica da pobreza, o trabalho manual (as ordens fo- Tam grandes agricultoras) ¢ a pregagao —, a maior parte dos c6ne- ee 2 ot Lede 20 mein ch A mets ae to flexfvel e muito aberta a que se deu o nome de Santo Agos- —concebida precisamente em meio urbario, ainda que se -tratasse do meio urbano antigo, bem diferente daquele do século _ XI — permite aos conegos agostinianos combinar a vida comum, a ascese individual e o apostolado paroquial. - (HPO Liber de diversis ordinibus et professionibus quae sunt in Ecclesia (“Livro das diversas ordens e€ profissées que existem na Tgreja”), e escrito entre 1125 e 1130, provavelmente por um céne- 0 de Liége — ficou inacabado ou chegou aos nossos dias um ma- Muscrito incompleto —, mostra a diversidade das regras-dos clérigos e € dos religiosos, e deixa claro.o pluralismo da instituigao ‘eclesial, a semelhanca da mansao divina, onde h4 muitas mora- ‘das, Define essas regras segundo sua relagio com o mundo, seu Maior ou menor afastamento das aglomeragoes humanas: “Uns _ ——— *Religiosos que vivem cm conventos ou mosteiros fazendo os servigos domésti- 0s. Consagram a vida a Deus, mas nao sio sacerdotes, isto é, no recebem 0 sa- Stamento da ordem. (N. do T.) '*Trata-se de Sao Norberto, fundador da ordem dos premonstratenses, a qual deve $eu nome ao lugar de fundagio, no norte da Franca, Prémontré (primitivamente um s no fim da segunda sflaba do nome do local: Prémonstré, o que explica Portuguesa). (N. do T.) 30 JACQUES LE GOFF esto inteiramente desligados das massas [...], outros esto situa- dos ao lado dos homens; outros moram no meio dos homens.” O mundo dos leigos participa cada vez mais da vida religiosa e, apesar da manutengao das barreiras entre clérigos € leigos, a pre- senca destes tiltimos no dominio religioso se afirma. Nas ordens novas, os irmaos leigos ou conversos desempenham um papel cada vez mais importante. As ordens militares desenvolvem uma certa fusdo entre o religioso ¢ o guerreiro, entre a vida religiosa ¢ a cava- laria. Fundam-se grupos pietistas, da Picardia a Flandres — begardos € beguinas* —, depois no contorno dos Alpes, encorajados por clérigos como o padre Lambert le Begue, de Li¢ge, morto em 1 177, eocélebre pregador Jacques de Vitry que escreveré a vida da beguina enclausurada Marie d’Oignies antes de se tornar bispo de Acre, depois cardeal. Por volta de 1200, os grupos de /aici religiosi (lei- gos religiosos] e mulieres religiosae [mulheres religiosas] se multi- plicam, Por essa €poca, a Pataria** milanesa ¢ scus desdobramentos “Os begardos, também chamados beguinos, eram os membros de uma seita que pro- fessava a absoluta rentincia ao mundo ea perfeigio evangélica, mas incorreram numa série de erros grosseiros e se tornaram heréticos. Julgavam conseguir situar-se acima e além do pecado, ou seja, consideravam que atingiam a impecabilidade. Os erros dos begardos foram condenados pelo concilio de Viena, em 1311. As beguines viviam em comunidades de ora¢ao, visitavam doentes ¢ faziam trabalhos com rendas ¢ rou- pas brancas. O ‘inico voto que pronunciavam era o de obediéncia, assim mesmo provisério. Algumas chegavam a sair para casar, mas havia também as que preferiam viver enclausuradas. Nao constitufam, portanto, uma ordem religiosa, apesar da existéncia de enclausuradas. Tinham esse nome porque ainstituigao foi criada — em Nivelles, na provincia belga de Brabante — pelo padre Lambert de Bagué, citado logo a seguir e conhecido também como Lambert Begh. (N. do T.) **Nome dado a um movimento intemo da Igreja criado em Milao, em 1055 (se- gundo outros, em 1066), pelos padres Arialdo e Landolfo, com 0 ol jetvo de com ater, até pela violéncia, a norma da celibato para o clero e, de um modo geral, as @xigéncias da vida comunitéria e da vida apostélica. Chegou a ser muito popular ‘com sua hostilidade ao alto clero e de certa forma a ter até o apoio de Gregério VII, pois o arcebispo de Milio, contra o que a Pataria movia verdadeira guerra, era como um adversério do papa. Os patarinos se dispersaram em 1075, mas pelo menos seu espfrito espalhado por outros movimentos (valdenses, citaros), Turando pela reforma do d cs forma [ero, prolongou-se por todo o século XI chegando a entrar pelos rimeiros anos do século XIIL. €8$a_Ocasifo, 0s patarinos restantes confundiam-se com os chamados cétaros da Iealia, content ‘a ter Miléo como seu centro principal. (N. do T.) SAO FRANCISCO DE ASSIS 31 pelo século XI] unem clérigos e leigos avidos de reforma. Um con- cflio, realizado em Milao no inverno de 1117 atendendo a uma convocacio do arcebispo e dos cénsules, reuniu em um campo as portas da cidade “uma enorme multidao de clérigos e leigos que esperavam © sepultamento dos vicios eo despertar das virtudes”. Nos anos 1140, o cénego regular Arnaldo, de Brescia, que pouco antes tinha pregadoaos habitantes de sua cidade natal contra a vida corrompida dos clérigos, levantou o laicato romano em um movi- mento de reforma a um tempo polftica e religiosa. A esse mundo novo a Igreja se esforga para dar novas for- mulagées doutrinais, novas praticas religiosas. A evolugio mais importante se refere, sem divida, 4 doutrina do pecado e dos Sacramentos. Tedlogos, embora muitas vezes divergentes, como os mestres da escola episcopal de Laon, Santo Anselmo e Guillaume de ‘Champeaux, e o parisiense Abelardo, elaboram uma doutrina yoluntarista do pecado, que vai buscar-lhe as fontes na conscién- cia. O essencial a partir de agora est na inteng’o. Essa busca da —— a . intengdo alimentou uma nova pratica da confissio, A antiga con- isso publica estava em decadéncia e, tanto quanto se possa saber, entre essa velha pritica e as novas formas de confissio individual instalara-se um vazio. A tendéncia era preenché-lo com formas |} _Penitenciais individuais ou coletivas. A impressao que se tem € que, 4 hoséculo XII, a tendéncia penitencial tradicional se orienta,ao lado das manifestag6es coletivas, para a confissao individual auricular. Essa evolugio serd sancionada, tornando-se obrigatéria, com 0 canon Omnis utriusque sexus do quarto concflio de Latrao (1215) que exige de todos os fiés dos dois sexos 0 mfnimo de uma confis- S40 individual por ano. A partir desse momento, é basicamente na Confissio que se baseia a sancao penitencial e se abre nas conscién- Cias uma frente pioneira, a do exame de consciéncia. 32 JACQUES LE GOFF A confissao entao renovada assume seu lugar numa nova concepgao dos sacramentos disposta em septendrio (sete itens), dentro de um novo sistema que compreende, também em sep- tendrio, os pecados capitais e os dons do Espirito Santo. Seria \\interessante estudar, mais atentamente do que se tem feito, quais foram as mudangas na hierarquia desses septenrios. Pés-se em © evidéncia a subida para o primeiro lugar dos vicios: a avaritia [avareza] — ligada ao progresso da economia monetaria — € logo a seguir a superbia, o orgulho, vicio por exceléncia do sis- | » tema feudal. Uma evolugao também deve ser notada no dom{nio das idéias e da pratica da justica. O que predomina neste campo € a busca de graus de punigao proporcionais & gravidade das culpas € dos crimes, julgados nao apenas de acordo com a escala dos fatos, mas em funcio da situacao e das intengdes dos pecadores. Por fim, outra novidade fundamental: a revolugao escolar. O avango urbano suscita em primeiro lugar uma renovagao de algumas escolas episcopais, em Laon, em Reims, em Chartres, em Paris, Mas essa renovagio nao passa de fogo de palha ¢ as escolas mondsticas langam também seu tiltimo raio de luz. Em compensagio, novas escolas urbanas nascem de modo um tanto selvagem e sob dupla orientagao. De um lado, imp6e-se a atra- gao da teologia, em um meio intelectual, sociolégico e politico fervilhante em Paris. De outro lado, é a cristalizagao em torno do direito, no coragao do avango comunal, em Bolonha. Duas obras destinadas a se tornarem classicas sao escritas com pou- cos anos de diferenca: por volta de 1140, o Decretum, de Graciano, ou Concordia discordantium canonum [Harmonia das disceng6es das regras], a primeira compilagao racional com o objetivo de harmonizar as decretais, base do Cédigo de Direito Can6nico, que vai se desenvolver nos séculos XIV e XY; e, en- SAO FRANCISCO DE ASSIS 33 ‘gre 1155 e 1160, os quatro livros das Sentencas do bispo de Paris, ‘gitaliano Pierre Lombard.* Nos dois casos, trata-se de um novo intelectual, o de trabalhadores especializados na ciéncia ‘ou juridica, e de um novo método, fundamentado sobre a la escolasti O resultado dessa grande mutagio da Igreja 6, depois de culos sem concflios gerais, a volta no Ocidente dos concflios ecuménicos”: Latrao I (1123), Latréo TI (1139), Latrao I] Se abiano, como ambjguo € 0 triunfo do poder pontificio que eles sao express4o. Tanto quanto a adaptacio.ao novo, es concflios organizam o controle e o represamento — se nao ites: a caminhada das novas ordens — os cistercienses, Particular — para o enriquecimento, a explorag4o dos retsos, o afundar-se no atoleiro rural, o juridicismo estéril um direito canénico avassalador, o inicio da degenerescéncia Durocratica e autocratica do papado e da ciiria romana, Conhece derrotas reveladoras: a da cruzada impotente con- @ Os muculmanos, afastada de seus objetivos, como prova 0 © bispo de Paris, o italiano Pietro, da Lombardia (Novara), popularizou-se ‘se nome. (N. do T.) 34 JACQUES LE GOFF desvio da quarta cruzada para Constantinopla, em 1204, inca- paz de suscitar o entusiasmo de algum tempo antes; principal- mente, a derrota na luta contra as heresias dentro da prépria Cristandade. Por fim, revela-se inabil, se no incapaz de repelir ou mode- rar os desafios da hist6ria: a agressao do dinheiro, as novas for- mas de violéncia, a aspirago contraditéria dos cristaos a um gozo maior dos bens deste mundo, por um lado, e, por outro, a resis- téncia as tendéncias agora mais agudas para a riqueza, O poder, a concupiscéncia. Se a escolistica e o nascente direito candnico fornecerao a Igreja meios para teorizar as situag6es novas na sociedade cris- ta, se as obras de vulgarizagao — manuais de confessores, mo- delos de sermées, coletineas de exempla — fornecerao aos simples padres os meios para responder parcialmente as novas necessidades dos fiéis, esses empreendimentos eruditos também vio contribuir para alargar 0 fosso cultural entre a elite eclesids- tica e a massa leiga, para inchar, deturpar ou recuperar 0 jorro de cultura folclérica que tinha sido produzido no século XIII. O regime feudal tinha-se monar: uizado ea cultura prepon- derante tinha sofrido a influéncia das classes leigas dominantes. aristocracia ¢ cavalaria, cujo sistema de valores de educagao se impunha A nova sociedade, até mesmo a sociedade urbana das ~comunas italianas. O préprio Francisco de Assis sofreré a influén- cia dessa cultura de cavalaria e sua devocao & obreza tera ares Corteses. Seu sonho de cavaleiro, traduzido na visdo da casa cheia de armas, nunca desaparecerd totalmente de seu espirito. A Se- nhora Pobreza ser4, certamente, a afirmagao da recusa aos yalo- Tes econémicos ¢ sociais da sociedade aristocrdtico-burguesa, mas _ através de um modelo cultural educado, feudal. O inglés Walter Map, em seu De nugis curialum [A Vaidade dos Cortesdos] (1192- SAO FRANCISCO DE ASSIS 35 1193), deplora a atragao dos clérigos pelo turbilhao dos vicios e futilidades principescas. Nesse mesmo fim do século XII, o bispo de Paris, Maurice de Sully, entretanto de origem rnodessa = coisa excepcional —, lembrava aoscamponeses num sermio- i lo (em latim e em Ifngua vulgar) o dever religioso do paga- “mento de dizimos A Igreja e das taxas aos senhores. Gabriel Le Bras mostra muito bem a situagao eclesiastica do o XII: “Por um acaso curioso, a multiplicagao dos tipos icais absolutamente nado correspondia as necessidades do correspondia As necessidades da salvagao (ou do fausto) os e As comodidades (as vezes excessiva) dos cénegos e » / Nenhuma derrota é mais significativa do que a da Igreja do fim culo XII diante dos movimentos de leigos francamente heré- ou catalogados pela Igreja como heréticos.O movimento mais € mais grave é sem diivida o do katarismo,| verdadeira 0 diferente do cristianismo baseando-se numa estrita oposi- obem eo mal. Oscataros se estendem pela Baixa Renania is regiGes da Franca e do Império Romano-Germanico, do Alpes, ¢ principalmente pela Franca meridional, a Pro- altélia do norte. E a derrota do clero secular local ¢ dos senses, aos quais o papado tinha confiado a acio da prega- \cias No caso serao a guerrana dade conduzida pela Igreja, 0 fosso duradouro entre a Franga ul € a Franca do norte, a instalacao da Inquisigaio — um dos ‘crimes histéricos contra o homem. eevee Seja mais significativo ainda o medo da Igreja diante eanentos dos Iaici religiosi que nao professayvam nenhu- ee herética. Jao canon do segundo concilio de Latrao ‘oibira as formas de religidio que mulheres piedosas fam em suas casas. JACQUES LE GOFF Mais graves sao os casos dos fraldenses| je dos|Umiliat _tnilhados”, em italiano}. Os valdenses sio aqueles pobres de Lyon _ que, atendendo a apelo do rico comerciante de Lyon Pedro Valdo, consagram suas vidas por volta de 1170 a piedade e as boas obras, a leitura da Biblia, 4 pregacdo e 4 mendicAncia. Por volta de 1175 um grupo de artesios, os Umiliati, constituiu-se em Milao como comunidade de trabalho e de orag4o0, também lendo a Bblia em Ifngua vulgar e pregando. Em pouco tempo enxamearam por toda a Lombardia. O papa Lticio Il excomun- _gou simultaneamente cétaros, valdenses e Umiliati em Verona em 1184. Que reprovava neles a Igreja? Essencialmente a usur- pagao de um dos monopélios dos clérigos, 4 pregacao} Walter Map, dignitario eclesiastico (arcediago de Oxford), € o primei- ro a se indignar: “A Palavra dada aos simples que sabemos inca- pazes de recebé-la, e mais ainda de dar 0 que receberam, sera como a pérola dada aos porcos?” Usurpagao tanto mais escan- dalosa aos olhos da Igreja por nao se tratar apenas de homens leigos, mas também de mulheres. FE bem verdade que Inocéncio III deu marcha a ré e recupe- rou em 1196 uma parte dos Umiliati, mas transformando-os em “ordens”. Repartiu-os em trés ordens, duas das quais agrupa- vam auténticos religiosos obedientes a uma regra, a terceira cons- tituindo o que se chamou de “uma espécie de ordem terceira avant la lettre”, a qual praticava uma atividade artesanal para subvencionar suas necessidades ¢ buscar com que dar aos po- bres. Inocéncio III também distinguiu na Escritura a passagem aperta [“aberta”], episédio narrativo e moralista acessfvel a to- dos, e a profonda |“profunda”, em italiano], trecho dogmitico cuja compreensio e exposigio estavam reservadas aos clérigos. Vé-se assim que fermentos, que necessidades, que reivindi- cag6es tinham alguns meios leigos 4 altura do ano de 1200: 0 37 vida evangélica no século, na familia, no trabalho, no estado E preciso acrescentar a esses itens a aspiracao & igualdade pério Romano-Germianico. ~~ Alguns, como o padre calabrés Joaquim de Fiore, nao véem esperangas a nao ser na chegada a terra de uma terceira idade, da do Pai e da do Filho, a idade do Espirito que ter uma ‘comunidade de “homens espirituais” — que para isso possivel- ‘Mente terao de recorrer a “uma obra ativa ou mesmo revolucio- dria”. E esse 0 contexto quando Francisco de Assis tem 20 anos, em 1201 ou 1202. Seu sucesso ocorre porque ele responde ao ‘que espera uma grande parte de seus contemporaneos, tanto em | telagao ao que aceitam quanto em relagao ao que recusam. Francisco é um menino da cidade, um filho de comerciante, _Suia primeira drea de apostolado é a area urbana, mas a cidade ___@le quer levar o sentido da pobreza em face do dinheiro e dos i _ticos, a paz em vez daquelas lutas intestinas que conheceu em Retomando, em um novo contexto, 0 espirito de Sao Mar- tinho, que ia se reabastecer na solidio do mosteiro de Mar- Moutier abandonando provisoriamente sua sede episcopal de Tours, Francisco busca a alternancia entre a a¢do urbana e o Tetiro erem{tico, a grande. respiracdo entre o apostolado no Meio dos homens e a regeneragao na e pela soliddo. A essa Sociedade que se imobiliza, que se instala, ele propée a estrada, 4 peregrinacao. 38 JACQUES LE GOFF Leigo num tempo que viu a canonizagao (1199) pelo novo papa Inocéncio de um comerciante, Hombao de Cremona, Fran- cisco quis mostrar que os leigos sao dignos e capazes de levar, como os clérigos, com osclérigos, uma vida verdadeiramente apostélica. Ese, apesar das dilaceragdes ¢ dos choques, permanece fiela Igreja, por humildade, por veneracao aos sacramentos cuja administra- ao reclama um corpo de ministros diferentes e respeitados, re- cusa significativamente, na sua fraternidade e tanto quanto possivel na sua ordem nascente, a hierarquia e a prelazia. Nesse mundo em que aparece a famflia conjugal e agndtica restrita, mas na qual oantifeminismo continua fundamental e em que reina uma gran- de indiferenca a crianga, ele manifesta, por suas ligagées com al- _gumas mulheres pr6ximas e em primeiro lugar Santa Clara, por sua exaltagao do Menino Jesus na manjedoura de Grécio, sua _atengao fraternal 4 mulher ¢ a crianga. | A todos, longe das hierarquias, das categorias, das com- _partimentagées, prope um tinico modelo, o Cristo, um Gnico -programa, “seguir nuo Cristo nu”. Nesse mundo que se torna o da exclusio — marcado pela legislagdo dos concilios, dos decretos, do direito canénico —e _ exclusao de judeus, leprosos, hereges, homossexuais, em que a escolstica exalta a natureza abstrata ¢, salvo excegdes, nesse Ponto ignora mais ainda o universo concreto, Francisco procla- ma, sem qualquer pantefsmo, nem o mais longinquo, a presenga_ divina em todas as criaturas. Entre o mundo monstico banha- do de l4grimas e a massa dos despreocupados mergulhados numa ilus6ria alacridade, propde a imagem alegre, sorridente, daque- le que sabe que Deus é alegria. © contemporneo dos sorrisos géticos. £ também de seu tempo, juntamente com suas aberturas e suas recusas, por suas hesitagdes e suas ambigiiidades. SAO FRANCISCO DE ASSIS 39 Uma hesitagao maior: em que reside o melhor ideal da vida humilde, no trabalho ou na mendicincia? Como se situa a po- breza voluntiria em relagao 4 pobreza sofrida? Qual das duas é a pobreza “real”? Como deve viver 0 apéstolo, o penitente, na sociedade? Qual o valor do trabalho? Uma ambigiiidade essencial: qual a relacao entre a pobreza e o saber? O saber nao é uma riqueza, uma fonte de dominagio ¢ de desigualdade? Os livros nao sio um desses bens temporais que| devem ser recusados? Diante do avango intelectual, do moviment universitario que logo conquistard os leaders* franciscanos, Fran: cisco hesita. Mas, de um modo geral, pode-se perguntar se, quari- do morre, Francisco pensa ter fundado a tiltima comunidade epee 28 besineire tater ade miaemiens —————— *A palavra tem curso na Ifngua francesa tanto quanto em portugués, com a dife- Fenga que, em francés, mantém a forma inglesa, mas mesmo assim é usada sem que. Como, porém, o Autor usou a palavra em grifo, ou itilico, ae contr4rio do habitual, manteve-se a forma, em atengSo ao fato excepcional. (N. do T:) I A procura do verdadeir&\Sa0 Francisco EM BUSCA DO VERDADEIRO SAO FRANCISCO Nada mais facil a priori do que apresentar S40 Francisco Assis. Ele deixou muitos escritos que nos informam sobre sensibilidade, suas intengdes, suas idéias. Amigo da simpli- de em seus escritos como em sua vida e em seu ideal, luntariamente ignorante das sutilezas escolasticas, nao em- hava seu pensamento e suas efusées literdrias num voca- ‘io ou num estilo eruditos ou obscuros, que exigissem um ande esforco de elucidagao ou de interpretacao. Santo de um Novo género, segundo o qual a santidade se manifesta menos por milagres — entretanto numerosos — e pela exibigao de virtudes — entretanto excepcionais ¢ brilhantes —do que pela linha geral de uma vida totalmente exemplar, Francisco teve, _€m seu préprio circulo de companheiros, numerosos bidgra- i “Exe exo foi publicado inicialmente em italiano (traduzido por Lisa Barruffi) sob titulo “Francesco d’Assisi” na colecao I Protagonisti della storia universale, vol. TV, Gristianesimo e Medioevo, Milao, 1967, pp. 29-56, ¢ republicado em 1998 sob © titulo Francesco d’Assisi nas Edizioni Biblioteca Francescana, Mildo. & inédito '€m francés, [Era inédito em francés até a publicagao do original do presente livro, em 1999,] JACQUES LE GOFF fos nao apenas documentados, mas cuidadosos também de pint4-lo através dessa verdade, dessa simplicidade, dessa sin- ceridade sempre dele naturalmente irradiadas. Amigo de to- das as criaturas e de toda a criac4o, espalhou tanta solicitude, compreensao fraternal a todos, caridade no sentido mais ele- vado, quer dizer, amor, que a histéria como que lhe deu em troca.a mesma simpatia e admirac4o afetuosa e geral. Todos os que falaram dele ou sobre ele escreveram — cat6licos, protes- tantes, n4o cristos, incréus — foram tocados e freqiientemente fascinados por seu encanto. A geografia ¢ a histéria também com naturalidade Ihe compuseram 0 cen4rio e o meio ambien- te {ntimos que mostram com evidéncia inescondfvel as ligagdes profundas que o uniam a sua terra: a sua cidade, Assis, 4 beira das estradas, em contato com a planfcie e a montanha, ao al- cance do homem e perto da solidao; 4 sua Umbria propfcia as caminhadas por montes e por vales, cheia de siléncio e de ruf- do, de luz e de sombra, agricola e mercante, fervilhante de um povo simples e profundo, tranqiiilo e apaixonado, ardente por dentro, mas As vezes soltando bruscas fagulhas, afinado com as Arvores, a terra, os rochedos, os riachos sinuosos, rodeado por um mundo de animais nobres e familiares — os carneiros, 08 bois, os burros, os passaros —, entre os quais especialmente a pomba, a gralha, a gralha mitida, as quais ele pregava, o fal- Ao, 0 faisdo, as laboriosas abelhas e a cigarra humilde que vi- nha cantar em sua m4o;_na Itdlia dilacerada entre 0 papa eo imperador, cidades voltadas umas contra as outras, nobreza e mais invadida pelo dinheiro, e que também o ligavam 4 sua €poca, esse tempo trepidante do avango urbano, da inquietude herética, do impeto prestes a ser quebrado pela cruzada, da poesia sensivel, também dilacerada entre a brutalidade das SAO FRANCISCO DE ASSIS 45 r-se, uma tiltima graca, um outro presente inestimavel: poesia que se desprende de Sao Francisco, a lenda que dele a desde quando era vivo de tal forma fazem parte de sua agem, de sua vida, de sua aco, que nele Poesia e Verda- se confundem. H4 mais de cem anos j4, Ernest Renan se ava “que sua maravilhosa lenda possa ser estudada tao perto e confirmada em suas grandes linhas pela critica”. Enoentanto... O simples, o aberto, o tao contado e pintado o Francisco escapulindo por tras de uma das quest6es mais icadas da historiografia medieval. f paradoxal ter de abor- esse homem, que desprezava tanto os livros sabios como a udicio, através de um esboco, ao menos, das raz6es que tor- t4o dificil explorar as fontes de sua histéria. FRANCISCO DE ASSIS EM SEUS ESCRITOS __ A primeira dificuldade nasce dos escritos do préprio Sao ‘Francisco. Em primeiro tt aia eA trata de si préprio, Nao se pode, portanto, esperar de sua obra ‘enhuma informacio precisa sobre sua vida. Nela s6 acharemos alusées a alguns de seus comportamentos que ele passa a seus irmaos como exemplos. Desse modo, em seu Testamento, o mais «, : > . * oaks -Tou trabalhar com as préprias maos para que os irmios fizessem_ trabalhar; e quero que trabalhem todos os outros irmaos, com 46 JACQUES LE GOFF trabalho honesto ”! Por outro lado, pelo menos um de seus es- Gritos mais importantes, a primeira “Regra”, escritaem 1209 0u 1210 para seus irmaos, perdeu-se. Sabemos especialmente, pelo proprio Francisco ¢ por $40 Boaventura, que essa regra era cur- ta e simples ¢ se compunha essencialmente de algumas passa- gens do Evangelho. Mas as tentativas de alguns historiadores de reconstitu(-la tornaram tudo muito duvidoso e é impossfvel to- mar como base esse documento. decisivo para dizer se, em de- terminada época, Francisco ja tinha assumido a idéia de fazer com seus companheiros uma nova “ordem” integrada a Igreja ou se seu objetivo era apenas a formagio de um pequeno grupo de leigos independentes da organizacao eclesidstica. Do mesmo modo estdo perdidos, salvo descoberta tornada improvavel pelo zelo com que eruditos “franciscanizantes” vasculharam biblio- tecas e arquivos, cartas (sabemos da exist@ncia de uma aos ir- maos da Franca, de uma outra aos de Bolonha, de muitas a0 cardeal Ugolino protetor dos Frades Menores, futuro papa Gregério IX), poemas ¢ cAnticos. Desses poemas conservamos aquele que é provavelmente a ‘obra-prima, 0 Cantico di frate Sole, “Cantico do irmao Sol”, mas, se outros tivessem. chegado até nés, dos quais sabemos que alguns eram em latim e outros em italia- no, outros ainda talvez em francés, terfamos uma imagem mais completa dd S40 Francisco poeta —Jaspecto essencial de sua personalidade. ‘A essas perdas, acrescentam-se incertezas sobre a autenti- cidade de alguns dos escritos que nos foram legados sob o nome de Sao Francisco. Essas dtividas sao relativas apenas a textos em geral considerados secundarios, mas, para alguns, a discus- jo con le mie mani lavoravo, come voglio lavorare; ¢ voglio che lavorino tutti gli altri frati, di onesto lavoro.” SAO FRANCISCO DE ASSIS 47 sao sobre a autenticidade deles nao é desprovida de importan- para o conhecimento do pensamento de Sao Francisco. Por cemplo, a carta enderegada “a todos os podestades, a todos | 9s consules, juizes e reitores no mundo inteiro assim como a os 0S outros a quem o documento possa chegar”,? e conhe- nendac6es que ela contém podem corresponder por um lo As intengdes conhecidas do santo, se esse apelo feito aos antes para respeitarem e fazerem respeitar os manda- Deus parece préprio de uma época em que a Cris- englobava num mesmo corpo poderes temporais e es espirituais, e de um homem que teve sempre 0 cuida- Testabelecer a conc6rdia, a paz, o amor nas comunida- e contribuir para a salvacao das coletividades como 1a dos individuos, por outro lado seu contetido também vw enta aspectos desconcertantes. A alusao insistente 4 apro-"\\ )) do fim do mundo lembra mais idéias apocalfpticas te meios franciscanos do século XIII do que a posigao do) } Sao Francisco, que fez intimeras mengées a importan- f : paracao para o Jufzo Final na vida dos cristaos, mas impressao de ter acreditado na proximidade histérica mento. De qualquer maneira, esse gesto espeta- aia um franciscanismo claramente “politico”, no Ispiraram de bom grado alguns tribunos contempora- que parece ultrapassar 0 pensamento e a agdo mais € mais profundos de Sio Francisco. 1 peewee tial s Podesta, a tutti i consoli, giudici e rettori nel mondo intero come a tut: il documento pud pervenire.” 48 JACQUES LE GOFF Z y” Tende-se hoje a considerar auténtica a carta a Frei Anténio de Padua, mas a forma, pelo menos, permanece duvidosa e a aprovacio que nela Francisco da ao ensino escolastico da teolo- gia causa perplexidade, pois se trata de uma contradi¢io em elacao a sua desconfianga habitual a respeito da ciéncia. /- Enfim, se ainterpretacao dos textos auténticos de Sao Fran- /cisco deixa pouco espago para divergéncias, em fungao da sim- | plicidade e da clareza do vocabulério desses documentos e do estilo do autor, nao se d4a mesma coisa quanto as circunstancias de sua composigio. Qual é, por exemplo, a parte das pressdes | externas nas modificages que o santo fez na Regra de 1221 que \nem o papa nem uma parte dos Frades Menores aprovaram? Recentemente acreditou-se — sem fundamento sério, a meu ver poder diminuir-se o alcance do Testamento julgando-se que Sao Francisco, prejudicado pela doenga, tenha ditado esse tex- to sob a influéncia dos Frades Menores do convento de Sena que o tinham acolhido e que o rigorismo desse escrito reflete mais a paixao “extremista” desses frades do que a de Sao Fran- cisco. Assim, através do esbogo sumirio dos problemas que temos com as obras de Sao Francisco, percebe-se a fonte principal das dificuldades da historiografia franciscana: a existéncia, mesmo durante a vida do santo, de duas tendéncias dentro da Ordem, cane uma buscando atrair o fundador para si e interpretar em beneffcio préprio suas palavras e seus escritos. De um lado, os tigoristas, que exigiam dos Frades Menores a prdtica de uma pobreza total, coletiva e individual, a recusa a todo aparato na liturgia dos oficios da Ordem, assim nas igrejas como nos con- yentos, e a guardar distancia da ctiria romana, suspeita de pactuar muito facilmente com o século. De outro lado, os moderados, convencidos da necessidade de adaptar o ideal da pobreza a SAO FRANCISCO DE ASSIS 49 ugao de uma Ordem de frades cada vez mais numerosa, de epelir, por uma recusa a toda influéncia exterior, as multi- sempre mais densas que se voltavam para os Frades Meno- e da necessidade de ver na Santa Sé a fonte auténtica da ade e da autoridade numa Igreja de que a Ordem era uma fe integrante. Onde situar o verdadeiro Francisco? i O PROBLEMA DAS BIOGRAFIAS Deveria ser suficiente, para responder, completar a leitura das ras com o exame da vida. Mas af é que a dificuldade é maior. As dissensdes dentro da Ordem dos Frades Menores no século MIMI acabaram, afinal, por nos privar de fontes dignas de total confianca sobre a vida do fundador da Ordem. Essas dissensdes O ‘am entre os Frades Menores ainda em vida de Sao Fran- € por causa delas é que ele yoltou da Terra Santa em 1220, faredigir em 1221 uma nova Regra, que afinal logo alteraria, e causa delas deixou a diregao da Ordem desde 1220 com Pietro Cattani ¢ em seguida, depois da morte deste, em 1221, com Frei Também contribuiram, essas dissensdes, para seu retiro em Alverhe, em 1224. As divisGes se acentuaram depois da morte de idarios do aparato, simbolizado na construgao da suntuosa ca de Sao Francisco em Assis, exasperando os partidarios da steridade. Na segunda metade do século, as oposigdes — ape- das intervengoes pontificias e, as vezes, por causa delas — 50 JACQUES LE GOFF acusaram-se mutuamente, constituindo as duas tendéncias verda- deiras facgdes inimigas, Os Conventuali (Conventuais) concorda- ram em seguir a Regra interpretada e completada por bulas papais que atenuaram a pratica da pobreza, enquanto seus adversarios — em geral chamados Spirituali (Espirituais), sobretudo na Provenga, ou Fraticelli (Fradezinhos), principalmente na Itdlia —, cada vez mais impregnados de idéias milenaristas concebidas por Gioacchino da Fiore (Joaquim de Fiore), cada vez mais extremistas em matéria de austeridade ¢ hostis a Roma, viram-se reduzidos a posigdes he- réticas. A grande esperanga que a eleigao ao trono pontiffcio, em 1294, do eremita Pietro di Morrone fez nascer entre eles cedo se frustrou porque, ao cabo de seis meses, o novo papa, que adotou o nome de Celestino V, foi constrangido, segundo a palavra de Dante, ao gran rifiuto,* a renunciar A tiara. Se bem que os Espirituais te- nham sobrevivido até o fim doséculo XV (fradezinhos irredutiveis ou menores rigoristas que se tornaram os “Observantes”**), pode- se considerar que a querela franciscana foi extirpada pelo papa Joao XXII em 1322 pela bula Cum inter nonnullos, que decidiu no sen- tido mais contririo 4 pobreza absoluta e As tendéncias espirituais. Mas, para as fontes da histéria de Sao Francisco de Assis, 0 episédio decisivo dessa luta teve lugar em 1260-1266. Na Or- “Grande rentincia” (0 verso de Dante na verdade acusa Celestino V de vileza ou covardia: “.,. che fece per viltade il gran rifiuto”). (N. do T,) **O ramo franciscano dos Observantes, sucessores dos Fradezinhos, se manteve por muito tempo em Portugal, por exemplo, onde até o século XIX sua presenga pode ser atestada em documentago véria, como nos documentos da cidade de vestiu 0 hdbito humilde da ordem dos menores observantes de Sao Francisco de Assis, ou missiondrios do Varatojo”, A Caveira da Martir, cap. 4, 55, apud verbete “Observante”, dicionério de Morais, 10*. edigao revista, corrigida, muito aumentada e actualizada, por Augusto More- no, Cardoso jtinior ¢ José Pedro Machado, volume VII, Confluéncia, Lisboa, 1954), Como o nome diz ¢ a condigio de herdeiros dos Fradezinhos exigia, observavam Aveiro, e na literatura, citados por Camilo (*... fielmente a prdtica das regras da ordem. (N. do T.) SAO FRANCISCO DE ASSIS 51 dem, havia sempre partiddrios do meio-termo justo, desejosos e impor as duas facgdes extremas um compromisso. Pensavam como Dante sobre a familia de Sao Francisco Sua familia, que tao retamente seguia suas pegadas, desviou-se tanto que a cabega se choca com a cauda e logo se ver4 a colheita do mau cultivo, quando 0 joio se lamentar de que lhe foi tirada a arca. Digo mesmo que quem procurasse, pégina por pagina, em nosso volume, acharia ainda uma folha onde poderia ler: “Sou aquele que costumo ser”; mas nao ser4 de Casale nem de Acquasparta que virao tais leitores de nossa Regra, pois um foge dela, outro a coibe.} ‘sua famiglia, che si mosse dritt piedi ale sue orme, é tanto volta, quel dinanzi a quel di retro gitta. osto si vedra della ricolta alla mala coltura, quando il loglio I che V'arca li sia tolta. dico, chi cercasse a foglio a foglio 0 volume, ancor troveria carta ibbe “I mi son quel ch’i’soglio”; ~ non fia da Casal né d’Acquasparta, ‘onde vegnon tali alla scrittura, ano la fugge, ¢ altro la coarta. 7 Divine Comédie, Paradis, XII, w. 115-126, tradugio francesa de Jacqueline Paris, 1990, p. 123.) Essas palavras que Dante atribui a Sao Boaventura as divisdes da famflia, na posteridade de Sao Francisco, Os maus discf- ilos se queixam de exclusao, mas fizeram um trabalho ruim. Frasicisco deve per- ero que era, afastado tanto daqueles que, como Albertine ¢ spiritual nte, forcam sua regra, como daqueles que, como jta, minis- peral da Ordem dos Frades Menores ¢ cardeal, dela se ‘faram. JACQUES LE GOFF Aquele em cuja boca Dante pée essas palavras é precisamente Sao Boaventura que, elevado ao ministério geral em 1257 pelos moderados para restabelecer a unidade da Ordem, adotaria uma medida carregada de conseqiiéncias para a historiografia de Sao Francisco. Os Franciscanos das duas tendéncias tinham multiplica- do a biografia do santo, atribuindo-lhe palavras e atitudes de acor- do com suas posigdes. Nao se sabia mais a que Sao Francisco se apegar. O capitulo geral de 1260 confiou a Sao Boaventura 0 cui- | dado de escrever a vida oficial de Sao Francisco que.a Ordem con- | sideraria daf em diante como a tinica a descrever a vida do santo. Essa vida, ou Legenda (chamada Legenda maior para distingui-la de uma Legenda minor, resumo sob a forma de ligées littrgicas compostas por Boaventura para uso do coro), foi aprovada-pelo capitulo geral de 1263, e o de 1266 tomou a decisao de proibir que os frades lessem daf em diante qualquer outra vida de Sao Fran- cisco ¢ lhes ordenou que destrufssem todos os escritos anteriores relativos a Sao Francisco. Espantosa decis4o, ditada sem davida pelo desejo de pér fim as divisées internas, facilitada por uma certa in- sensibilidade da época em relagdo a objetividade cientifica, mas que manifesta um desprezo pela autenticidade ainda mais curioso, por- que Sao Francisco tinha proclamado um respeito pela letra ¢ pelo espirito dos textos auténticos totalmente diferente — basta ver 0 que declarou em seu Testamento: “O ministro-geral e todos os ou- tros ministros € os custédios* estio obrigados, por obediéncia, a no acrescentar nada nem nada cortar destas palavras, Antes, te- nham este texto sempre consigo junto coma Regra, leiam também estas palavras”* (tradug’o francesa de Damien Vorreux). ee “Entre os franciscanos, € 2 designagdo do substituto do prior nos conventos ou, Por extensio, de qualquer substituto nos cargos de importancia. (N. do T:) “ll ministro generale e tutti gli altri ministri e custodi per obbedienza siano tenuti 4 non aggiungere ¢ a non togliere nulla a queste parole. Anzi abbiano sempre con sé questo scritio insieme con la Regola, leggano anche queste parole.” o SAO FRANCISCO DE ASSIS. 53 Everdade que, desde 1230, 0 papa Gregé6rio IX, pela bula elongati, desobrigara os Frades Menores de levar em conta do Testamento de S40 Francisco. Se era possivel arem conta as palavras do santo, com maior razio -se deixar de consi de seus bidgrafos. € que os Franciscanos eceram de tal forma a ordem de 1266 que buscar manus- s nao destrufdos sera decepcionar-se. Mas, apesar disso, € possivel esperar descobertas. Desde a publicagao pelos istas,* em 1768, da Vida conhecida como dos Trés Com- iros e da primeira biografia (Vita prima) de Tomas de , pode-se, até hoje, retomar contato com uma série de luscritos que limitam — parcialmente — as conseqiiéncias astrdficas do auto-da-fé de 1266, Outra infelicidade € que a Legenda escrita por S40 Boaven- € quase inutil como fonte da vida de Sio Francisco; de um do ou de outro, deve ser controlada por documentos mais uros. Em rigor, com todo o seu trabalho de pacificador, Sa0__ ntura, apesar de sua profunda veneragao a Sio Francisco se basear em fontes anteriores auténticas, realizou uma obra ignora as exigéncias da ciéncia historica moderna, por ser denciosa e fantasista. Fanta: ‘sta, porque combina elementos is Vezes contradité rios tomados de fontes diferentes sem nenhu- critica, Tendenciosa, porque silenciava quanto ao que mos- ia que aordem franciscana tinha-se desviado de algumas das inten¢des de Sao Francisco e, as vezes, em pontos essenciais: a “Bolandistas sio os eruditos — em sua grande maioria jesultas — continuadores Golecio dos Atos dos Santos (Acta Sarictorum) iniciada em Antuérpia pelo pa- rE belga Jean Bolland, também jesufta, no século XVII. Bolland, por sua vez, foi fonsolidador de um trabalho iniciado por outro jesuita, o holandés Heribert de. (N. do T.) 54 JACQUES LE GOFF SAO FRANCISCO DE ASSIS 55 ciéncia e 0 ensino, o trabalho manual, as visitas aos leprosos, a pobreza das igrejas e dos conventos. De fato, esse Sao Francisco do meio-termo justo € mais dos Conventuais do que dos Espiri- franciscano Toméas de Celano que as compés a pedido de altas personalidades eclesisticas. Famoso pela elegincia de seu esti- ele escreveu em primeiro lugar por solicitagao de Gregério tuais. uma vida de Sao Francisco, a Vita prima, ada em 1228._ Até o fim do século XIX, é entretanto esse Sao Francisco Essa vida, muito bem informada, silencia todo traco de dissen- corrigido, mutilado e adocicado de Sao Boaventura — tornado [s depois ainda mais insosso porque se aceitou uma medfocre ok obra de devogao escrita por Bartolomeu de Pisa na primeira metade do século XIV e aprovada pelo capitulo lo geral 4e(1399)— qu que foi considerado o verdadeiro Sao Francisco. As exigéncias da crftica hist6rica moderna levaram no fim do século XIX a uma revisio do Sao Francisco tradicional. Pode- se considerar a celebragao do sétimo centendrio do nascimento de Sao Francisco em 1882 como 0 prefacio dessa revisdo, a além da edigdo, nessa ocasiao, da enciclica Auspicatum concessum, 1, de | Leao XIII. Mas 0 auténtico ponto de partida ‘dal busca do a do verda- deiro Sio Francisco é a obra fundamental do protestante Paul ‘Sabatier,jem 1894. ‘Desde entio, a historiografia franciscana se desenvolveu, € também se complicou, a tal ponto que disso s6 se pode dar aqui um resumo muito simplificado. Considera-se que as fontes essenciais da vida de Sao Fran- cisco alinham-se em volta de duas personagens representando, sy | uma, os meios franciscanos moderados, e outra, os meios fran- ciscanos rigoristas, E preciso notar que mais facilmente se en- contraram os manuscritos do grupo moderado do que os do grupo oposto, embora a questo das fontes franciscanas hoje seja principalmente a critica das fontes de tendéncia digamos “espi- ritual”, As obras do primeiro grupo no sao entretanto de interpre- taco tao simples quanto parega. Tém todas como autor 0 so seja dentro da Ordem, seja entre a Ordem ¢ a ciiria romana, o elogio de Frei Elias, entao muito poderoso, ¢ se inspira s modelos historiograficos tradicionais: a vida de Sao Mar- ‘s, de Sulpicio Severo, ea vida de Sio Bento, d de 6rio Magno. Cerca de 1230, Tomas de Celano redigiu um resumo para as leituras de matinas,* a Legenda chori. Em 1244, o ministro-geral Crescéncio de Jesi pediu-a Tomas d ieelano para completar a Vita prima com uma nova vida que 5 novos elementos reclamados pelos frades que nao ti- \- 1 conhecido Sao Francisco, e solicitou a todos os que pudes- idar Tomas de Celano a redigi-la que lhe levassem suas . ancas sobre Sao Peanelaen para uso eis ee Dems 2 mente que tinham conhecido bem Francisco: Frei Rufino, Angelo e Frei Ledo, sendo Frei Ledo precisamente a perso- central do outro grupo dos biégrafos de Sao Francisco. colaboragao, de resto dificil de precisar, complica ainda mais blema da Vita secunda. 4 das fae sane rezadas pelos frades no coro (chori), como diz 0 ptectatiions & JACQUES LE GOFF Nacarta que tinham enderegadoem 1246 Tomés de Celano enviando-lhe sua Vida, os trés companheiros declaram: “Em vez | de relatar milagres que, na verdade, nao constituema santidade _mas apenas a manifestam, de preferéncia nos ativemos a divulgar ~ ©) avida edificante e as verdadeiras intengdes de nosso bem-aven- > || turado Pai.” Essa concepgao nova, “progressista”, da santidade ® -\ no satisfazia as necessidades das multidées acostumadas_a-se ‘empanturrarem de milagres. Para satisfazer a essas necessidades tradicionais € que Tomds de Celano redigiria, a pedido do novo ministro-geral Joao de Parma [Giovanni Buralli], em 1253, um Tratado dos Milagres de Sao Francisco. Se bem que esses mila- gres sejam sobretudo milagres realizados pelo santo depois da morte e que o Tratado seja também um complemento as duas Vitae, essa nova obra nao deixa de constituir um passo atrés em relagdo a biografia espiritual de Sao Francisco. Diante desse conjunto coerente, bem estabelecido, datado com exatidio, que sao os escritos de Tomas de Celano, o grupo contrario das biografias de Francisco mostra numerosas lacunas, grandes incertezas. A personagem central, seja como quem in- forma, seja como autor, é Frei Ledo, confessor de Sao Francisco € portanto bem situado para conhecer a vida interior do santo. Mas nenhuma das obras que a critica Jhe atribui apresenta um caréter de autenticidade indubitavel..A Vida dos Tiés Companbei- | P|ros \s (Legenda trium sociorum) que chegou até nés com toda pro- | babilidade nao € a original enderegada a Toms ¢ de Celano, mas ¥ | verossimilmente uma compilagio do infcio do século XIV, be- AN | bendoaum ter aum tempo na Vita secunda de Tomés e nas fontes auten- | \ ticamente leoninas nao utilizadas por Tomas, €, talvez, entre elas, l no texto ‘to original de Frei Ledo} o Speculum perfectionis ou Es- \pelho da Perfeicdo, que também nio deve ser uma obra auténti- ca de Frei Ledo, pois parece ter sido composta depois de sua ] SAO FRANCISCO DE ASSIS 57 segundo as narrativas ou escritos de Leao diretamente nscritos. Q Manuscrito Filipe € uma versio antiga dos Acta Francisci et sociorum ejus — Atos de Sdo Francisco e de ( or —, compilagao do século XIV parenta dos_ sse manuscrito inclui provavelmente pardgrafos que m um texto original de Frei Ledo. Por fim, o mais ioso, talvez, desses textos, a Legenda antiqua, editada em| 6, que parece o mais auténtico dos textos atribufdos a Frei 0, mas que traz problemas ainda nao resolvidos. Portanto, a utilizagao desse grupo de textos tropega em nu- nerosas dificuldades. Se, em compara¢do com o Sao Francisco ial”, parece apresentar um Sao Francisco mais intransigen- menos enfeitado, mais verdadeiro, nado se pode deixar de iderar que existe a mesma possibilidade de que deforme Sio ncisco no sentido oposto. E o historiador que gostaria muito le contrabalancar a versao “revista e corrigida” de Sao Francis- com essa de Frei Ledo é obrigado a reconhecer que 0 auto- fé de 1266 conseguiu, até prova em contririo, priva-lo de xtos de que se possa servir com toda a seguranga. Entre os outros textos que fornecem dados biogrficos de Francisco, é preciso dar um lugar a parte a duas obras de rater mais lendrio do que histérico, mas que desempenha- papel de primeiro plano na mitologia franciscana. c js de( os Fioretti, c com] ilagao, em ital aie lepois da ‘dg morte de Sao Fran ncisco;peque- JACQUES LE GOFF SAO FRANCISCO DE ASSIS latinos de devogdo, outras ilustrando através de exemplos de ‘sido dado na juventude por sua paixao pela lingua francesa, esta historinhas as m4ximas do Speculum perfectionis. Essa obra parece a mais veross{mil. O francés que ele aprendeu antes muito popular, depois de quase cair em descrédito por causa da ‘de sua conversdo, porque era a lingua por exceléncia da poesia pular, e dos sentimentos cavaleirosos, continuou a ser a Ifngua de suas efusées {ntimas. “Quando ele estava cheio do ardor do Espirito anto”, diz Tomas de Celano, “falava francés em voz alta.” Nos s, cantava em francés, pedia como esmola, em francés, o para a lumindria de San Damiano que tinha consertado. O | és o mergulhava no éxtase € no jibilo, Em 1217, quis par- almente como missiondrio para aquela Franca que pres- ntia como receptiva 4 sua pregagio e da qual admirava a levocio eucarfstica a ponto de 14 querer morrer por causa des- eragdo pelo santo sacramento. De todo modo, nao € indi- erente notar que, num tempo em que os nomes tinham uma cacao profunda — pesada de sentidos simbélicos—, o fato ceitar e de espalhar um prenome ins6lito manifestava a von- de de Francisco de inovar em seu apostolado. as o jovem Francesco Bernardone nao deixava transparecer futura vocacio. Tomas de Celano execrou os pais de Fran- | acusando-os de o terem criado deploravelmente, ¢ de terem | do para dar tons negros.ao quadro de sua adoleseéncia vada. Lugar-comum de hagiégrafo. Em que passava o tem-—~ 0 jovem Bernardone? Nos divertimentos de seu tempo, nada lis: nos jogos, no écio, nos bate-papos, nas cangées, e em a de roupas andava sempre na moda. Talvez procurasse seus companheiros tentando ser o cabega do que se com grande exagero de “jeunesse dorée de Assis”. A SS - istica mais interessante € que esse filho de comerciante, Se ere cs aie, om iSSan piers segunds flexo natural A nova geragao de seu grupo social, pro- seus {inicos escritos, ¢ s6 nos serviremos do conjunto das fontes para esbogar, como va levar um ritmo de vida cavaleiroso, imitando o compor- eed iginalidade de seu lugar ' : : i conclusio, Laster nee de Sao Francisco, a origin hento dos nobres mais que praticando as virtudes e os defeitos entre Os pri ! ii critica moderna, reconquista hoje um certo crédito. Parece mais préxima de fontes auténticas do que se pensava. Esta fortemen- L tem arcada pela influéncia dos Espirituais e restabelece UMLCEr-\, DP \ to equilfbrio quebrado em favor do Sao Francisco oficial; de: claro, finalmente, que Sao Francisco inspirou desde cedo yuma literatura na qual lenda e hist6ria, realidade e ficg4o, poesia iy verdade esto intimamente ligadas.’ VIDA DE SAO FRANCISCO Quando Francesco Bernardone nasceu, em 1181 ou 1182, em Assis, sua mae, na auséncia do pai, comerciante de tecidos que viajava a negécios pela Franca, batizou-o com > nome de Joao Batista, o santo do deserto, da pregacio e do antincio, por quem Francisco teve sempre uma preferéncia particular. Quan do e por que o prenome Francisco, entao “singular e inusita- do”, substituiu o de Jodo nao se sabe. Das trés principais hipéteses consideradas: a troca do prenome pelo pai ao yoltar do pais do qual teria tirado o nome dado ao recém-nascido; uma homena- gem prestada mais tarde a mae, que teria sido francesa — 0 que nao esta provado; ¢ a persisténcia de um cognome que lhe teria

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