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214 YARA FRATESCHI VIEIRA (p. 117). Mais adiante, Manoel Perna relembra um episédio que Quain Ihe contara: numa noite de Carnaval no Rio levara para o seu quarto uma mulher negra ‘alta € vistosa’ e quando acordara no dia seguinte, encontrara ao seu lado na cama um negro forte e nu; e logo em seguida uma histéria que Ihe fora contada por um dos nativos da ilha do Pacifico onde estivera, de Gbvio teor homossexual. E Manoel Perna observa: ‘Ele se exprimia por denegacées’ (p. 128). Mesmo assim, Perna entende o que © etndlogo queria Ihe revelar e escreve ao amigo de Quain: ‘Nao sei se vocé se da conta das conseqiiéncias do que ele me contou, do que aquilo podia provocar se chegasse aos ouvidos das autoridades. Imaginariam 0 pior, tudo seria pretexto para concluir que ele teria cometido atos na aldeia que, contrérios 4 natureza humana, justificariam que os indios 0 matassem’ (pp. 130-31). Através de outra voz, numa carta da diretora do Museu Nacional ao proprio Quain, as alusGes obliquas as ‘misérias humanas’ esclarecem-se quando colacionadas a ‘bisbilhotice’ de um colega, referindo-se ao antro- pélogo: ‘Obriga-se 4 homossexualidade com negros, dos quais ele tem horror’, emboraa versio seja logo desacreditada por outra voz, que observa: “Como caluniador, nao ha ninguém melhor do que Mishkin’ (p. 130). O mistério elucidase finalmente através de uma operagao de leitura, rejuntando os indicios espalhados ao longo do texto de forma dispersa, indireta ¢ torturada: 0 jovem etnélogo americano, cuja homossexualidade nem ele nem os demais aceitam ou entendem,’® € levado por isso a excessos que resultam no seu proprio suicidio; a essa histéria, j4 subliminar € tortuosa, esta acoplada uma narrativa folhetinesca com todos os ingredientes do género: equivoco de pessoa, reconhecimento final (mas nao completo e indubitavel) de paternidade. Se o sofrimento psicolégico ¢ fisico causado pela homossexualidade do americano, a necessidade de oculté-la e, ao mesmo tempo, a sua inevitabilidade, parecem convincentes quando situados no contexto dos anos trinta, j4 nao o é tanto a sua dispersao numa narrativa folhetinesca de gosto oitocentista nem 0 excesso de peripécias que envolvem tanto as personagens ligadas diretamente a historia passada como o narrador no presente. Temos de examinar mais de perto o papel deste tiltimo. Ao contrario do académico que precisa encontrar um aval objetivo e cientifico paraa sua investigacao, e que é sempre cobrado a esse respeito, 0 narrador faz questo de repetir que nunca foi interrogado quanto a razao do seu interesse por Buell Quain. Mas no decorrer do discurso, o leitor acaba por ouvila: esta ligada, em primeiro lugar, as circunstancias que rodearam a morte do pai; ao fato de o fotégrafo americano o ter tomado 1° "Nao podia admitir que aquela fosse a sua imagem mais verdadeira: 0 espanto diante do desconhecido’ , Nowe Noies, p. 117.

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