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CAPITULO DOIS MRS CRIACAO IDEOLOGICA E DIALOGISMO UMA TEORIA MATERIALISTA DA CHAMADA CRIACAO IDEOLOGICA omo vimos no capitulo anterior, Voloshi- nov e Medvedev tinham como projeto intelectual explicito, em seus trabalhos da segunda metade da década de 1920, contribuir criticamente para a construgao de uma teoria de base marxista da criacao ideologica Voloshinov se concentrou na questao da lin- — guagem, desenvolvendo basicamente dois pontos: uma discussao critica dos estudos lingutsticos de sua época (em especial em seu livro Marxismo ¢ filosofia da linguagem) e a apre- sentacao da tese de que 0s enunciados do cotidiano e os enunciados attisticos tam um chao comum — estéo ambos no interior da grande corrente da comunicacao sociocultural e tem ambos uma dimensao axiolégico-social em sua significacao (ver seus artigos O discurs, vida eo discurso na poesia e As fronteiras entre poctica e linguisticay Voloshinov envolveu-se também com a tematica da subjetividy de, desenvolvendo uma discussao critica da psicanalise (em ¢ Special em seu livro Freudismo) e da psicologia de seu tempo (ver Particy. larmente 0 cap. 1-3 de Marxismo e filosofia da linguagem ¢ o aD. 1-2 de Freudismo) e formulando um conceitual sociologico sobre 4 natureza da consciéncia. Medvedey, por sua vez, direcionou sua reflexao para o estudo da literatura, tendo como ponto de partida uma pormenorizada eri- tica das ideias dos formalistas. Nos capitulos 1 e 2 de seu livro O método formal nos estudos li- terdrios, Medvedev, depois de apresentar o estudo da literatura como um ramo dos estudos da criacdo ideolégica, traca o que poderia ser lido como diretrizes gerais para um estudo de base materialista e s6cio-historica do universo da criagao ideologica u Como ideologia é uma palavra “maldita” (pelas incontaveis sig- nificag6es sociais que pode veicular), é importante — para evitar costumeiros mal-entendidos — deixar claro o sentido que ela tem na obra de Medvedev (e, de fato, de todo 0 Circulo de Bakhtin). Nos textos do Circulo, a palavra ideologia é usada, em geral, para designar 0 universo dos produtos do “espirito” humano, aquilo que algumas vezes ¢ chamado por outros autores de cultura imate- rial ou producao espiritual (talvez como heranga de um pensamento idealista); e, igualmente, de formas da consciencia social (num yoca- bulario de sabor mais materialist). Ideologia € o nome que 0 Circulo costuma dar, entao, para o universo que engloba a arte, a ciéncia, a filosofia, o diteito, a religiao, a ética, a politica, ou seja, todas as manifestagdes superestruturais (para usar certa terminologia da tradi¢ao marnista). A palavra ocorre também no plural para designar a pluralidade de esferas da producao imaterial (assim, a arte, a ciéncia, a filosofia, o direito, a religido, a ética,a politica so as ideologias). £ no plural que Medvedev inicia seu livro, dizendo ee a literatura € um ramo do estudo das ideologias —— a i todas as areas da criatividade intelectual aoe citadas a el Esses termos (ideologia, ideologias, ideolégico) nao tem, portan- to, nos textos do Circulo de Bakhtin, nenhum sentido restrito € neg: pa tivo. Sera, portanto, inadequado lé-los nestes textos com o sentido de “mascaramento do real”, comum em algumas vertentes marxistas. Algumas vezes, o adjetivo ideolégico aparece como equivalente a.axiologico. Aqui ¢ importante lembrar que, para o Circulo, a signifi- cacao dos enunciados tem sempre uma dimensao avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer enunciado é, na concep¢ao do Circulo, sempre ideolégico — para eles, nao existe enunciado nao ideolégico. E ideologico em dois sen- tidos: qualquer enunciado se da na esfera de uma das ideologias (ie., no interior de uma das areas da atividade intelectual humana) e ex- pressa sempre uma posicao avaliativa (i.e., nado ha enunciado neutro, a propria retorica da neutralidade é também uma posicao axiologica). Voloshinov, ao iniciar seu livro Marxismo e filosofia da lin- mmbém identifica ideologia com 0 universo da producao guagem, tal iz ele que “as bases de uma teoria marxista das imaterial humana. DI ideologias — as bases para 0s estudos do conhecimento cientifico, da literatura, da religiao, da mo da filosofia da linguagem” (p. 9)- ral etc. — estao estreitamente ligadas aos problemas E, logo adiante, dira que tudo 0 que é ideolégico (isto € — en- tenda-se bem —: todos os produtos da cultura dita imaterial) possut significado; €, portanto, um signo. E conclui coma afirmagao de que eologia” (p. 9), querendo com isso dizer “sem signos ndo existe id so da criagao ideologica € fundamentalmente de nature que o univer: za semidtica afirma¢ao reiterada na pagina seguinte: o da ideologia coincide © domini sao ymutuamente correspondentes. com o dominio dos signos. Eles ‘Ali onde um signo se encontra, 2 = = OS encontra-se também ideologia. Tudo 0 que € ideolégico possui valor semidtico (p. 10). E essa identificagao do ideoldgico com 0 semidtico que vai dar ao Circulo o fundamento para construir sua tcoria materialista par s ¢ produtos da cultura imaterial; o fundamen. oestudo dos proces: to de sua filosofia da cultura Voltando ao texto de Medvedev, observamos que, como ponto de partida, ele considera inadequadas todas as abordagens positivis tas ¢ idealistas da criacao ideoldgica. As primeiras, porque se perdem num empiricismo atomista (concentram-se no estudo dos objetos ideolégicos — obras de arte, por exemplo — tomando-os isolada- mente, desaguando num detalhismo sem sentido ou numa fetichi- zacao do artefato). As segundas, porque entendem toda a criacao ideologica ou como produto de uma consciéncia individual isolada; ou como localizada no reino de “puras ideias”, “puros valores” e “for- mas transcendentes” (p.4). Para Medvedev, ambas as abordagens perdem de vista o fato de que a criacdo ideologica € sempre social e historica, no podendo, por isso, ser reduzida nem a sua superficie empirica (como se fosse um rol de meros fendmenos isolados), nem fechada e autocontida no mundo de uma consciéncia individual ou no reino das “puras ideias” Pelo seu carater intrinsecamente sécio-historico, a criagao ideologica exige, para ser estudada, um conceitual e um método de natureza sociologica, para cujo delineamento ele se propde contribuir. Nesse processo, lembra, de saida, que todos os produtos da cria- ¢ao ideologica sao objetos dotados de materialidade, isto ¢, sao parte concreta ¢ totalmente objetiva da realidade pratica dos seres humanos (nao se podendo estuda-los, portanto, desconectados dessa realidade). E existem como tal corporificados em algum material semistico definido (i. ¢., numa determinada linguagem — tomado o termo aqui em sentido amplo), ou seja, um produto da criacao ideologica é sempre um signo. signos sao intrinsecamente sociais, isto ¢, sao 1 Bakhtin), os > + SA0 criados e i 0 interior dos complexos e nterpretados: ni e vari; iados, re eee a Processos que caracterizam o s fem e significa snificam no interior de re- almente mente organizados; ndo podem antes de process 305 apenas icologicos de divi a cos e psicologicos de um individuo isolado: ou determinad 5 adlos apenas por um sistema formal abstrato, Para estuda-lo: lacdes sociais, estado entre seres soci: assim, ser concebidos como result fisiolégi it : " s, & indispensavel si tua-los nos processos sociais globais que lhes dao signilicagao. Por CE Medvedev expée outra premissa fundamental para seu raciocinio (e para o pensamento do Circulo como um todo) nos, os seres humanos, nao temos relagdes diretas, nao mediadas com a realidade. Todas as nossas relacdes com = condicgées de existéncia — com nosso ambiente natural e contextos sociais — s6 ocorrem semioticamente mediadas. Vivemos, de fato, num mundo de linguagens, signos e significacées. Em outros termos, o real nunca nos é dado de forma direta, crua, em si. Sobre isso, Bakhtin ja dizia, em Para uma filosofia do ato, que “O dado puro nao pode ser realmente experienciado” (p. 32). Nos nos relacionamos com um real informado em matéria signi- ficante, isto €, o mundo s6 adquire sentido para nds, seres humanos, quando semioticizado. E mais: como a significacao dos signos envol- ve sempre uma dimensao axiologica, nossa relagao com 0 mundo € sempre atravessada por valores Bakhtin, em O discurso no romance (p. 276), apresenta este ptessuposto do Circulo, dizendo que qualquer palavra (qualquer a 0 objeto a que ele se refere ja recober- ma atmosfera social de discursos, (ie., por uma densa e tensa enunciado concreto) encontr to de qualificacdes, envolto por Ww por uma espécie de aura heteroglossica camada de discursos). (em sentido amplo do amente: nossas pa- ja de discursos o dizer com as coisas e da sempre obliqu penetram na camad: A relagao do noss termo) nunca € direta, mas 5 lavras ndo tocam as coisas, mas em as coisas. Essa relagao palavra/coisas, diz este a interacao dialogica das varias inteligibilida. as coisas ( p. 277). sociais que recobr autor, € complicada pel des socioverbais que conceitualizam apresentada na sequéncia do text soncepedo €, entdo, apresentaci . Essa concepcao &, ¢ pela bela figura do raio de luz os a intengao de uma tal palavra, isto é, sua dire. forma de um raio de luz, entao o jogo faces da imagem que ele constroj Se nés imaginarm! cionalidade para o objeto!, na vivo e irrepetivel de cores e luz nas pode ser explicado como a dispersao espectral da palavra-raio, nao no interior do objeto em si (...), mas antes como sua dispersao espec- tral numa atmosfera cheia de palavras alheias, julgamentos de valor € acentos através da qual o raio passa em seu caminho em diregao ao objeto; a atmosfera social da palavra, a atmosfera que cerca 0 objeto, faz as faces da imagem cintilar (p. 277). E nesse sentido que os textos do Circulo vao dizer recorrente- mente, que os signos nao apenas refletem o mundo (nao sao ape- nas um decalque do mundo); os signos também (e principalmen- te) refratam o mundo. Em outras palavras, o Circulo assume que 0 processo de transmutacao do mundo em matéria significante se da sempre atravessado pela refracao dos quadros axiologicos. A DOUTRINA DA REFRACAO No processo de teferenciacao, realizam-se, portanto, duas ope- rages simultaneas nos signos: eles refletem e refratam 0 mundo. Quer dizer: com os Signos podemos apontar para uma realidade que Ihes € externa (para a materialidade do mundo), mas o fazemos sem- pre de eee tefratado. E refratar significa, aqui, que com nossos signos nés nao somente descrevemos 0 mundo, mas construimos . ss ao i e “se que Bakhtin, neste texto, usa diversas vezes a palavra intencao no sentido Pepe co Ge intencionalidade (termo corrente na fenomenologia), ito é, de diteciona- idade para um objeto e nao no sentido mais comum de desejo, vontade, propésito, _-na dinamica tiplo e heterogénco das experieneias con . as concre interpretacoes (refracoes) de direcao, Medvedev dira que _— dive dos grupos humanos ; mundo ho horizonte ideoloy ou grupo social, nao ha una, mas var (p. 19) Nessa mesma fico de uma época as verd: ladies, a ae Jes mutuamente con Essas varias verdades equivalem aos diferentes mod quais © mundo entra no horizonte apreciativo dos snip ie = nos. Como resultado da heterogeneidade de sua ee — humanos vao atribuindo valoracées diferentes (e ee aos entes € eventos, as acdes e relacdes nela ocorrentes. E assim ae a praxis dos grupos humanos vai gerando diferentes modos de dar sentido ao mundo (de refratd-lo), que vao se materializando e se entrecruzando no mesmo material semidtico A tefracao é, desse modo, uma condicao necessaria do signo na concep¢ao do Circulo de Bakhtin. Em outros termos, para o Cireulo, ndo é posstvel significar sem refratar. Isso porque as significacdes nao estao dadas no signo em si, nem estdo garantidas por um siste- ma semantico abstrato, unico € atemporal, nem pela referencia a um mundo dado uniforme e transparentemente, mas sao construidas na dinamica da historia e estao marcadas pela diversidade de ex- periéncias dos grupos humanos, com suas intimeras contradigées & confrontos de valoragées € interesses sociais. Em outras palavras, a refracéo € 0 modo como se inscrevem NOS signos a diversidade e as contradigées das experiéncias historicas dos grupos humanos. Sendo essas experiéncias muiltiplas e hereroge- neas, os signos nao podem ser univocos (monossemicos): so a ser plurivocos (multissémicos). A plurivocidade (o caratet ™ s semico) € a condicao de funcionamento dos signos nas socied lades humanas. E isso nao porque eles sejam intrinsecamente aaa mas fundamentalmente porque significam deslizando Se ant plos quadros semantico-axiologicos (e nao com base num ca unica & universal). wes bol CARLOS AL ‘tes axivlogias lessas varias semanticas se arti. a, cada uma d ndo um termo € conceitg tonica (aproveita tos), nos processos de atribuicao de os eventos, as acoes & as relacoes cas de qualquer grupo hu- Como vimos acim: cula, organiza sua arquite! do Bakhtin dos primeiros tex’ diferentes yaloracdes aos entes ea do vasto espectro das experiéncias histori : Jecorrem da heterogeneidade dessas experiéncias. mano e ¢ m sua diversidade e complexidade, faz a, recobrir o mundo com diferen- plas as experiéncias que Adinamica da historia, rupo humano, em cada époc . porque sao diferentes € multi axiologias participam, como elementos consti- nificacdo, dai resultando as intimeras eros discursos, as inumeras em seu texto 0 cada gi nela se dao. E essas tutivos, dos processos de sig! semanticas, as varias verdades, os inum Iiguas ou vozes sociais (na terminologia de Bakhtin discurso no romance) com que atribuimos sentido ao mundo. Essa plurivaléncia social dos signos € 0 que, segundo Medvedev, os toma vivos e moveis. E ela que da dinamicidade ao universo das signifi- cagées, na medida em que as muitas verdades sociais se encontram e se confrontam no mesmo material semictico e no mesmo signo. O material semi6tico pode ser o mesmo, mas sua significagdo no ato social concreto ee Sepencense a voz social em que esta ancorado, sera mana uma realidade aberta e infinita. Anteriormente, em O problema do contetido, do material e da pasa ma arte verbal (1924), Bakhtin, embora ainda nao falando em eyes fazia referencia a essa dinamicidade do a Goes, quando apresentava qualquer ato da cria- gia como vivendo essencialmente nas fronteiras (p. 274) Pare i mio dene eae nel (uma esfera da cacao ideolgica) cannes —, como tendo uma espécie de todo espa- ha interseecao de mattis » Mas deve ser visto como vivendo sempre vista criativo (que implica peace rr orale tomma-se necessatio e inch sempre uma tomada de posicao axiologica) Ge poneaee oe somente em correlagao com ou- vos (com outras posigées axiologicas), dinamicidade ec Essa de intrinseca ao Universo da criaca ca (a0 universo das significagses) se 4 ‘@ recoberta, 1 afore A a,em te pela metafora do dialogo (que tantas confus textos futuros, sdes tem ge yoltaremos adiante). em gerado ea qual Neste ponto, € importante deixar registrado que carater infinito (centrifugo) d, 2 [Ne a reacao a a semlose human: A ; oo ana sera parte inerente ao jogo dos poderes sociais. As vontades soci a sempre estancar, Por gestos centripetos, aquele movimento: tentara impor uma das verdades sociais (a sua) como a verdade: aoa submeter a heterogeneidade discursiva (controlar a multidao de di cursos), monologizar (dar a ultima palavra); tornar 0 signo mono\ . “lente (deter a dispersao semantica); finalizar 0 didlogo. Vv ais de poder tentarao a0. Contudo, Bakhtin, ao fim de sua vida, talvez lembrando suas discuss6es sobre a carnavalizacao e seu conceito de plurilinguismo dialogizado (ver adiante), terminara seu ultimo manuscrito com a seguinte observacao: Nao ha uma palavra que seja a primeira ou a ultima e nao ha limi- tes para o contexto dialdgico (ele se estira para um passado ilimita- do e para um futuro ilimitado), Mesmo os sentidos passados, isto é, aqueles que nasceram no didlogo dos séculos passados, nao podem | nunca ser estabilizados (finalizados, encerrados de uma vez por to- das) — eles sempre se modificarao (serao renovados) no desenrolar subsequente e futuro do didlogo. Em qualquer momento do desen- volvimento do didlogo, existem quantidades imensas, ilimitadas de sentidos contextuais esquecidos, mas em determinados momentos do desenrolar posterior do didlogo eles sao relembrados € receberao vi- gor numa forma renovada (num contexto novo). Nada esta morto de maneira absoluta: todo sentido tera seu festivo retorno. O problema da grande temporalidade (p. 170). VOLOSHINOV E BAKHTIN SOBRE O MESMO TEMA Numa sintese da discussao anterior, podemos dizer que para Medvedev o universo da criagao ideologica tem um carater material cay EPO EVRACO. creta e totalmente objetiva da realidade pratica dos seres 0 (nao pode tos isolados) e sociossemiotico (se corpori- (é parte con humanos), historic e psicologicos de individ ser reduzido a processos fisiologic 0s fica em signos. emergindo ¢ significando nos complexos processos ica Sy do intercambio social). ‘os so refletem o mun- 0, como os processos semIOUc Alem di 5 so espacos de encontro € confronto de do refratando-o, os signo: es sociais de valor, p! movimento, caracterizando 0 universo da criacdo ideologica como uma realidade infinitamente mével. Voloshinoy, em seu livro Marxismo e filosofia da linguagem (em especial nos cap. I-2 e Il-4), ao discutir a significacdo, voltara a en- fatizar o pressuposto forte do Circulo de que a enunciacao de um ‘0 de indices sociais de valor, isto diferentes indic Jurivaléncia que lhes da vida e signo é sempre também a enuncia é, a enunciacao de um signo tem efeitos de sentido que decorrem da possibilidade de sua ancoragem em diferentes quadros semantico- -axiologicos, em diferentes horizontes sociais de valores. Esses efeitos de sentido do signo nado podem ser entendidos como constituidos por uma espécie de plus conotativo que se sobre- poria a uma base denotativa. Voloshinov (cap. II-4) — coerente com a doutrina da refracao semistica, elaborada pelo Circulo — rejeita essa dicotomia tradicional, por dois motivos: primeiro, ela separa e hierarquiza o que nao esta separado nem hierarquizado na significa- cao do signo, isto €, ela opera com uma separa¢ao entre um centro denotativo e margens conotativas, quando, pelo fato de a semiose sempre refratar, o signo € necessariamente pluriacentuado e plurivo- Co; ele pode ser sempre outro. E, segundo, ela pressup6e, no fundo, uma semantica universal, um ponto de unicidade semantica, uma garantia preestabelecida no codigo, 0 que, face a refracao semitica, é uma impossibilidade. Também naquele livro (cap. I-2 e [I-4), Voloshinov faz referen- cia a dinamicidade da semiose (e, portanto, de todo 0 universo da 40 ideological e criacto ideol6gica), dando destague a *hna incessame d eae) a ssamte dos ace em cada area semantica da existéncia’ (p.122). Lemt a 122 nbra que qu; por decortencia de | nomicas de determinado grupo humano, entr | daquele grupo, € recoberto de elemento da tealidade que, alquer Condigoes sociveco. ‘@ no horizonte social Indices sociais de valor €, nessas con digdes, tornase objeto do dizer daquele grupo, Esses nes — specte existénciz eg ‘i aaa | da existéncia, integrados no circulo dos inleresses soci: ais, Jo coexistem pacific: c nao coexistem pacificamente com outros elementos da existénc ta ela previamente integrados, mas entr: : : ‘am em luta com eles, subme: tem-nos & reavaliacao, e deslocam sua posigao no interior da unidade do horizonte avaliativo. Este processo gerativo dialético se reflete na geracao de propriedades semanticas na lingua. Uma nova significacao emana de uma velha e por meio dela, mas isso acontece de tal modo a que a nova significacao pode entrar em contradigéo com a velha € reestrutura-la (p. 106). Bakhtin, em Para uma filosofia do ato, ja antecipa essa discus- sao, embora ainda num vocabulario pouco sociologizado, quando diz (p.32-33) que uma palavra viva nao conhece um objeto como | algo totalmente dado 6 simples fato de que eu ter comecado a falar sobre ele ja significa que assumi certa atitude em relacdo a ele — nao uma atitude indiferente, mas uma atitude efetiva e interessada. E € por isso que a palavra nao apenas designa um objeto como uma entidade pronta, mas também ex- | pressa, por sua entonacao, minha atitude valorativa em relagao a0 obje- to, em relagio aquilo que € desejavel ou indesejavel nele, e, dese modo, | movimenta-o em direcao do que ainda esta por ser determinado nele, transforma-o num momento constituinte do evento vivo, em processo. O mesmo Bakhtin, em O discurso no romance, nos reapresenta © tema da refracao, caracterizando-a como a atmosfera multidiscur- siva que recobre qualquer objeto (tomado este termo aqui ead tido amplo) da realidade, dando a ele multiplos nomes, definigoes e julgamentos de valor. E, para elucidar essa complexa questao, usa algumas figuras interessantes. HSH 50 Zz 1 c ) emaranhe >, por exemplo, como © emaranhado q. idos pela consciencia socivideolsgic, Apresenta & refrac: os dialogicos tec! a criacao ideologica as, estradas € caminhos tracados pela es de fi milhares de ) em torno de cada objeto (isto €, pelo todo ¢ Ou, como a multidao de rot consciéncia socivideologica em cada objeto. Ou, ainda, comoa torre de Babel que cerca todo € qualquer objeto. as refracdes do objeto (esses maltiplos, Para designar essas multipl: discursos sociais), Bakhtin introduz, nesse texto, a Expresso vozes sociais ou linguas sociais, entendendo-as como complexos semistico- -axiolégicos com os quais determinado grupo humano diz o mundo Nesse sentido, Bakhtin explicitamente apresenta, nesse mesmo texto (p. 271), 0 modo como olha para a linguagem: nao como um sistema de categorias gramaticais abstratas, mas como uma realidade axiologicamente saturada; nado como um ente gramatical homoge- neo, mas como um fendmeno sempre estratificado. E estratificado nao apenas no sentido mais comum do termo nos estudos linguisticos (isto é, as estratificagdes visiveis nas marcas dia- letais stricto sensu, aquelas decorrentes do tempo, da distribuicao geo- grafica e social dos falantes), mas fundamentalmente pela saturacao da linguagem pelas axiologias sociais, pelos indices sociais de valor. Lembremos que, até o fim da década de 1920 (periodo em que esta se elaborando esse conceitual do Circulo de Bakhtin), a ciéncia da linguagem verbal — embora estivesse construindo, numa certa esfera, uma teorizacao que pressupunha um objeto unitario e ho- mogéneo — ja vinha trabalhando com a perspectiva da heteroge- neidade em pelo menos duas diregoes: a da estratificagao temporal (quer dizer, o tempo diversifica; as linguas se diferenciam no eixo temporal); e a da estratificagao espacial (quer dizer, a distribuigao geografica dos falantes gera diversidade; lacionar formas diferentes geografias diferentes). possivel, portanto, corre- Ao mesmo tempo, a ciéncia da linguagem verbal ja estabelecera que a estratificacao geografica poderia refletir tempos diferentes, no sentido de que alguns dialetos sao m; A Als Consery, jnovadores € tem percursos hist6ric ery ‘adores e Outros mais, Fa 8 dilerente. as duas estratificagées. Tentes. Anticulayam Se at Jase percebera tambem {MEO Contato entre 1 stancla b as linguas em ce: circunstancias era tambem fator de ee inguas em certas Sificagao, resuland tas vezes, no desenvolvimento dos pidgins ¢ F; » Fesultando, mur p os Crioulos, Contudo, a ciéncia da linguagem verbal seo . ‘ale OCUpava (€ se OCUpa fundamentalmente da estratific: V €S€ ocupa) aca0 das formas gramaticais teresse era (e continua sendo) correl laciona : See ee ocean cionar formas gramaticais Na década de 1960, a criacao da sociolinguistica veio acrescen- tar a essas duas estratificagdes uma terceira: aquela que estabelece uma correlacao sistematica entre as formas gramaticais e a estrutura social. E disso resultou um grau maior de percepcao da complexi- dade das linguas, isto €, elas passam a ser vistas como um complexo emaranhado das diferentes estratificacoes, emaranhado em que se correlacionam as variagdes geograficas, sociais e temporais. Ora, 0 Circulo de Bakhtin, na década de 1920, vai apontar para uma estratificacéo nao propriamente e apenas de formas gramaticais (0 signo pode ser materialmente 0 mesmo), mas para uma estratifi- cacao dada por diferentes axiologias, dada pelo processo socio-histo- rico de saturar a linguagem de indices sociais de valor. Nesse sentido, aquilo que chamamos de lingua nao € so um conjunto difuso de variedades geograficas, temporais € socials (como Nos ensinam a dialetologia, a linguistica historica e a sociolinguisti- ca). Todo esse universo de variedades formais esta também atraves- sado por outra estratificacao, que € dada pelos indices sociais de va- lor oriundos da diversificada experiencia sbeto-historica a iis sociais. Aquilo que chamamos de lingua é também e principa me um conjunto indefinido de vozes sociais. jos grupos cteriza o que tecnicamente se A . ; multidao de vozes sociais carat in guismo) — termo que, tem designado de heteroglossia (ou pluri 58 CARLOS ALBERTO FVRACO adiante, € muitas vezes tomado Seer 1 referencia ao pensamento de Bakhtin, come er como veremos em autores que faz nite @ mia. equivalente a polifo HETEROGLOSSIA DIALOGIZADA Naquele mesmo texto da década de 1930 (O discurso no ro. mance), Bakhtin, além de apresentar a questao da heteroglossia, dg especial destaque aquilo que é também um elemento forte do pe mento do Circulo: a dinamicidade semiotica (que ele chama aqui de heteroglossia dialogizada ou plurilinguismo dialogizado — p. 272) Para Bakhtin, importa menos a heteroglossia como tal e mais a dialogizacao das vozes sociais, isto €, o encontro sociocultural dessas vozes e a dinamica que ai se estabelece: elas vao se apoiar mutua- mente, se interiluminar, se contrapor parcial ou totalmente, se diluir em outras, se parodiar, se arremedar, polemizar velada ou explicita- mente e assim por diante. Em outras palavras, “o verdadeiro ambiente de um enunciado” (p. 272) € 0 plurilinguismo dialogizado (sao as fronteiras) em que as vozes sociais se entrecruzam continuamente de maneira multiforme, Processo em que se vao também formando novas vozes sociais. movel, o Circulo de Bakhtin adotou a metafora do didlogo. Tal metafora parece bem adequada para re dade do universo da cultura (para fundar uma se considerarmos que 0 Circulo ve numa intrincada cadeia de Presentar a dinamici- filosofia da cultura), as vozes sociais como estando tesponsivid, ade: os enunciad : los, ao mes- mo tempo que Tespondem ao jj j4 dito (nao hi a primeira ou a ultima”), provocam continuat Tespostas (adesdes, Tecusas, apl: uma palavra que seja mente as mais diversas lausos incondicionais, criticas, ironias concordancias € dissonancias, revalor: » Tevalori AGoes o erso d i" nao ha limites - a cultura é responsivo, ele Se MOVE COMO se Fosse € intrinsecamente M grande dialogo para o contexto dialogico”). O univ, Voloshinoy, anteriormen 7 ley ja ay + J aponta nes quando diz, no capitulo U-2 de seu livro. Be mesma direcao, ©, que ada enunciade € uma Alor OU Menor ni d de um acordo ou de um desacordo; é um el d vena : elo d resposta, contém sempre, com m; co fa corrente ir eaten a linterrupta dacomunicacao sociocultural. E, ao mesmo tempo que respond responde sentido de tomar uma posicdo socioaxi no axiologica), espe 4), espera uma resp ee “roan posta (espera que Outros assumam uma posicado socioaxiolégica frente ao dito). Todo dizer é, assim, parte integrante de uma discussao cultural (axioldgica) em grande escala: ele responde ao ja dito, refuta, confir ma, antecipa respostas e objecdes potenciais, procura apoio ete. Bakhtin detalha, agora, esse modo de percepcao da dinamica da criacao ideologica e passa a falar da dialogicidade de todo o dizer. E essa dialogicidade é apresentada em trés dimensées diferentes (p. 276ss.): a) todo dizer nao pode deixar de se orientar para o “ja dito”. Nesse sentido, todo enunciado é uma réplica, ou seja, nao se constitui do nada, nao se constitui fora daquilo que cha- mamos hoje de memoria discursiva; b) todo dizer é orientado para a resposta. Nesse sentido, todo enunciado espera uma réplica e — mais — nao pode es- quivar-se a influéncia profunda da resposta antecipada. Neste sentido, possiveis réplicas de outrem, no contexto da consciéncia socioaxioldgica, tem papel constitutivo, condicionante, do dizer, do enunciado. Assim, € intrinse- co ao enunciado o receptor presumido, qualquer que seja pirico entendido em sua heterogencida- ele: o receptor em ¥ de Voloshinov, de verboaxiolégica, Marxismo e filosofia da linguagem, P- 85-8 2-123), ou o “super discutidos pot Bakhtin em O 0 “auditorio social” (cf, 6; ou A constru- cdestinatario” cao do enunciado, P- 12 (0 “terceiro” — nos termos problema do texto, p.126); 00 FAR ACO, Z ernamente dialogizado: € heterogenco, € uma izer é int c) todo dizer ca . ) tiplas vozes soclals (no sentido em gue articulagdo de mu hoje dizemos ser tod § o ponto de encon cao interna sera ou nao claramente o discurso heterogeneamente cong. tro e confronto dessas multiplas tuido), dialogiza vozes. mostrada, isto é, 0 dizer alheio sera ou nao destacado como ostrada, isto €, tal no enunciado — ou, para usar uma figura recorrente em Bakhtin, sera aspeado ou nao, em escalas infinitas de gr de alteridade ou assimilacao da palavra alheia (conforme diz ele no manuscrito O problema do texto, p. 120-121) 1S DIALOGO: ESSA PALAVRA MIL VEZES “MAL-DITA” Ha, portanto, uma grande identificagao do pensamento do Cir- culo de Bakhtin com a metafora do didlogo. E isso a tal ponto que ja se tornou habitual e generalizado designar esse pensamento pelo termo dialogismo. Apalavra didlogo, contudo, tem varias significagdes sociais, 0 que pode afetar a recepcao do pensamento do Circulo. O proprio Bakhtin, como veremos abaixo, criticou, em varios momentos, a ideia de um dialogismo estreito. E preciso, por isso, neste ponto, fazer até mesmo um esforco de compreensao do sentido de dialogo nos trabalhos, do Circulo para termos condicées de explorar seu poder heuristico. A palavra didi palavra didlogo designa, comumente, determinada forma composici epresent F ional em narrativas escritas, 1 presentando a conversa dos ersonagens. Po ene ém é P Bk de designar também a sequéncia de fala dos perso- nagens no text atic Be K to dramatico, assim como o desenrolar da conversacao na interacao face a face. none 7 (culo de Bakhtin nao sao tedticos do dialogo tal, sejanacomposic eS intere’ sa o estudo a forma-dialogo como face a face. D C0 escrita ou no texto dramatico, seja na interacao ‘ce. Desse modo, nao constitui objeto de suas Preocupacoes observar a Maneita como se da a troe de uma conversa, como faz hoje, da conversagao. Nem deseny @ de turnos entre p bor exemplo, olver um estudo de cionais de um grupo humano qualquer desde a decada de 1960, na chamac articipantes, a chamada anilise Priticas conversa. Como se faz, por exemplo, ia ctnostrafia da fi 7 ' ‘la ou da comu- nicagdo — por mais interessantes que poss aM SEF es Em seu manuscrito O problema do texto G em 1959/1960), Bakhtin diz (p. 124) sobre is nalises, Provavelmente escrito SO; O dialogo concreto (a conversacao cotidiana, a discussao debate politico, e assim por diante). As telagdes entre réplicas dialogos sao um tipo mais simples e mais externamente vis relacdes dialogicas. As relacées dialégicas, no entanto, nao coinci- dem de modo algum, é claro, com relaces entre réplicas do dia- logo concreto — elas sao muito mais amplas, mais variadas e mai: complexas (destaque acrescido). Portanto, o evento do dialogo face a face (aquilo que eles chamam, em varios momentos, de didlogo em sentido estrito do termo) estara no foco de atencdo do Circulo, mas nado como forma composicional e sim como “ um documento socioldgico altamente interessante” (conforme se pode ler em Problemas da poética de Dostoievski — apéndice I, p. 280), isto é, como um espaco em que mais diretamente se pode obser- var a dinamica do processo de interagao das vozes sociais, Em outras palavras, podemos dizer que, no_caso_esp ‘ifico da interacao face a face, o Circulo de Bakhtin se ocupa nao com o didlogo em si, mas com 0 que ocorte nele, isto €, com 0 complexo de forgas que nele atvia e condiciona a forma e as significacdes do que € dito ali. Interessam-lhe, de fato, as forcas que se mantém constantes em evel s banais € todos os planos da interacao social, desde os eventos mals bana do vasto espectro fugazes do cotidiano, até as obras mais elaborad: a da criacao ideologica. O que lhes interessa € aquilo a ee ra se refere como 0 “coldquio ideologico em grande escala (Marxismo ¢ filosofia da linguagem, p. 95) ou que Bakhtin chama oo ‘o simposio universal” (Para uma refeitura do livro sobre Dostoievski, p. 293). Lise waa & on vento do dialogo face a face so interessa como y Assim, 0 € ™ dos tos eventos em que se manifestam as relacées dialogicas mui - o : le jo mais amplas, mais variadas e mais complexas do que a Telag sido . ay existente entre as réplicas de uma conversa face a face, O objeto ef 5 constituido, portanto, pelas relacées dialg; tivo do dialogismo € constituldo, F I didlogica, las, mais variadas e mais ¢ omplexa nesse sentido lato (“mais ampl Sob essa perspectiva, © didlogo face a face vai também inter; ao Circulo como um dos espacos em que se da, por exemplo, 6 en. trecruzamento das multiplas verdades sociais, ou seja, como um dos muitos espacos em que ocorre didlogo no sentido amplo do termo, isto é, a confrontacao das mais diferentes refrag6es sociais expressas em enunciados de qualquer tipo e tamanho postos em relacao. O Circulo, portanto, olha para o didlogo face a face do mesmo modo que olha para uma obra literaria, um tratado filosofico, um texto religioso, isto €é, como eventos da grande interacao sociocultu- ral de qualquer grupo humano; como espacos de vida da consciéncia socioideolégica; como eventos atravessados pelas mesmas grandes forcas dialogicas (as forcas da heteroglossia dialogizada). Isso nao significa que o Circulo nao distinga as especificidades de cada um desses espacos de vida da consciéncia socioideologica. Boa parte de seus textos vai precisamente no sentido de estudar essas especificidades, em especial no que diz Tespeito a criacao literaria. No entanto, é caracteristica do Pensamento do Circulo 0 con- tuo reportar-se as praticas do cotidiano, valorizando pacos em que ja estao embutidas as bases da cria elaborada e as fontes da sua continua renovacao, -as COMO es- ‘C40 ideologica mais As raizes dessa valorizacao do cotidiano est envolvimento filos6fico inicial de Bakhtin com on em especial, Para uma filosofia do ato), mas t 0 certamente no lundo da vida (cf, ambém no embate do Circulo com a pottica dos formalistas — que se Sustentava pre mente numa radical distingao entre a linguage: non M poética e a lingu gem do cotidiano. a

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