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2 Facto 2008 Editorss Ings Bema Gant e Sei Delhino Bt Produgin Grfica eats Vie Nee Cara Yeas Meta (ee avant de Boro Carbs anind Revisto soe Ne Revisio Grifica Angele arse Nessa Ales "Aine Gamo Dados Iicnaconas de Catalogagto ma Publiagso (CIP) (Chae Bris do Lito, 81) Bri Tuc Case Bune apace pcharedela spovectdeeeamana nee ements aa, SS ia |. Gre 2. Grave Arpctgptaigs 3. Pra Ole) — ‘Asrccospicligans 4 Paeane I Stem Richard I yd, Tihs Para Léonard e Lucas Capitulo 6 * O Parto ‘Aquiexaminaremos, num primeiro momento, as diferentes etapas do parto, que nem sempre so idénticas, mas variam de uma mulher para outra, dependendo tanto do contexto psiquico, como do institucional, nessa vinda ao mundo specifica. “Aqui veremos o lugar ea fungi que pode ter o pai nessa aventura, ‘Aqui veremos, enfim, a chegada do filho, 0 modo como ele é recebido pela instituigio médica, ¢ aatitude dos pais, diante desse novo ser que eles geraram, esse pequenino ha muito espetado, e sempre inesperado, e tio previsto quanto imprevisivel. Poucos de nés podemos nascer como o bom rei Henrique 1V;“em tres forgas, ontem, em Pau" (modo como foi anuncia~ do onascimento de seu filho, ao Feliz pai, Antoine de Bourbon, Ja Fama wfeEncia« um dito bem eonbecido pelos fanceses: “em toi coups de cl ite a Paw" © sentido dessa Fase indica um part rida ¢ sem diiewades, Nove Mises a Vins pa Muu, que cagava, com um grupo, a algumas centenas de quildmetros dali). A noticia desse nascimento legendario, que marcou, por guns séculos, a lingua francesa com essa expressio pitoresca, sem divida, ndo leva em contaas dores da pobre Jeanne d’ Albret. Pois, como era habitual na época, ela pds seu filho no mundo, em meio a dores, ¢ longe dos olhos de qualquer outro homem, m do proptio filho, que estava nascendo, ainda inocente, & embuido das lembrangas do limbo. A menos que o fato de dar ‘um sucessor ao trono da Franga tenha aliviado muito suas dores, que sempre foram atributo das boas maes. Soffer, suportar sofrimento jé nfio é, hoje em dia, atri- buto de todas as mulheres. E os homens, oferecendo-Ihes a possibilidade de escolher, até mesmo encorajando-as a nao sofrer mais, colocaram-nas num estranho dilema, que jé men- cionamos. Uma cultura milenar, fundada sobre palavras co- nhecidas por todas, mesmo as niio cristis: “Pariris com dor”, no se desfaz em vinte anos. Ent&o, devem obedecer a0 ho- mem ou A tradig&o? Para a muther, aceder ao desejo do médico de fazer um parto sem sofrimento é expor-se 4 culpa (consciente ou incons- ciente) e, implicitamente, deixar de ser solidéria com sua mie, que sofreu ao colocé-1a no mundo (0 que ela nao perde a oportu- nidade de mencionar). f, também, arriscar-se a ouvir palavras como: “Ah! Mas voce nido sabe 0 que é um parto”, E essas pala- vras ndo siio exatamente um cumprimento, so muito mais uma critica, um modo de dizer que ela nao é uma boa mae (ou digna de sua propria mie), Com efeito, aboa mie, no imagindtio tradi- cional, é a que sofreu dando & luz seus filhos, pois como lem- bram as palavras seculares, para atingir o status de mi, é preci- so passar por isso. ‘Simbolicamente, na tradigao cristd, recusar a dor do parto pode ser entendido como transgresstio, uma forma de a mulher 0 Pasto Be recusar a punigdo celeste, voltando-se para o homem, seu com- panheiro, que ousa opor-se & palavra divina e a livra dessa mal- digdo, pronuneiada no inicio, para toda a etemnidade. Sem querer penetrar mais nesse terreno minado, pelas mais sutis e, talvez mais contraditorias interpretagdes, basta dizer que nao é por aca~ so que a invengao da anestesia é de esséncia masculina (como tudo o que diz respeito a cultura cientifica, do comego do século) Uma vez admitido no gineceu, uma vez aceito na cabeceira da muther que esta em trabalho de parto, o homem ficou profunda- mente tocado pelo espeticulo dessa dor, as vezes sufocante. Enquanto ele nao a via, mas ficava cagando a distincia, como ‘Antoine de Bourbon, ou mantinha-se ocupado com seus afaze- res, enquanto sua mulher estava “mergulhada em suas dores”, estas Ihe pareciam suportaveis. Bastava no pensar nelas, nem imaginé-las, mas uma vez vistas, uma ve ouvidas, ele teve que sair dali, pensando num modo de remedié-las, Até porque essas dores provém de sua obra, ¢ isso, sem diivida, é dificil de se esquecer. Assim, desde o século XVII, quando o homem irrompeu na cabeceira da mulher, que estava dando a luz, a historia do parto podetia ser interpretada como uma tentativa dele de me- Ihorar, cada vez mais, as condigdes do nascimento. Primeiro ten- tou salvar as criangas ¢ as mulheres da morte, depois procurou suprimir a dor de ambos. Do Dr. Lamaze ao Dr. Leboyer, so os homens que se dedicam a suprimir o softimento ligado ao parto € a0 nascimento. Como se eles fossem mais sensiveis, ¢ os pri- meiros a achar isso intolerdvel. interessante observar que os pais comegaram a ser ad- itidos na sala de parto, depois da invengiio dessas técnicas que permitem a mulher controlar sua dor. Como se fosse impe antes disso, impor a eles semethante espeticulo. B verdade que a rario invocada até entdo cra a possivel contaminago, mas sera 249 Nove Mists xa Vion un Mote que, durante anos, essa raztio nio funcionou como wm ai partir da guerra, a assepsia e os antibidticos propiciaram o con- trole das infecgdes, e, desde entao, niio é mais proi pai com uma roupa est indo de lado uma simples relagdo de causa ¢ efeito, muitos outros elementos entram em linha de conta, Por exemplo, 0 fato de que a sociedade daquela época estava em plena mutaciio, conforme testemunhou 0 movimento de maio de 1968, 0 movi- ‘mento pela liberagio da mulher, pela legislacdo do aborto, etc também, essa aproximagao, que pode ser vista como um fend- de parto Nessa sociedade, que busca uma nova coeréneia, é recolocada m questo a divisdo tradicional de papéis do homem e da mu- Iher. Lentamente, o homem procura um lugar diferente, como companheiro e como pai. Nesse sentido, parece que a peridural desencadeou uma pro- funda mudanga da cultura ligada ao parto, Outrora, eram as maes filhas em suas do- ‘das (para sua grande per- nascimento nao se inscrevesse mais, automaticamente, na linha- ‘gem matema, mas tivesse se tornado um assunto do casal. ntudo, essas mudangas cultur desse tipo, demoram a se impor. Sem eres terdo integrado essa pritica e darao A luz, como suas mies, ige delas, segurando a milo de seus companheiros, sorriden- 0 Pasto tes, sem sofrimento e sem dor de Mas, atualmente, a pratica ainda é muito recente e muito revolucionitria, criando, pelo menos inconscientemente, dificuldades para algumas. Durante as horas que precedem o parto, a parturiente vive aaproximagio da dor de formas diferentes. Em primeiro lugar, énecesséirio eselarecer que a {dade & dor varia considera- fente, conforme os individuos. Recentes ¢ numerosos traba- 10s sobre esse asstinto mostram que a sensibilidade esta ligada Alcmogio. A dor nio seria um fato objetivo, mas uma forma de emogiio. Assim, as pessoas de temperamento mais emotivo esta- iam mais expostas a dor do que as outras. Além disso, como as mulheres so preparadas de modos muito diferentes para contro- lor, quando ela se aproxima, elas apresentam maior ou menor capacidade de lidar com ela. Claro que isso tem a ver com a forma como elas foram preparadas para o parto (pelas diversas técnicas j mencionadas), mas nao somente. Quando a dor aparece, a historia de cada uma, nesse terreno, entra em jogo, podendo surpreender ¢ capturar todos os recursos de uma, en- quanto outra a enfrentara sem maiores dificuldades. Enfim, para muitas mulheres, a dor é, por excelénc! prova que simboliza o parto. Para clas, ser capaz de suport quase sindnimo de dar i luz. Quando esté sendo avaliado o tipo de parto provavel, muitas dizem: “Bu gostaria de experim ‘sem anestesia e, se eu no suportar, ento eu quero que me am uma peridural”. Como se, inicialmen submeter aesse teste, por verem a peridural fracasso de sua parte. Ges médicas. Como se os meios atuais ‘contemporinea na obrigaco de do a2 Nove Mists Vinx na Mout © Pasto 243 a livrem dela. Mas vivé-la ¢ expressé-la pode ser maltolerado ¢ sentido, pelas pessoas que assistem ao parto, como uma forma de exibigdo. Por outro lado, nao seria tentador taxar de maso- quista a mulher que exige esse direito? Também é verdade que a peridural modificou consideravelmente a atmosfera das salas de parto e que se, de um lado, calou a dor das mulheres ~ seus gritos, inedmodos para a assisténcia, especialmente para o pai que esté assistindo ao parto e softe muito -, de outro, isso permi tiu que elas ficassem liberadas. O modo como a mulher suporta a dor, aceita ou nao softer, sempre tem um sentido. Podem ser razGes culturais, ou questdes relacionadas ao que se passa entre ela e sua mie ~ identificagio ou oposic&io —, mas nunca é des- provido de significado. A mesma coisa em relaco ao pai de seu filho: ela pode ter a impresso de que a presenga dele a ajuda a assumir essa dor ou, ao contririo, nio querer saber da presenga dele, para nfio se sentir diminuida, aos olhos dele (aos dela pré- pria). Pode, também, ter o sentimento de que s6, sem ele, ela assumira melhor o que quer que acontega, Todas essas atitudes estiio ligadas 4 histéria do casal e a relagdo da mulher com 0 pessoal médico que a assiste. Algumas, longe de scus compa- nheiros, podem se sentir abandonadas, no meio de estranhos; outras se sentem mais apoiadas por esses profissionais, em quem clas confiam mais do que em si mesmas. Em que medida as sessdes de preparagiio para o parto aju- dam? £ nessa hora que vamos poder avaliar, o que é muito vari- vel e essencialmente individual. Todas as téenicas se apdiam na idéia de que é bom ocupar-se durante o trabalho de parto. Isso pode ocorrer pelo controle da respiragdo, como sugere o método psicoprofilitico, ou controlando os movimentos do ventre, como ensina a haptonomia. O objetivo é viver o processo de forma ativa e nfio passiva, jé que a atividade tem a tendéncia areduzir a percepgio da dor. Cada mulher aproveita sua apren- dizagem de forma diferente, por razdes relativas ao que ela & e pelo contexto desse parto. 8 claro que € mais facil exercitar uma ‘técnica durante um tempo limitado do que por varias horas. As- sim, segundo a duragdo do parto, cada uma apresenta maior ou ‘menor resisténcia e chegard— ou niio—a manter 0 controle até 0 fim, Alids, esse ¢ 0 aspecto problematico dos trabalhos de parto sem peridural. Se a durago do trabatho é longa, a mulher pode se encontrar sem forgas € ineapaz.de controlar sua dor, no fim do percurso. Algumas, ainda que preparadas, sio derrotadas pelos eventos ¢ assomadas pela dor. Outras, enfim, conseguem con- trolar até o fim, mesmo nos partos mais longos. E interessante saber que é bastante imprevisivel a forma como uma mulher vai dar 4 luz. Um médico pode acompanhar uma mulher, durante toda a sua gravidez, pensar que, tendo em vista as caracteristicas que ele pereebe nela ~ sua disposi- do, sua personalidade, seu cardter—, ela vai ter um parto sem maiores dificuldades. No entanto, ela pode perder totalmente seus recursos, numa atmosfera dramatica. Do mesmo modo, pode imaginar que outra, que ele percebe tensa, angustiad coma sensibilidade a flor da pele, tera um parto dificil, e acon- tece o contririo, corre tudo muito bem, Para explicar ess ros de previstio, pode-se pensar em incompeténcia do médico, ao fazer essa avaliagao psicolégica. Mas isso néio parece con- vincente, ainda mais quando as pessoas que esto em torno ea prépria mulher também se enganam sobre as capacidades, com- peténcias e incompeténcias dela. er- Parece que, nesse momento, ocorre um fendmeno pecul ar, que pode ser observado em muitas situagdes extrem: Sao situagdes em que a vida e a morte estio em jogo, € ali o homem ou a mulher sentem-se portadores de uma forga, que vem niio se sabe de onde, talvez das profundezas de sua historia e dahistéria da humanidade. E como se um outro eu tomasse as rédeas, um outro eu arcaico, surgido do fundo dos tempos (esse 4 Nove Mises xa Vion na Mui fundo dos tempos que habita no inconsciente) e & capaz do me- Ihor e do pior. Os homens descrevem tais situagdes nas provas de fogo que ocorrem durante as guerras. Antes de terem-se con- frontado com essa situagdo, as pessoas ignoram o modo como vio reagir, e algumas sio brutalmente tomadas por uma cora- gem herdica que as espanta, enquanto outras, invadidas por um das ¢ urinam nas calgas, para sua grande humilhagio. Em “Les mus et 1és morts”, Norman Mailer descreve um fendmeno desse género, mostrando que a coragem € 0 medo sto duas versdes do mesmo comportamento, do tao irracionais quanto imprevisiveis, sendo o primeiro soci- almente valorizado e 0 segundo desprezado (atributos injustos tanto num caso como em outro). Na hora do parto, produz-se um fendmeno da mesma or- dem. Confrontada com essa experiéneia areaica, que consiste em dara vida e que, a despeito das estraiégias utilizadas para manté-la sob controle, vai sempre além da imaginago, a mulher social (que. ‘omédico conhece até entdo) desaparece e, em seu lugar, surge a mulher areaica que ela mesma desconhece e que a transcende, Essa mulher reiine todas aquelas contidas em sua histéria, Em rimeiro lugar, ¢ claro, é a futura mae que esti la, mas, de acordo com sua histéria, todas as filhas e todas as mies que ela foi, a0 longo de sua existéncia, estio ali presentes no seu inconsciente, reunidas nessa ocasio: a menininha identificada com sua mie, que sonhava em oferecer um filho a seu proprio pai, a adolescente amrebatada pela forga de suas primeiras experiéncias sexuais, eem quemessa dor surge do fundo de suas entranhas, despertando inu- sitada surpresa. Nao se pode generalizar porque cada historia & individual, mas o mecanismo psiquico é comum e explica o fato de que cada mulher que esté em trabalho de parto est dando a luz asi mesma, Em alguns momentos, isso ocorre na dor; em outros, numa espécie de prazer dessa mulher desconhecida que aparece entio, e sobre a qual todos se enganaram, inclusive ela prépria. OPAL 23 Vem dai o carter revolucionario dessa experiéneia, que pode, re- almente, revelar uma mulher a si mesma, mostrar-the quem ela é, no furdo. Um fundo que nem sempre esta de acordo com s sonhos, mas que tem a vantagem de ser real e de permitir, a partir dai, que ele seja uma base estruturamte, representando um possivel apoio para um determinado reinicio. ‘Mas antes de deduzir eventuais conseqiiéncias, é preciso passar pela experiéncia, como Alice passou para o outro lado do espelho, ¢ accitar (ou nfo) essa possivel metamorfose, suportan- do o seu cardter inesperado. Nessa situacZo, também, cada mu- Ther reage & sua maneira, em fangiio do que esperava de si mes- ma, da idéia que fazia desse parto e de sua propria atitude. Para algumas é inadmissivel decepcionar e, animadas por essa vonta- de, elas “agiientam” até o fim, seja a dor que for. Se tiverem que “fraquejar”, o que nfo ocorrerd necessariamente, que seja mais tarde, Outras, ainda que também ndo tenham querido decepcio- nar, entregam-se, ficam desnorteadas e tm que aceitar que nao so a heroina que sonhavam ou o modelo de boa mie que clas tinham imaginado. Para outtas, ainda, a idéia de “estar a altura” niio é tio significativa e elas aceitam, com flexibilidade, a situa~ fio conforme ela se apresenta, com suas boas e més surpresas. ‘Mas todos esses comportamentos estiio ligados 3 hist ar de cada uma, que tanto suscita repetigdes, como progressos, conforme aestrutura de cada uma, e o que the permite o contex- to desse nascimento. Porque o contexto também influi bastante e, nessa situa gio de grande alteragdo intima e de fragilidade, o ambiente pode ajudar consideravelmente a mulher ou inibi-la, tornando a expe- rigncia extremamente penosa para ela. Esse contexto compie-se de virios e diferentes elementos: a saber, atitude do pessoal médico e a personalidade do obstetra Herrera in (tolerante 4 Tyida; atera 0 normativa), o desenvolvimento do parca #8 decisbes tomiés dyranteo trabalho (ficarno quarto até ottim© MO™nto, comieucompanheiro ou sem ele; fazer uma indesso P*™2 Aclerar otabalho, etc), as dificuldades que, even tual ment Sutkem (a ering parece estar em sofrimento, velade fato SofFCi © 4 @ngustia Re igo pode causa) etc. Eum conjunto de palavt@s, de gestos eckatas, que permitem o desenvolvimento dess.@ part®, de modo m8’ oy menos hamonioso, para essa mu- Ther. PoFdYS Fada uma tage a seu modo, Ha mulheres que se sentem apoiadas e confites yum enquadramento rigido, que lhes impde determinadas atitules, enquanto outras sentem um contex- toarsilog0: COM uma vid&neja insuportavel, ¢ preferem uma for ma detolernela que angistiara as primeiras. Cada mulher disp, também, de liberdade para influir de varias MANEATIS sobre 8 Context, Por um lado, ela pode dar uum jeito, Par due ele Iheseja agradavel e mesmo familiar. Pode pedis, por XC™Mplo, que coloquem a sua muisica predileta, que ela ouviv urante a suagavider, ¢ que a faz sentir-se relaxada pelo prazet AC roporcitna. Esse relaxamento também é senti- do pelo bebe de, sabew hoje em dia, pode reconhecer uma mmisica. Pot Outyo Tado, la pode ter uma atitude de “acompa- har 0-nasciMeMio” do bdé, acariciando o ventre entre as con- traces, Falando wom ele.chamando-o1no momento da expulsio, para atrai-l0 © Para darsbe forca, como uma forma de juntar a palayra a0 86810. .. Esse tbo de acompanhamento parece interes- sante. et? C450 Cle cesafina programada, pois a mulher pode participat melon, ji quetpenas 0 médico decidiua data ea hora da mosm®. Cabe 9 cada sheer tentar avaliar, antes do parto, em que tipo de ¢stTUQura hosttalar ela se sentird melhor, ¢ escolher em funci0 de stsas prioniadas, Muitas mulheres, sobretudo as mais jove®S ©S¢Cothem cligay em que vao fer seu parto em fun- gio de crit6ri0s MAo-métitos, sem, de fato, pensarem no parto cem si- Bla PeRSA: m, por eemplo, que é melhor darem a luz per- 0 Paro to de sua casa, o que fa do pai, ou perto da casa de sua male (pelas mesmas razdes), ou, ainda, escolhem a clinica ‘em que 0s quartos lies parecem mais bonitos, mais confortiveis. Ora, esses critérios parecem secundatios, talvez intiteis, em relagdo aquilo que clas se prepararam para viver. Apogar-se a eles pode ser entendido como uma forma de negagio? Uma maneira de dar as costas para 0 sofrimento? Em certos casos, sem diivida, Principalmente quando, vivendo em grandes cida- des, se tema possibilidade de escolher entre diferentes tipos de estrutura, Se é verdade que nem tudo pode ser previsto, so, também, as previsdes mal adaptadas que podem trazer surpresas desagradaveis. O que vai acontecer se na clinica do bairro onde hum belo quarto com cortinas de florezinhas nao houver servico de reanimagio neonatal, ¢ 0 bebé apresentar graves dificuldades ao nascer? Ele sera transportado, com urgéncia, para um hospital mais bem aparelhado que disponha de um servigo adequado... sem sua mie, porque ela ficard no quarto com cortinas de florezinhas, esperando ter alta para poder visité-lo. E uma experi- éncia difieil de viver e algumas, que nao tinham imaginado as coisas assim, caem das nuvens. E para melhorar essas previsdes ‘que servem as avaliagdes pré-natais: quando aparecem dificulda- des, serd escolhida, de preferéncia, uma estrutura compativel Quanto ao pessoal, 20s médicos, eles so igualmente de- votados tanto em hospitais, como em pequenas clinicas. Mas é mais interessante escolher o lugar para parto, em fungio das pessoas que trabalham nele, ¢ das boas relagdes que se possa ter com elas, do que em fungdo da decoragao ou das cores das paredes. Porque, no momento do parto, si elas que vio aju- dar, cada uma 4 sua maneira, o que ser melhor ou pior accito pela mulher. Um médico pode ter uma idéia muito precisa so- bre 0 desenvolvimento do parto, mostrando-se pouco tolerante com as VariagSes individuais e esperando que a mulher se con- 248 Now Mesis ns Vipa pa Muu duza de tal ow tal forma e niio de outro modo. Outro, ao contr- rio, deixaré A mulher uma espécie de livre escolha, em rela¢io &.conduta do trabalho, dentro de certos limites, ¢ claro, A atitu- de das sages-femmes, em geral, segue a atitude do médico que dirige o servigo. Depende de cada mulher apreciar na medida do possivel, durante as consultas preliminares, a qualidade da relagaio que ela pode estabelecer com uns ¢ com outros e avaliar o contexto que the seja mais favordvel. Durante trabalho, o titero se contrai regularmente, ¢ es- sas contragdes tém o objetivo de dilatar, progressivamente, 0 colo do titero. Dependendo da muther, essas contragdes so sentidas, de forma mais ou menos dolorosa. A mulher, por si $6, nio tem como saber se suas contra- gies so eficazes, ¢ se esse famoso “trabalho” esti progredindo. Sio as sages-femmes que vio Ihe dizer, examinando com um. simples toque vaginal, © qual, para uma pessoa experiente, ¢ suficiente para avaliar as condigGes de dilatagio do colo. Anti- gamente, falava-se em termos de imagens: vinte centavos, por exemplo, comparando-se o tamanho da abertura com as moedas correntes. Hoje, a avaliagiio se faz em centimetros, Mas sc isso no ¢ acompanhado por outras palavras mais humanas, a mulher pode ter a impresso angustiante de ser um objeto e de estar reduzida a esses centimetros, que parecem interessar mais a to- dos, do que aquilo que acontece com ela. Comegando 0 trabalho, ele prossegue num ritmo mais ou menos rapido; nas primiparas, pode, as vezes, ser muito lento. Sera que essa rapidez ou lentidao tem um sentido? Hoje, ain- da, se ignora o que a determina, e a equipe médica limita-se a observé-la: hé mulheres que dio a luz em duas horas, rompe a 0 Para 249 bolsa e ela chega ao hospital com a dilatag&o quase completa. Outras tém quinze horas de contragdes extremamente doloro- s, antes de romper a bolsa de aguas e de abrir passagem para o bebé. Entre esses dois extremos, todas as varidveis sio possi- veis e parecem indicar alguma coisa relacionada com o desejo. ou com a angiistia dessa mulher em deixar seu filho sair, em colocé-lo no mundo, separar-se dele, perdé-lo, Mas, do ponto de vista da crianga, também ha algo relacionado com o desejo de ficar ali onde esti eo de sair e enfrentar a vida desejada, principalmente quando nao é ele quem desencadeia o trabalho de parto, mas 0 médico Assim, podemos compreender 0 parto como 0 compro- misso entre duas ambivaléncias mais ou menos dificeis de serem ultrapassadas, a da mie a do fitho, Nao ha diivida de que a mulher sabe que é impossivel guardé-lo dentro de seu ventre. E, se 0 fizesse, seria uma forma de perdé-lo de um modo ainda mais definitive. A tniea forma de guardé-lo vivo € aceitando perdé-lo, ¢ abrindo mao da exclusividade, Mas, inconsciente- mente, a ambivaléneia pode entrar em jogo e expressar-se nes sas contragées to dolorosas, tio lentas, que demoram tanto a produzir o efeito necessario, para permitir a passagem do filho Por outro lado, algo dentro da crianga também sabe que é im- possivel ficar ali por mais tempo e que, para viver — porque é esse 0 seu desejo -, ¢ preciso ir em frente. Pois ambivaléncia é isto (como vimos no primeiro trimes- tre da gravidez): querer a0 mesmo tempo duas coisas incompati- veis. A mulher precisa decidir entre guardé-lo dentro de si ou deixa-lo viver. Ea decisao, ds vezes, ¢ dolorosa ¢ lenta. Em ca- S08 em que o nascimento se mostra realmente muito dificil, ¢ 0 bebé entra em softimento, a intervengaio do médico, quase sem- re, permite que venga a vida, seja com a ajuda do f com uma cesariana de emergéncia. E com a eset 250 [Nove Mists wa Vina na Muusex mente, é feita, ¢ cuja repercussao resulta em atos reais, a mulher renasce aliviada. Porque, no inconsciente, quando se trava um combate pela vida, ha, também, um combate contra a morte. E poder constatar que a vida venceu é sempre reconfortante. Nes- se caso, mais uma ve7, entra em jogo o contexto particular desse nascimento, facilitando ou dificultando que a mulher ponha esse filho no mundo, Pois aceitar fazer dele um sujeito, para a socie- dade, significa, para ela, uma forma de renunciar a ter esse filho s6 para si, ou, apenas, no seio da propria familia. Quanto A lentidao, é preciso pensar que o tempo, para uma mulher que est em trabalho de parto, é diferente do tempo dos gue esto em tomo dela. Quando mergulha nessa aventura, ela nd tem a mesma consciéneia temporal e, as vezes, as horas passam, parecendo longas para 0 pai, para o médico, para as sages-femmes, ¢ to curtas para ela, que mais tarde diré: “Eu? Tive um parto muito répido. Foram, apenas, algumas horas.” Para outras, 0 tempo parecerd arrastar-se, e uma dor néo-controlada poder estendé-lo infinitamente. O que esté em jogo, ent, para a mulher, &4 relagio entre o consciente e 0 inconsciente. F, para cada uma, essa relagio € vivida de mancira diferente. tempo de que falamos é 0 tempo da consciéneia que, para o inconsciente, no existe. Podemos supor que, quanto mais consciente é esse tempo, para a mulher que esti em trabalho de parto, mais ela se apega 4 sua conscién- cia e mais ela luta contra esse trabalho inconsciente, contra essa solugio de compromisso que, de qualquer maneira, teri de ocor- rer para que o nascimento seja possivel. Outras deixario que as coisas acontegam mais espontaneamente, ¢ que o trabalho pros- siga, sem se preocuparem com o tempo que passa, aceitando que ele transcorra da forma que for necessiria. Seja como for, cada uma tem necessidade do seu tempo e ninguém pode prever asua duragio. © Paro ast Qual é 0 papel da crianga, nessa aventura, que diz res- peito a ela, em primeiro lugar? Segundo se sabe, ¢ ela que de- seneadeia o trabalho. Alguns autores pensam, atualmente, que 0 jprocesso natural do nascimento comega no momento em que, por um sinal quimico emanado de seu cérebro, a crianga avisa a mie (cujo cérebro recebe a referida mensagem quimica, desen- cadeando as contragdes) de que est na hora de fazé-lo sair dali. Seu papel seria, pois, determinante, mas pararia por ai. Pois, dai em diante, durante todo o trabalho, até a passagem para o nasci- ‘mento, cla se mantém passiva e vive esses momentos num esta- do proximo ao sono, Essa concepgao — que € hipotética situa- ia, precisamente, @ Eventual ambivaléncia da crianga no mo- mento do inicio do trabalho: uma vez deseneadeads o trabalho, sua escolha pela vida estaria feita, e caberia & mulher compro- meter-se com essa escolha, enquanto o trabalho se desenrola. Essa recente teoria médica (que a crianga desencadeia 0 trabalho) levou a rever as hipéteses relativas ao trauma do nasei- mento e ao softimento que ele produziria na crianga. Hoje, hé ‘uma tendéncia a pensar que esse estado proximo ao sono desconecta a crianga de um possivel sofrimento, pelo menos, de um softimento, tal como nés, seres conscientes, podemos concebé-lo, O trauma, para a crianga, residiria, de fato, na forma como o bebé vem ao mundo e no modo, nem sempre adequado, mas tradicional, como é acolhido: luz excessiva, palmadas, ete. Contudo, niio se diz que o bebé softe? De fato, mas, nese caso, 6 linguagem médica que dé um sentido diferente. Quando se fala de sofrimento da crianga durante o trabalho de parto, ou no ‘momento do naseimento, fala-se de um fenémeno mensurivel, néio de um softimento subjetivo. Significa que foram observados sinais que indicam que cle nao est bem, Por exemplo, quando o Ifquido amniético adquire uma coloragtio é sinal de que a crianga evacuou ‘mecdinio (equivalente as fezes do recém-nascido), 0 que é interpre- 232 [Nove Mises na Vipa pa Mouse tado pelo médico como um sinal de softimento fetal, ¢ isso 0 levaa tomar uma decisio répida (a persisténeia do sofrimento fetal pode acarretar graves efeitos sobre sua satide). Ou, ainda, deduz-se queo bebé esta sofiendo quando o registro dos seus batimentos eardia- cos, no monitor, mostra alguma anomalia, sendo necesséria uma intervengo répida (uma cesariana, por exemplo). Se ndo houver intervengdo, entra em jogo o prognéstico vital Sdo muitas as causas que suscitam um sofrimento fetal, e, embora nem todas sejam conhecidas, algumas ja foram identificadas. Quando o cordao fica bloqueado, por exemplo, por estar enrolado ao redor de um brago ou do pescoso, ele pode ido e no deixar passar corretamente o sangue (que responsivel pelo fornecimento do oxigénio necessiiio & crian- a), colocando-a num estado de relativa anoxia (falta de oxige- nio). A crenga popular segundo a qual o cordao poderia “estran- gular” o bebé & errénea, o que, de fato, acontece é que o proprio cordio é “estrangulado”, colocando a sua vida em perigo. Esse cordio continua a ser vital, para o recém-nascido, até o momen- to em que, respirando, enche, pela primeira vez, os seus pul- mes com o ar ambiente e torna-se capaz de absorver 0 oxigénio io, por essa nova via. Somente, entio, se poder proce- der a0 mais simbilico dos gestos: a cesura do cordio umbilical. ser comp ‘Voltemos um pouco ao que se passa durante o trabalho Dependendo da instituigao, a mulher tera —ou nao —uma peridural «, assim, serd levada, mais cedo ou mais tarde, para a sala de partos. La, um pessoal relativamente numeroso esti presente: sages-femmes, enfermeiras pediatricas (presentes para acolhe- remo bebé, uma para cada um, se for uma gravidez miltipla), 0 médico e, as vezes, 0 pai Admitindo-se que a presenga do pai nao é obrigatéria, s6 se ele ou sua mulher desejarem, ele a acompanba e esta ali para Paro 253 acolher 0 bebé. Nesse caso, ja que ele esié ali, podemos nos petguntar: o que ele faz? Qual é seu papel? E, ainda, o que ele poderia fazer e nao faz. (porque nao esté preparado)?” testemunho das sages-femmes sobre esse aspecto coin- cide: os pais sentem-se pouco a vontade, ¢ a maioria parece se perguntar o que esti fazendo ali, Pelo menos enquanto o traba- Iho est em processo. Entdo, elas os ocupam. Quando a entrada deles, na sala de partos, néo era admitida, eles permaneciam con- finados no corredor, onde caminhavam de um lado para 0 outro e Ihes ofereciam cigarros... mesmo para os que nfo fumavat Era algo a que cles podiam se agarrar um pouco, como na piada em que um louco diz a outro: “Segure no pineel que eu vou tirar a.escada” — 0 pai classico estava destinado a segurar-se no seu cigatro até final do parto. ‘Atualmente, eles esto dentro da sala de partos e nd po- dem mais fumar, enti precisam ser ocupados de outra forma. E a maneira classica de fazé-lo & dar-lhe um vaporizador, com a consigna de vaporizar a parturiente, quando ela sentir muito ca- lor (o que é freqiiente). De fato, a mulher esta em jejum © nao pode beber, porque deve manter 0 estémago vazio, para a even- tualidade de uma intervengdo cinirgica de emergéncia. Logo, essa gua vaporizada em seu rosto é muito bem-vinda. Conforme o testemunho de alguns obstetras e de algumas sages-femmes, os pais entram involuntariamente nessa tarefa, mas assume rapidamente esse novo papel e, medida que as contra- ‘cGes se tornam mais freqtientes, passam a participar ativamente, vaporizando cada vez mais. No fim do trabalho, alguns vapori- zam freneticamente, nfo somente a mulher, mas todos os que esto presentes no parto (sages-femmes, enfermeiras peditticas, etc.) e, a essa altura, a sala de partos est mergulhada numa bru- ‘ma timida e quente... 0 que indica que o final est proximo. Se- 254 [Nove Mists ua Vins na Maen gundo er Judith Aronowiez, “para saber em que altura do parto uma mulher esta, bastaria medir a umidade relativa do ar, na sala de parto Mas, como dissemos, 0 direito do pai de estar presente niio deve transformar-se em obrigagao. Essa participacao deve ser negociada entre o casal. Ha mulheres que desejam que seu marido esteja presente, para assisti-las, e eles resistem ou aten- dem a esse pedido. Outras se mostram resistentes ¢ preferem que o homem espere fora (ou em casa) até que o bebé tenha nascido. As vezes, 0 modo como essa questéio é resolvida poderé serentendido, na do casal, como uma espécie de conelu- sio dessa gravidez. Assim, determinada mulher, cujo compankeiro mostrou-se particularmente dificil durante a gravidez, no mo- mento das primeiras dores, poder decidir ir ter seu parto sozi- nnha, Seja porque ela pensa que o comportamento do homem, em relacdo a essa aventura, ndio demonstrou o interesse € a atengo que ela esperava, seja porque ela se protege da ambivaléncia que ele demonstra e que ela niio suporta. Ha, também, casos mais draméticos, como o de um ho- mem que acompanhou sua amante, gravida dele, até a sala de partos, depois deixou-a, em pleno trabalho, sob o pretexto de it comprar fésforos... e nao voltou, Indo embora, ele deixou com uma sage-femme uma mensagem para sua companheira: ele ‘inha um outro lar, uma esposa e filhos, dos quais ele nunca tinha falado a ela, e ele tinha certeza de que nfo poderia assu- mir essa crianga, Admitindo-se que o homem assista ao parto, qual pode ser © seu papel? Como dissemos, assistir 4 sua mulher: segurar sua mio, aceitar que, em algum momento, ela crave as unhas em sua © Pano 255 carne, e umedecé-la.. Papel ingrato, sem dtivida, ainda mais que © espeticulo da dor pode ser dificil de suportar e que, nessas circunstincias, os homens podem sofrer muito, sentindo-se, as veres, culpados ¢ responsaveis pelo sofrimento que sua compa- mheira esté agiientando. Mas, em certos contextos, é um papel Util que, para alguns, pode estar carregado de sentido, sendo in- -vestido de modo muito positivo nessa aventura comum, que con- siste em dar a vida, Ainda nesse caso, a maneira como cada um vai viver esse momento so articula com sua histéria e com seus modelos parentais conscientes ou inconseientes ~ para o homem, trata-se de fazer como scu pai ou completamente diferente de seu pai (sempre ausente nessas ocasides, por exemplo). E, para a mu- Iher, trata-se de fazer como sua mae ou de modo algum como cla (que achava, por exemplo, que os homens tinham mais 0 que fazer e que o nascimento é um assunto que diz respeito exclusi- ‘yamente is mulheres). O encontro de ambos surge da forma como poderiio se articular, num projeto comum, os desejos respectivos oriundos de sua histéria ¢, assim, poderdo estar presentes, jun- tos, para acolherem seu filho. Allis, é provavelmente, nesse acolhimento que a presenga do pai pode encontrar todo o seu sentido: acolher 0 filho, nomes- Jo (quando 0 nome ja esté escolhido, o que ocorre muitas vezes), talvez até chamar o filho no momento da passagem, chamé-lo para a vida, com esta voz que o filho ja conhece, por té-la ouvido en- {quanto estava no ventre de sua mile. Tudo isso pode fazer parte das atribuigdes do pai, Se ele nfo 0 faz espontaneamente, & por que no ousa, nio foi preparado, ou porque a presenga do médi- co, que conhece os gestos e sabe o que fazer, 0 inibe, Ser que ele tem 0 sentimento que o profissional toma 0 seu lugar? Torna sua presenga imitil? E possivel. Pois a [Nowe Mists na Vina a Moun medicalizaggio do parto pode ser vivida, tanto pelo homem, como pela mulher, como uma perda da posse desse evento tio intimo. Pois toda a intimidade desaparece, com a presenca do pessoal médico, a aparelhagem tecnolégica, a luz intensa, ¢ mesmo as pernas abertas da mulher, perante essa assisténcia mumerosa, Todo © dispositivo que envolve o nascimento parece feito para des- truir 0 que ele poderia ter de intimo e de secreto. Como se a medicina, ao entrar em cena, cagasse todo 0 poder, como se 0 pudorestivesse fora de questio, Entio o pudor se desloca. Cagado do corpo, ele se prende spalavras, que ficam presas na garganta, E tudo se passa como se, frente a essa extrema falta de pudor provocada pela dor, pe- los liquidos, pelo sangue, s6 restasse ao homem se calar. Tem-se impressio de que, longe de toda a técnica, no fundo de uma gruta, sozinho com sua mulher, para acolher essa nova vida, ele ‘encontraria espontaneamente as palavras necessirias ¢ diria, ime~ diatamente, a seu filho o nome e o sobrenome que the deu e que est orgulhoso de Ihe transmitir, Ao invés de lamentarmos por no darmos mais & luz nas grutas —o que também tinha os seus, inconvenientes -, podemos, talvez, pensar em dar novamente 20 homem o papel que é prioritariamente seu, pela forma como a nossa sociedade esté estruturada, e que justificaria sua presenga na sala de partos: dar 0 nome a seu filo, no momento em que ele vem ao mundo. “Os homens no ousam falar”, dizem as sages-femmes. Mas nao poderiamos estimuli-los? Por que nao imaginar uma preparagiio para o nascimento especificamente destinada aos pais, e que atendesse a essa perspectiva? As vezes, nas maternidades, logo apés o nascimento, deixam 0 homem e a mulher a s6s com seu filho, por uns instantes, Justamente para permitir-Ihes que reencontrem um pouco dessa intimidade perdida, podendo se dizer tudo o que tiverem vontade, nesse momento, Para os mais © Paro 257 inibidos, pode ser um tempo insuficiente. O que dizer em tao pouco tempo? E por qué? Quando é feito um trabalho de prepa- ragiio que coloque em evidéncia o sentido que pode ter para ele falar a seu filho, acolhé-1o, nomed-lo, cle pode estar mais apto a viver esse momento excepcional, em toda plenitude do seu sen- tido, do sentido que ele pode dar a tudo isso, mesmo sabendo que, de qualquer maneira, nfo conseguir captar boa parte dele. Se os homens se calam ou falam pouco (mas sempre bias excegdes), as mulheres parecem ter a tendéncia a submergirnum mar de palavras... fazendo submergir, junto, a assisténcia. Ser 86 para se distrairem ou serd por que 0 parto c a perspectiva do seu desenlace as colocam num estado de excitagdo que ela ex- pressa assim? Essa explicagiio puramente comportamentalista parece in- suficiente. A gravidez tem efeitos mais especificos sobre a pala vra da mulher, ¢ isso pode ser constatado quando as gravidas consultam um psicanalista. Num primeiro momento, podemos recolher testemunhos discordantes, mas muito interessantes, a esse respeito. Um psi- canalista relatou o fato de que, em sua clientela, as mulheres gravidas falavam muito e realizavam um étimo trabalho, progre- indo em seu tratamento de forma extraordindria. Outro consta- tou exatamente o inverso: as mulheres gravidas que o consulta- ‘vam apresentavam profundas dificuldades de falar. Eles come- arama se questionar sobre essa contradigao aparente. Seria por que se tratava da especificidade do momento de cada uma? ‘Go, a gravidez no intervém de modo especifico? A anise mi precisa das respectivas clientelas colocou em evidéncia uma di- ferenga que parece estar na origem da contradigio observada. As mulheres de que falava o primeiro estavam em andilise havia muito tempo e tinham engravidado durante o tratamento, enquan- 258 Nove Misus xa Vina oe Mein to as mulheres de que falava o segundo tinham-no consultado quando ja estavam gravidas. Levantaram a hipétese de que as primeiras 4 tinham podido mobilizar suas resisténcias psiquicas, através do trabalho psicanalitico, podendo-se expressar com mai- or facilidade. Nas outras, essas resisténcias se mantinham e pa- reciam, mesmo, consolidadas pela gravidez. Como se os meca~ nismos de defesa e de protegdio que se instauram com a gestagio se aplicassem, também, & palavra. Como se 0 bebé funcionasse como uma rotha, impedindo 0 acesso ao inconsciente da mulher gravida, e como se, no momento do parto, esse acesso fosse li- berado naturalmente. De fato, a palavra, até entiio, parcimoniosa, controlada, vigiada, de uma hora para outra se destampa. Muitas mulheres, no momento do parto, falam de milhares de coisas, dos projetos de férias, da casa que vio comprar, do parto anteri- or... Os temas se encadleiam sucessivamente, sem seqiiéncia 1b gica aparente, como se precisassem falar, falar para que essas palavras trouxessem alivio, ao processo do nascimento. E, as vvezes, no meio de uma frase, a sage-femme a interrompe, com palavras priticas e pouco sutis: “Respire, respire forte...” ou“Em- pura, forea, forga — alli, pronto, Ta bom, agora respire.” Nesse momento, o trabalho terminou. A mulher chegou a dilatagao completa, a cabega do bebé esta visivel e, entdo, come- a 0 perfodo expulsivo. Algumas vezes, 60 momento escolhido pelo médico (que pode ser uma mulher) para fazera sua entrada, apés ter sido avisado pelas sages-femmes (que podem ser ho- ‘mens), que est na hora de ele intervir. Outras vezes, slo as pro- prias sages-femmes que, seguindo a melhor tradigo, levam o nascimento a cabo, Qualquer das duas solugdes poderd ter a preferéneia da mulher, independente da nossa opinidio, Algumas preferem, no momento crucial, uma presenca médica, e até masculina, que simbolize para ela forga ¢ poder reasseguradores. Outras se sen= O Pawo 259 tem mais bem apoiadas por mulheres, sentidas como mais ca- pazes de se solidarizarem com sua experiéncia. Si opgSes pes~ soais, que surgem da historia intima de cada uma, da histéria de suas relagdes com 0 masculino e com o feminino, encarna- das originalmente pelo pai e pela mae, e, conforme o contexto, podem se mostrar, respectivamente, para ela, benéficas ou t6- xicas, tranqiiilizadoras ou angustiantes, reasseguradoras ou ansiégenas. O marido continua a vaporizé-la, mais freneticamente do que nunea. A mulher, deitada sobre a mesa (em geral, dura), em posigiio mais ou menos inelinada, faz as forgas que the mandam, procura dar conta das lamas profundas que esto sendo mexidas e, por momentos, a invadem, enquanto seu companheiro, como que tomado por essa forga de vida que abre passagem, a acom- panha em seu esforco, com uma conviegéio emocionante. Os pro~ fissionais assistem, aconselham, apéiam. Mais uma vez, 0 tempo varia de uma para outra, mas seja como for, sempre parece suspenso. No momento em que a vida se anuncia ¢ irrompe, um sopro de eterniclade passa. Mesmo par- ticipando de numerosas chegadas como essa, os profission sabem bem disso. Ef sempre milagroso. Em especial, o momento da expulsio, quando as mulheres experimentam uma profunda dor e a transcendem, usufruindo um prazer arrebatador. 0 médico controla o perineo, atento a sinais de ruptura, Freqiientemente, para eviti-las, ele faz. uma episiotomia, cor tando 0 miisculo que costuraré depois da dequitagiio, Muitas sages-femmes preferem evitar essa manobra, que clas scntem ‘como especificamente masculina. “E um ato de machos”, dizem muitas delas, “0 que no quer dizer que apenas os homens fagam. Algumas mulheres atuam como machos. Eu (diz Judith ‘Aronowicz) prefiro nao cortar. Na maioria das vezes, pode-se 260 [Nove Mases nn Vint Menem , basta controlar as pequenas rupturas sem gravidade”. A. ‘menos que seja um ato médieo, A formagao desses dois profissi- onais ¢ diferente. O médico aprendeu que cortar e depois costu- rar é melhor para 0 perineo do que uma ruptura descontrolada. Mas, segundo as sages-j nha fundamento, ¢ pensam que numerosas teis. Talvez seja uma p podem ensinara mulher a relaxar 0 perineo ea evitar a episeoto- mia. Eo que afirma Catherine Dolto-Tolich, que diz da em sua experiéneia elinica. As condutas variam, alguns cor- zem, 0 que se espera é que a indicagdo de episcot muitas vezes, & indolor, Para outras, é muito dolorosa, De qualquer modo, é desconfor- tavel, durante alguns dias e, até, por muito tempo. I: possivel que isso esteja relacionado ao fato de haver um corte in , numa regio to carregada de simbolismo, ou pode ser pelo Para algumas mulheres, a episeotomia, ds vezes, ferimento em si, diferenciar. Se nao houver peridural, preciso fazer uma ai véncia em relagio a isso é muito uma palavra que tem um sentido pesado e, , provoca mal-estar, Faz. lembrar das criangas qu antigamente, guardavam, na testa, marcas desse nascimento, quase forgado. E as mulheres, que também ficaram marcadas por essas ‘memérias, temem que seus filhos fiquem com esses sinais da intervengio mé& sozinhas, néo teriam podido levar até 0 © Paro Qa eee negativas, que continuam a pers res, afirmam que jamais usam forceps. Mas eles usar sas, 0 que di no mesmo, Evitam a palavra, mas no 0 Por que néo deixar o bebé sair, seguindo o seu préprio rit- ‘mo? Porque isso nem sempre é possivel. As vezes, a mulher estit exausta, oto bebé corre o risco de entrar em softimento, em fun- ‘Go do grande niimero de horas que esteja durando o parto. Mas a decisdio de intervengio varia, segundo os médicos e segundo as iges-femmes. Cada um, segundo sua set lade, sua forma- ‘fo e sua arte, tem a sua maneira de conduzir um parto, ou de se deixar conduzir por ele, Alguns intervém mais cedo; outros, mais tarde, mas é preciso saber que existem situagdes em que, seja qual fora conviegdo que se tenha, autilizagdio do forceps, ou da vento- sa, é imperativo, dada uma necessidade médica, Algumas mulhe- res tém a impresstio de que a utilizagio do forceps rouba-lhe algu- ‘ma coisa, que elas ndo tiveram sucesso na expulstio. “Foi preciso que pegassem as ‘Muitas vezes, as pala ‘ras pesam ¢ gravitam em tomo do nascimento, como a so de um fracasso, Mas, 4s vezes, nfo, Hé mulheres que acham natu- ral procurar um médico sentem sua intervengaio como um ap necessério, Outras o percebem como uma violencia. Ness to, cada gesto, cada evento, é sentido de maneira diferente pelos parceiros. E, no entanto, todos desejam a mesma coisa: que tudo jorra bem. Maso “bem”, para a mulher, nfo é, necessariamente, 0 bem” para o médico ou para o bebs. Quando 0 bebé aparece, muitos desses pequ dos intensamente so esquecidos, na mesma he soma desses pequenos fatos ¢ a sua tecitura pat 262 Now Mest Vi oa Muu idados da me tan o impel possivel, mas que, aguas ve7es inc bs estham Por exemple, quando o parto evolu mal, ¢ para salviig:ntmento, sendo necessrio intervir apidamente previsto, pf ums eesariana de emergéncia, Diante do im Ppa aman Becessiti fazer 0 pai sar © send necessitio a ae ev de eentr isso, Como vaireagir a mulher arcai- contra finan © 2 82? Algumas extra em pénic, cvtrasex- for Mas cing fund desi mesmas, que elas nem suspetavam nisto nao esté relacionado apenas a crianga. Adi Cal; aatmoster i t4® inesperada modifica consideraveimente médica tera, '®- Com a rgénci, os eritrios mudam. O erlang chek “ePentinamente, ator principal. Falar com. mente regan ©, nomeéslo, tudo isso fica, momentanea- Pabé poser la segundo plano. O que eonta agora € que o que cvs quge com boa sade, e sem seqielas. $6 depois aeesvom felt Primordial estiver resolvida, & que pensare- Com o bebé, antes, nao. pect feaaagtados 08 médicos tém uma reagao tio precisa Vigo de urgenge®: Para Dominique Reboud, médica de um ser- Teer o que sntPeditrica, ¢ tio urzente socomrero bebé quanto imultina mic. Assim, a verbalizagaio pode seg euldados, e pode-se ima ido para a sala de partos. Conform adormecé-k bem pode jan’ 2 modo como a mulher reage, pode-se decidir eepomaman neater, mantendo-a consciente, se houver ja conscient 5° ft. aprioi parece peferivel queelaeste- Mejaexceneyettt aeolher 0 bebé, mas € preciso que ela ndo uns para orattenteangustiada, © que no traria benefico al- roe paroa, Quanto aisso, a equipe médica tomaré a deci Mais favordvel, isto é, aquela que permita fazer face 4s suas pri Motidades, nas melhores condigdes possi is. © Parte 26 Com excegio desses imprevistos, que podem deixar na mulher a lembranga um pouco amarga da frustragiio (se bem que nem sempte, porque depois a historia é reconstruida e a lem- branga modifica o que de fato aconteceu), 0 parto termina, na maior parte dos casos, com a chegada do filo. O médico ou a sage-femme o recebe em suas mos € 0 coloca sobre o ventre da mulher, antes mesmo de cortar 0 cordao, que ainda o liga & p! centa. E um momento de emogao intensa para os pais, instante de sideragio: eles 0 olham e no o véem, Era cle que cles espe- ravam e se comportam como se nunca o tivessem imaginado. Nesse momento, 2 mulher pega seu filho ¢ 0 aperta contra la, contra seu peito, sem olhi-lo. O contato camal é suficiente para ela, como se fosse esse 0 modo de recomhecé-lo, de fazé-lo seu, O pai ndo tem uma disposigao espontinea para esse contato sensivel, e serd preciso conquisté-lo, Por enquanto, ele olha o seu filho, Mas, ao mesmo tempo, ele dé a impressiio de ver outra coi- sa, uma outra crianga, nao aquela real, como se ele acolhesse, nes- ses primeiros momentos, 0 filho que tinha na cabega, que ele ima- ginava ha meses. O que nos condua essa hipétese & 0 fato, u nimemente observado, que, nesse momento, os pais nao véem a anomalias de que 0 bebé € portador, mesmo que sejam evidentes. Em contrapartida, na maioria dos casos, o que cles olham, se ainda nfo sabem (e mesmo que jé saibam), é 0 sexo da gga. O sexo vai determinar o nome, Ser que jé escolheram, ou os pais ainda nfo se decidiram? Muitas vezes, os pais tém um nome escolhido para uma filha ¢ no para um filho. Como se, para o ‘menino, o nome fosse secundario, ja que nasce com o sobreno- ‘me, que mantera por toda a sua vida. A filha, ao contt servara seu nome, mas poderi trocar de sobrenome. Muitas vezes, é a presenga do bebé que desperta a idéia do nome. “Bla tem uma cara de... Bloide”. Para Frangoise Dolto, a 264 [Nove Mesis na Vina na Mi situagdo ideal seria que a propria crianga, em sua alteridade, sus- citasse 0 nome, pelo qual ela sera reconhecida em toda a sua vida, dando-lhe sentido, definindo-a, ao invés de receber um nome preparado que & colocado sobre ela, como uma etiqueta. Porque se o nome de familia inscreve a crianga na sua linhagem e Ihe 6 imposto por ela, o proprio nome é um vocabulo que Ihe pertence e a distingue de todos os outros membros de sua linha- ‘gem (mesmo se, em certas familias, ele também se inscreve na linhagem, ao menos para o segundo ou o terceiro nome). De certa maneira, é esse nome que Ihe dé sua identidade particular, no seio do cla. E 6, também, no momento em que se corta 0 cordio, e em que a identidade é dada a crianca, que ela adquire seu status de sujeito, na familia ¢ também na sociedade. Os pais, impdem essa identidade, em fungdo de uma idéia preconcebida, em fungao de um modelo, que eles amam ou respeitam (“vamos chamé-lo Victor, como Victor Hugo”... 0 que talvez seja mais eve do que Philippe, quando é em homenagem ao Marechal Pétain, como foi o caso de toda uma geragdo que nasceu durante a guerra, e foi assim batizada). Ou, entio, eles esperam ver a crianga, ouvi-la, ficam numa espécie de disponibilidade, em que propria crianga vai, por assim dizer, “chamar” seu nome e por cle, logo depois, seri chamada, Nesse tipo de expectativa res- peitosa, pode-se ouvir um primeiro esbogo de didlogo, mas de qualquer modo é sinal de um reconhecimento imediato da alteridade da crianga. __ O bebé esti sobre o ventre da mulher, mas o parto ainda nilo acabou, faltam dois atos maiores, para que 0 naseimento esteja terminado: cortar o cordio umbilical, que liga 0 bebé placenta, ¢ a saida da placenta que, em geral, ocorre de dez a quinze minutos depois da expulsto do bebé. A essa altura, a assisténcia comega a respirar aliviada, cai a tensdo sob a qual a expulsio foi vivenciada, ¢ os vapores timidos, da sala de parto, lentamente baixam. , © Paso ‘A saida do ventre da mie ndo representa, apenas, crianga, uma “mudanga ecolégica”, mas uma profunda altera- gio tanto fisiolégica, como simbélica, 20 fim da qual, de simples foto ligado & mie, sem a qual ndo podia viver, se toma, sinmulta- neamente, uma crianga no sentido pleno do termo, fisiologica- mente independente (isto é, capaz. de sobreviver com 0 auxilio de qualquer adulto), e um sujeito de direito. Enquanto esté no ventre de sua mie, o feto nfo tem status social autonomo, Por mais avangada que esteja a gravidez, ele no tem existéncia administrativa e existe apenas como um pro~ jeto, ou, ainda, como um apéndice ligado a0 corpo da mac. S60 hhascimento, com a separagaio que ele implica, vai lhe propiciar esse status ~ alis, tanto se nascer Vivo, como se nascer morto, pois, a partir de 28 semanas, toda a crianga nascida ¢ inscrita nos registros civis do estado. O mais belo sinal desse fato capital €0 letreiro que aparece na maioria das matemnidades: “E proibidaa entrada de criangas menores”. Esse absurdo logico ~ que faz pensar em outro, que pode ser encontrado em grandes lojas da Bélgica, apés um tragico incéndio ocorrido no magazine “jnnovation”, nos anos sessenta: “Em caso de pinico, permane- ga calmo” — traduz uma importante realidade simbélica: a mu- Iher gravida que entra na maternidade no traz uma crianga, mas tum feto que se tomar uma crianga por inteiro, somente apds 0 nascimento, O curioso é que a crianga quando nasce é declarada ‘a0 estado civil, mas niio é registrada pela administrago hospita- lar, ficando, até a saida, um passageiro clandestino, salvo quan- do adoece e se torna justificavel uma hospitalizagio. O sinal mais nitido dessa grande alteragiio fisiolbgica, que o nascimento representa, & o lugar das trocas com a mae. Até centio, para viver, a crianga tinha necessidade de ser oxigenada, fo que era feito gragas a0 cordiio que o colocaya em contato com o sangue de sua mie, por intermédio da placenta, 266 [Nove Masis na Vint i Muu No momento da formidvel revolugio do nascimento, a crianga sai, e 0 médico, ou o pai, eorta 0 cordsio umbilical. A interrupgiio da cireulagao sanguinea através do cordao (e, por- tanto, a chegada de oxigénio), que acontece antes mesmo do corte propriamente dito, instaura, na crianga, a necessidade de respiragio. Aspirando espontaneamente esse ar misturado de oxigenio, ela enche, pela primeira vez, os scus pulmdes... € faza assisténcia — que espera ansiosamente por isso — ouvir seu pri- meiro grito, Grito de esforgo, de sofrimento, simples inicio do funcionamento? Alids, esse grito ndio precisa ser um berro deses- perado (0 que ocorria muitas vezes quando o bebé nascia em ambiente de intensa luminosidade, sendo, em seguida, virado de cabeca para baixo quando recebia uma palmada no bumbum). Pode ser um gritinho, quando o nascimento ocorre em condi- gGes mais suaves, como preconiza, de forma original, Leboyer Mas, apesar das diversas interpretagies dadas a esse grito, & pre- ciso admitir que nenhuma contempla a possibilidade de ser um gtito de alegria, O médico ouve, nesse grito, a confirmagao de que a muta- Jo correu bem, os pais ouvem pela primeira vez o som dessa nova voz, ¢ uma espécie de chamado. Na maioria dos casos, a ile tende, espontancamente, a ouvir nesse grito uma comunica- io com sentido, e pode se perguntar: “Ele esté sofrendo? Tem alguma coisa errada?” Manifesta, assim, o que Winnicott chama de “preocupagéio matema priméria” . Porque, para um ser huma- 1no, 0 grito de um outro ser humano sempre tem um sentido, ¢ a sua primeira preocupagio é tentar decitré-lo. As palavras trangililizadoras dos profissionais acalmam, sem divida, mas somente em parte. Daqui para frente, a partir dese grito, 0 didlogo entre os dois esté estabelecido, ¢ cada vez que ele gritara mie vai tentar entender 0 que o seu filho lhe diz: se ele tem fome, sede, calor, dor, sono, etc. B impensdvel que 0 0 Pawo 267 grito que emana de seu filho nfo tenha sentido para uma mulher. E éprecisamente essa faculdade de dar sentido que caracteriza 0 humano. Colocando sentido nessas minimas inflexdes de voz, ela adivinhara suas necessidades, seus desejos e, através de suas interpretages e de suas palavras, teceré o sentido que se tornaré a base do desenvolvimento da erianga. {Quando dissemos que as alteragGes fisiologicas ocorridas no nascitento se passam no lugar das trocas com a mae, nao fizemos uma afirmagdo gratuita, porque, de fato, amutagiio ocorre na propria troca que se transforma: ¢ 0 exato momento em que a crianga passa da placenta para a vida auténoma—e, até entiio, a placenta era justamente o lugar de todas as trocas vitais com a mie, abrindo-se, para ela, a possibilidade de se expressar hu- manamente, através de sua voz. Fa propria parada do funcion: mento da placenta que, por assim dizer, “liberta” sua voz (ainda que niio se trate, evidentemente, de um mecanismo fisiologico propriamente dito). Em outras palavras, é a ruptura do modo de troca placentirio, que instaura um modo de troca vocal iniciada pelo gtito. No inicio, portant, é a respiracHo aérea que condiciona a vor. E se a voz. pode ser considerada como o que vai se tomar, mais tarde, o lugar privilegiado, na ordem do simbélico, para as relagdes com a mae, através dela e além dela, com a sociedade fnumana, é necessério que a respiragdo se instaure corretamente. Assim, podem-se distinguir dois momentos na mutacio, duas etapas distintas, em que a primeira condiciona a segunda: quando a placenta deixa de funcionar—a placenta onde se dio as trocas com amie, ¢ apenas com amie —, a crianga deve apren- dera respirar, ou seja, deve entrar num modo de trocas indistin- tas como ambiente do ponto de vista fisiol6gico, como qualquer outro ser humano, Essa modificagdo pode ser feita delicadamen- 268 [Nowe Mesis wa Vina Ment 0 Paso 269 lacenta parando progressivamente de funcionar, enquanto a respiragio se instala e garante a chegada do oxigénio necessa- rio. Essa etapa permite que a voz entre em fungio e, pela voz, a crianga reinstaura, de um outro modo, a troca privilegiada com a mie Nesse sentido, podem-se entender as patologias respirat6- ias dos recém-nascidos — sobretudo dos prematuros, em quem sto muito mais freqiientes ~ como uma forma de expressarem que ainda néio esto prontos para entrarem nesse sistema de tro- r pessoa, imposta pela fase aérea, Mostram, desse modo, que ainda nao esto prontos para aban- donar essas trocas privilegiadas ¢ exclusivas com sua mie, de quem ainda tém uma neeessidade vital. Feito 0 salto, com a as- sisténcia médica necesséria, a situagio passa a ser. eles, sob 0 modo de passa ou dobra: ou progridem ea patologia cede, ou nao vivem. Pessoas que tral em servigos de reanimagao neonatal tém esse sentimento: a assisténcia técnica que eles oferecem ao prematuro é uma forma de dar-Ihe tempo para escolher, de ver se ele pode, ou nao, enfrentar a vida, Essa técnica, hoje em dia, muito precisa, permite, efetivamente, que muitas criangas sejam salvas, mas ela também tem seus insucessos, nem sempre ex; caveis do ponto de vista médico. Por que um recém-nascido ace- lera 0 seu desenvolvimento e se desloca no sentido da vida, en- quanto outzo fica estagnado, depois regride até deixar-se mor- tema ver com a sua S m o prdprio projeto do qual ele foi objeto, num contexto que, talvez, niio Ihe permitisse tomar lugar e viver. Assim, 0 nascimento pode ser entendido, do ponto de vis- ta da crianga, como uma partida de “quem perde, ganha”—a meira de uma longa série. De fato, perdendo o modo do ¢ exclusivo de trocas com sua mie através da placenta, 0 bebé reata a ligagao com ela, de outro modo, pela respi gragas a sua voz. Mas a respiragio oferece a ele a possibilidade de outros reencontros: colado contra o ventre de sua mie, ele reconhece 0 odor da pele dela, mas logo, também, o de seu leite. Como de- ‘monstram recentes pesquisas sobre a se idade fetal, denteo do iitero, o bebé ja pervebia a mae, através do liquido amniético, cujo sabor peculiar ele jé experimentava, e que nio se assemelha anenhum outro. Esse odor conhecido, reencontrado nesse mun- do aéreo que, sem isso, parecia a cle completamente estranho, constitui uma trangitilizadora referéncia, que da a sua existén uma forma de continuidade, Assim, o nascimento aparece como uma passagem, uma mutagdo e nfo como uma ruptura. E quan- do ha uma ruptura ~ 0 que acontece, por exemplo, nos partos anénimos, em que o filho, ao nascer, ¢ afastado da mulher (a seu pedido) ~, 6 uma perda sibita, para o bebé, de todas as suas referencias sensoriais, o que, supomos, torna a adaptago ao mun- palavras coma historia de sua origem. da expulsdo da crianga, dois gestos simbélicos ¢ taciio de trocas, ¢ a entrada da eri- anga na ordem do humano: de um lado, o corte do cordio; de ouro, a dequitagdo placentiria, So eventos simétricos, porque setrata, tanto para a mie como para o bebé, de se separarem deise 6rgiio provisério, que era o lugar de trocas entre eles. Cor taxdo 0 cordio, 0 médico separa o bebé da placenta e, desse modo, 0 instaura como um sujeito auténomo, capaz de sobrevi- ‘ve sem a ajuda exclusiva de sua mae. Pela dequitagao, a mie, por sua vez, se livra da placenta que, em contato com seu san- 12, encontrava nele o que dar a seu filho para que ele vivesse. Nove Mists ya Vina oa Muu Nessa perspectiva, podem-se entender todas as patologias ligadas a esses atos como a expresso de uma dificuldade, para uma ou para 0 outro, de aceitar essa mutaggo ou essa separacaio. Por exemplo, a patologia respiratéria nos recém-nascidos e a pa- tologia placentiria da mae, quando a placenta nao se descola bem, ou nfo pode se descolar completamente, e hi o risco de provocar hemorragia perigosa para a vida da mae, como 6 0 caso da placenta dita “acreta”. Algumas vezes, o sentido dessa difi- culdade nao ¢ acessivel, mas, de todo o modo, devera ser re- situado no contexto particular dessa gravidez e da histéria da mie, sendo eventualmente entendido, por exemplo, como a re- petigiio de casos semethantes na familia, ou como a repetigfio do que ocorreu no préprio nascimento da mie. E exatamente porque 0 nascimento é, para a crianga, mu- tagdo, passagem para o intercmbio vocal, que é tio importante falar com ela, nesse momento, Nomeé-la, dizer-Ihe quem é 0 seu pai, quem é sua mie, dirigindo-the palavras que, além de entronizé-la na ordem da linguagem, situam-na e definem o seu lugar. Pois, 0 fato dea crianga nao falar ainda (0 que leva os pais acrerem que ela nfo entende coisa alguma do que Ihe & dito), de no colocar em palavras o que Ihe acontece, é, precisamente, 0 que deixa nela marcas, que Ihe permitirdo situar-se em sua histé- ria. Eo momento em que o pai podera intervir, chamé-la por seu nome. Ainda mais que o bebé também reconhece a sua voz, que foi ouvida, durante a gestagéo, através da parede abdominal. Frangoise Dolto formula as coisas de forma diferente: “Quando uma crianga nasce, é de importancia capital que a mie Ihe diga quem é o seu pai, e que o proprio pai se declare respon- savel pelo filho. Enfim, ele esté af, ele nasceu para a palavra que faz parte de um eédigo de linguagem, o qual permite que cle formule o que sente. E jé que ele ouve tudo, se ele nao é coloca- do na linguagem do cédigo verbal de seus pais, ¢ se é deixado Paso nesse corpo, sem um investimento afetivo imediato, sua capaci- dade intelectual Ihe € suprimida” (La cause des enfants, p.335). ‘Uma vez que a crianga saiu do corpo da mae, passou al- guns instantes sobre o seu ventte e esti separada da placenta, ela € conduzida pela sage-femme ou pela enfermeira pediétrica — ‘em geral, seguida pelo pai -, para receber os primeiros cuidados, E feita a primeira higiene, a primeira coleta de sangue (retirado do calcanhar), para controlar as taxas de agticar, e a aspiragao do muco, depositado nas suas vias respiratérias. Todos esses atos médicos, apesar de praticados com delicadeza, slo sentidos pela crianga como agressdes, ds quais pode reagir gritando um pouco ou muito. Observamos que, se 0 pai esti presente, nesse mo- mento, e Ihe fala, o bebé se acalma. Sera que ele reconhece sua ‘voz? Ou ser porque um pai dirigindo-se a seu filho, usa espon- taneamente um tom que o recém-nascido sente como especial? De qualquer modo, ha uma inter-relago, porque tais palavras produzidas por essa voz acalmam mais o bebé e tém um efeito sobre ele que outras vozes nao tem. Finalmente, é preciso evocar os nascimentos dificeis que, ainda que sejam em menor niimero, resultam em separages pto- vis6rias. Eo caso dos grandes prematuros, ou das eriangas do- entes que, porrazdes médicas, precisam de euidados especiais, & que, por isso, desde que saem do ventre da mie, sio afastadas delae sio hospitalizadas em servigos de neonatolog as separagées sto sempre dificeis e prejudiciais, tanto para a mae como para o bebé e, por isso, algu -0s hospi- talares de ponta encontraram solugdes que pel it separago, oferecendo a crianga o cuidado que ela neces m afasti-la de sua mae, No hospital Antoine-Béclére, de Clamart”, do nas corcanias de Pe 37 Hospital de refertcia na rede publica frances, a2 Nove Mests ns Vuoans Meuse por exemplo, ha uma unidade canguru, em que os recém-nasci- dos prematuros, que nao sofrem de patologias muito graves, po- dem ser cuidados por suas mies, mantendo contato com elas, soba assisténci deuma equipe especializada. A exem- plo dos bebés-cangurus de Bogoti, abservamos que, 0 calor e 0 odor da mie permitem que os prematuros se restabelegam mais rapidamente do que quando estio em incubadora, num servigo separado da mae. O contato pele a pele, entre a mie e 0 filho, permite que se mantenham os lagos entre eles, e 0 bebé conserva suas referencias, que dao 4 sua existéncia uma coeréneia indis- pensdvel ao seu desenvolvimento harmonioso. Em outras pala- vras, nessas unidades cangurus, a mae nio fica completamente escravizada aos cuidados de seu filho, ja que outros o assistem, € ela pode, também, cuidar de si mesma. Mas esses servigos so raros e, na maioria das vezes, pais e filho devem enfrentar essa separagio momentnea, imposta pela permanéncia em um servico de neonatologia. Muitas vezes, nesses contextos dificeis de serem vividos do ponto de vista afetivo, as mulheres ¢ os homens se perguntam se é mesmo necessario irem ver seu filho, se nao é melhor espe- rar que ele esteja bem restabelecido, para retomar o contato — ainda mais que, nesses servigos altamente especializados, os pais, tendem a se sentir demais, e incompetentes, perante 0 pessoal hospitalar. Essa reagdo de retraimento representa, sem diivida, ‘um reflexo natural de defesa da mie e do pai, protegendo-se, inconscientemente, de se envolverem muito ¢ de investirem nes- sa ligagao, que corre o risco de nao atingir 0 desenlace desejado. Essa reagio é compreensivel, porque se inscreve numa légica de decepgao que o pai ea mie devem assumir, desde ja, em relagio esse nascimento, mais dificil do que o previsto. E, quanto mais forte for essa decepco, em relago ao que a mulher e o homem tinham imaginado para esse nascimento, mais eles temerdio, nas oO Pano m profundezas de seu inconsciente, a decepeao, ainda mais intole- ravel e profunda, que seria a morte da crianca, ¢ isso intensifica a manifeestagiio de mecanismos reacionais de defesa. Em muitas outras circunstancias da vida, freqiientemente se véem pessoas temendo alguma coisa ¢, por temor, adotarem precisamente o comportamento que aumenta 0 risco de a coisa temida acontecer. Aqui, € um fenémeno desse género que se produz: temendo que seu filho vé mal, os pais evitam ir vé-lo, esperando que ele melhore. Mas a sua auséncia nfo ajuda a cri- anga, ao contrario. Para ajudé-la a ir melhor, agora que ela esti doente, isolada nessa pequena gaiola de vidro, sem cheiro nem sabor, & preciso que Ihe oferecam aquilo de que ela mais neces- sita: reencontrar as suas referéncias c as scnsagdes conhecidas desde antes do nascimento. Precisa do cheiro de sua mae, da voz de sua mie e de seu pai, de palavras que déem sentido a essa situagdo ¢ a essa separago, que ela precisa viver. E dai que ela vai tirara energia para lutar e para suportar esse escafandro tro- pical, no qual ela foi confinada. Io desejo de reencontrar esas sensagdes familiares e amadas, nas quais ela reconhece algo que Ihe pertence, que pode incité-la a sair desse estado. E necessério ver um recém-nascido reagit ao odor de sua mie, para compreender a que ponto essa sensagiio é forte para ele, ¢conta. Quando se deixa préximo a um recém-nascido, que esta na incubadora, uma roupa usada por sia mae ¢ que conser~ va o seu odor — um lengo, uma camiseta -, ele reage imed ‘mente, vira a cabega para a roupa, procura cheiri-la, como se cle reconhecesse sua mie. De fato, é algo dela que ele encontra at, e isso pode ser muito trangitilizador para el Quando o bebé nao tem que ser mantido em ambiente es- {éxil, importante que ele tenha essas referéncias proximas de si. Também é importante falar a ele, dizer-Ihe em poucas pi 214 [Nove Mists x4 Vins a Munn © que ¢sti Ihe acontecendo, por que ele esta li, se possivel, por quanto tempo, quando seu papai e sua mame vio voltare quan- do se prevé que ele seri levado para casa. Porque esse ser niio & ‘uma cojsa, mas um sujeito e, como tal, merece o respeito devido uma pessoa humana. terdigdo de dispor de lo, pici-lo, de trati-lo de algum modo) sem avi lo, de antemao, sobre o que vai ser feito, e sem informé-lo das razGes pelas quais se vai agir daquele modo. Enfim, respeitar, assim, um recém-nascido — como ele merece pelo seu status de pessoa, é também dar-Ihe, muito cedo, os meios para que ele Se considere como um sujeito por inteiro, auténomo, responsi- vel, livre... para escolher viver. Os primeiros dias que se seguem a¢ tam, para a mulher, um periodo de transigtio cheio de impr Capitulo 7 O Pos-Parto Aqui yeremos como a mulher vive os primeiros dias que se seguem 2o nasci em seu corpo, mas também em sua mente. Aqui veremos 0 contexto hospitalar, as palavras que so, entio, pronunciadas, concementes & mulher e concernentes ao bebé, 08 efeitos desse contexto e dessas palavras. Aqui trataremos do aleitamento e, também, da tomada de consciéneia, pela mulher, da ‘éneia, dentre as quais, encontraremas a famosa depressio do pos- parto, ou “baby blues” Aqui trataremos, enfim, das reagées do ambiente familiar, assim como da ins administrativa da crianga na sociedade.

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