You are on page 1of 1
BERNARDO CARVALHO 215 pelo outro, naquela ocasiao (ah, os equivocos, os espelhos, as refracdes); a umas preferéncias de leitura compartilhadas; a coincidéncias na vida do narrador e na de Quain: aquele teve na infancia contacto intimo com 0 Xingu (do qual o narrador, na sua persona histérica, nos oferece na orelha do livro um testemunho fotografico) , onde morrera Quain. Nesse ponto, a investigacao do narrador tinge-se das cores de uma demanda pessoal, que se ilumina por referéncias intertextuais fornecidas pelo discurso. O conto de Conrad, ‘The Secret Sharer’, por exemplo, referido como um dos contos preferidos pelo narrador na adolescéncia (p. 143), que relata um ritual de iniciacao através da experiéncia do duplo,'’ incide sobre tema também caro a Bernardo Carvalho e que j4 se encontra nos seus livros anteriores, sob diversas faces: a questo da identidade, do peso do nome, € a correspondente ameaca da indiferenciacao ou do caos. Outro intertexto mencionado no discurso narrativo, o capitulo sobre a brancura em Moby Dick, traz A tona o terror da indiferenciacio, contraponto do encapsulamento da identidade.'? Tem certo interesse, alids, notar que a obra de Melville foi sentida por alguns dos seus contemporaneos como produto de um autor esquizofrénico, que oscila entre a descrigio bem comportada e 0 stibito paroxismo.'? O discurso de Bernardo Carvalho, no entanto, conceptualmente cindido entre a derrota da racionalidade e a apreensao intima, ainda que s6 pressentida, do duplo movimento das fronteiras da identidade, € curiosamente homogéneo. Ao transformar a sua investigaco em demanda pessoal, o narrador glosa simultaneamente © trabalho antropolégico de Quain, deixando-o contudo de lado, para focalizar os aspectos existenciais da passio do americano entre os indi- genas brasileiros. Esses sio revisitados antitomanticamente, nao como objeto de estudo antropolégico, nem com finalidade politico-humani- tdria, enquanto grupos marginais a sociedade branca, mas por uma identificacdo pessoal complexa, de segundo e terceiro grau. E do relato de Manoel Perna, contudo, que sai o titulo para o livro: si as nove noites em que conviveu com Buell Quain e nas quais ele Ihe teria “Na sua primeira viagem ao comando de um navio, o jovem capitio acolhe a bordo, as escondidas, Legatt, um homem acusado de homicidio, que é percebido imediatamente por ele como ‘my double there’. olocado diante do dilema da legalidade estrita e da sua certeza intima ¢ intuitiva da nao culpabilidade de Legatt, o capitio possibilita a fuga do acusado, através de uma manobra de grande risco para o seu navio, da qual sai, porém, bem sucedido e em perfeita comunhio com cle: ‘silent knowledge and mute affection, the perfect communion of a seaman with his first command.” "* Depois de discorrer acerca das conotagdes positivas e negativas da brancura, Melville resume: ‘and consider that the mystical cosmetic which produces every one of her [Nature’s] hues, the principle of light, for ever remains white or colorless in itself, and if operating without medium upon matter, would touch all objects, even tulips and roses, with its own blank tinge — pondering all this, the palsied universe lies before us a leper’, Herman Melville, Mody-Dick (New York, London: Norton, 1967), p. 170. "S cf, William H. Ainsworth, “Maniacal Style and Furibund Story’, in Herman Melville, Moby-Dick, pp. 619-21

You might also like