BERNARDO CARVALHO Qua
qualificados, portanto, pela co-presenca ¢ imediatez, 4 representacio
fiel dos fatos, t¢m a sua manipulacao desnudada), os livros de Bernardo
Carvalho lexicalizam essa desconfianga, embora o fagam de forma
tortuosamente irénica ao apropriarse, na ficco, de discursos migrantes de
outros registros supostamente comprometidos com o real: a reportagem
jornalistica, a investigac4o académica, a psicanilise, o didrio de viagem, 0
relato confessional autobiografico, a descricao do guia turistico. Por um
lado, a escrita ficcional desqualifica esses discursos, enquanto produtores
de verdade, criticando-os explicitamente pela voz do narrador ou através
da justaposicao de vozes conflitantes; por outro, porém, ao receber
e reproduzir no texto ficcional esses recursos, que se desautorizam
apenas obliquamente e se diluem numa efabulacdo propositadamente
complicada e até folhetinesca, cria uma espécie de armadilha para um
publico medianamente letrado, que procura cada vez mais se informar
através da leitura de revistas de opinido, viagens turisticas ecoldgicas €
culturais, reportagens diretas, buscas na internet. O resultado é que o
leitor sai de um livro desses com a sensacao de ter lido algo ‘inteligente’,
‘hicido’ e ‘moderno’ (ou ‘pés’); mas também com a incémoda sensacao
de ter perdido algo, que a escrita elusiva e 0 acémulo de informacio e de
intriga novelesca deformou ou ocultou. Essa tendéncia parece-me que se
cristaliza nos dois tiltimos romances, Nove Noitest e Mongglia,> nos quais
me detenho, portanto, para um exame mais minucioso.
Os dois textos espelham-se, em mais de um sentido. Por um lado, num e
noutro as posicées respectivas dos protagonistas invertem-se, em aparente
complementaridade: em Nove Noites, um antrop6logo americano vem ao
Brasil para estudar os indigenas brasileiros ‘na tentativa de explicar 0 com-
portamento pela insercao social e assim relativizar os conceitos de nor-
malidade e anormalidade no que diz respeito aos individuos’ (p. 17); em
Mongélia, acompanhamos os trajetos de dois brasileiros que percorrem as
estepes os desertos mongéis: o primeiro deles é fotdgrafo profissional,
contratado por uma revista de turismo para atravessar a Mongélia de
norte a sul; o segundo é um diplomata e sai em busca do primeiro, dado
como desaparecido. Nos dois casos, os olhares de visitante e visitado
cruzam-se enviesados (‘civilizado’ € ‘primitivo’, num caso, ‘ocidental’ e
‘oriental’, no outro), desconhecendo-se mutuamente. Assim, a primeira
vista, poderiamos dizer que esses romances focalizam, com consciéncia
critica, a sobrevivéncia da identidade irredutivel de certas culturas, numa
época em que a globalizacao é vendida como fator de progresso material
€ tecnolégico e de acesso ao bem-estar social. Mas isso seria tomar os
* Bemardo Carvalho, Nove Naites (Sao Paulo: Companhia das Letras, 2002). (Prémio Portugal
Telecom 2003) As citacdes seguintes, com a paginacio indicada no texto, referemse a esta
edigao.
5 Bernardo Carvalho, Mongitia (Sa0 Paulo: Companhia das Letras, 2003). (Prémio Jabuti
2004).