Trabalhadores na Pandemia: Multiplas
Realidades, Multiplos Vinculos
‘Ana Carolina de Aguiar Rodrigues
Daniela Campos Bahia Moscon
Giselle Cavalcante Queiroz
Juliana Correia da Silva
Dia 11 de margo de 2020. A Organiza¢ao Mundial da Satide (OMS) declara a pandemia da
COVID-19, dando inicio ao que talvez venha a ser considerado um novo perfodo histéri-
co, Orientagées de isolamento, trancamentos de fronteira e interrup¢ao de servicos de
transporte reduzem fortemente a mobilidade das pessoas. Comportamentos sociais em
diferentes esferas da vida, como familia, amizade, comunidade, religido e especialmente
trabalho, esto agora muito mais mediados pela tecnologia digital. Eis aqui um cendrio
com desdobramentos para os vinculos dos individuos e grupos.
A literatura de comprometimento ja vinha prevendo alteragdes nos modelos de traba-
tho associadas ao desenvolvimento tecnolégico e & economia gig, mas as condigées da
pandemia exacerbam diferencas de classe, género, raca, e colocam em pauta essencial
alguns debates até entdo inexistentes na literatura da 4rea. Em menos de um trimestre,
muitos arranjos que levariam anos em transformacao precisaram ser adaptados veloz~
mente para dar conta dos desafios impostos pelos desdobramentos da pandemia.
Neste texto, descrevemos elementos centrais do contexto de trabalho no Brasil durante
a pandemia ¢ analisamos como podem repercutir nos vinculos das pessoas. Mapeamos
varidveis de diferentes realidades de trabalho ¢ apresentamos exemplos que ilustram
seusimpactos nos vinculos. Por fim, tecemios consideragdes sobre possiveis perspectivas
dos vinculos no pés-pandemia.Elementos do contexto que impactam nos vinculos
Os dados sobre a economia e 0 mercado de trabalho jé anunciam a especificidade e a
gravidade do momento: nos primeiros meses da pandemia no Brasil, entre marco e abril
de 2020, o pais perdeu mais de um milhdo de empregos formais. Os pedidos de seguro-
-desemprego aumentaram 39% em abril em relagdo a marco (Ministério da Economia
do Brasil, 2020). Além disso, até maio de 2020, mais de 7 milhdes de pessoas tiveram
reducdo de salério ou suspensio do contrato de trabalho, possibilidades reguladas pela
Medida Proviséria n° 936/2020 que instituiu o Programa Emergencial de Manuten¢3o do
Emprego e da Renda (Alvarenga, 2020)
Esses dados indicam que menos da metade dos individuos com capacidade de trabalho
hoje tém direito a algum tipo de cobertura social associada ao trabalho: seguro desem-
prego, reserva do Fundo de Garantia em caso de demissao, ou poder se afastar do tra-
balho sem perder remuneracao, caso adoeca (com a COVID-19 ou com todos os demais
riscos de doenga que ndo cessam porque estamos em uma pandemia). Vale destacar que
a remuneragao de trabalhos informais também é mais baixa e esse grupo é composto,
majoritariamente, por ocupagées juvenis, negras e periféricas (Abilio, 2019), o que reflete
as desigualdades historicamente vivenciadas no pais.
Ainda para quem manteve seus vinculos de trabalho, repentinamente, uma enorme par-
cela teve suas rotinas alteradas de forma substancial. 0 trabalho remoto, que jé vinha
apresentando forte crescimento, precisou ser adotado rapidamente e sem o preparo e
recursos ideais para a sua eficdcia. Trabalhar em casa, sobretudo em contexto pandémi-
co, pode significar lidar com questées estruturais e psicolégicas. Entre os trabalhadores
que fazem home office, hd aqueles cujas casas no comportam as demandas oriundas
das organizages e cujas familias tém exigido mais do seu tempo, principalmente no caso
das mulheres e mies. Essa mudanga exigiu a conformagao do espaco doméstico como
espaco de trabalho e tornou menos claros os limites entre o tempo de trabalho e de vida.
‘Ademais, as jornadas de trabalho, quando exercidas em casa, demandam a adaptacao
do trabalhador, seja em relagdo ao seu tempo, seja quanto ao novo modo de exercer as
tarefas. Desde antes da pandemia, notava-se que a flexibilizagao do trabalho era respon-sdvel pelo adoecimento dos profissionais, entre outras razées, por reduzir drasticamente
as fronteiras entre o trabalho e a vida privada (Antunes, 2018). Agora, quando o trabalho
elarse sobrepdem endo hé espaco para o lazer, essas perspectivas negativas do trabalho
flexivel sao salientadas.
As diferencas vivenciadas pelos géneros também foram evidenciadas durante a pande-
mia. Resultados parciais de uma pesquisa sobre home office realizada com 30 mil traba-
thadores de mais de 100 empresas, como Totvs, Sodexo, Natura, Pearson eAlelo do Brasil
ede outros paises da América Latina, mostram que a experiéncia de trabalho remoto tem
sido mais dificil para as mulheres do que para os homens (Muniz, 2020).
Por tiltimo, existem ainda os trabalhadores das atividades consideradas essen
is, tais
como satide, seguranga, servicos de entrega, limpeza ou trabalhadores da industria, que
seguem suas rotinas apesar da pandemia e do distanciamento social decretado. EStes)
‘SeinpOSTeqUipiinIentOs| de fproteCao indvIdUAIS|E/EDIEEVES! Alguns esto vinculados a
organizagées que oferecem certas condicdes de protegio e salubridade, Muitas dessas,
criaram comités de proteco que dialogam com todos os setoresinternose buscam atua-
lizar as recomendagées dos érgdos competentes relacionadas a prevenco, que, apesar
da sua importéncia, no sao efetivas para garantir a total seguranca dos trabalhadorese,
além disso, nem todas as organizaces garantem a sua implementaca:
No caso especifico dos profissionais de satide, até 13 de maio de 2020 o Brasil tinha
31.790 deles contaminados pela COVID-19. Entre médicos, enfermeiros, técnicos de en-
fermagem, agentes comunitarios de saiide e combate a endemias, recepcionistas, farma-
cButicos, biomédicos, gestores de unidades de satide e outros, os profissionais de satide
representam 15,9% do total de casos de contaminacao do pais. (Ministério da Satide —
Brasil, 2020).e dos vinculos durante a pandemia
A Figura 1 apresenta a definigdo de cada um, os critérios que nos ajudam a identificar se
as pessoas os manifestam ou nao, e questdes fundamentais para refletirmos sobre como.
varidveis da pandemia podem repercutir em seus niveis.
z
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mento de restrigao de liberdade, o quanto as pessoas ainda podem fazer pequenas esco-
thas nesse processo de adaptacao?
O contexto sanitério e econémico na pandemia reduz as alternativas de trabalho remu-
nerado e, para empregados formais, as chances de mobilidade de emprego se desfazem
pelo simples encerramento de processos regulares de recrutamento e selecio e pela
redugao da atividade econémica de forma mais ampla,
Em relacaio ao consentimento, infere-se que a maior dependéncia das organizacées, se-
jam formalmente empregadoras ou no, somada as restritas politicas piblicas voltadasCritérios
Vinculos Definigo
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Figura. Vinculaseveleses na pandemia
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Svea dos conaos com
pessoas da comunidege?para a seguranga do trabalho, pode intensificd-lo, Em outras palavras, nessas condicdes,
0s trabalhadores podem incorporarnovas regras das organizagdes e aceitar as condicdes
de trabalho (remoto ou nao), ainda que discordem delas. GlViNeUlO|delCOnSentimento,
'No caso do enraizamento, a aceitacao social muitas vezes é sentida no convivio com a
comiinidade’e contribui/para|um/sentimiehto/deajustamento. Esse tipo de vinculo como
lugar em que vivemos e com as pessoas que o constituem (vizinhanca, colegas de traba-
tho, amigos, etc.) também afeta nossas relacdes de trabalho e até mesmo a decisio por
permanecer ou nao em determinados empregos (Mitchel et al., 2001). Em muitos casos,
individuos vém ampliando suas interagBes com comunidades virtuais durante a pande-
mia, e reduzindo os contatos que se davam pela execucdo de atividades nos espacos
geogréficos em seu entorno (como estabelecimentos comerciais, religiosos, de lazer, €
academias de gindstica, por exemplo). Por outro lado, muitos grupos ainda dependem
de engajamento e/ou ago comunitéria (inclusive presencial) para acesso a condigées de
satide e sobrevivéncia (distribuicdo de cesta basica e recursos como mascaras, materiais
de limpeza, etc.).
Essa reflexdo sobre possiveis caminhos dos vinculos diante das varidveis da pandemia
reforca 0 fato de que uma andlise mais abrangente requer um mapeamento das dife-
rentes condicdes do trabalho e de elementos do contexto nao generalizaveis para todos
0s grupos. Para isso, buscamos conversar com trabalhadores em realidades de trabalho
formal e informal, dentro de uma escala de trés pontos: impossibilidade de continuar
trabalhando, possibilidade de trabalhar condicionada a estar fora de casa e a opcao de
continuar trabalhando em casa.
A Figura 2 ilustra dez exemplos de trabalhadores, comparando suas condigées de traba-
tho, as mudangas impostas pela pandemia, o papel do trabalho em sua regulaco emo-
cional e, por fim, os principais vinculos apresentados. Esses exemplos nao pretendem
esgotar os casos possiveis, ou generalizar as especificidades observadas, mas auxiliar a
nossa anillise desse cendrio em curso.