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REGINE PERNOUD O Mito oo PUBLICACOES EUROPA-AMERICA Titulo original: Pour en finir avec le Moyen Age Tradugdo de Maria do Carmo Santos Capa: estidios P. B.A. © Editions du Seuil, 1977 Direitos para Portugal reservados por Publicagées Europa-América, Lda. Nenhuma parte desta publicagdo pode ser re- produzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electronico, mecénico ou fotogrifico, incluindo fotocdpia, xerocépia ou gravacdo, sem autorizagdo prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a iranscri- ¢do de pequenos textos ou passagens para apre- seniacao ou critica do livro. Esta excepgdo nao deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva @ transcric¢do de textos em re- cothas antolégicas ou similares donde resuiie prejuizo para a interesse pela obra. Os trans- gressores sdo passiveis de procedimento judicial Editor: Francisco Lyon de Casiro PUBLICACOES EUROPA-AMERICA, LDA. Apartado 8 2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL Edigdo n.° 10112574980 Execugdo técnica: Grdfica Europam, Lda., Mira-Sintra — Mem Martins Depdiito legal n.° 30189789 «IDADE MEDIA» Estava eu, havia pouco tempo, encarregada dg Museu de Historia de Franca nos arquivos nacionais quando me foi enviada uma carta que pedia: «Podia dizer-me a data exacta do tratado.que.pés fim A Idade Média?» Com uma pergunta subsidiéria:. «Em. que cidade se reuniram os plenipotenciarios que, prepararam esse tratado?» Como nao conservei esta missiva, nao posso dar seniio a sua substancia, mas garamto que ela ¢ exacta; o seu autor solicitava uma resposta r4pida, dizia ele, porque tinha necessidade desses dados para uma conferéncia que contava fazer em data bastante proxima. Dei por mim varias vezes a imaginar essa conferéncia, para meu divertimento pessoal. Sem dificuldade, afinal: bastava juntar o que se lé, o que se vé, 0 que se ouve quotidianamente sobre a «Idade Média» + Ora, se o medie- vista meter na cabeca produzir uma série de disparates sobre o assunto, verifica que eles abundam na vida quo- tidiana, Nao hd dia em que ele nao ouca algunia reflexiio no género: «Nés ja nao estamos na ‘Idade Média’», ou «Isto é 0 regresso & ‘Idade Média’», ou «E uma mentali- dade medieval». E isto em todas as circunstincias: para lembrar as reivindicacées do M.I.M.’ ou pata deplorar 1 «Idade Médian devia estar sempre entre aspas; nés adopta- mos aqui a expressio apenas pata nos sujeitarmos ao uso cor- rente. 2 Movimento de Libertacio da Mulher, (N. do E.) REGINH PHRNOUD as consequéncias duma greve ou quando se é levado a emitit ideias gerais sobre a demografia, o analfabetismo, a educagio.., . Isto comeca cedo; recordo-me de ter tido ocasiao de acompanhar um sobrinho a um desses cursos em que os pais sio admitidos para poderem depois obrigar os filhos a trabalhar. Ele devia ter sete ou oito anos. Quando chegou a altura da chamada a Histéria, eis aqui, reproduzido tex- tualmente, o que eu ouvi; - A projessora: — Como se chamavam os camponeses na Idade Média? A classe (em coro): — Chamavam-se servos, A professora: -—E que é que eles faziam? Que € que eles tinham? A classe; —'Tinham doencas. A. professoras —Que doengas, Jérdme? Jéréme (grave). — A peste. —E mais, Emmanuel? Emmanuel (entusiasta): — A cdlera. —Vocés sabem muito bem a licdo de Histéria, con- cluiu placidamente a professora. Passemos a Geografia.... Como isto se passou ha varios anos e o sobrinho em questao ja atingiu hoje a maioridade, segundo o Cédigo Civil, eu julgava que as coisas tinham mudado desde entio. Mas eis que ha alguns meses (Julho de 1975), passeando com a neta de uma das minhas amigas (Amélia, de 7 anos). esta me diz de repente, alegremente: —Sabes, na escola, estou a estudar a Idade Média. —Ah!, muito bem! E como era a Idade Média? Conta 1a! —Ent&o, havia senhores (ela procura um pouco, antes de encontrar a palavra dificil...), senhores feudais. Entao eles estavam sempre a fazer guertas e com os seus cavalos iam para os campos dos camponeses ¢ destrufam tudo. Depois um sorvete captou-lhe a atengio, pondo fim 4 sua descrigio entusiasta. Isto fez-me compreender que em 1975 se ensinava a Histéria exactamente como ma tinham 0 MITO DA IDADH MEDIA 7 ensinado a mim ha meio século ou mais. Assim vai 0 progresso. a E no mesmo instante isso fez-me lamentar a garga- thada—- muito pouco caridosa, temos de o reconhecer — que eu dera alguns dias antes ao receber uma chamada telefénica de uma locutora da TV —para mais especiali- vada nas emiss6es histéricas! «Patece», dizia ela, «que a senhora tem diapositivos. Tem alguns que representem a Idade Média?» —?? —Sim, que déem uma ideia da Idade Média em geral mortes, massacres, cenas de violéncia, fomes, epidemias... Nao pude impediz-me de comegar a rir a garcgalhada, e era injusta: visivelmente, esta documentalista nao ultra- passara o nivel de Amélia no ponto particular da histéria da Idade Média. Mas como a teria ela ultrapassado? Onde poderia aprender mais do que isso? Até ha muito pouco tempo, era apenas por erro OU, * digamos, por acaso que se tomava contacto com a Idade Média, Era preciso uma curiosidade pessoal e, para suscitar essa curiosidade, era preciso um choque, wm encontio. Era um portal romano, uma flecha gética, no curso duma viagem; um quadro, uma tapegaria, no acaso dos museus ‘ou das exposigées; supunha-se entZo a existéncia de um universo até af ignorado. Mas, passado o choque, como reconhecé-lo mais? As enciclopédias ou os diciondrios que se consultavam nao continham senao coisas insignificances ou desdenhosas sobre esse periodo; os trabalhos eram ainda raros @ os seus dados conttaditérios. Falamos aqui das obras de vulgarizagéo acessiveis ao publico médio, porque é evidente que os trabalhos de erudigio abundavam desde ha muito, Mas, para os atingir, havia toda uma série de obstaculos. a transpor: primeiro, o acesso as bibliotecas que os.encerram; depois, a barreira da linguagem de ini- ciados em que a maior parte é redigida. Se bem que 0 nivel getal possa ser fornecido pela pesgunta que serviu de hase a um encontro do Circulo Catdlico dos inteleccuais REGINE PHRNOUD franceses de 1964: «A Idade Média seria civilizada?» Sem a menor ponta de humor; podemos estar certos de que se tratava de intelectuais na sua maior parte universitarios, ¢ de universitérios na maior parte com responsabilidades, Os debates realizavam-se em Paris, na Rue Madame. Dese- jamos, para conforto moral dos participantes, que nenhum tenha tido, ao voltar pata o seu domicilio, de passar diante da Notre-Dame de Paris. Podia ter sentido um certo mal- ~estar. Mas no, estejamos tranquilos: de qualquer modo, 0 universitrio com responsabilidade apresenta uma inca- pacidade fisica em ver o que nao esté de acordo com as nogdes que o seu cérebro segregou. De qualquer maneira ele no terd, pois, visto a Notre-Dame, mesmo que o seu caminho o levasse 4 Place du Parvis, Hoje tudo ¢ diferente. A propria Place du Parvis esta cercada, todos os domingos, e no Verio todos os dias, por uma multidao de jovens e de menos jovens que escutam cantores ou muisicos, e que, as vezes, dancam ao escut4-los; ou que, sentados na relva, contemplam simplesmente a catedral,; a maior parte nfo se contenta em admirar o exterior: Notre-Dame de Paris encontrou as multiddes da Idade Média, todos os domingos, quando as suas portas se abrem de par em par & hora do concerto. Multidées reco- Ihidas, admirativas, a quem 9 intelectual de 1964 faria o efeito dum animal do Jardim Zoolégico (A moda antiga, bem entendido). As raz6es desta mudanga? Elas sto miltiplas, A pri- meita ¢ a mais imediata € que hoje toda a gente se desloca. Ciscula-se muito e por toda a parte, O medievista. nao pode impedir-se de acrescentar: «como na Idade Média», porque, tendo em conta os modernos meios de locomogSo, © turismo ocupa o lugar do que foram as: peregrinacdes noutros tempos. Pusemo-nos de novo a viajar precisamente como nos tempos medidvais. Ora acontece que em Franga, principalmente, apesar dos vandalismos mais graves, mais metédicos do que em qualquer oucra parte, os vestigios da época medieval con- O MITO DA IDADH MBDIA 9 cinuam a ser mais numerosos do que os de todas as outras épocas reunidas. Impossivel circular nesse pais sem ver surgir um campandrio, que basta para evocar o século KIL ou o século XITL Impossivel transpor um cume sem encon- trar uma capelinha que leva a perguntar muita vez por que milagre ela péde nascer num fecanto tio selvagem, tio afastado. Uma regio como o Auvergne nao possui um tinico museu importante, mas, em contrapartida, quan- tas riquezas entre Orcival e Saint-Nectaire, 0 Puy e Notre- -Dame-du-Port, em Clermont-Ferrand! Estas regides, que no século XVII intendentes ou governadores consideravam desagraddveis desterros, foram, pois, noutros tempos habi- tadas por uma populagéo bastante numerosa para poder realizar tais maravilhas, suficientemente sabedoras pata as conceber? Obra dos mosteiros ou cultura. popular, pouco importa. Onde se recrutavam, pois, os monges, senao 20 povo em geral.e.em.todas as camadas.sociais, para falar a lingua do século XX? E, alias, se Aubazine foi um con- vento cisterciense, nao se véem simples pardquias rurais, como Brinay ou Vicq (hoje Nohant-Vicq), revestidas de frescos roméanicos cuja audacia ainda hoje nos parece desconcertante? O afluxo de turistas é hoje habitual nos edificios da Idade Média. O Mont-Saint-Michel recebe mais visitantes do que o Louvre. Os Baux-de-Provence véem alongar-se as filas de autocarros donde se sai aos cachos para subir a0 assalto da velha fortaleza. Fontevrault, hd pouco tornada acessivel aos visitantes, nao é ja suficiente para os acolher a todos; a abadia de Sénanque, se bem que nao se ouca ja li o canto dos monges senio através de um espectaculo audiovisual (not4vel), conhece uma afluéncia ininterrupta. lim poueas palavras, poder-se-ia enumerar todas as regides de Franga, desde as festas medievais de Beauvais, nos con- fins da Picardia, até as de Saint-Savin, nos confins dos Pirenéus: em toda a parte é 0 mesmo entusiasmo pela redescoberta, recente sem divida, mas geral. REGINE PERNOUD Pelo simples facto de viajar, o Francés, que, no entanto, foi ultrapassado nesse dominio pelo Inglés, pelo Alemio, pelo Belga e pelo Holandés,—sem falar, bem entendido, nos Americanos —, toma consciéncia do que o cerca, E de que aquilo que 0 cerca nio se limita & natureza. Ou, melhor, a matureza, por pouco que ele abra os olhos, aparece-lhe j4 consideravelmente transformada ¢ valorizada pela utiliza- gao que o homem dela fez noutros tempos: pedras, tijolos, madeiras de construcéo, que, uma vez reunidos ¢ realizados, desempenharam na paisagem o papel da imagem no livro. Aa mesmo tempo ele toma consciéncia do valor de tudo o que faz parte daquilo que o cerca. Ja passou o tempo em que os proprietarios de Linguadoque vendiam ao desbarato os capitéis de Saint-Michel-de-Cuxa, que hoje se dispéem a mandar vir da América. Jé passou o tempo em que um tal mestre-de-obras podia, sem levantar protestos, separar em pedagos o claustro de Saint-Guilhem-le-Désert, para vender a retalho as pedras esculpidas. Se é preciso hoje ir a Nova Jorque para reencontrar, tratados, alids, com um respeito admirdvel, esses claustros, com os quais se péde fazer um museu (Serrabone, Bonnefont-en-Comminges, Trie-en-Bigorre, e os dois j4 citados de Saint-Guilhem-le- -Désert e Saint-Michel-de-Cuxa, assim como a casa capi- tular de Pontaut, nas Landes), acabou-se por compreender que o responsdvel por tais transferéncias ndo era o com- prador, mas sim o vendedor. E a venda nao constituiu ainda senao um meio mal: sempre se pode ir a Filadélfia, pata ver a claustro de Saint-Genis-lés-Fontaines, ou 2 Toledo, pata admirar o de Saint-Pons-de-Thomiéres, mas que dizer de tudo o que desapareceu irremediavelmente durante 0 Império, como, por exemplo, em Cluny, onde se fez saltar a dinamite 0 que fora a maior igteja romanica da cristandade, ou em Tolosa, que foi, sabe-se, denominada a «capital do vandalismo», € onde nao se pode salvar fenio alguns fragmentos dos claustros de Saint-Etienne, de Siint-Sernin ou da Daurade? O MITO DA IDADE MEDIA i Um passado que ja 4 vai, mas que suscita a indignacio Como suscita 0 espanto essa estranha mania que trans- formou em pris6es ou casernas os mosteitos que nao se destrufam, E a relativa rapidez com que esse movimento se realizou permite avaliar da sua extenséo, Porque, enfim, foi ha pouco mais de cem anos que Vitor Hugo, ao visitar © Mont-Saint-Michel transformado em prisdo, exclamou: «Temos a impressaio de estar a ver um sapo num relicario! » Ei eu, que estou a escrever, ainda pude ver na minha infan- cla, no momento em_que se comecava a fazé-las desapa- recer, as janelinhas regulares abertas na parede que havia transformado ém Avinhdo a grande sala do Palacio dos Papas em caserna, Hoje, em que até Fontevraule foi final- mente restituidg a si proprio, quem admitiria que o Mont- Saint-Michel ou 0 Palacio dos Papas pudessem tornar-se caserna ou prisio? Continua ainda, é verdade, uma certa caserna dos bombeitos da Rue de Poissy, em Paris, mas todos sabem que Paris estar4 sempre atrasada em relacao «i provincias! Embora o movimento que leva a redescobrir, restaurar © reavivar os monumentos do passado se tenha manifestado tardiamente em Franga, no entanto, ele existe. Ele penetrou em profundidade; ele acaba mesm6 por submergir e inquie- tar as autoridades que tinbam tido o cuidado disso até agora. Por toda a patte se abriram clubes arqueoldgicos, obras de restauragio, campanhas de pesquisas. Véem-se admiraveis edificios rom4nicos, mesmo escondidos em cam- por pouco acessiveis, encontrar de novo a sua forma ¢ vida, gracas a associagGes ptiblicas ou privadas de defesa, mantidas, controladas e por vezes até suscitadas pela admi- nistragéo departamental. Estou a pensar em Saint-Donat, mas também na rotunda de Simiane, na Alta-Provenga, ou ainda, nfo longe dai, na capela da Madalena, Assim, nesta regiao, o proprictario que insiste em guardar o feno numa capela romanica ou gdtica — como se viu durante século ¢ meio — faz figura de ignorante e de atrasado, E em toda A parte se podia assim citar restauragdes de monumentos: 12 E&GINE PERNOUD castelo dos Rohan, em. Pontivy, igreja do Lieu Restauré, na Picardia, Chateau-Rocher, em Auvergne, capela dos Templirios de Fourches, na regifio parisiense, castelo de Blanquefort, na Gironda—restaurados e€ restituidos a si proprios—, muitas vezes por grupos de jovens que agiram espontaneamente. Compreendeu-se, finalmente, que neste dominio tudo devia partir da iniciativa privada, sendo esta seguida, controlada, encorajada, pelos poderes ptiblicos — pois, para a restauragao e para as pesquisas propriamente ditas, a boa vontade pode nfo bastar; elas necessitam de educacio € enquadramento; além disso, sem ela nada se pode fazer de sério, Mas quem imaginaria isto ha cimquenta anos? Quem © teria previsto apenas ha dez anos (1965), quando a revista Archeologia, na sua estreia, abria uma tubrica: «Onde ira vocé pesquisar este Verio?» Agora é preciso apresentd-la todos os anos em varios nuimeros, pois um sé ja nfo chegava. A televiséo desempenhou o seu papel no desenvolvi- mento desta curiosidade. Aa atrair a atencio sobre o8 monumentos abandonados, ao encorajar certas realizagdes, ela estimulou o interesse que o grande piblico comegava a manifestar pelos testemunhos do passado. Nés estamos a pensar em certas emissdes como as «Obras-primas em perigon ou «A Franga desfigurada», que contribuiram poderosamente para sensibilizar um maior publico a esses tesouros, que acotovela sem sempre poder reconhecé-los. Pondo-os ao alcance de todos os espectadores, ela tornou, dum sé golpe, frutuoso 0 trabalho feito anteriormente: o das colecgSes de histéria, trabalhos ou revistas de alta vul- garizacao. Nao iremos cita-los todos. Bastard tomar como exemplo a colecgio «Zodiaco», que tentava ha vinte e cinco anos dar a conhecer melhor a arte romanica ¢ cujo sucesso hoje se inpés. Numerosas foram também as socie- dades que terio trabalhado no mesmo sentido, como o Centto Internacional de Estudos Romfnicos. Ou ainda, mais recentemente, as Comunidades de Acolhimento nos Sitios O MITO DA IDADE MEDIA 13 Artisticos (C. A. S. A.), compostas de jovens, estudantes na sua maior parte, que tomam a tarefa de comunicar o que em geral s6 saber os historiadores de arte e que per- mitem a todos os que aparecerem apreciar a visita de monumentos dos séculos XM ou XIE, Deve dizer-se que o francés médio, hoje, ja nao aceita que se qualifiquem de «desajeitadas ¢ inabeis» as escultu- ms dum portal romanico, ou de gritantes» as cores dos vitrais de Chartres. O seu sentido artistico esta suficiente- mente desperto para que juizos que nem sequer se teriam discutido ha trinta anos Ihe parecam, a ele, definitivamente caducos. Entretanto, ha ainda um certo desfasamento, que talyez venha, sobretudo, de habitos de espirito ou de voca- buldrio, entre a Idade Média, que ele admira todas as vezes que tem ocasiio pata isso e 0 que encerta para ele esse termo de Idade Média?, Desfasamento que marca a solu; gilo de continuidade entre 0 que ele pode constatar direc- tamente e o gue lhe escapa pela forga das coisas, porque é preciso uma cultura que ninguém ainda lhe concedeu, ¢ que sé um estudo inteligente da histéria, durante os anos de escola, proporciona, A Idade Média significa sempre: época de ignorancia, de embrutecimento,. de. subdesenvelvimento generalizado, muito embora tenha sido a nica época de subdesenvol- vimento durante a-qual se construfram catedrais! Isto porque as pesquisas de erudigao feitas ha cento e cinquenta nos, no seu -conjunto, ainda nao atingiram o. grande publico Um exemplo é evidente. Nag ha ainda muito tempo, wn programa de televisio dava como histérica a famosa frase: «Matem-nos todos, Deus reconhecerd os seus». * @Execucées duma selvajaria quase medieval», escrevia re- centemente um jornalista. Saboreemos este «quase». Certamente, no século dos campos de concentracdo, dos fornos crematdérios e do Goulag, como nao ficas horrorizado com a selvajaria dos tem- po# em que se esculpia o portal. de Reims ou o de Amiens!. REGINE PHRNOUD quando do massacre de Béziers, em 1209, Ora, hi mais de cem anos (foi exactamente em 1866) que um erndito demonstrou, alids sem nenhuma dificuldade, que a frase nfo podia ter sido pronunciada, pois nfo se encontra em nenhuma das fontes histéricas da época, mas apenas no Livro dos Milagres (Dialogus Miraculorum), cujo titulo diz suficientemente o que ele quer dizer, composto, uns sessenta anos apdés os acontecimentos, pela monge alemaio Cesario de Heisterbach, autor provide duma imaginacao atdente e pouco escrupuloso da autenticidade histdrica. Desde 1866, nenhum historiador, é inutil dizé-lo, se re- feriu ag famoso «Matem-nos todos»; mas 0s que escrevem sobre histéria, esses, utilizam-no ainda, e isso basta para provar quanto as aquisicSes cientificas na matéria sao lentas em penetrar no dominio piiblico. Porqué esta diferenca entre ciéncia e saber comum? Como € em que circunstancias se escavou o fosso? Isso vale a pena ser examinado. i DESAJEITADOS E INABEIS wO Renascimento é¢ a decadéncia», dizia Henri Ma- tise. O termo Renascimento (Ripascita) foi utilizade pela primeira vez-por Vasari nos meados do século XVI. Ile dizia bem o que pretendia dizer, o que ainda significa para o grande numero. «As artes e as letras, que pareciam ter socobrado no mesmo naufragio que a sociedade. ro‘ mana, pareceram reflorir e, apéds dez séculos de trevas, brilhar com novo clarao.» Assim se exprime em 1872 0 Dictionnaire général des lettres’, uma enciclopédia, entre muitas outras, dos fins do século XIX, através das «uais se percebe perfeitamente a opiniao geral da época € 9 seu ofvel cultural. O que «renasce», pois, no século XVI sao as artes e as letras cl4ssicas. Na visio, na mentalidade, desse tempo (e nao s5 da século XVI, mas dos trés séculos. seguintes) teria havido duas épocas de brilho: Antiguidade e Re- nascimento — os tempos. classicos. E, entre eles, uma aidade média» — periodo intermediario, bloco. uniforme, aséculos grosseiross, «tempos obscuros». Na nossa época de andlise estrutural, nao deixa de (er imteresse determo-nos um pouco sobre as razGes que puderam conduzir a esta visio global do nosso passado ‘ Bachelet e Dzobry, publicado no Delagrave, 1872. Os au- tores citados tinham-se rodeado, pata a publicaciéo dos seus ar- tigos, duma larga colaboracio: a énielligenrsia do tempo. 16 REGINE PERNOUD Nos estamos bem colocados para o fazer, porque o pres- tigio dos tempos classicos esté hoje largamente dissipado. Qs iiltimos fragmentos nfo resistiram a Maio de 68. Se alguma confuséo reina hoje nessa nova anilise dos valores classics, isso fornece-nos, pelo menos, um retro- cesso proveitoso, uma certa liberdade de espirito para com eles. O que caracterizou, pois, o Renascimento foi — toda a gente esta de acordo em o teconhecer — a -redescoberta da antiguidade, Tudo 9 que conta entéo no mundo das artes, das letras, do pensamento, manifesta esse entu- siasmo pelo mundo antigo. Recordemos que, em Florenga, Lourengo de Médicis celebrava todos os anos com um banquete 9 aniversério do nascimento de Platio, que Dante tomara Virgilio por guia nos Infernos, que Erasmo venerava Cicero como um santo. O movimento comegara ma Italia, antes mesmo do século KV; propagara-se a Franga, principalmente no século seguinte, e atingia mais ou menos o Ocidente, a Europa inteira: basta evocar, numa palavra, a Florenca dos Médicis, onde todos. os mo- numentos sio decorados com frontées, colunatas, cupulas ——como na arquitectura antiga—-, 0 Colégio de Franga, onde todos os humanistas se aplicavam a estudar com ardor sem igual as letras antigas, o manifesto da Pléiade, que proclama a necessidade de enriquecer a lingua fran- cesa recorrendo ao vocabuldrie grego ¢ latino... Ora, se examinarmos em que consistie 20 certo este Renascimento do pensamento e da expresso antigos, pa- rece, a principio, que nao se tratava senao, duma certa antiguidade, a de Péticles, para a Grécia, e, pata: Roma, aquela que se inspira no século de Péricles. Em resumo, © pensamento, a expressao classicas, e sé eles: os Romanos de César e de Augusto, nao os Etruscos: o Partenon, mas nio Creta ou Micenas; alids, a arquitectura era Vitravio, a esculcura Praxfteles. Estamos a esquematizar, certamente, mas nao mais do que aqueles que empregam a palavra: Renascimento, Ora, toda a gente a emprega. 0 MITO DA IDADE MEDIA Ay Usam-na_mesmo.a--propésito. de tudo. Porque, com © ptogresso da histéria, ndo deixou de se aperceber que, tle facto, na Idade Média, os autores latinos, ¢ até os (legos, eram ja muito conhecidos; que o.contributo do. mundo antigo, classico ou nao, estava longe de ser des- prexado ou rejeitado, Basta recordar que um. autor mistico ‘omo Bernard de Clairvaux emprega uma prosa toda techeada de citag6es antigas e que, quando quer trogar ili vaidade dum. saber..unicamente. intelectual, fa-lo_ ci- (wido um autor antigo, Pérsio; nfo se ousaria afirmar (le este autor tenha feito, parte da bagagem de todos 0) ineelectuais nos tempos mais classicos. Por isso, alguns eruditos do nosso século deram um tiovd sentido ao termo renascimento. Constatando que 4 volta de Carlos Magno se falava assiduamente dos witores latinos e gregos, falaram de «Renascimento, caro-_ \Ingeo», e o termo é comummente aceite. Outros, ainda init Ousados, falaram de «Renascimento do século XII», ou mesmo «de humanismo medieval» — sem conseguirem li muito, parece, impor-uma-—ou outra expressio, dis- sonunte em. relagéoao uso. corrente, Vai-se assim de jenascimento em renascimento, 9 que nao deixa de pa- (ecer suspeico. Consultando as fontes do tempo, textos ou monu- (Mentos, reconhece-se que o que caracteriza o Renasci- iento, o do século XVI, e torna esta época diferente (lis que a precederam é que ela pGe como principio \ imitagio do. mundo classico, O conhecimento. desse iwundo ja se cultivava. Como no recordar aqui a im- portincia que teve, nas artes, A Arte de Amar, de Ovidio, | partir do século XI, ou ainda, no pensamento, a filo- olin aristotélica no século XIU. Basta o simples bom senso para Jevar a compreender que o Renascimento nao feria podido dar-se se os textos antigos nao tivessem silo conservados em manuscritos recopiados dusante os wculox medievais, Tem-se evocado muita vez, é verdade, para explicar esta «redescoberta» de autores antigos, a Heh — 2 18 REGINE PHRNOUD pilhagem de Constantinopla pelos Turcos em 1453, que teria especialmente tido como resultado trazer para a Eu- ropa bibliotecas de autores antigos conservadas em Bi- z4ncio, mas, quando se examinam os factos, vé-se que isso nao desempenhou senio uma etapa minima, nfo sendo de forma alguma determinante. Os catdlogos de bibliotecas que nos foram conservados, anteriores ao sé- culo XV, provam-no abundantemente. Para darmos um exemplo, a biblioteca do Mont-Saint-Michel,.no.século. KH, possuia textos de Catéo, o Timex de Platio (em tradugio Jatina), diversas obras de Aristételes ¢ de Cicero, ex- tractos de Virgilio e-de- Horacio... © que era novo era o uso que se fazia, se se pode dizer, da _antiguidade classica. Em vez de ver ai, como anteriormente, um tesouro a explorar (tesouro de sabe- doria, de ciéncia, de processos artisticos ou literarios, no qual se podia indefinidamente colher), comecava-se a con- siderar as obras antigas como modelos a imitar. Os an- tigos tinham realizado obras. perfeitas; tinham alcangado a propria beleza, Entio, quanto mais se imitassem as suas obras, mais se estaria certo de alcancar a beleza. Hoje parece-nos impossivel admitir que a admiracao, em arte, deva conduzir a imitar formalmente o que se admira, a considerar como lei a imitagio. Todavia, foi © que se produziu no século XVI. Para exprimir a admi- tagéo que sentia pelos filésofos antigos, um Bernard de Chartres, no século XI, exclamou: «Nés somos andes erguidos aos ombros de gigantes.» Ele nao concluia daf senfo que, levado pelos antigos, podia aver mais longe do que cles». Mas é a propria maneira de ver que muda na época do Renascimento. Repelindo até a ideia de «ver mais Jonge» do que os antigos, recusam-se a considerd-los de outro modo sen’o como modelos de toda a beleza pas- sada, presente ¢ futura, Fendmeno alids curioso na_his- téria da humanidade: cle dé-se no momento em que s¢ 0 MITO DA IDADE M&DIA 19 ilescobrem imensas terras desconhecidas, outros oceanos, ui novo continente. Ora, na mesma época, em Franga jobretudo, longe de se virarem pata esses horizontes novos, viram-se para o que ha de mais antigo no antigo mundo. I! imaginam de boa-fé que descobrem um autor como Vitrlivio, por exemplo, ao qual se vao buscar as leis da arquitectura cldssica, quando, sabe-se hoje, os manuscritos de Vitriyio eram relativamente numerosos nas biblio- tecas medievais, dos quais ainda hoje subsistem uns cin- quenta exemplares, todos.anteriores ao século XVI. Sim- plesmente, quando, na Idade Média, se copiava Vitrivio, estudavami-se os principios sem sentir a necessidade de os aplicar exactamente*, Veremos mais longe a lei da imitagéo enunciada no dominio das letras. No que se refere & arquitectura e as artes plasticas, é suficiente constatar a separagio, bem visivel ainda hoje, entre monumentos medievais e os que nos deixaram o século XVI e os tempos classicos. Quase nfo h4_uma.cidade-em Franga em que nfo possam ver-se tantas vezes, lado a lado, os testemunhos dessas duas épocas, tio bem marcados nos seus contrastes e na sua sucessio mo tempo como nos estratos arqueoldégicos que se destacam ao longo das pesquisas. O exemplo mais simples existe em Paris, q contraste que apresenta dum lado e do outro do Sena, dum lado 2 Sainte-Chapelle e as torres da Conciergerie, de outro o patio do Louvre. A di- ferenca é tio evidente como a que se produziu sob os olhos dos Parisienses quando, em 1549, por ocasido da entrada de Henrique I] em Paris, se decidiu acabar com ? Recordemos aqui a histéria que conta Bertrand Gille, historiador das técnicas. Quandc, em 1527-1526, 0 Senado de Veneza quis mandar corstruis um tipo de barco adaprado 4 lua contra os piratas, desenharam-se os planos dum mestre operitio para se adoptar entusiasticamente o projecto duma quinquerreme imitada dos modelos antigos € apresentada por um humanista chamado Faustus. Techniques et Civilisations, HM, n° 5 © 6, p. 121, 1953. 20 BMINE i BENOUE 0 MITO DA IDADH MAaDIA 21 os bateleiges* de outros tempos. Todo esse conjunto, simultaneamente cortejo e arraial, que precedentemente acolhia o rei no local que se tornara a sua capital, foi sactificado para ser substituido por decoragées 4 antiga, colunas, frontées, capitéis déricos, jénicos ou corintios, nos quais se nao deixavam manobrar senao ninfas ou satiros que pareciam estituas gregas ou romanas. A fa- chada da igreja de Saint-Etienne-du-Mont, que data desse tempo, mostra, em toda a sua ingenuidade, o desejo de copiar fielmente as trés ordens antigas, amontoadas umas sobre as outras, enquanto o Panthéon, mais tardio, esse, reproduz, com toda a fidelidade, os tempos classicos. Hoje, o que nos parece injustificavel ¢ © préprio prin- ctpio da imitacio, 0 gosto do modelo, a cdpia. E Colbert incumbindo os jovens que enviava a Roma para apren- derem belas-artes de «copiarem exactamente as obras-pri- mas antigas sem lhes acrescentarem nada», Ter-se-4 vi- vido dentro deste principio de imitagdo, pelo menos nos meios oficiais, até uma época muito proéxima da nossa, Em Franga, sobretudo, onde a cultura classica foi até ao nosso tempo considerada como a Gnica forma de cultura. Recordemos que, muito recentemente ainda, nfo se podia pretender ser culto sem conhecer o latim, ou até o grego; € que, até a uma data muito préxima de nés, o essencial do trabalho dos alunos de Belas-Artes em todas as secgdes, incluindo a arquitectura, consistia em desenhar gessos gregos ou romanos. Os tempos cldssicos nfio concederam algum valor artistico senZo a certas obras —que nao eram as melhor ‘escolhidas nem as mais auténticas— da arte chinesa, objecto duma moda passageita no sé- culo XVII; ou ainda, a seguir As campanhas napolednicas, a arte clissica egipcia. Fora estas duas concessies 20 «exotismon, toda a beleza se resumia no Parthénon, em arquitectura, e na Vénws de Milo, em escultura. © que surpreende hoje —sem nada titar 4 admiracio que o Parthénon e a Vénws de Milo podem provocar — 6 que semelhante estreiteza de vistas tenha podido fazer lei durante quatro séculos, aproximadamente. No entanto, assim foi: a visio classica, a que se impés ao Ocidente mais ow menos uniformemente, nao admitia outro es- quema, outro critério, senao a antiguidade classica. Mais uma vez se pusera como principio que a beleza perfeita fora atingida durante o século de Péricles e que, por convequéncia, quanto mais se aproximasse das obras desse tempo, melhor se atingiria a perfeigi im si, se se admitir em arte definigées e modelos, outa estética teria sido tao valida como muitas outras Nilo a minima necessidade, alias, de demonstrar que oli o foi: basta considerar 0 que ela nos deixou, mansGes (tistocrdticas da ilha de Saint-Louis em Paris, as de (wntas cidades como Dijon, Montpellier ou Aix-la-Pro- vence, O que é estranho é 0 seu cardcter exclusivo e abso lito, provocando o anftema sobre a Idade Média, Tudo 0 que nao estava conforme a plastica grega ou latina eta impiedosamente.. rejeitado. Era .«o deslavado gosto jielos ornamentos géticos», de que fala Moliére. «A me- lida que as artes se foram. aperfeigoando», escrevia. um worlco, o abade Laugier, nas suas Observagbes sobre a Ar- yuilectura, quis-se-substituir nas nossas..igrejas goticas os \lilleulos enfeites que as desfiguravam por ornamentos lim gosto mais requintado e mais ‘puro.» E ele’ felicita- viiwe por ver, no coro da igreja de Saint-Germain-lAu- verrols, os pilares: géticos «metamorfoseados em colunas caneladasy, A imitagéo da antiguidade votava a destruigio 6) testemunhos dos tempos. «géticosn. (desde. Rabelais. que © fermo era empregado-com o significado de «barbaro») Havas Obras eram demasiado numerosas ¢ teria sido muito iypendioso destrui-las todas, por isso um grande mimero sibsintiu, valha-nos isso; mas sabe-se que se editou um _' A palavea vem de batslewr: saltimbanco, apresentador di tiahalho no século XVIL para guiar e aconselhar utilmente Petey, chegada doves era ocasiao, de: fewrjps novia fijiieley que quisessem -destruir-os edificios géticos, que. 22 REGINE PERNOUD nas cidades vistas agora ao gosto do tempo, prejudicavam demasiadas vezes a perspectiva: era necessdrio que tudo fosse repensado, ordenado, cortigido, segundo as leis ¢ as tegtas que as tornariam de acordo com Vitriivio ¢ Vasari Nio deixarao de se espantar perante este enunciado da lei da imitagéo; falarao de simplismo e Protestario em nome do génio triunfante, pelo seu génio precisa- mente, contra a lei da imitagao e dos seus corolarios, cénones académicos e outros, Nao nos daremos ao trabalho de refutar esses pro- testos: evidentemente que seria absurdo negar a beleza ea grandiosidade desses monumentos dos séculos classicos nascidos duma vontade de imitagio, que o génio dos seus autores soube efectivamente assimilar. E esse absurdo seria tanto mais flagrante que nao faria semfio renovar 0 ex- clusivo que caracterizou justamente os séculos académicos. N&o serd um dos beneficios da histéria o~ensindr-nos a mo renovar os erros do passado, na ocorréncia essa estreiteza de vista que impedia de accitar o que nag era conforme a estética do momento, isto é.a da antiguidade? A verdade é que a histéria da arte se elaborou no tempo €m que reinava, sem contestacio, esta visdo clas- sica, Parecia entio tio normal identificar-o belo absoluto com as obras da antiguidade, com o Apolo de Belvedere ou o Avgasto do Vaticano, que muito naturalmente se submetiam 4s mesmas normas as obras da Idade Média. Como escreveu André Malraux: «Tinha-se a ideia precon- cebida de que o escultor gético desejara esculpir uma estatua classica, ¢ que, se nfo o fizera, era porque nao tinha sabido.» E que dizer do escultor romano? Ele bem gostaria de ter feito estatuas como a Vitéria de Samotrdcia, mas, muito infeliz por nfo o conseguir, tivera de se contentar, a bem ou a mal, em esculpir os capitéis de Vézelay ou o portal de Moissac; ele teria gostado tanto de fazer, segundo a expressio do tal historiador de. arte, «uma verdadeita estétua que se pudesse admirar...», ele O MITO DA IDADE MEDIA 23 teria gostado tanto de imitar o friso do Parthenon ou a coluna de Trajano... Mas nao, na sua «falta de jeiton e na sua «falta de habilidadey — sao os dois termos consagrados que se usava na nossa juventude, e nfo estou certa de que nao sejam ainda utilizados, pelo menos na escola, para qualificar os artistas romanos—, eles nao conseguiam senao rodear o Cristo de Autun duma criagio vertiginosa e gravar a histéria da Salvacaéo no portal real de Chartres... Nés nig evocamos aqui senio a esculcura, porque a pintura, essa —ou, melhor, a cor—, fazia a tal ponto horror aos séculos classicos que nao se encontrara outra solugéo senao cobrir os frescos romanos dum revestimento ou quebrar os vitrais, para os substituir por vidros brancos. Foi 0 que se passou um pouco por toda a parte. Podemos considerar que em Chartres, em Mans, em Estrasburgo, em Bruges, apenas felizes esquecimentos nos permitem hoje ter uma ideia do que foi o conjunto de cores da época; as rosas do transepto da Notre-Dame de Paris foram preservadas — se abstrairmos dos estragos da época revoluciondria — apenas porque se receava nao se poder tecnicamente refazé-las — o que, aqui entre nds, era render uma bela homenagem aos edificadores da Idade Média! A grande arte dos tempos classicos era a escultura, 0 alto-releyo, de que existe precisamente muito pouco nos séculos. medievais, e isto por. toda a espécie de razGes, mas -principalmente porque se prefere animar uma super- ficie a executar um objecto em trés dimensées, Por isso, uma quest&o crucial para.a histéria da arte da Idade Média foi:. como. é.que.os. escultores puderam «te-aprendery a esculpir? Partia-se do principio de que a escultura fora uma arte «esquecidan, Todas as vezes que se tenta fazé-lo, séo «desajeitados ensaios, dignos duma criangay (o termo é de desdém, ¢ nao de admiragio, como seria sem divida © caso hoje), Daf os juizos de valor feitos pelos historia- dores de arte: estétua eduma fealdade selvagem» (tra- ta-se da famosa Sainte-Foy do tesouro de Conques), «ilus-

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