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Charles Higounet NA PONTA DA LINGUA Estranairones — guerra em torno da Ungua Carls alert Faaco [org] 2, Lingua materna—Utrament, varia eensine Marcos Bagno, Michael Sebbs & Gills Gagné 3 Hsia concise da lingua, Barbara Weodo0d 4, Secolinguitica — uma introduc ric, Lai Jean Calvet ‘ : 4 Histriaconcsa da esrita, Charles Higosmet Peraentenderalingutca—epistemelogiaclemontardeuma dscplina Robert Martin 1. Inretuto asestudescularais, Armand Mata 8. Apmgmétioa, rangoiss Armengad 9, Histéiaconcisa da semitca, Ane Béault 10, Histriaconisa da semantica, rene Taba LL Linguistica comptaconal — tora & pica Gabriel de Avila Otheroe Sérgio de Moura Menuzsi 12, Lingulsticahistrica — Carles Alberts Faraco 18, Latar com historia concisa da Neveu m Ww ‘a! 2 = > na intro oestu da Rsv das lingua lavras ~ cose eeréci,Irandé Antunes 14. Amdlise do discurso — Histiriaepratias, Prancine Mav Leste 15. Maso que é mesmo “gramatica”, Carlos Franc 16, Analiee da conversa prinipas¢mtados /\ ao Catherine Kerbrat Orecshion 7, As politics lnguiticns, Louis Jean Calvet 18, Pris de etramento no esi: lara, eseritaediseursa Carlos Alberto Faraco, Meri do Rosso Gregalin, Givan Mller de Olivers, Tene Gimenes, iz Crios Travaglia. 19, Retntcia svial da linguisticalinguager, ria ensina Lisa Percival Leme Britt, Marcos Bagno, Neiva Maria ung, Esméria de Lodge Saveli, Maria Mara Fucianetto 20, Tada mundo devia seer, Georges Picard 21, A argumentaczo, Chvtian Plantin 22, Traligd oral & adi esrica, LouisJean Cavet 23, Tradugao—h Marcos Marsionilo IL i (ra, arias e diodes, Micha Oustinofl Para a publicagdo brasileira se tizeram neces sérias pequenissimas atualizagies, espe estatisticas, ao passo que as posigdes tedrieas do Autor € aguilo que se pode classificar como limtitaginss de sua cireunstineia foram mantidas, uma ver que no poderiamos esperar que um texto de 1955, reedlitado pela décima vez.em 1997, estivesse isento das marcas de sen tempo. Essas préprias limitagdes podem ser consideradas marcas do tempo na hist6ria da escrita, O que importa é que o encadeamento histérico e a questdes de hase postas por Higounet permanecem rigorosamente vidos para oensino ¢ paraa reflexao e podem alimentar o projeto de difssdo do conhecimento que anima todas as nossa iniciativas. CAPITULO! A ESCRITA, EXPRESSAO GRAFICA DA LINGUAGEM Eserita e civilizagio Segundo a definigdo de um de nossos mais cruditos mestres, a esetita é, acima de tudo, “um procedimento do qual atualmente nos servimos para imobilizar, para fixar a linguagem articulada, por esséncia fugidia”. Diante de sua necessidade de um meiv de eapressio permanente, 0 homom primitivo recorreu a engenhosos arranjos de obje- tos simbolicos ou a sinais materiais, nds, entalhes, desenhos, Em nossos dias, a reprodugio em disco ou fita magnética, outro procedimento de fixacto da linguagem, mais direto que a escrita, comega a concorrer com ela Contudo, a escrita é mais que um instrumen: to. Mesmo emudecendo a palavra, ela no apenas a guarda, cla realiza 0 pensamento que até entdo permanece em estado de possibilidade. Os mais simples tragos desenhados pelo homem em pedra 9 0u papel nao sao apenas um meio, eles também en- cerram e ressuscitam a todo momento o pensamen- to humano, Para além de modo de imobilizagio da Tinguagem, a escrita é uma nova linguagem, muda certamente, mas, segundo a expressao de L.. Febvre, “centuplicada”, que disciplina o pensamento ¢, a0 transcrevé-lo, 0 organiza. ‘A escrita faz de tal modo parte de nossa civili- zaciio que poderia servir de definigdo dela propria, A historia da humanidade se divide em duas imen- sas eras: antes e a partir da escrita. Talvez. vena 0 dia de uma terceira era que sera: depois da escrita. Vivemos 05 séculos da civilizagio escrita. Todas as nossas sociedades baseiam-se sobre o escrito. A. lei escrita substituiu a lei oral, 0 contrato escrito substituiu a convengao verbal, a religiio eserita se seguitt a tradigéo lendaria, E sobretudo nao existe histéria que nao se funde sobre textos. Desse modo, a escrita é ndo apenas um procedimento destinado a fixar a palavra, um meio de expresso permanente, mas também dé acesso direto ao mundo das ideias, reproduz bem a linguagem articulada, permite ainda apreen- der o pensamento e fazé-lo atravessar 0 espago € 0 tempo. E 0 fato social que esté na propria base de nossa civilizagio. Por isso a histéria da escrita se identifica com a histéria dos avancos do espirito humano. Nao hi duivida de que é preciso chegar a essas definigées para dar A ciéncia das escritas o lugar 10 que ela merece no conjunto das ciéncias histéricas, mesmo que se queira ver nela apenas, como serd nosso propésito, o estudo de uma técnica, Escrita e linguagem Para que haja escrita, “é preciso inicialmente um conjunto de sinais que possua um sentido esta- belecido de antemao por uma comunidade soci que seja por ela utilizado” e “em seguida é preciso que esses sinais permitam gravar e reproduzir uma frase falada” (J. Février). A aquisigao desse simbo- lismo € desse esquematismo se faz por séries de desenvolvimentos mais ou menos lentos ¢ acabados segundo a mentalidade ¢ a lingua das sociedades em que so operados. Conservando apenas as grandes linhas, podemos distinguir, porém, entre as teatativas primitivas ¢ nosso sistema alfubético, trés etapas essenciais: escritas sintéticas, analiticas, e fonéticas. ‘A bumanidade primitiva utilizou esses meios de expresso momentinea que ainda subsistem entre alguns povos: o tambor utilizado na Africa Ocidental ena Melanésia para transmitir noticias rapidamente om cédigo sonore, ou a linguagem dos gestos e das ios que subsiste entre os indios da América do Norte ¢ os chineses. Esses gestos de mao por vezes forneceram modelos para os sinais ideograficos da escrita. A disposigéo ou 0 envio de objetos, gros, n stdin conten 94 asniTa toches, penas ou flechas também se tornaram meios de expressio simbilica ¢ 0 sao até hoje na Maldsia ou na Africa central. A utilizagao de cordinhas com nés e de basties com entalhes para 0 catculo, a cronologia e a transmissao de noticias representa ‘um progresso em relacdo a esses meios primitivos. Os quippus dos incas do Peru eram cordinhas com fios de cores diferentes e nds que serviam para fazer contas. Todas as civilizagGes primitivas, da Escandi- navia antiga até a Austrélia, também utilizaram os bastdes entalhados como mensagem ou como meio mnemotéenico. No entanto, mesmo que isso tudo dé testemu- nho dos esforgos para conservar ou comunicar alguns elementos da palavra ou do pensamento, s6 chegaremos realmente ao estagio embrionério da escrita com as primeiras tentativas de representagio stfica. Os desenthos magicos das grutas da época au- rignaciana e madaleniana que representam animais atingidos por flechas ou mareados por manchas de sangue contém em germe “algo que se assemelba a rudimentos de escrita; eles exprimem, se nao uma ideia, pelo menos um desejo”. As pinturas rupestres: de sitios pré-histéricos da Peninsula tbérica mos- tram de eraem era uma estilizagdo que também faz pensar em uma evolugdo rumo a escrita. Os dese- nhos incisos em pedra, os chamados petroglifos, encontraveis um pouco por toda parte, da Europa as ithas do Pacifico, também prepararam, por sua 2 simbologia ritual (érvores, animais, rodas, eruzes, sinais geométricos), a eclostio da escrita sintética ‘A mentalidade do primitivo nao lhe permite desenvolver a decomposicao da frase, que pos- tula a reproducdo grifica, para além da sucessao de ideias que ela contém. Por isso o estagio mais elementar da eserita é aquele em que um sinal ‘ow um grupo de sinais serviu para sugerir uma frase inteira ou as ideias contidas numa frase. S30 eshocos desse tipo que so chamados de escritas sintéticas ou ainda, segundo o termo alemao, Ide- enschrift, eserita de ideias. Como o mtimero desses sinais ¢limitado, enquanto o das ideias e das frases é infinito, a leitura dessas escritas depende a maior parte do tempo de rébus’. Os indigenas da Sibéria oriental ¢ do Alas- a, 08 esquimds e os indios da América do Norte empregaram até muito recentemente esse sistema de notagao por imagens. As faixas (wampuns) dos iroqueses e dos algonquinos, com suas figuras tecidas € stias conchas coloridas, e os winter counts dese- nhados sobre couro de iso pelos dacotas também conserva curiosos exemplos desse sistema. As antigas escritas da América Central, maia e asteca, estio muito préximas desse estégio da ideografia, * Chama-se rébus a tentativa de representacio dos sons da ings, sobrendo slabs, por meio de figuras cujos nomesfenara ‘estes sons ¢ caja combinago possa representar uma palavr. Por ‘exemplo,odesenho de um sol ¢ 0 desenho de um dado para repre sontar a palavra soldado{n. do 13 UstGnia coNCISA Da EscRITA Um progresso incalculvel se deu quando se atingiu a decomposigo da frase em seus elementos, as palavras. Doravante cada sinal passou a servir para notar uma palavra. A passagem da escrita sintética para essa nova notagao deve ter sido bas- tante complicada, pois é bastante dificil isolar a palavra falada da frase; mas foi exatamente nesse estagio que a esorita nasceu. Como saber qual foi a primeira lingua na qual essa transformagao se deu? ‘Veremos que as escritas suméria, egipcia e chinesa so as mais antigas que conhecemos na categoria das escritas ditas analiticas ou Wortschrift, ou seja escrita de palavras. Da notagao das palavras, 0 homem enfim passou A notagao dos sons. Seja de sinais ou de palavras, isso realmente supée um considerdvel estoque de sinais e, consequentemente, uma imensa memoria visual para a leitura. Se fizer- mos a notagdo apenas dos elementos fonéticos que constituem as palavras, obteremos um material gréfico infinitamente mais restrito. Chegamos entéo as escritas fonéticas. A escrita fonética é silabica ow alfabética, de acordo com o grau de trabalho da andlise que essa nova evolugao implica. Ha poucos exemplos de escritas puramente silébicas, mas 0 silabismo existia entre as populagées sirias e medi- terrdneas desde segundo milénio antes de nossa era. A distingao entre consoantes e vogais dentro das silabas ¢ a notagdo de cada consoante por um 4 sinal distinto levaram, depois de muitas tentati- vas, ao alfabeto consonantal fenicio de meados do segundo milénio, o ancestral de todos os alfabetos verdadeiros, especialmente do nosso, por meio do alfabeto grego. Nesta Histéria concisa da escrita, distinguire- mos apenas os dois grandes sistemas nao alfabéticos ¢ alfabéticos, reservando lugar de destaque, entre os sistemas alfabéticos, & escrita latina, que se tornou 0 instrumento definitivo do pensamento ocidental e 0 meio de expresso por exceléneia do mundo moderno. Materiais e caracteres das escritas Do ponto de vista material, toda escrita é tra- cada sobre um suporte ou, como se diz, sobre um registro “material subjetivo”, com auxilio de um instrumento manejado mais ou menos habilmente por um gravador ou por um escriba, seja fazendo incisdes, com um estilete, seja com um produto colorante, Segundo esse ponto de vista, toda escri- ta apresenta uma série de caracteres que Ihe sio proprios e que pertencem ao grupo social, & Lingua € a época da qual ela é expresso, mas também ao registro material subjetivo, A natureza do instru- mento, & mao e aos habitos do escriba. Antes de entrar no cstudo das diferentes escritas histéricas ¢ atuais, € preciso conhecer esses materiais, esses 15 instrumentos € esses gestos, cuja influéncia sobre 0 desenho das letras nao se pode negligenciar,e definir as nogGes relativas aos caracteres dessas escritas. Outrora, numerosas substincias serviram de suporte ais escritas e sao ainda empregadas em situa- Ges excepeionais. Matérias duras como a pedra, a ardésia, 0s tijolos, os cacos de eeréimica, o mérmore, © 0880, 0 vidro, 0 ferro, 0 bronze ¢ outros metais trazem as tradicionalmente chamadas inscrigdes. A pedra sempre foi o suporte por excelén- cia das eseritas monumentais. Os hierdglifos egipcios, as inscrigdes hititas, os fragmentos de Biblos, os caracteres monumentais gregos & latinos sao gravados na pedra dura ou, vez por outra, incisos em relevo. A escrita dita cunei- forme da Suméria e da Asia anterior’ era, por outro lado, preferentemente tracada em tabuletas de argila fresca, depois cozidas ao forno. Os mais antigos caracteres chinetes so gravados no bronze ‘ou no casco de tartaruga. No tempo de Maomé, Jrabes usavam muito ossos de camelo. O uso de materiais menos duros e perectveis tem, em geral, dado as escritas formas mais livres e mais cursivas, Foram utilizadas madeira, casca de Arvores, folhas de palmeira, tela, seda, peles de animais ¢ tabuletas de cera Antigo Oriente Médio, que abrangi 0 Fito, Arabi, a Siva, Palestina « Mesopotnia,a Arma, oTrdea Asia Menor. Foi nessa rei ue x prieizasciviliages omeyarzs ase format or volta de 7.000 ansatz. do 6 A fotha de palmeira teve um grande sucesso no mundo indiano. Antes do papel, os chineses utilizaram laminas de bambu e seda crua. O couro foi também um dos primeiros suportes das escritas arabicas. A Ruissia medieval empregava a casca de bétula (descoberta de Novgorod). O uso de tabuletas cobertas com cera, reunidas aos pares, por trés ou em niimero maior (dipticos, tripticos e poltpticos), era comum em Roma, Foram recentemente desco- bertas na Africa do Norte tabuletas — chamadas tabuletas Albertini, nome do estudioso que por primeiro as estudou — que usavam a prépria madeira como suporte para a escrita. Blas datam da €poca vandala (fim do século V). O uso dessas tabu Ietas de madeira se mantém até hoje no Marrocos. O papiro, o pergaminho e o papel sio os regis ‘materiais subjetivos da escrita mais comuns desde 0 principio de nossa era. O papiro foi utilizado sobre- tudona Antignidade, o pergaminho na Idade Média, o papel, de origem chinesa, foi introduzido no Ocidente através do mundo érabe, a partir do século XL A fabricagao do papiro foi monopélio do Egito até o século VII. A téenica de fabricagao do papiro é descrita por Plinio em sua Histéria natural: a matéria-prima era o caule de um junco cultivado no vale do Nilo. As laminas Iongitudinais e transversais, coladas com a dgua do rio, formavam as folhas que eram mandadas ao comércio cortadas em forma de rolo. Era um material bem pouco resistente. Seu uso s6 foi 0s "7 isda concisn om Esenra abandonado completamente no século XI. Atual- mente as descobertas cada vez. mais numerosas de escritos antigos em papiros renovam nosso con cimento do mundo greco-romano e de sua eserita A invencao do pergaminho é atribuida pela Ienda aos habitantes de Pérgamo, na Asia Menor (pergamenun). A matéria-prima do pergaminho é a pele de cordeiro, de bode ou de veado novo (perga- minho). Trata-se de um suporte téo resistente liso que a Idade Média 0 conservou durante muito tempo para os livros ¢ as atas importantes, apesar da concorréncia do papel. O mais remoto © plo de pengaminho escrito é um fragmento, talvez do fim do séeulo I, Seu uso se torna comum no séeulo IV; do séeuilo IX ao século XIM foi o material exclusive para livrose quase o tnico para legislacGes. Em épocas de escasser, de pergaminho, raspavam-se 0s livros an- tigos para transcrever novos textos (palimpsestos). Veio da China a ideia de fabricar papel a partir de trapos, Os mais antigos documentos conhecidos escritos sobre papel sio textos budis- tas do século II. Samarkanda foi um dos grandes centros da fabricagdo de papel durante a alta Idade Média, Foram os drabes que introduziram esse material na Europa. O missal de Silos (perto de Burgos) € o mais antigo manuscrito europeu em papel conhecido até o presente (inicio do séeulo XI). Alids,a Espanha foi o primeito pafs ocidental a ter fabricas de papel. Todos os papéis da [dade Média cram fabricados com trapos de cdnhamo ¢ de linho. 8 Seu defeito era a fragilidade, a falta de flexibilidade ¢, até 0 século XIV, o prego de custo relativamente alto, Até 0 inicio do século XIX, o papel foi fabricado unicamente & mao sobre uma forma. Hoje nossos papéis so tecidos de fibras vegetais das mais diver- sas proveniéneias e so fabricados em larga escala. O suporte da escrita evidentemente reage aos caracteres da escrita; mas, no caso das trés tiltimas substancias, a forma desses suportes talvez. tenha desempenhado um papel na evolucdo da letra. uso do papiro (¢ do pincel) modificou pro- fundamente 0 tracado das letras nos antigos alfa etos semiticos. Na China, a descoberta do papel (¢ do pincel) teve como consequéncia a transformacao dos caracteres, cuijo desenho se afastou dos objetos, que cles representavam. Discute-se na histéria da escrita romana se a passagem do rolo (rotulus) de papiro ao caderno ou ao livro (codex) de pergaminho provocou ou nao grande metamorfose do século II. material que serve para escrever teve igual- mente, acabamos de perceber, uma importante influéncia na variagao das formas gréficas. Entre as antigas escritas monumentais ¢ 08 caracteres, cuneiformes, de um lado, ¢ as escritas chinesas ¢ ocidentais da [dade Média, de outro, hi a diferen- a de flexibilidade entre o cinzel, o junco cortado obliquamente, o pincel e a pena. Para falar a verdade, os monumentos epigr: cos representam a riltima etapa, gravada a cinzel € a martelo, de um tracado anteriormente feito a giz, 19 carvao ou estilete, Desde a Antiguidade romana, para escrever, as pessoas se serviram, excluido 0 pincel dos chineses, de trés instrumentos: o estilo (stilus ou graphium), haste de ferro ou de marmore com ponta para tragar os caracteres nas tabuletas de cera, 0 calamo (calamus), junco cortado como nnossas penas, que permaneceu em uso até o século XII, € a pena de péssaro (ganso e cisne, sobretudo), afilada ¢ fendida, mencionada desde 0 século VIL por Isidoro de Sevilha. O uso de penas metilicas s6 se generalizou no século XIX, A invengdo da imprensa, no século XV, ¢ a construcdo desde entao de diversas “maquinas de escrever” substituiram esses instrumentos manuais, por meios mecinicos de escrita. Essa revolucao, cujos efeitos foram imensos no campo da cultura, teve como resultado, no campo da técnica da escrita, de algum modo, a fixagao das formas. No caso da coctita latina, os sinais tipograficos, a despcito da variedade dos caracteres ¢ das pesquisas que eles provocam, teproduizem mais ou menos a “mintis- cula” carolingia do séeulo IX. Por fim, bem mais que os produtos minerais, siz, carvao, grafite, mina de chumbo, a tinta se tor- now, desde a Antiguidade, o material comumente empregado para fixar a eserita sobre seu suporte. Os chineses desde cedo fabricaram a tinta de de fuligem, de cola ¢ de substancias aromaticas. Os romanos talvez tenham conhecido tintas a base de sais metélicos. As receitas da Idade Média indicam, 20 em todo caso, composigdes a base de sulfato ferroso, de noz-de-galha, dissolvida em vinho, e de goma, Os caracteres das escritas dependem, por- tanto, desses materiais ¢ instrumentos. Mas para compreendé-los é preciso atentar também para a psicologia dos povos e para os costumes e gestos dos escribas. A esse respeito, temos poucas infor- mages sobre as grandes escritas antigas. As escritas indianas parecem indiferentes ao registro material subjetivo. O exemplo da escrita latina pode dar a entender 0 que deve ter provavelmente ocorrido em outros casos, Veremos adiante que ocorren no séeulo IIT o que Jean Mallon chamou de “a inclinaggo do papel”: mudanga da posigdo, respectivamente, da “folha” e do instrumento do escriba, mudanga de habito —inexplicavel, alids —, determinantes para a transformagdo essencial da escrita romana, Chegamos assim a buscar as nogdes que é preci so levar em conta para poder conliever, do poulu de vista grafico, determinada escrita, Foi o proprio Jean Mallon quem as enunciou, a propésito da escrita lati- ‘na. Sio elas, além do registro material subjetivo e das caracteristicas internas do texto: as formas, 0 Angulo de escrita, 0 ducto, 0 médulo, o peso. O aspecto exterior da letras sio as formas. Em. uma mesma eserita, a mesma letra pode tomar ou pode ter formas diferentes. O Angulo de escrita & a posigdo em que estava posto o instrumento do escriba em relagio a direcdo da linha, Ele pode ser agudo ou, a0 contrério, quase reto, ea densidade dos tragos va- a riar até a quase inversdo, O dueto é a ordem em que 0s tragos foram exeeutados € o sentido em que cada um deles foi feito. Deve-se estabelecer como regra geral que essa ordem permanece imutavel, mesmo que ‘um trago venha a desaparecer, visto que 0 movimento da mao é sempre semelhante a si mesmo. O médulo indica as dimensbes das formas, argurae altura, orem de grandeza por vezes simnplesmente relativa. O peso depende do instrumento, Um instrumento leve faz 0 forte eo fraco se contrastarem, resultando numa escri- ta que se pode chamar pesada; um instrumento duro ‘nao marca quase nenbuma diferenga entre os cheios € 0s soltos ¢ tem como resultado uma escrita stave. So todos esses elementos que permitem des- crever graficamente uma escrita eé mediante seues- tudo combinado que os paledgrafos, diz Jean Mallon, “podem esperar distinguir categorias e estabelecer filiagdes validas”, € estudo das eseritas Decifrac: Essas preliminares sobre as grandes fases do desenvolvimento da escrita, por um lado e, por outro, sobre sta técnica e seus caracteres gréficos levam. snos a pereeber de imediato que o estudo histérico das escritas pode ser feito, ¢ de fato 0 é, segundo dois pontos de vista: o do linguista eo do pales grafo, Meio de fixacio da linguagem, a escrita est evidentemente ligada aos fenémenos que regem 2 a linguagem. O grande Hinguista Antoine Meillet faz da escrita o siltimo capitulo de seu programa. As principais hist6rias da escrita, como a de James Février, sio obra de linguistas; os conceitos de escritas sintéticas, analiticas, silfbicas, consonan- tais esto em relacdo com fendmenos linguisticos. Contudo, uma vex “inventada”, a escrita se torna ‘um desenho que pode ter vida prépria, fora da Iin- gua da qual é veiculo. E quando sua histéria pode ser um estudo apenas das formas que evoluem em um contexto politico, social e econdmico. E a concepgao da paleografia, nao mais no sentido de cigncia da decifragao das escritas antigas, mas ampliada para a prética hoje desenvolvida pelos ‘mantiaise pelos trabalhios mais recentes. Esses dois pontos de vista so, na verdade, necessariamente complementares, O instrumento escrita que parece hoje tao simples entre nossas mos nao pode ser explicado nem perfeitamente compreendido se nao for desmontado nesses dois tempos. Diante de uma eserita desconhecida, o primeio problema que se depara é o da decifracao, que pode se apresentar de varias maneiras. O caso teoricamente mais simples é 0 de uma escrita alfabética aplicada a uma lingua proxima de um tipo conhecido. Foi assim que H. Bauer, E. Dhorme ¢ Ch. Virolleaud decifraram rapidamente hé alguns anos a e nantal, de aspecto cuneiforme, notagao de uma lingua semitica rita ugaritica, escrita conso- O ponto de partida dessa decifragao foi o isola ‘mento da letra 1, que exprime, como em hebraico € em érabe, a preposicao possessiva. Um grupo de trés Jetras terminado por t.¢ muito frequente nas inseri bes, identificado com o nome do deus Bel, permitiu em seguida ganhar dois outros valores. E assim por diante, por hipéteses e fragmentos progressivos, foram descobertos os trinta sinais desse alfabeto, Se a lingua e a escrita forem igualmente des- conhecidias, os esforcos de decifraco podem se tornar ‘muito drduos, salvo na eventualidade de textos bilin- gues ou de fragmentos ideograficos que possam servit de chave. Esse tiltimo caso € 0 da escrita cretense. ‘No caso de uma escrita analitica, a leitura € sempre conjetural, mesmo que as representagoes idcograficas permitam compreender o texto, ( caso mais comum, talvez 0 mais fécil, é por fim o de uma escrita que contém uma mistura de caracteres ideogralicos © de sinais fonéticos. Eo caso das escritas do antigo Oriente Médio, egipcia, sumero-acéiica, hitita, e que dew origem aos traba- hos fundamentais de Champollion e dos cientistas decifradores dos caracteres cuneiformes. O francés Champollion desvendou o segredo dos hierdglifos egipcios em 1822, fundou uma nova ciéneia, a egiptologia, ¢ estabeleceu um método de decifracdo das escritas desconhecidas que possibilitou os progressos desde entao aleancados. Antes de Champollion, acreditava-se que a escrita hieroglifica era sintét , que cada 4 sum de seus caraeteres correspondlia a uma ideia. A descoberta, em 1799, durante uma expedicio de Bo- naparte ao Egito, da pedra da Roseta, contendo trés versées de um mesmo texto, hieroglifico, demstico (cscrita corrente a partir do século VII a.C.) e grego, em honra de Ptolomeu Epifanes (205-181 a.C.), for: neceu a chave do sistema. O inglés Young conseguiu lero contetido do “cartucho” que continha 0 nome de Ptolomeu. Mas a genialidade de Champollion (1790-1832) foi demonstrar pelo raciocinio que os hieréglifos tinhham em parte um valor fonético. Convencido, por outro lado, de que a Yingua copta era o prolongamento da antiga lingua egipcia, ele procurou palavras coptas escritas alfabeticamente. As transcrigdes gregas o levaram enfim via dos nomes das divindades e dos nomes préprios. Suas transcrigdes e tradugdes, feitas com seguranca eele- ‘#incia com base nessas premissas, abriram a hist6ria scculus inteitus de civilizagao até entéo ignorados. ‘As escritas chamadas cuneiformes, persas € sumero-acdidicas foram decifradas mais tardiamente, fgracas aos constantes esforcos dos cientistas Méinter, Grotefend, Rawlinson, de Sauiley, Longpérier e Oppert. Sna leitura estava mais ou menos assegurada por volta de 1855. Faltou aqui um texto bilingue como a pedra de Roseta. O ponto de partida foi fornecido pelas ins- crigdes de Persépolis, de época recente, que notava por meio de um alfabeto de cerca de quarenta sinais uma Iingua indo-europeia. A escrita sumero-acddica foi 25 de decifragao muito mais dificil, pois notavam, para ccomecar, uma lingua mal conhecida, com ideogramas, determinativos e sinaissilabicos e depois, emprestada, como veremos, por uma lingua semitica, ‘Mesmo depois de feita a decifrac3o, por meio da utilizagao de recursos da linguistica e de um es- pirito de observagao e de engenhosidade, a leitura das escritas antigas ¢ sempre dificil porque apresenta outros problemas de evolucdo grifica, B quando intervém a epigafia e a paleografia. ‘Acpigrafia ¢etimologicamente a ciéneia do que esti escrito sobre. De fato, ela 86 se ocupa do que esta escrito sobre materiais duraveis; ese ela se interessa pela escrita enquanto tal e estabelece regras que regem a leitura ¢ a interpretagdo das inscrigées é apenas para ir ao texto, propésito essencial de seu estudo, que penetra para além dos mais diversos campos da historia, ‘A paleoprafia, segundo a etimologia, citucia das escritas antigas, restringiu seu campo durante muito tempo as escritas tragadas sobre materiais pereciveis. Mas, na sealidade, ela nao pode se desinteressar dos outros monumentos da escrita, 0 que provoca uma aproximaggo entre a paleografia e a epigrafia, Bla ‘visa a um duplo objetivo: a leitura prética das escri- tas hoje fora de uso corrente © 0 estudo da evolucio dessas escritas através dos sécttlos. Hé uma paleo- fgrafia das escritas orientais, Pudemos recentemente escrever um ensaio de paleografia cuneiforme. Mas grande campo da paleografia é, pela abundancia 26 de materiais, pelo interesse imediato pelos estudos hist6ricos, filol6gicos literdrios e pela amplidao das questdes debatidas, o das escritas gregase latinas; e nesse campo, ela s¢ liga estreitamente a disciplinas como a papirologia, a diplomatica e a codicologia. ‘Um método da epigrafia eomegou a se esbocar na Franca nos séculos XVII e XVIII, com o padre Sirmond (t 1651) e JF. Séguier (+ 1784), e na Italia, com S, Maffei (¥ 1755). Mas foi B. Borghesi (t 1860) quem fixou suas regras essenciais. A Academia de Berlim inicion a publicagao de coletineas gerais de inscrigdes no século XIX: inscrigoes gregas a partir de 1828, inscrigoes latinas a partir de 1863. Os tratados de epigrafia de S. Reinach (1855) e de R. Cagnat (1886) marcaram época no avango desses estudos. Infelizmente as transcrigies do Corpus niio foram fac-similadas e, por consequéncia, néo sio facilmente utilizaveis pela paleogratia e fundadores da paleografia foram dois bene- ditinos franceses da congregacio de Saint-Maur: Jean, Mabillon (+ 1707), para a paleografia latina, em seu De re diplomatica (1861); Bernard de Montfaticon (t 1741), para a paleografia grega, com seu Palaco- graphia graeca (1708). A doutrina foi estabelecida por dom Tassin e dom Toustain em seu Nouveau iraité diplomatique (1760-1765). Mas os estudos pa leogréficos avangaram sobretudo na segunda metade do século XIX, com a criagdo em Paris, em 1821, da Escola de Chartres e com o ensino especializado em Viena (1854), em Florenca (1857), em Roma, em a Heildelberg e nas grandes universidades e gragas & possibilidade de reprodugao fotogriifica dos documen- tos, Esses progressos foram balizados pelos trabalhos pelos manuais, impossivel cité-los todos aqui por seus titulos, de N. de Wuilly, L. Deslile, W. Watten- bach, L. Traube, C. Paoli, M. Prou, E. M. Thompson «, mais recentemente, de E. A. Lowe, G. Batteli, J. ‘Mallon, Ch. Samaran e R. Marichal. Contudo, pode- ‘mos lamentar que a paleografia grega e a paleografia latina tenbam sido mantidas a grande distancia uma da outra desde sua fundacdo. Veremos, enfim, que os ‘quadros ¢ as nogies tradicionais da paleografia latina, estabelecidos pelos beneditinos, so questionados pela escola paleogedfica francesa, O ensino da paleogratia continua a ser feito na Franga pela Escola Nacional de Chartres, mas também é dado na Ecole Pratique des Hautes Etudes e nas universidades, A hist6ria da escrita tem um campo imenso e muito variado. Quem poderia se gahar de canheci-la ‘ow mesmo de poder percorré-la toda? Ela se espe Tiza em miitiplos cantoes que limitam com outros disciplinas que suas descobertas quase sempre contribuiram para promover: a assiriologia, a egip- tologia, a sinologia, 0 indianismo, o americanismo, ‘0s estudos semiticos e drabes, os estudos antigos ¢ medievais. Mas ela também solicita a colaboragio_ da flologia, da etnologia, da psicologia e da historia e serve, por sua vez, a cada uma dessas ciéneias. A escrita, fundamento da civilizacao, esti no funda- ‘mento das ciéncias humanas. 8 cAPiruLo it AS ESCRITAS NAO ALFABETICAS A escrita sumero-acddica Acscrita cuneiforme, inventada pelos sumé- rios, é 0 mais antigo sistema de escrita que conhe- cemos atualmente por meio de documentos. O termo “cuneiforme”, que significa em forma de “cunha”, caracteriza seu aspecto exterior anguloso. Seus si- nais, impressos, mais que tragados, nas tabuletas de argila com um junco cortado obliquamente segurado com a mio fechada, mais raramente gravados sobre pedra, se apresentam, com efeito, ordinariamente sob a forma de combinagbes de pregos triangula- res, Depois de ter servido de notagao & lingua dos sumérios que viviam na Mesopotamia nos milénios IV ec IIL antes de nossa era, essa escrita se propagou em toda a Asia anterior, onde se tornou 0 meio de expressao de linguas diversas. Os sumérios nao eram autéctones na Babilo- nia, Mas o problema de sua origem permanece sem solugéo: China, Asia Central, Turquestio, india, Céticaso? Sua lingua ainda é mal conhecida 29 também, Ela nem pertence ao grupo indo-europeu, nem ao grupo semitico. Era uma lingua de tipo aglutinante, que compreendia muitos elementos monossilébicos, que podiam se aglomerar ou igual- mente servir de sufixo e de afixo, Vérias palavras exam homéfonas, isto é, pronunciadas da mesma ‘maneira, mesmo tendo sentidos diferentes. Geral- mente se pensa que a notacio dessa lingua coincidiu. com a chegada do povo A Mesopotimia, Alguns cientistas levantaram a hipétese da ori gem comum das escritas do mundo antigo: sumério, protoelamita, egipcio, protoindiano, chinés. Outros tentaram descobrir num “protossumeério pictogra co” o ancestral de todas as escritas. Nao hé duivida, porém, de que hi entre elas algumas semelhangas internas. Sio todas escritas analiticas, “escritas de palavras”. F possfvel que elas tenham saido de uma ‘mesma ideia; mas, do ponto de vista da forma, é mais provavel que cada centro de civilizacdo tena reali- zado a ideia dessa escrita por seus préprios meios: a Suméria inventou o sumério, Elam, sua escrita, 0 Egito € a China, a deles. A arqueologia distingue no quarto milénio trés periodos que correspondem as civilizagdes dos sitios ‘mais tipicos: El'Obeid (a antiga Ur), Warka (Uruk), dividida em quatro niveis, Djemdet Nasr (Kish). Os primeiros documentos escritos pertencem ao nivel inferior de Uruk, chamado Warka IV, datdvel por volta do meio do milénio. Na realidade, a escrita em tabuletas de peda de argila dessa longinqua e primei. 30 1a era suméria nao era ainda cuneiforme; ela esté no estigio semipictogedico em que quase se reconhece nos sinais o objeto representado, Foi progressivamen: te, no decorrer de um longo perfodo milenar, que a escrita suméria cvoluiu para se tornar verdadeira- ‘mente cuneiforme por seu aspecto exterior e meio analitico, meio fonética por seu mecanismo interno. A passagem dos sinais pictogréficos de Warka para os caracteres cuneiformes do meio do tercei- 10 milénio, que j4 ndo apresenta quase nenhuma relagio com seus modelos antigos, explica-se mui to bem por razbes materiais. Para escrever mais rapido, os escribas inicialmente substituiram os dois instrumentos, calamo pata os tragos, cunha arredondada para algumas marcas, cujo emprego é demonstrado pelas tabuletas arcaicas, apenas pelo junco cortado obliquamente que det: desenhos de tragos mais pronunciados. Quanto a0 mais, para obter, na argila, com um instrumento de borda obliqua, sinais hem profundamente desenhados € de bordas nitidas resistentes ao cozimento, foi , pela experiéncia, evitar as curvas e, consequentemente, reduzir a grafia a um conjunto de linhas quebradas, Por fim, uma mudanga de orientagao na posigdo das tabuletas impulsionou decisivamente essa transformacao, Manter a mio obliquamente nas primeiras tabuletas de dimensio reduzida permitit, com efeito, 0 tragado vertical dos objetos ¢ favorecen sua disposi¢do em colunas, de alto a baixo. Mas, com as tabuletas maiores que 31 soa concisn Da os escribas tiveram de por diante de si, inclinadas em Angulo reto, 0 desenho dos sinais tornou-se horizontal, ¢ a escrita em linha da esquerda para a dircita: mudanga que tornou irreconheeiveis 08 pivligLalus primilivos e disposigi mais apta que a precedente & impressio na matéria plistica de caracteres em forma de pregos e de cunhas. A.evolueio interna da escrita suméria durante © mesmo milénio corresponden a necessidade de notar a Iingua sem multiplicar desmesuradamente o mimero de sinais correspondentes as palavras. A utilizagdo do gunu (tracos suplementares reforgando a ideia expressa por um sinal: por exemplo, quatro pequenos tragos arescentados ao desenho da palavra hhomem the dio o sentido de rei) forneceu um meio. > € pK tr montana crave Outro procedimento foi o do agregado l6gico (justaposiedo de dois sinais que exprimiam uma 32 ideia nova: por exemplo, mulher e montanka, jus- tapostos, dao o sentido de escravo). Os sumérios inventaram também o sistema de determinativos (sinais no pronuneiados postos diante das pala- vras, indicando a categoria a que elas pertencem e, consequentemente, completando sua significagio propria: por exemplo, o mesmo sinal do arado, precedido do determinativo homem, significa 0 la- vrador,e precedido do determinativo madeira, 0 préprio instrumento de arar) Por fim, a existéncia de palavras homéfonas Viabilizou o procedimento do tébus, ou seja, a escrita de palavras novas pela justaposicao de sinais dos quais 86 se conhece o valor fonético. e insistimos ¢ demoramos um pouco nessa dupla evolugdo e nesses procedimentos, é porque eles exemplificam bem o processo geral de fixacio da linguagem na fase de transigdo entre o sistema analitico ¢ o sistema fonético e porque constituem um exemplo conereto, de uma época bem remota, da influéncia dos materiais, os instrumentos e dos habitos dos escribas sobre a vida das formas grificas. 3 lis, veremos que outras escritas analiticas, espe- cialmente a chinesa, empregaram para facilitar sua leitura procedimentos internos andlogos, ‘Acescrita sumeéria, jé dificil, foi tomada de em- préstimo ei eadus do texceico milénio por outro ovo que época vivia na Mesopotémia, 0s acédicos, para notar sua prépria lingua, que era uma lingua semitica. Os sinais permaneceram mais ou menos como eram, mas a complicagao do sistema tornots extrema, pois os mesmos sinais guardaram ao mes: ‘mo tempo seu valor ideogréfico e seu valor fonético nas dus linguas. Apesar de suas dificuldades, a escrita sumero- -acddica assim constitufda teve uma grande difusio em todo o mundo oriental antigo, por ter sido veicu ada pela civilizagio e pelas conquistas das dinastias babildnicas ¢ assirias, Os grandes perfodos de sua longa historia foram o da primeira dinastia babil6ni- ca (séculos XX-XVIIT aC.) coda dominagao assiria (séculos IX-VM a.C). A era de Hammurabi, no inicio do segundo milénio, foi a idade de ouro da literatura em lingua acddica e da escrita sumero-acddica cuneiforme. Mithares de tabuletas nos foram transmitidas com textos referentes & vida social, religiosa e econémica, e € sobretudo conhecido o pilar que traz.0 “eédigo” do grande rei de Babilénia. As ricas bibliotecas dos reis da Assiria, sobretudo a de Ninive, também re: velaram quantidades de tabuletas ¢ de inscrigdes em colunas e prismas. Babilénios e assfrios utilizavam 34 vocabulirios que davam a ista de earacteres sumero- -acadicos ¢ seus valores. A escrita sumero-acddica tornou-se no segundo milénio a eserita da diploma- cia internacional. Por isso encontramos em Tell-el -Amarna, no Bgito, a correspondéncia dos farads com os reis da Babilénia, da Assiria, dos hititas, ¢ até mesmo com funciondrios egipcios, tragada em jemdet | Cunetforme | Ceneitrme Nive | peimitiee | claico owe | CE 2 Ber TE one | OD PB BR & ale 9 4 4) ~ | g RT « |S D D ek Waska FIG, 4 EVOLUGKO DA ESCRITA CUNEIFORME. caracteres cuneiformes acddicos (1405-1352). Masa conquista persa levow essa escrita a perder hegemo- nia, Apesar disso, seu uso se manteve na Babilonia até 0 século I de nossa era. Os modelos de escrita sumcro-acddiea que encontramos no quadro acima pertencem aos dois, ‘momentos mais caracteristicos de sua evolticao Erdfica: 0 estdgio cuneiforme primitivo da época das dinastias de Lagash em meados do terceiro milénio © o estdgio cuneiforme clissico assirio do tempo de Assurbanipal (668-626) Oscaracteres sumero-acsidicos, por vezes ligei- ramente modificados, também foram adotados por varios povos da Asia anterior antiga para escrever suas linguas: elamita, o hurrita, o urarteu, o hitita. ‘Uma escrita protoelamita, datada da primeira metade do terceiro milénio, foi revelada por algumas inserigdes da regido de Susa. Os elamitas, assim co- ‘mo os sumérios, nao eram nem indo-europeus nem semitas. Alguns sinais de sua escrita primitiva esto muito préximos da escrita pictogrfica suméria; mas € impossivel provar seu parentesco. Sé na segunda metade do terceiro milénio esse povo abandonou sua escrita indigena para adaptar A sua lingua os caracteres sumero-acddicos. Na sequéncia, essa es- crita cuneiforme neoelamita se simplificou muito, evoluindo para o silabismo. A lingua hurrita do pais de Mitani, na curva do Eufrates, ¢ a lingua do pais de Urartu, ambas ainda do tipo aghutinante, foram notadas em caracteres 36 cuneiformes acédicos respectivamente por volta dos gculos XV e IX aC. No centro da Asia Menor, as mais antigas ta- buletas do século XV, encontradas em Bogazkeui, trazcm também textos em lingua nio indo-europeia, notada com sinais sumero-acddicos. Mas outras, tabuletas posteriores esto escritas em uma lingua diferente, o hitita, com os mesmos caracteres. Ora, 0s hititas eram invasores indo-europeus. Portanto, depois de ter servido para fixar linguas “asianicas” € semiticas, os caracteres cuneiformes revestiram ‘uma Kagua préxima ao grego e ao latim. Veremos adiante que duas outras eseritas, a persepolitana e a ugaritica, também eram cuneifor- mes no aspecto e na téenica, mas com um mecanismo de notacio completamente diverso do mecanismo da escrita sumero-acédica, A escrita egipeia A escrita egipeia foi também um dos mais importantes sistemas de escrita do mundo antigo. Sob sua forma mais caracteristica ¢ mais antiga, é chamada escrita hieroglifica. Os hierdglifos eram sinais sagrados gravados (do grego hieros, “sagrado”, cglyphein, “gravar”) que os egipcios consideravam sera fala dos deuses, Assim como a sumero-acéidica, essa era uma escrita de palavras. Por eserita sumero-acsidica, ela conservou o uso de sinais n, mais que a 37 simbéticos falantes e vivos. Contudo, a lingua que cla notava, aparentada ao grupo semitico, favorecey, pelo comprimento telativo de suas palavras, sta de- composicio em elementos fonéticos. Seu emprego, em contraste com a difusdo dos caracteres cunci formes, ficou limitado a lingua eas regides egipcias. Os mais antigos monumentos da escrita egipeia, as tabuletas de Ah@, o primero rei da dinastia tinita, datam do inicio do terceiro milénio a.C. Inicialmente © sistema aparece ali completamente constituido por caractetes empregados seja como ideogramas, seja como simbolos fonéticos. A partir da terceita dinastia, a escrita hieroghfica alcancou sua perfeigio espetacular e desde entao praticamente nao variou até o fim de sua utilizagao no século TI &.C. Essa aparigao da escrita coincide com a unificagdio do Egito por volta de 2900 aC. En- tretanto, observamos em pinturas do periodo pré-dindstico tentativas rudimentares de notagao figurada, compardveis as escritas sintéticas dos in dios e dos esquimés. Mas a passagem desse estigio para o sistema hieroglifico supde longas etapas que nos escapam por completo. Na questao das origens, duas teses se enfrentam: ou a escrita hieroglifica surgi por evolugao natural dos primeiros eshocos, pré-hist6ricos locais, ou foi criada em bloco, por imitacio de um modelo estrangeiro, importado desde fora. Mas na verdade essas teses no parecem inconcilidveis: se 0 Bgito pré-dindstico conheceu rudimentos de escrita simbélica, a evolugao desses 38 rudimentos para a escrita propria mente dita pode ter sido “precipitada” por alguma influéncia exter- na na era da primeira dinastia Os hieréglifos geralmente sao gravados em pedra, Mas hii caracteres, chanuadus de iex6lifos lineares, pintados a tinta em sare6fagos de madeira ou em papiro, eujo tracado foi simplificado. Os sinais sio dispostos tanto de alto a baixo como horizontal- mente, bem como tanto da esquerda para a direita como da direita para a esquerda. As figuras normal- ‘mente estilo viradas para 0 comeco da linha. © aspecto exterior da escrita hicroglifica, muito préximo do desenho, the dé um cardter basicamente decorativo, As sillhuetas humanes € animais e 0s contornos estilizados de plantas e de objetos de suas inscrigées oferecem rica matéria para a histéria da civilizacio e sio mais evocado- res que os simbolos abstratos dos sumérios ¢ dos chineses. Apesar das aparéncias, 0 mecanismo interno do sistema era muito complicado, pois os sinais, como na escrita sumero-acédica, exprimiam ora uma palavra, ora um sot. Om vat monntn a ‘\ 03 Fig.8—HieRécuiros 39 Os ideogramas que representam coisas con- cretas (sol, montanha, égua), agdes (comer, ir, combater) ou abstragées (0 Sul, a velhice) foram vigorosamente defendidos contra a decomposi¢ao em elementos fonéticos e perma hase do sistema fe 1 FIG. 6 — DETERMINATIVO EM EGIPCIO CLASSICO Os egipeios também fizeram amplo uso de determinativos postos depois das palavras; eles se destinavam a definir o sentido dos ideogramas ou a concretizar 0 sentido das palavras escritas, foneticamente (por exemplo, o “cartucho” oval em toro de um nome indica um nome de rei, ou até mesmo 0 determinative casa acrescentado palavea escrita foneticamente j-« ¢ dé o sentido de paldcio, enquanto o determinative homem acrescido a esta mesma palavra dé o sentido de grupo de trabalhadores). Bssa notagio fonética foi também alcangada pelo procedimento de rébus; mas 86 conservou das palavras seu “esqueleto” de consoantes. Por intermédio das palavras de uma sflaba, a escrita egipeia chegou também & notagao das consoantes isoladas. Ela poderia, desse ponto, ter passado ao sistema alfabético, mas, contida pela formula ideogratica, nfo soube conceber claramen- te esse progresso. 40 j TT —T 77... 4 Blab ee |B | etme | FA fas] maine | @ fa) dio | pare | ime fae ae | |e | os | mance Dd Lo | coterie | ly je wera | ble} » | Ir oa | aca jae | me fale | neo | Jc | f | vtorscornads | we) & | om | | iB eens i’ ee lua | J pom | x ova = yet lel, ince =| a| nto ; ha errcado | “QI ¢| ree | Ao lado dessa escrita monumental, os egipeios cempregaram, também desde a primeira dinastia, uma eserita de desenho maislivre e mais rapido para seus 1usos cotidianos, a escrita chamada de hierética (do firego hieratikos, “sagrado”), assim chamada porque la veio a ser sobretudo a escrita dos saverdotes em ‘uma época mais recente, na qual acabou por ceder ugar a escrita demética. Hla era tracada em folhas de papiro, com uma haste de junco flexivel, a nan- a isdnia concen om escnirs quim, orientada da direita para a esquerda. Os sinais, hierdticos derivam diretamente dos hieréglifos, por simplificagao do desenho e pela acentuagao de al- guns detalhes caracteristicos. Seu uso se perpetuou até 0 século IIT dC. PR le Glo 4» 43 3- FIG. 8 — SINAIS HIERATICOS € DEMBTICOS Por suave fa cserita demética (do grego demos “o povo”) se constititit no inicio do primeiro milénio a.C., a partir da escrita hierdtica, Seu sistema é 0 mesmo usado pela escrita hieroglifica, mas sua grafia simplificada para se obter rapidez e suas ligaduras juntando entre si os sinais tornam sua leitura mais dificil, Na época ptolemaica (333-30 a.C.), o demotico tomou-se a escrita da literatura e da administracao (ainserigao da Roseta traz, lembremos, uma de suas tués verses em demiético). Mesmo que o alfabeto tego também tenha sido usado para notar a lingua egipcia, o demético se manteve até o fim do século V. 2 As escritas “hitita” hicroglifica, protoindiana ¢ cretense Simultaneamente & escrita cuneiforme su- mezo-ucdidica, vulsa eserita foi utilizada no império hitita da Asia Menor e da Siria do Norte, do século XVII ao século VIII. O primeiro nome que ela recebeu, hitita hieroglifico, nao € absolutamente exato, Com efeito, seus sinais sio muito distintos dos hieréglifos egipcios e a lingua que eles notam, ‘mesmo que estreitamente aparentada ao hitita e, como ele, a0 indo-europeu, nao é a mesma das in crighes hititas cuneiformes. Mas 0 uso consagrou essa denominagdo. IG, 9 — HIEROGLIFOS “HITITAS 0 aa rei deus pats ey a A maior parte dessas inscrigdes “hititas” so entalhadas em relevo ou gravadas na pedra. A diregao de sua escrita € geralmente bustrofédica, isto ¢, alternando da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, ao modo de um lavrador tragando sulcos. O sistema era semi-ideografico, semifonético, como o das grandes escritas vizinhas, sumero-acédica ¢ egipcia. Os ideogramas “hititas” 48 so, por sinal, muito mais numerosos que os sinais sildbicos. Mas, se o aspecto pitoreseo dos primeiros as vezes torna seu sentido transparcme, 0 valor do silabar demorou a ser adquirido. O selo bilingue, em prata, de Tarkumuva, rei do pais de Mera, com inscrigao cuneiform ¢ hiero- lifca, extraviou por muito tempo os decifradotes que, equivocadamente, aproximaram durante muito tempo a forma acidica do nome do rei ao grego ‘Tarkondémos, As mais belas inscrigdes “hititas” hieroglificas foram atualizadas em Karkemish, Além do tipo monumental, essa escrita tinha também um, tipo simplificado, atestado pelas tabuletas de chumbo encontradasem Assur. A descoberta, em Karatepe, na Cilicia, de textos bilingues fenicios chititas levou a decifracdo a sua fase definitiva. s eseavagoes de Mohanjo-Daro ¢ de Harappe no vale do Hindo, ediversos vestigios na Sindh reve- laram a existéncia de uma civilizagdo protoindiana que se desenvolveu paralelamente as civilizages babilonias e egipcias, por volta de meados do tercei- ro milénio antes de nossa era, A mais importante descoberta foi a de numerosos selos ou amuletos de esteatita ou de cobre, decorados com pequenos relevos artisticos, portando, em sua grande maio- ria, inscrigées. ‘A forma dos caracteres dessas inscrigdes in- dica uma escrita analitica. Os sinais representam, sudemente, personagens, partes do corpo humano, 4 f 2 ¥ homem — pie amulewo YA animais, vegetais e objetos. Parece, contudo, que ela também atingiu: 0 estigio fontico. (O problema da decifracao da escrita de Harappa se apresentou nas mais dificeis condigdes: um texto Dilingue, uma lingua tio desconhecida quanto os préprios caracteres. Aproximagies com a escrita indiana brahmi ou as inscrigdes da ilha de Péscoa e tentativas de interpretagao pelo sanscrito ou pelo dravidiano moderno também resultaram em nada, O estudioso tcheco B. Hrozny, decifrador do hitita procurow resolver 0 problema pela comparagao com o “hitita” hieroglifico e propos uma decifragio que conclui por uma escrita parcialmente silabica, expressio de um dialeto indo-europeu, (© problema da eserita cretense nao € despro vido de analogia com o que precede: problema duplamente desconhecido, nos sinais ¢ na lingua, cuja solugao é tanto mais lancinante quando se sabe, pelas escavagdes de Cnossos e de outros sitios da itha, da originalidade dessa civilizago do mar Fgeu no terceiro milénio e no segundo milénio ¢ 5 consequentemente de suas estreilay relagoes com o continente helénico. E de fato A, Hivans, 0 descobri- dor de Cnossos, fez a distingio entre dimsespecies de escrita cretense: uma escrita hieroglifica, cimpregada any periudo dity mninvicu médio (mais ou menos en tre 2100 ¢ 1580), ¢ uma escrita linear, cmpregada sobretudo no minoico recente (1650.0 1200 a.C.). Os hierdglifos cretenses, arcnicos ou recen: tes (tipos a e n) s6 sao encontriveis gravados em pequenos sinetes em pedra dura ou entalhados em objetos de argila, Seu desenho 6 de grande no- vidade, soja na figuragao de sores vives ou na das coisas. Os sinais lineares, antigos ou recentes (ti- pos 4 ¢8), surgem principalmente em tabuletas ou mesmo em objetos que se encontram nao apenas na itha, mas nas Cicladas e na propria Grécia, Parece até que esses diversos tipos de escrita representam trés ou quatro estagios de uma mesma evolugao grdfica e igualmente uma evolugio interna, visto que o mimero de sinais foi diminuindo constan temente com o tempo. Foram feitas varias tentativas de deciftagio, umas buscando explicar as inscrigées em escrita cretense como provenientes da Grécia pelo grego, outras buscando interpretar essa escrita com 0 auxilio da escrita de Chipre do primeiro milénio, que realmente apresenta semelhangas com ela. Conseguiu-se isolar sinais de numeragio, reco- nhecer facilmente determinados ideogtamas, mas houve dificuldade para descobrir o valor de outros 46 OF sinais, Com efeito, que lingua se esconde por trés dessa escrita? Hé quem diga que ela nao é nem indo-

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