You are on page 1of 1
BERNARDO CARVALHO 213, ‘testamento’. O leitor, portanto, lé uma versdo dos acontecimentos a que nenhuma outra personagem do livro tem acesso. A narrativa que permite a existéncia do livro é a investigacdo realizada pelo jornalista (que a empreende por motivos pessoais e sem finalidade profissional). Os seus métodos sao semelhantes 4 académica, em sentido amplo. No entanto, ha uma diferenca entre a investigacio académica ea levada a cabo pelo narrador do romance: aquela resulta num texto terpretativo liso, do qual se elidem as etapas investigativas, as hipdteses equivocadas, os becos sem saida; a que lemos em Nove Noites, pelo contrario, explicita tudo isso. O que seguimos é 0 roteiro da derrota do conhecimento. A investigacio aparenta também formalmente o romance a outro género: os romances de mistério (também chamados ‘romances policiais’) can6nicos. Ao estilizar o percurso de uma investigacao policial (ou académica) , o romance contesta, porém, alguns pressupostos do discurso ‘racional’.7 O detetive canénico incarna uma figuracéo de Deus, nao no sentido antigo, isto é, por causa da sua perfeicdo ou do seu poder inexplicavel, mas porque decifra as figuras sem as ter compreendido e deduz delas, intelectualmente, todas as caracteristicas essenciai “Decifrar’ ‘intelectualmente’ parecem-me aqui palavras-chave, pois conferem As personagens estatuto de signos desconhecidos cujo cédigo esta a espera do seu Champollion. O narradorjornalista de Nove Noites, rejeitando a acessibilidade ou a prépria existéncia de tal cédigo, prefere deixar a decifracao final em aberto. A sua investigacao nao se resolve em elucidacao, nao leva a confissao de praxe dos romances de mistério, onde todas as incégnitas se esclarecem.? E no relato paralelo de Manoel Perna que se levantam algumas pistas sobre o suposto ‘mistério’ envolvendo o suicidio de Quain: ‘ele me disse que estava em busca de um ponto de vista. Eu Ihe perguntei: “Para olhar © qué?” Ele respondeu: “Um ponto de vista em que eu j4 nao esteja no campo de visio.” [. . ] As vezes me dava a impressao de que, a despeito de ter visto muitas coisas, ndo via o Sbvio, € por isso acreditava que os outros também nao o vissem, que pudesse se esconder. O que eu vi, nunca falei. [.. .] De certo modo, ele se matou para sumir do seu campo de visa, para deixar de se ver’ (pp. 111-12). O leitor perguntase intrigado por que o ctndlogo preferiria matarse a ver a ‘sua imagem mais verdadeira’ 7 Kracauer chama ratio racionalidade de categoria inferior que rege 0 universo dos romances policiais. cf. Siegfried Kracauer, Le roman policier: un traté philosophique (Paris: Payot, 1981), pp. 45 ff e Le roman policier, p. 81 ° cf. 0 pastiche do proce que tém come protago mento nos romances simpaticamente parddicos de Lawrence Block, tadetetive um ladraa: p. ex., The Burglar in the Library. cf, também Rracauer: "Prétre sécularisé, il confesse les crimninels, et personne d’autre n’apprendra cette confession (sinon le biographe de ses hauts faits); il devient le complice de secrets qu'il sait garder et qui pourtant ne sont pas sauvegardés chez lui’, Le roman policier, p. 82

You might also like