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we (S75 Instituto Sao Tomas de Aquino N° 22 - 2009 - Ano XIV CADERNOS Estudos sobre Sao Paulo José Augusto Ramos * José Tolentino Mendonga Jorge Leandro Rosa + José Augusto Mourdo * Carlos Morujéo Francolino Gongalves * Juan Francisco Ambrésio Mateus Cardoso Peres * José Manuel Valente da Silva Nunes CADERNOS (§¥3 EsTuDOs SOBRE SAO PAULO 1 - CONFERENCIAS SOBRE SAO PAULO auto oF Tanso: um MUNDO CoM 2000 ANOS 7 José Augusto M, Ramos ese 4 cata 40s RoMAnos? an dose Tolentino Mendonga auto EA TENSAD MESSIANIC Groncio Acide € 0 COMENTARIO COND Ho NUN KAROS 45 Jorge Leondro Rosa Arscum 90 outro {en Toso be “Paulo EATeNsio MESSANICA” OF JORGE LeaNDRO Rost) 61 José Augusto Mourdo I - SEMANA DEVERAO DETEOLOGIA (0 rseuD0-PROREMA D0 ATEISMO NO FENSAMENTO CONTEMPORANEO! 10s eMESTRES DA SUSPeTTA® 2B Carlos Morujéo lavt, Divs be 1UsTI¢a€ DE BeNGKO, DEUS DF AMOR E DE SAIVACAO 107 Francolino J. Goncalves Jesus ~ Um Dus orenenre ‘A pRO-tisTORIA€ © COMPROMESO COM A HistORIA 153 Juan Francisco Ambrésio A mont, Deus € 05 Cnsthos 183 ‘Mateus Cardoso Peres, op ResronsaBiLIOADE DAs RELGIOKS NO ANTI-Tessio ACTUAL (€ noD0s DF OsvPeRAR) 207 José Manuel Valente da Silva Nunes #22 - 2009 - Avo XIV 579 - Instituto Séo Tomas de Aquino Ordem dos Pregadores - Portugal Impressio: _Indugréfica, Lda. - Fatima Depésito legal: 101412/96 ISSN: 0873-4585 Direccao: fr. José A. Mourdo, op Pedidos para: Caoennos CST, Convento de S. Domingos Rua Jogo de Fretas Branco, n° 12 1500-359 Lisboa PORTUGAL E-mail: ista@dominicanos.com pt TTelefone: 210322300 Fax: 217273707 hittp:/wwunu.dorninicanos.com.pt ‘Namero avulso: 8 € Assinatura anual: 15 € EDITORIAL “On rlappelle pes Dieu par son nom, on lappelle dans un nom, cet cela peut étre du coup dans n’importe quel nom, cest ce que Yon ‘nomme lamour’. Y. Bonnefoy “Why are the rrost unlikely people, including myself, suddenly talking about God?” Terry Eagleton ‘Os humanos so méquinas de fabricar deuses. E de Deus tém- se dito as coisas mais desencontradas. Até biografias Lhe fizeram (Jack Miles, God: a biographiy, 1995). Estamos todos embarcados, J trabalhados pele religioso, como somos pelo social-hist6rico, ‘mesmo quando fazemos a sua critica ou pretendemos fazer a sua demistiticagao. Richard Dawkins, no The God Delusion (2006), diz- ros que as ideias religiosas so irracionais, absurdas, patolégicas, {que se espalham como um virus que infecta os cérebros que ataca, que pululam como parasitas e por af fora. Contra Richard Dawkins, (© muito respeitade critico britanico Terry Eagleton escreveu Fath, Reason and Revolution (2009). Pascal Boyer no seu Et homme créa les dieux (2001) néo é menos irénico: a Igreja teria perdido todas as batalhas e de mode definitive. Danie! Dennet, em Breaking the Spel! Religion as a Natural Phenomenon (2006), néo faz sendo naturalizar a religido. Nietesche ao menos resumia a esséncia do cristianismo numa férmula: “Deus morreu. E fomos nés que o matémos”. Deus néo ¢ isto ou aquilo, nem afirmagéo nem negagéo, nem mesmo “Deus", segundo Gregério Palamas. Para os te6logos russos, © Pai Pantocrator vela ou deriva seu poder patético ¢ deixa-se celebrar como um “Deus-humanidade” ou um “Deus-universo” (Soloviev).Af6 ortedoxa evacua Deusda realidade humana, Unificado ‘com 0 homem e impensével por ele, Deus nao morreu mas implode no homem; o homem que participa na divindade inconhecivel é lum microteos e um microcosmos inconceptualizével e insondével. 8 Os conceitos criam fdolos de Deus, s6 a emogéo forte e repentina, a surpresa pressentem alguma coisa , dizia Gregério de Nissa. A apofase é 0 cimulo desta teologia negativa que nega a limitagéo conceptual de Deus: nem valor nem conceito, nem representacéo, Deus ¢ o inacessivel, 0 mistétio sem fundo, inobjectivavel. Levard esta inefabilidade ao nilismo? “Deus morreu, tudo € permitido”, clama o nilista de Dostoievski. Nao é porque Deus irrepresentavel, inconcebivel que tudo € permitido na ordem da representacéo? Em Agostinho, o acontecer revoluciondrio ocorre através do pro- cesso de humanizacio de Deus. O deus absolutamente transcendente teria decidido ha dois mil anos imiscuir-se no mundo, mais do que antes o fizera. A Historia Universal aparece, entéo, como a histéria das contra-revolugdes do homem contra a revolugéo de Deus. No oriente, a Histéria seria a contra-revolugéo dos homens ligados ao Ser contra a tevolugéo do Nada perpetrada pelo budismo. Uma outra concepcao do humano esté a constituirse com a contribuigo dessas novas Humanities em que a transcendéncia é imanéncia. “Porque deus é uma pura abstraccéo, nem eu sei como existe, nem onde existe, o que é, que atributos tem... e é uma palavra de tal modo conotada de sentidos estranhos, que se torna uma palavra destruida. Para mim, deus é uma palavra destrufda, j& no existe (Maria Gabriela [lansol) E possivel falar de Deus sem que o Nome seja infectado pela peste do positivo (e de alguma teologial? (0s autores dos textos que este Caderno traz & luz expéem, cada um a seu modo, que percursos seguir para que o Nome permaneca. © ano “Paulino” mereceu também uma atengdo cuidada por parte do ISTA. A prova so os textos que constam deste ntimero. 'Néo ha conhecimento sem discordancia. Nem s6 do conhecimento “amativo” precisamos. Para tal, nos servem de quia os autores que ‘aqui verteram os seus textos. Boa leitura! José Augusto Mourdo, op CONFERENCIAS SOBRE SAO PAULO PAULO DE TARSO: UM MUNDO COM 2000 ANOS José Augusto M. Ramos Centro de Hist6ria da Universidade de Lisboa E intengdo deste texto esbocar algumas consideragdes sobre as coordenadas do mundo habitado pela imagem de Paulo hé 2000 anos; foi planificado no contexto de uma das sess6es de celebracéo do {ano Paulino organizadas pelo ISTA, nomeadamente aquela em que se procurava revisitar a geografia cultural de Paulo. Esta participacao pretendia servir de complemento & conferéncia principal do dia, pronunciada pelo Prof. Joaquim Carreira das Neves. Na medida do ppossivel, agora sem ofrentea frente que o didlogo proporciona, o texto ‘mantém essa mesma perspectiva; ele incide, por conseguinte, mais sobre as dimensées do contexto cultural com que aquele mundo se definia, Tudo isto, entretanto, faz parte integrante e decisiva da mais subtilinterioridade de Paulo, suscitando e recheando os sentimentos e motivando as atitudes que informam a sua acco. ‘A amplidéo do espago, dos acontecimentos dos significado implicados neste mundo fazem com que a sintese que é possivel aqui fazer consista em recolher algumas coordenadas mais significativas necessariamente amplas, sem investir em notas complementares de acompanhamento. O que aqui se sintetiza so linhas de reflexéo em profundidade. Parece mais consentaneo que estas sejam assim apresentadas, sem recurso directo a autoridades bibliogréficas, como uma meméria de muitos percursos e anos de contacto, sobretudo em trabalho colectivo de tradugéo. Tentaremos transpor todos os aspectos harménicos pertinentes para o interior da prépria sintese que aqui se expée. ‘Alguma bibliografia apontada ao final é testemunho de alguns passos de releitura para esta sintese, A restante poderé ajudar 7 CADERNOS gt iqualmente os leitores a caminhar mais e a chegarem mais além. Ela € propositadamente matizada, variando da fundamentacéo historiografice até outros diversos matizes pertinentes de leitura. 1. O reves: CULTURA £ GEOGRARA (© mundo de Paulo de Tarso, para o qual temos a oportunidade € 0 privilégio de agora voltar o olhar é, evidentemente, um espago. geografico bem especifico. E incontornavel que assim seja. Porém, niéo € preciso que tenhamos de considerar o horizonte fisico da sua geografia como 0 factor mais decisivo, Sao sobretudo os contornos reais da geografia humana, espelhando o estado politico, social e cultural dos seus contemporaneos. Estamos, de qualquer modo, confrontados com uma geografia envolvida pela cumplicidade com uma historia original e tnica e que deixou profundas repercussées na nossa historia e na histéria geral dos humanos. Este mundo é aquele que se encontra situado junto a0 litoral norte do Mediterraneo central e oriental. Naquela altura, cera esse 0 mundo que representava a civilizagao. O centro de onde emanava 0 dinamismo para essa civilizagéo poderia ser definido de variadas maneiras, consoante o aspecto que se escolheste e também conforme a lucidez com que se pudesse contar. Aquele mundo dispunha de varias centralidades. © seu centro politico situava-se, entéo, em Roma e era daf que decorriam as directivas que, em boa parte, condicionavam a vida real e social nas mais vatiadas regibes. Era o tempo de um impéri romano jé claramente implantado e que, com maior ou menot boa ‘vontade e nivel de adeséo, era aceite pelos mais variados povos. O tempo de enraizamento e de aceitacéo da presenca e da lideranga politica dos romanos conhecia, de facto, niveis diferentes, consoante © lugar onde se estivesse. Algumas cas situac6es politico-sociais de maior sensibilidade, sob este ponto de vista, situavam-se precisamente na franja oriental do império. A provincia da Asia, em grande parte coincidente com © actual terttirio da Turquia, encontrava-se integrada no império ‘yomano havia jé bastante tempo e tinha caido nos tragos desse império sem grande esforco de conquista. O estatuto estratégico de Paulo de Tarso: Um Mundo com 2000 anos - José Augusto M. Ramos Ee————————re_—e—c—vv que Roma jé gozava foi suficiente. As populagées da Asia estavam, ro entanto, culturalmente habituadas a sentimentos de autonomia {que as tornavam, por vezes, dificeis de manter numa atitude ordeira de fidelidade para com o poder imperial No litoral oriental, aquele onde Paulo teve as suas rafees, era ainda menos segura a presenga politica de Roma. Tratava-se, com feito, de civilizacdes muito antigas e muito personalizadas do ponto de vista cultural. A filosofia de vida, que desenhava as suas culturas, assentavaem coordenadas quenéo coincidiam tao generalizadamente ‘com aquelas em que assentava o mundo ocidental, que o império representava, Aquele mundo palestinense, que erahabitado sobretudo ppelos judeus, a0 mesmo tempo que apreciava alguns progressos da civilizagdo romana e admirava os romanos pela eficacia com que conseguiam governar o mundo, mostrava-se muito reticente, quando os novos modos da politica colidiam com alguns principios escenciais da sua cultura. O choque com 0s ideais rligiosos mostrou- se particularmente melindroso, mesmo sem tomar em consideragéo as reacges motivadas por mentalidades mais conservadoras. Esta pedra de toque haveria de conduzir, j& depois da morte de Paulo, a algumas guerras que se revelaram verdadeiramente catastr6ficas para os judeus, em 70 e em 135 d. C. O desfecho final foi, em ambas as daias referidas, a trégica destruigao da cidade de Jerusalém. E, quando morre uma cidade, morre muita gente, por arrastamento dos acontecimentos, ¢ morrem, em grande parte também, os sonhos de todos aqueles que conseguiram sobreviver & rutna da cidade, menina dos seus olhos. (Os principios com que se governava este mundo, jé os judeus os conheciam e se tinham anteriormente confrontado com eles, numa altura em que esse programa politico era personificado por poderes de base social grega, com capital mais a oriente, em Antioquia da Sitia, Eram os seléucidas, herdeiros gregos de uma parte oriental do império de Alexandre Magno. A passagem politica de Alexandre foi efémera, mas as suas consequéncias ainda hoje nao cessaram de produzir influéncias. Esta Antioquia viria a ser um dos pélos importantes nos inicios do percurso ctistéo de Paulo. CADERNOS (sty nascimento de Paulo foi certamente afectado por este estado de coisas. Que ele tenha nascido na Asia Menor, em Tarso, como é€ tradicional e bastante consensual pensar-se; ou tenha nascido na Palestina, como alguns indicios antigos poderiam também levar-nosa pensar, a vida de Paulo é marcada, é mesmo totalmente con pelas vicissitudes e virtualidades que este mundo oferecia Entretanto, néo sequer a geografia do seu mundo o factor que mais intensamente influenciou a vida de Paulo. Os contetidos € as vivencias culturais a que 0 seu tempo Ihe dew acesso € que Ihe ofereceram os ingredientes de vida, de pensamento e de accéo mais marcantes e decisivos. Paulo é, para todos os efeitos, um filho do século I da nossa era, mesmo que © s2u nascimento possa eventualmente ter ocorrido jé no outro século |, o anterior & nossa Simbolicamente, isto poderia levat-nos a ccntabilizar a dobrar 0 significado hist6rico desta fase verdadeiramente axial para a histéria, Aviragem poderia ter consistido apenas na mudanga quanto. aomodo de organizar um calendério tendencialmente universal. 0 facto é que, com a designagao de século I, acabamos por englobar realmente dois séculos, Mais do que constituir um jogo de palevras, esta habilidade pode servir-nos para sublinhar a densidade do processo cultural que se esta a desenvolver ao longo dos 200 anos implicados nesse dupio século I, Por muito que a vida de Paulo se possa limitar a cerca de sessenta ou setenta anos no centro deste longo espaco de tempo, todo este ambito temporal se revela bastante importante para Paulo, por tudo aquilo que o Apéstolo herdou como patriménio da sua €poca, por tudo 0 que foi chamado a viver e por todo o dinamismo que a sua acco incutiu no modo como decorreram os tempos que se eguiram a sua vida; dela derivaram em boa os caminhus que foram percorridos. A importancia do tempo de Paulo ¢ justificada também porque nna sua vida se encontram em convergéncia dois longos caminhos histéricos, dois mundos que se aproximavam do seu percurso final [No curto espago dos seus dias e enleado nas suas muitas andancas, vem efectivamente desaguar 0 antigo mundo das ci cléssicas. Estas preenchem a longa histbria das cvilizacées, que tinha jonada 10 Paulo de Tarso: Um Mundo com 2000 anos - josé Augusto M. Ramos nee —————eeeeoerr——_—vo comecado quase 4000 anos antes, desde a Suméria e a Babilénia, do lado mesopotamico, e desde o antigo Egipto, do lado nordeste africano. Com as mais recentes formas que 0 seu legado histérico tinha tomado, elas vinha, na altura, desaguar no grande mar que 6 era de Paulo, fervilhante de inquietacdes, de expeciativas e de tentativas de respostas novas. O P. Manuel Antunes, profundo conhecedor da cultura cléssica, apreciava particularmente as novas virtualidades desta época helenista. E néo 0 fatia somente por causa da injeccéo cultural proveniente do cristianismo e dos seus desenvolvimentos. O fervilhar de ideias com todas as procedéncias e apontando em todas as direcgdes levaram-no adeclarar, de forma categérica, que esta época representava a fase de maior riqueza de sincretismo que podemos até hoje testemunhar ao longo da histéria. Assim o afirma ele, na entrada sobre sincretismo que redigiu para a Enciclopédia Luso-brasileira de Cultura-Verbo. No entanto, esta ideia de sincretismo significava para fle, no uma mancha na pureza das doutrinas ou uma marca de relativismo e negligéncia na defesa da verdade, mas, sim, um sinal de

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