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Obras publicadas na Colecgdo «Forum da Historia»: 1 —0 Dominio Romano em Portugal, Jorge de Alarcio 2 —A Revolugao Francesa em Questdo: Novas Perspectivas, Jacques Sole 3. — Introdugdo @ Historia dos Descobrimentos Portugueses, Luis de Albuquerque 4 —As Escolas Historicas, Guy Bourdé e Hervé Martin 5 — Ouro e Moeda na Hist6ria, Piette Vilar 6 —A Cwilizagdio Celta, Frangoise Le Roux e Christian-J. Guyonvare"h 1 — Histéria das Relacdes Diplomaticas entre Portugal , e os Estados Unidos da América, José Calvet de Magalhies 8 — Histérias das Ideias Potiticas |, Jean Touchard 9 — Historia das Ideias Politicas M, Jean Touchard 10 —Histéria das Ideias Politicas M1, Jean Touchard Hi — Historias das tdeias Politicas tV, Jean Touchard 12 —0 Casamento na Idade Média, Christopher Brooke 13 — Em Busca do Passado, Lewis R. Binford 14 —A Civilizagdo Isldmica, J. Burlot 15 —A Made Média & Mesa, Bruno Laurioux 16 — Lucy — Cronicas da Pré-Histéria, Yvonne Rebeyrol 17 — Falsificagdes da Hist6ria, Mare Ferro 18 — Mavimentos Populares Agrarios em Portagal, 1 (1751-1807), José Tengarrinha 19 —Movimenios Populares Agrérios em Portugal, I1( 1808-1825), José Tengarrinha 20 —A Vida em Roma na Antiguidade, Pierre Grimal 21 —A Sociedade Celia, Frangoise Le Roux e Christian-J. Guyonvare*h 22 —A Linguagem das Coisas, Luts Raposo Anténio Carlos Silva 23 —A Guerra na Historia da Europa, Michael Howard 24 — Panorama Historico da Cultura Juridica Europeia, Ant6nio Manel Hespanha 25 — Historia das Supersticdes, Sean-Claucle Schmitt 4 HISTORIA DAS SUPERSTICOES JEAN-CLAUDE SCHMITT HISTORIA : DAS SUPERSTICOES ‘Titulo original: Les superstitions (Chapitre 4 du tome | de U'Hisroine bE ta France Rewacieyse — Des origines au xive sitcle, sous la direction de Jacques Le Goff et René Rémond) Tradugio de Luts Serra Tradugio portuguesa © de P.-E. A. Capa: estiidios P. EA. © Editions du Seuil, 1988 Direitos reservados por Publicagdes Europa-América, Lia. Nenhuma parte desta publicagio pode ter reproduzida u transmitida por qualquer forma ou por qualquer pro- e380, electtnico, mecinico ou fotogréfico, incluindo fotocdpia, xerocSpia ou gravagio, sem autorizago preé- via e escrita do editor, Exceptua-se naturalmente a transcrigdo de pequenos textos ou passagens para apre- sentagdo ou critica do livro. Esta excepgao no deve de ‘modo nenbum ser interpretada como sendo extensiva & ‘ranscrigdo de textos em recolhas antolégicas ou simi- lares donde resulte prejuizo para o interesse pela obra. Ostransgressores sio passfveisde procedimento judicial Editor: Francisco Lyon de Castro PUBLICAGOES EUROPA-AMERICA, LDA. Apartado 8 2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL Edigto n.: 158025/6671 Abril de 1997 Execugdo téeni Grafica Buropam, La., | | INDICE Os fundamentos latinos e patristicos da nogao de «superstition. 15 Do paganismo a superstigaio Feiticeiros e adivinhos na Alta Idade Média ....... 47 Superstigoes na aldeia 97 «Sabat» das bruxas e «charivari» na Baixa Idade Média .. 47 A supersticao é para a religiao o que a astrologia é para a astronomia, a filha louca de uma sabia mée. VOLTAIRE Entre todas as «grandes religides», o cristianismo do Ocidente medieval (tal como 0 catolocismo moderno que dele derivou) teve a caracteristica propria de estar estrei- tamente ligado a existéncia de uma Igreja, de um clero, de um dogma. Estes factos essenciais distinguem—no espe- cialmente das outras religides que o precederam, acompa- nharam ou seguiram no tempo: as religides greco-romanas da Antiguidade, o judaismo e o islamismo, os protes- tantismos saidos da Reforma. A existéncia de uma insti- tuigao eclesidstica, o estabelecimento por escrito, desde 0 icio do século m, de um dogma constrangedor, a distin- gao social, cultural e religiosa de duas categorias de cris- taos — os clérigos e os laicos — conferiram a cristandade, em particular na Idade Média, limites bem definidos, dos ons ihess de resto, uma poco eoneciénei limites JEAN-CLAUDE SCHMITT genericamente, os pecadores. Foi entre estes tiltimos que, desde a origem, se incluiram os «supersticiosos». A palavra «superstigéo» continua a pertencer a nossa linguagem: ainda hoje, sao considerados «supersticiosos» aqueles que parecem estabelecer uma relagéo de cau- salidade entre um acto ou um facto julgados significativos — treze convivas a mesa, 0 saleiro que se entorna, um es- pelho que se quebra, etc. — e um acontecimento, situado geralmente no futuro, que se espera ou que se receia e de- seja afastar. Tais afirmagdes, comportamentos e crencas podem coexistir, na mesma sociedade, até num mesmo individuo, com uma abordagem cientifica e técnica dos fenémenos: pode «bater—se na madeira» antes deembarcar num avido, embora sabendo que este voara conforme as leis da aerodinamica. Segundo os grupos sociais considera- dos, os niveis de cultura, os objectos em causa — 0 corpo € a doenca representando sempre as principais apostas —, o recurso simultaneo ou sucessivo a légicas diferentes da crenga e do saber é mais ou menos frequente, mais ou menos bem aceite: nas grandes cidades, onde a ideologia ocidental tem o habito de situar a sede da sua racionalida- de, proliferam os videntes... As «superstigdes» sao hoje, em geral, toleradas: 0 seu es- pectaculo suscita a alguns um sorriso irénico, a outros uma curiosidade prudente. Nao sao novas na sua forma: 0 temor dos prességios é universal. Noentanto, mudouo sis- tema dominante de referéncia, suposto como tinico legiti- mo, em nome do qual as julgamos. As Spa ieeie eae deparam ja com os. pe i HISTORIA DAS SUPERSTICORS do século xvii. Mas esta substituicao de um sistema de re- feréncias por outro efectou-se muito progressivamente, ¢ decerto que ainda nao se encontra hoje totalmente con- cluida. Quando, em 1679, o abade Jean-Baptiste Thiers, paroco de Champrond, na diocese de Chartres, comegou a publicagao do célebre Traité des superstitions, aculturade referéncia era ainda tradicional: no contexto da Contra- Reforma catélica, as «superstigdes» sao ainda julgadas e condenadas no préprio ambito da religido. O abade Thiers enumera todas as crengas e praticas consideradas exage- radas, vas ou sacrilegas, que se opdem ao dogma e a dig- nidade dos sacramentos da Igreja. Esta obra nao cessou de ser reeditada e aumentada durante o século xvi, até 1777, muito depois da morte do seu autor, numa época em que, para os filésofos, era toda a Igreja, com os seus ritos € as suas crengas, que devia ser considerada ao lado das «superstigées»... Embora nao pretenda aqui alargar—me sobre a histéria do cristianismo depois de meados do século x1Vv, a obra mo- numental do abade Thiers pode servir, grosseiramente, para marcar o termo de um estudo que depende, acima de tudo, da longa duracao. O abade Thiers, de resto, reuniu as suas proprias observagées das «superstigdes» contem- poraneas numa impressionante compilacao de textos ecle- sidsticos, alguns dos quais remontando aos primeiros sé- culos da histéria da Igreja. A continuidade «medieval», aquém e além dos limites cronoldgicos tradicionais da Idade Média, é completamente evidente. Meablenonsinze aforine anayamos mais parigianpente JEAN-CLAUDE SCHMITT tigdo» assim como os lugares e as formas da sua aplicagao. O periodo medieval, no quadro de uma histéria ainda mais longa, ajudar-nos~4, portanto, a compreender que néo ha «superstigdes» em si, mas uma palavra muito antiga que, atravessando os séculos e mesmo as religides (pagas, cato- licas, protestantes), mudou de sentido, designou outros objectos, justificou outros constrangimentos, serviu para revelar outras legitimidades culturais. Usarei sempre a palavra «superstigao(Ges)» entre aspas, para sublinhar bem que se trata de um termo da época es- tudada, nao de um conceito actual do historiador; e ora a utilizarei, como nos textos medievais, no singular, ora no plural, quandose tratar decrengas, ditos e gestos particula- res. Ainda no século passado, eruditos locais, historiado- res ¢ folcloristas nem sempre distinguiram claramente o seu préprio vocabulario de eruditos eo das autoridades do passado — autores eclesiasticos, juizes seculares, ete. — aos quais deviam os seus documentos. Ecerto que quiseram, cada vez mais, evitar a reprodugao do mesmo discurso do- minante: as palavras, por conseguinte, mudaram; de pre- feréncia a «superstigées», falaram de «sobrevivéncias», ou de «crengas populares». Mas os preconceitos foram, mui- tas vezes, mais tenazes que o vocabulario. Tomarei igualmente como ponto de partida a palavra superstitio, mas sabendo o que corro: 0 de prestar sobretudo aten¢ao ao ponto de vista da autoridade, a da Igreja, em primeiro lugar, e, mais genericamente, a dos letrados que escrevem, julgam e condenam. Nao considero necessiirio comegar por expor este ponte J HISTORIA DAS SUPERSTIGOES e da sociedade ocidentais. Este papel foi por ela especial- mente desempenhado ao separar dojoio aquilo que pensava ser o trigo. Mas a representagao que os clérigos faziam do joio das «superstigdes» mudou no decurso dos séculos, ea Igreja nao 0 arrancou num s6 campo. Tradicionalmente, foi primeiro nela propria, nas praticas de pelo menos uma parte do clero, que a Igreja ou alguns dos seus membros perseguiram as «superstigdes». Esta critica interna langa sobre a hist6ria da Igreja e da cultura religiosa uma luz extremamente esclarecedora: no culto, na liturgia,na vida normal dos clérigos, certas praticas tidas durante muito tempo como legitimas sao um dia postas em causa e, pouco tempo depois, abolidas, pelo menos em principio. Veremos como esta critica interna se intensificou a partir do século XII, por exemplo contra as reliquias, os milagres, o sobre- natural, o culto dos santos, as imagens religiosas, os ordé- lios, ete. Esta critica nunca cessou. Como exemplo mais re- cente, o concilio Vaticano II e as suas reformas litirgicas inscrevem-se nesta longa tradigao. Acaga as «superstigdes» acentuou igualmente e, por ve- zes, dramatizou a distingdo de clérigos e laicos, dos papéis que lhes eram respectivamente atribuidos na Igreja, even- tualmente das légicas culturais que lhes eram proprias. E certo que néio se deve exagerar esta divisdio: um péroco de aldeia esteve sempre mais proximo dos seus paroquianos do que dos grandes tedlogos da Universidade. Acontece ainda que a histéria das «superstigdes» encontra necessa- riamente a da «cultura popular» ou do «folclore», que os historiadores revalorizaram nos ultimos vinte anos. Em certo sentido, 6 a negagao desta ultima: durante muito tempo, o facto de se ter em conta apenas 0 ponto de vista JEAN-CLAUDE SCHMITT da cultura oficial impediu que fossem compreendidas as légicas proprias da cultura do povo e reduziu, porexemplo, a «religiao popular» a uma forma degradada da religiéo das élites. Ao tratar das «superstigées», partindo, por con- seguinte, do discurso da autoridade, da ordem e do cons- trangimento, sera necessdrio fazer uma tentativa para considerar em conjunto as «duas extremidades» da reali- dade histérica, para mostrar como 0 jufzo emitido sobre as «superstigdes» podia traduzir desajustamentos, incompa- tibilidades ou incompreensées culturais; para mostrar também que, na flutuante linha da frente que os usos da palavra «superstigao» desenham através dos séculos, 0 assalto nunca veio sé de um lado: a pressao das «supersti- ges» sempre manteve com a lei e a autoridade uma rela- ¢ao dialéctica cujo produto histérico, que se designa por historia religiosa, é um enredo e uma sucessao de «figuras de compromisso». Os fundamentos latinos e patristicos da nocao de «superstitio» O grande linguista Emile Benveniste situou perfeita- mente a palavra superstitio no conjunto do vocabulario indo-europeu. Em latim, mais particularmente, deriva do verbo super-stare (estar acima de), que designa acondigao da testemunha (superstes): a testemunha é quem, por ter «sobrevivido» a um acontecimento do passado, pode ates- tar que este teve realmente lugar. Naorigem, a palavra nao tem uma significagao propria- mente religiosa. Mas adquiriu-a a partir da época roma- na: para Cicero (De natura deorum, II, 28), muitas vezes citado na Idade Média, especialmente por Isidoro de Sevi- lha nas suas Htimologias (X, 244), «sao chamados supers- ticiosos aqueles que oram ou sacrificam todos os dias para que os seus filhos lhes sobrevivam». Sobreviver, adquirir a qualidade de testemunha, pressupde que se obtenha a protecedo dos deuses. De resto, 0 adjectivo superstitiosus qualifica frequentemente os adivinhos. Mas, j4 em Roma, a palavra superstitio adquiriu em certos casos um sentido desfavoravel: 6 entdo oposto a religio, que designa o escrtpulo religioso, a preocupagao, earacteristica da religiao romana, de cumprir os rituais —s ml JEAN-CLAUDE SCHMITT segundo as regras, a maneira apropriada de «reunir» aquilo que respeita ao culto dos deuses: reunir, re-legere, tal 6a etimologia de religio que Cicero propée. A supersti- tio 6, portanto, concebida como uma forma pervertida da religio, muitas vezes manchada pelo exagero, segundo um outro sentido do prefixo super: 0 que é supérfluo (super- -fluus), vao, acrescentado (super-institutus, super-addi- tus), ou mesmo estranho. O cristianismo herdou a palavra assim como este con- junto de nogées e valores. Mas também os transformou: as Instituigdes Divinas de Lactancio, retérico romano con- vertido ao cristianismo por volta do ano 300, permitem avaliar esta mudanga. Lactancio rejeita as etimologias ci- ceronianas: para ele, religio nao vem de relegere, mas de re-ligare, ligar de novo; esta interpretagao dé énfase a uma concep¢ao completamente diferente, decididamente crista, da religido, concebida como uma ligacdo pessoal que ob-liga o cristéo perante Deus. Quanto a superstitio, Lactancio recusa mais uma vez a explicagao de Cicero, para dara sua, mas num contexto cristao, uma etimologia que o poeta Lucrécio jé propusera: «Os supersticiosos nao so aqueles que esperam que os seus filhos Ihes sobrevi- vam — isso, todos nds 0 esperamos —, mas aqueles que veneram a meméria dos defuntos para que esta lhes sobre- viva, ou ainda aqueles que, mediante imagens dos seus pais, lhes prestam um culto doméstico como aos deuses penates.» Lactancio, e depois dele os autores cristaos, optaram por reter somente o sentido negativo de «supers- tigdo», por opé—la irremediavelmente a. ee ee : HISTORIA DAS SUPERSTICOES evemerismo) bem como a idolatria. Com Lactancio, a separagao entre «religiao» e «supersti¢ado» foi definitiva- mente estabelecida, e esta tiltima nogao tem um sentido muito forte, totalmente negativo, visto que a «superstigao» nao é mais do que o paganismo que sobrevive no seio do cristianismo: «A religiao é 0 culto do verdadeiro [Deus], a superstigao, do falso.» Foi em fungao desta primeira grelha de leitura que os primeiros autores cristaos interpretaram e traduziram a Biblia. No Antigo Testamento nao faltam andtemas lan- gados pelo préprio Jeova ou pelos seus profetas contra os inimigos ou os hebreus infiéis, e a Igreja medieval saberé utiliza—los na dentincia das «superstigdes». Sao, por exem- plo: «Nao deixards viver a feiticeira» (Lxodo, 22, 17), ou «Quando uma alma se dit aos espectros e aos adivinha- dores para se prostituir ao segui—los, eu porei a minha face contra aquela alma e a extirparei do meio do seu povo» (Levitico, 20,6). No entanto, na Vulgata — a tradugiio que Sao Jer6nimo (m. 420) fez da Biblia e que alimentouo pen- samento cristao ocidental até hoje —, a palavra supersti- tio nao aparece nem no Antigo Testamento nem nos Evan- gelhos. Apenas surge trés vezes nos Actos dos Apéstolos e numa epistola de Sao Paulo. Nos Actos (25, 19), 0 seu uso 6, alias, ambiguo, j4 que se trata da «superstigéio» de que os judeus acusavam Sao Paulo, pois este dizia que Jesus estava vivo apesar de ter sido morto. Os Romanos, por seu Jado, nao viam nela qualquer delito religioso; eram princi- palmente oscristaos que exprimiam na linguagem juridica Simca asus: apie habebant) uma JEAN-CLAUDE SCHMITT Areépago de Atenas depois de ter descoberto na cidade um altar dedicado «ao deus desconhecido». Por aquilo que lhe parece evidentemente uma pedra que espera 0 culto cris- tao, louva os Atenienses, que sao, segundo afirma, «os mais religiosos dos homens». A Biblia grega utiliza aqui, no superlativo, a palavra deisidaimon, aquele que teme os deuses. Uma palavra muito ambigua para os cristaos, pois contém daimon, de que derivaram «deménio», satélite do Diabo... Porisso, Sao Jerénimo traduziuo termo por quasi superstitiores, adivinhando-se ai uma hesitagao: é certo que os Atenienses esperavam o Cristo, mas cram ainda pagios! Na Epistola aos Colossenses (2, 23), Sao Paulo dirige- -se, pelo contrério, a baptizados: exorta-os a ultrapassar o formalismo das regras alimentares («Nao toques, nado proves, nao manuseies»), a seguirem antes a verdadeira sabedoria e a humildade cristas, a nao se enredarem na «afectagao de religiosidade» (in superstitione). Encontra- —se aqui a oposigéo pauliana do espirito que salva e da le- tra que mata: ela justificard, em parte, a condenagao das «superstigdes» pela Igreja. Aquilo que o bispo de Hipona, Santo Agostinho (354- 430), escreveu das «superstigdes» pesou sobre toda a tra- digao cristao até Tomas de Aquino, no século xi: trata-se do grande te6rico das «superstigdes». Na base da sua teo- ria, ha duas ideias-chave. A primeira 6 que as «superstigdes» sao as «sobrevivén- cias» de crencas e de praticas que a encarnacao do Salva- dore ainstituigao do cristianismo, em principio, a Sao assim visadas, na maior parte dos do paganismo a que | a HISTORIA DAS SUPERSTICOES geralmente «idolatria»: além do culto dos fdolos propria- mente ditos, esta palavra designa a adoracao da criatura, quer se trate do Homem, do Diabo, de um elemento da natureza ou de um objecto fabricado. A condenagao das «superstigdes» ligase, assim, de forma privilegiada ao primeiro mandamento: «Nao teras outros deuses além de mim» (Exodo, 20, 3). Mas podem também «sobreviver» no seio do cristianismo observancias judaicas, igualmente caducas aos olhos da Igreja, seja qual for a fidelidade dos cristéos em relagao a lei do Antigo Testamento; desde as origens docristianismo, no concilio dito «dos apéstolos» (49-50), que se pos a ques- tao da legitimidade da circuncisao dos cristaos: conside- rou-se que deixaria de se praticar; tornou-se, portanto, «supersticiosa». Os Estatutos da Igreja Primitiva, com- postos na Galia por volta de 475 e retomados depois pela literatura canénica até ao século xl, estabeleciam nitida- mente a diferenga entre as «superstigdes» dos augurios e dos encantadores — supostas sobrevivéncias do paganis- mo de que iremos, sobretudo, tratar — e as «superstigoes judaicas». Na época carolingia, 0 arcebispo Agobardo de Lyon (m. 840) escreveu um tratado Das Supersticées Judaicas (em que refuta, entre outras, a acusagio de ido- latria feita pelosjudeus contra os cristaos...)e,igualmente, um tratado Contra a Supersticéo Daqueles que Pensam que se Deve Adorar as Pinturas e as Imagens dos Santos: acusa, desta vez, os partiddrios do culto dos fcones, em Bizancio, mas também em Roma, de serem herdeiros da JEAN-CLAUDE SCHMITT Esta ligagao teve pesadas consequéncias; da critica, espe- cialmente na Idade Média, das «superstigdes» como sobre- vivéncias da idolatria antiga, caga as bruxas a partir do século xv, nunca a seducdo diabélica deixara de ser invo- cada pelos clérigos, na sequéncia de Santo Agostinho, como a causa primeira da queda dos homens no pecado. Por sua vez, os Padres da Igreja, grega e latina, retoma- ram, conciliaram e transformaram as representagdes mais antigas, por um lado as greco—romanas, por outro as judai- cas, dos maus espiritos, para hes conferir na religiao cris- t@ um papel decisivo. A tradigao judaica, o cristianismo foi sobretudo buscar mitos da origem do mal; a filosofia hele- nistica, um conjunto de reflexdes sobre a natureza dos de- ménios. O Diabo é uma invengao tardia e, em larga medida, crista. Esta figura s6 aparece, pouco a pouco e imperfeita- mente, no Antigo Testamento: a serpente do Génesis nao € mais do que uma criatura de Deus entre outras, «0 mais astuto de todos os animais». A interpretacao «diabdlica» desta serpente sé aparece no Livro da Sabedoria (2,24), no primeiro século da nossa era, antes de se impor no Apocalipse e na tradi¢ao crista. Nos livros mais antigos da Biblia, o Mal nao tem um senhor particular: Jeova usa—o avontade como uma modalidade da sua omnipoténcia, que confina com a duplicidade. No Livro de Job (redigido no século va. C.),é Deus que decide pér a prova o seu mais fiel servo, e «sata» (entendido ainda como um nome comum) 6 apenas seu instrumento. Ainda mais cedo, no século x a. C., no Livro de Samuel as, 24), sJoauéyinGeciansige HISTORIA DAS SUPERSTICORS Hebreus. Ora, quando o mesmo episédio 6 retomado nas Crénicas (1, 21), no século mia. C., é Sata — este nome, que significa o Adversdrio, sendo utilizado pela primeira vez como um nome préprio —, e jd nao Jeova, que sugere a David 0 recenseamento saerilego. Antes mesmo da era crista, a literatura apécrifajudaica dos séculos 11 e 1. C. ligou, em dois grandes mitos, a ori- gem de Sata e do Mal a queda dos anjos. No primeiro mito, esta queda ocorreu depois da criacao. A narrativa desenvolve um dos episédios mais estranhos do Génesis (6, 1.4): 08 «filhos de Deus» — que a tradigao vera como os anjos caidos — vieram unir-se na Terra aos «filhos dos homens». Da sua uniao nasceram os gigantes. Partindo deste episédio, 0 Livro de Henoch explica que Deus castigou os homens com 0 Diltivio e encerrou os anjos caidos nas trevas, para que af permanecessem até ao Juizo Final. Quanto aos gigantes, deles nasceram os deménios que, depois do Dilivio, nao cessam de atormentar os des- cendentes de Noé, incitando-os a sacrificar aos idolos. Sera um primeiro mito da origem do paganismo e, por extensao, das «superstigdes». Por volta de 430-435, Joao Cassiano, monge do Oriente que veio fundar em Marselha 0 mosteiro de Sao Vitor, utiliza nas Collationes patrum uma versao ligeiramente diferente do mito para explicar as origens da magia: o conhecimento da natureza que ti- nham os nossos primeiros pais foi transmitido, depois do pecado original, ao seu terceiro filho, Seth. Sao os descen- dentes deste que o Génesis designa por os «filhos de Deus», JEAN-CLAUDE SCHMITT descendentes de Caim, foram contaminados pela perver- sidade destes tltimos, o que deu origem «a instigagao dos deménios, as técnicas maléficas, aos artificios e As supers- tigdes magicas». No entanto, através do Dihivio, Deus puniu os homens, mas um filho de Noé, Cham, conseguiu salvar este saber sulfuroso e transmiti—lo ao seu préprio filho mais velho, Chus. Este tiltimo excitou muito a imaginagao dos autores medievais, desde Gregério de Tours, no fim do século vi, até Hugo de Sao Vitor, que viveu em Paris na primeira metade do século x: Chus, com efeito, nao seria outro se nao Zoroastro, ou Zaratrusta, que, segundo Gregério de Tours (Histoire des Francs, I, 6), inventouna Asia a magia ea idolatria. Estas derivas longinquas do Génesis entrecruzam-se na tradigdo cristé com 0 segundo mito da origem do Mal, que situa a queda dos anjos antes da criagéo do homem. Presente nos apécrifos do século 1d. C., este mito foi reto- mado pelos padres gregos e latinos: por exemplo, para Agostinho (Cidade de Deus, VIII e XIV) e Gregério Magno (Morais sobre Job, XXX), Sata era o primeiro dos «anjos de luz»: tomado de orgulho e querendo igualar 0 seu Criador, foi precipitado no plano mais baixo com os seus cimplices. Esta queda é 0 inicio da histéria humana, porque Deus criou depois os homens para que fossem ocupar no paraiso olugar deixado vago pelos anjos caidos. Mas Sata, cheio de ressentimento, esforgou—se por virar Adao eee seu Criador; 6, na verdade, a serpente ten nao cessa, desde entao, de inci HISTORIA DAS SUPERSTICOES informagoes retiradas da filosofia neoplaténica paga e, depois, crista, representada em particular pelo pseudo- —Dionisio, autor, no século v, da Hierarquia Celeste. O cristianismo nao podia admitir sem alteragées a teoria da participagao dos daimones na criagao continua do univer- so; entre a Trindade, unica eriadora, e os anjos, imortais mas criados, estabeleceu uma ruptura decisiva. Além disso, a sua explicagdo da origem do Mal levou-o a distin- guir anjos bons e anjos maus, os anjos cafdos. Daimon adquiriu assim um sentido unicamente negativo. Por fim, o cristianismo hierarquizou a sociedade dos deménios: principal, entre estes, o Diabo (diabolus: 0 senhor da pala- vra dupla, da mentira), tornou-se 0 chefe dos deménios. Tertuliano é 0 primeiro autor a nomea-lo assim, no inicio do século 1, seguido por Sao Jerénimo na Vulgata e por Santo Agostinho: foi este tiltimo que deu ao Diabo a sua identidade crista. No seu tratado sobre a Adivinhagdo dos Deménios, es- crito entre 406 e 411, Santo Agostinho expoe os privilégios que os deménios conservaram da sua natureza angélica. Criados na origem do mundo, muito antes dos homens, dispdem de uma muito longa experiéncia e de um saber muito grande. Além disso, o seu corpo etéreo, nem verda- deiramente material nem totalmente espiritual, da—lhes uma prodigiosa celeridade («sem medida comum com a marcha dos homens e dos animais selvagens nem mesmo com 0 voo das aves») e uma subtileza que permite que se introduzam em toda a parte, incluindo no corpo e no. espirito dos homens. Gragas a todas as suas qualidades, os deménios tém um dom de predigéo que surpreende os homens, pois estes estao submetidos a lentidao das’ JEAN-CLAUDE SCHMITT percepgoes terrestres e a brevidade da existéncia e da meméria humanas. Se os deménios nao tém o poder de criar, desfrutam de uma habilidade técnica muito grande, origem, dir-se-ana Idade Média, das suas «maquinagées». Tem, por exemplo, «até 0 poder de enviar doengas, de tornar 0 ar malsao» e, sobretudo, de suscitar nos pensamentos dos homens «certas visdes imaginativas, quer no estado de vigilia, quer du- rante 0 sono». Os deménios sao os senhores do sonho, que a Alta Idade Média considerou, por isso, com infinita des- confianga. Estas observagées de Agostinho foram reproduzidas durante toda a Idade Média, até aos grandes canonistas do século xu (Ivo de Chartres, Graciano) e a teologia escolas- tica (Tomas de Aquino). Orientaram a demonologia me- dieval na via de uma «psicologia» da acgao demoniaca: os deménios nao criam a matéria, mas despertam imagens, agem sobre 0 «poder imaginativo» da alma humana, sus- citam nela vaos «fantasmas». Se o Diabo e os deménios por vezes se enganam (pois so, apesar de tudo, limitados pela omnisciéncia de Deus), quase sempre triunfam sobre o es- pirito mais fraco dos homens, se necessario misturando as suas mentiras algumas proposigées veridicas para mais abusar das suas vitimas. As tentagdes e enganos dos demoénios nunca poupam os homens, incluindo os melhores, os santos. Mas os homens podem igualmente tomar a iniciativa de se encontrarem com os deménios: «Alguns, sob o impulso do vicio e da curiosidade, ou devidoao amor a umaifeligidedets] seein restre ou @ busca de uma proen 0 taram que os deménios sao HISTORIA DAS SUPERSTICOES que lhes concedam honras divinas». Por isso, os homens «comunicam» com os deménios. Aqui, Agostinho integra a demonologia na teoria do conhecimento, que elabora entre 396 e426 na sua obrama- gistral, De doctrina christiana. Este «ensino cristao» éum dos textos fundadores da cultura cristaé da Idade Média, sintese de Cicero e da Biblia englobando todas as realida- des do mundo. Estas realidades sao de duas espécies: as coisas (res) e os signos (signa), que so coisas cuja signifi- cago excede a aparéncia sensivel; ha duas espécies de sig- nos: os signos naturais (como 0 fumo, que significa que ha um fogo em qualquer parte) e os signos convencionais (por exemplo, a linguagem, a escrita, a musica). Todos os seres utilizam signos convencionais, os homens e mesmo os animais, mas também Deus, os anjos e os demonios, Cer- tos signos convencionais sao necessdrios, mas outros sdo supérfluos ou mesmo nefastos: sAo as «superstigdes», sig- nos convencionais que os homens e os demé6nios utilizam para comunicar. «E supersticioso o que é instituido pelos homens para fazer idolos e os venerar ou dirigir um culto a uma criatura oua qualquer parte de uma criatura como se se tratasse de Deus, ou para consultar os deménios, concluir ou selar através de certos pactos uma comunicagéio com eles (pacta quaedam significationum cum daemonibus placida atque foederata), como tentam fazer as artes magicas» (11, 20). O historiador da teologia Dieter Harmening sublinhou muito justamente a importancia da expressao pacta signi- fication um: desde Agostinho, a nogao de «pacto» com os deménios esta presente. Mas sera a época escolastica que precisara esta nogao e que também a modificaré JEAN-CLAUDE SCHMITT substituindoosdeménios pela figura mais comprometedora_ do Diabo. Santo Agostinho faz também 0 inventario das «supers- tigdes» que o cristao deve «evitar e repudiar»: so «liga- mentos e remédios» que os préprios médicos reprovam e que consistem em invocagdes e amuletos para estabelecer «comunicagées ocultas ou manifestas» com os deménios; sao as diversas técnicas da astrologia antiga; sao também, mais prosaicamente, «os pendentes no lébulo de cada ore- Jha, os anéis de osso de avestruz nos dedos, o gesto que te recomendam quando tens solugos, ou seja, agarrar com a mao direita o polegar esquerdo». Mais adiante, denuncia aqueles que interpretam como um mau prességioo tremor de um membro, aqueles que pensam que a amizade de duas pessoas 6 ameacada quando tropecam numa pedra, num cdo ou numa crianga, aqueles que batem com os pés na soleira da porta de casa antes de entrar, aqueles que voltam para a cama se espirraram enquanto se caleavam, ou ainda aqueles que tremem se 0s ratos lhes roeram os sa- patos... Faz também entrar as fadas (fata) no vocabulario enoimaginario da cristandade. Todos estes signos, e mui- tos outros, traem a mesma cumplicidade, a mesma «comu- nicagao» dos homens e dos deménios. A tradi¢ao medieval, até aos séculos xtre xiii, e, mesmo depois, retomara, por ve- zes literalmente, as reflexdes e os exemplos de Agostinho. Do paganismo as «supersticées» Se a Igreja procurou desde a origem repelir as «supers- tigdes», é porque via nelas sobrevivéncias do paganismo e a prova do dominio obsidiante dos deménios e do Diabo sobre 0 espirito dos homens. Mas, durante toda a Alta Idade Média, as condigées sociais do estabelecimento e da difusao do cristianismo também pesaram muito sobre a maneira como os clérigos encararam as «superstigdes» € lutaram contra elas. Nos séculos tv e V, a fusdo da hierarquia eclesidstica e da aristocracia rural galo-romana reforgou a oposig¢ao en- tre estes meios, social e culturalmente privilegiados, mas minoritarios, ea massa do povo; entre eles, rareavam cada vez mais as classes médias, artesanais e urbanas, que ha- viam assegurado os primeiros éxitos do cristianismo, mas que a retraccao da economia urbana enfraquecera mate- rial e socialmente. Ao mesmo tempo, a ruina da economia dominial das villae galo-romanas deixou entregue a si mesmo 0 povo dos campos. As tradigées religiosas mais antigas, em particular as celtas, que tinham precedido a introdugao da religiao romana, puderam recuperar alguma e Adendncia clerical das ssobrevivéncias» do pa- el JEAN-CLAUDE SCHMITT pois os clérigos nao tinham os meios para distinguir as camadas sucessivas — no deixava de ter, sem dtivida, fundamento objectivo, mesmo que correspondesse tam- bém a categorias ideolégicas pré-estabelecidas. Gracas a sua cultura classica, os bispos conheciam bem osnomes dos deuses pagaos. Mas, nestes tiltimos, viam de- ménios, tanto mais virulentos quanto se afastavam dos bastides da civilizagdo que, a seus olhos, eram as cidades episcopais. Urbani e rustici, estas palavras traduziam polaridades ideoldégicas tenazes, expressas também na evolugaéo da palavra paganus: em francés, deu origem, simultaneamente, a paysan (camponés) e paien (pagao). As «superstigdes» nao floresciam s6 nos campos, mas era realmente ai que pareciam resistir a todos os esforgos fei- tos pela Igreja para as erradicar: a «superstigao», deplora no século ix Agobardo de Lyon, «perdura hoje entre os cam- poneses (hodieque durat in rusticis).» Muitos outros de- pois dele — até que a revolucao industrial despovoasse os campos — terdo a oportunidade de fazer eco das suas pa- lavras... Para os autores cristaos, nao havia solu¢ao de continui- dade entre o paganismo e as «superstigdes» nas quais se supunha que sobrevivesse. Paganismo e «superstigdes» justificavam, porém, duas diligéncias diferentes: os pa- gaos deviam ser convertidos e, em geral, esta tarefa rea sobre um santo, na maior parte dos casos um b HISTORIA DAS SUPERSTIGOES uma persistente ligagdo as tradiges pagas. A luta herdica dos santos era substituida por uma acgdo pastoral menos dramatica, maissuave, mas nao menos obstinada, segundo um modelo legado pelo bispo Cesdrio de Arles (m. 542): in- cansavelmente, o bispo deve pregar contra as «supers- tigdes», repetir os mesmos cAnones por ocasido do sinodo anual do seu clero e, por vezes, aplicar penas previstas nos penitenciais, listas de peniténcias e jejuns merecidos pelo pecador segundo a condigao social (um clérigo é mais du- ramente castigado do que um laico) e a gravidade da falta. S6 esta segunda diligéncia, visto que respeitava a bap- tizados e nao a pagaos, se relaciona verdadeiramente com as «superstigdes». Masa primeira diligéncia, a luta contra 0 paganismo, nao s6 precedeu a segunda no tempo; conti- nuou a guiar o comportamento do clero na luta contra as «supersti¢des», configurou as representagdes que este de- las fazia. Falar, para comegar, da conversao dos pagaos, é mais do que fazer um recuo necessério, é explorar um mo- delo. Pode distinguir—se, portanto, duas etapas na accao da Igreja, segundo uma cronologia relativa que nao 6 a mesma, evidentemente, em todas as regides, e também dois tipos de documentos para o historiador, cada um dos quais apresenta os seus préprios constrangimentos: a hagiografia, que deve ser tomada como um discurso mimé- tico sobre as origens da civilizagao e da fé crista; depois, a pastoral, a luta quotidiana do clero contra as «supersti- des». Mas estas duas etapas nao se deixam facilmente se- parar. wv F JEAN-CLAUDE SCHMITT A conversao dos pagaos: um modelo Os hagidgrafos que relataram a luta herdica de um santo contra os idélatras tinham um guia: a Vida de Sao Martinho, escrita por Sulpicio Severo por volta de 397, pouco depois da morte do santo bispo de Tours. Prosse- __ guindo esta tradigaio no século seguinte, Constancio de yon escreveu a Vida de Sado Germano de Auxerre, pouco da morte deste, em 448. Depois disso, um periodo go intercala—se entre o momento em que os hagié- 08 escrevem e a vida dos seus heréis: o confronto do dos pagaos deixou de serum facto de observacado pelo que o hagidgrafo se torna historiador. Kem 576, 10, que VenAncio Fortunato escreve a Vida de Sao em Paris, falecido em 436, Sobretudo, Gregorio de 596) escreve as Histérias dos Francos e Vidas de es *s econfessores que viveram entre os séculos lario de Poitiers, Sao Juliano de Brioude, Sao Ju- Javols, Sao Sinfrénio e Sao Simplicio de Autun, igno de Dijon, etc. Outras Vidas de santos mero- n otavelmente estudadas por Frantisek Graus, HISTORIA DAS SUPERSTICOES extirpado no reino dos Francos, e a acgéo dos bispos dirige- —se cada vez mais para o Norte: Santo Amandio (m. 647), cuja Vida sera escrita somente no século vit, recebe do bispo de Noyon e do rei Dagoberto 1 a missao de converter as populagoes «ferozes e pagas» que vivem na regiao que € hoje a Bélgica; Santo Eléi, bispo de Noyon e Tournai de 641 660, prossegue esta acao na Flandres, cujos habitantes, diz o seu hagiégrafo, sao «como animais selvagens dos campos» (velut agrestes ferae). Em seguida, mas desta vez muito além dos limites da Franga actual, a Igreja, apoiada pelo poder real, continuou os esforgos com vista & conver- sao dos pagaos; na Frisia, na Turingia — com Sao Boni! cio —, no Saxe, durante o século vil, mais tarde nos paf- ses eslavos ou magiares; e nunca faltaram, também aqui, hagidégrafos para glorificar os novos apéstolos. No entanto, para nos limitarmos a Franga, as invasdes normandas provocaram uma espécie de recuo da histéria; com estes pagaos ferozes, foi preciso comecar tudo do zero. A propé- sito deles, a Vida de SGo Martinho de Vertou perto de Nantes, no século Ix, retoma os temas heréicos destacados alguns séculos antes por Sulpicio Severo. Em todos 0s casos, os temas desta hagiografia sao mais ou menos os mesmos. O santo 6, em primeiro lugar, um grande destruidor dos templos pagaos (fana). Sao Marti- nho incendeia—os com tanto ardor que é obrigado a fazer um milagre para impedir que 0 fogo se propague as casas vizinhas! Em Levroux, a resisténcia das populagoes locais obriga-o a tentar duas vezes para «demolir até aos alicer- ces 0 edificio impio e reduzir a pé todos os altares e todas iittias», Querendo seguir este belo exemplo, Ra- = | Ye 7 ae . JEAN-CLAUDE SCHMITT armados de «glAdios e paus», que detém, contudo, pela simples virtude da cruz que transporta. Sao Romao, «es- quadrinhando com cuidado os lugares retirados da sua diocese, descobriu num local diabélico templos de Meret- rio, de Jupiter e de Apolo», que substituiu de imediato por igrejas cristas. Quer estejam ou nao em «templos», os fdolos constituem o segundo alvo privilegiado dos santos, apoiados, eviden- temente, por toda a tradigao judaico-crista de condenagao dos idolos: o Bezerro de Ouro do Exodo nao cessava de re- nascer, e cada santo era um novo Moisés... Gregério de Tours conta, no seu Livro para a Gloria dos Confessores (capitulo Lxxit), que Sao Sinfrénio de Autun deteve, com um simples sinal da cruz, uma procisso paga em honra da deusa Berecintia, deixou pregados ao solo os bois que pu- xavam 0 carro do idolo e quebrou este. Verificando que, apesar dos sacrificios que faziam, a deusa ou 0 idolo nao re- punham em andamento 0s animais, os pagdos subjugados pela virtus, a forga suprema do santo, aceitaram o baptis- mo. Gregério de Tours faz equivaler 0 culto prestado a Be- recintia, na cidade dos Eduos (Autun), ao culto de Apolo e de Diana, designada «a mae dos deménios». Mas insiste também nas formas particulares de um culto de fertilidade agréria e afirma, comparando-o a uma passagem da Vida de Sao Martinho (capitulo xm) de Sulpicio Severo, que «era um costume entre os camponeses gauleses passearem em volta dos seus campos os idolos dos deménios cobertos com um pano branco». Se nao era muito complicado destruir um templo e que- brar idolos, o sdovosto pags ts Sing] aguas (rios, fontes, lagos) 0 r 24 HISTORIA DAS SUPERSTIGOES: os santos bispos, muito mais dificil de extirpar definitiva- mente: serd, por conseguinte, um dos temas persistentes da luta contra as «supersticdes». Nao podendo impedir Sao Martinho de cortar um pinheiro sagrado, os pagaos com os quais este se confrontou pensaram em fazer tombar a ar- vore sobre o bispo, para que 0 esmagasse na queda; mas a provagao, para Sao Martinho, constitui um ordalio que lhe permitira fazer que a verdade triunfe: 0 pinheiro é mila- grosamente atirado para tras e por pouco nao esmaga os camponeses... Também uma arvore semelhante esta na origem dacon- versdo de Germano de Auxerre, grande cagador que nela suspendia as cabecas dos animais que matava. Mas tendo Deus revelado ao bispo Amator que este pagao endurecido seria 0 seu sucessor, o santo homem, na auséncia de Ger- mano, manda cortar e queimar a arvore sacrilega; surdo aos protestos de Germano, que ameaga mata—lo, Amator leva-oa forga para a igrejae baptiza—ocontra sua vontade. Omilagre acontece:consagradoaoepiscopadoeasantidade _ — naquele tempo, uma coisa acompanhava a outra —, Germano é instantaneamente convencido da verdade do cristianismo. A Vida de Sao Valério (inicio do século vit) conta que os habitantes do vale doBresle, pertodeEu,na Normandia, embora provavelmente fossem ja baptizados, veneravam um enorme tronco de arvore, que o santo fez tombar pondo em perigo propria vida. Na Vida de Sao Lti- JEAN-CLAUDE SCHMITT chamada Helarius, com um grande lago. Em certas alturas, uma multidao de camponeses, como para fa- zer libagdes no lago, af lancavam panos destinados a I vestes masculinas; alguns deitavam capas de 1a, queijos, cera ou pies de diversas espécies aos quais tinham dado uma forma; cada um 0 fazia conforme as suas possibilidades, o que seria demasiado longo des- crever em pormenor. Vinham com carrogas que trans- portavam a bebida e a comida, imolavam animais e banqueteavam-se durante trés dias. No quarto dia, quando chegava o momento de descerem, uma tem- pestade imensa com trovées e fortes relampagos fa- zia—os correr, e uma chuvada violenta e a queda de pedras atingiam-nos de tal maneira que eram raros os que pensavam que escapariam. Assim faziam todos os anos, e 0 povo imbecil permanecia no erro. Muito tempo passara quando um padre da cidade de j Javols, havendo acedido ao episcopado, foi aquele lu- | gar ec pregou as multiddes, dizendo que seriam con- sumidas pela célera de Deus se nao abandonassem os seus usos. Maso sermao ndo foi de maneira nenhuma acolhido pela rusticidade selvagem do povo. Entao, sob inspiragéo divina, o sacerdote de Deus edificou a beira do lago uma basilica em honra de Santo Hila- rio de Poitiers e ali colocou as suas reliquias; depois, disse ao povo: ‘Livrai—vos, meus filhos, livrai—vos de pecar em face de Deus. Nao ha ron HISTORIA DAS SUPERSTICOES verdade, pode ser o vosso intercessor para a miseri- c6rdia do Senhor? Entao, os homens, tocados no cora- ¢40, converteram-se e, abandonando o lago, levaram para a basilica tudo o que tinhamo habito de nele lan- car. Foram assim libertados do erro por aquele que os vencera. E este lugar, depois de as reliquias do santo la terem sido depositadas, foi interdito tempestade e nunca mais esta péde causar danos naquele dia de festa, que, dai em diante, pertenceu a Deus.» Em geral, como neste caso, os pagdos nao constituem mais do que uma «multidao» indiferenciada face a solidao heréica do santo. Mas este, por vezes, tem de enfrentar um ou mais «sacerdotes» locais, antistes loci, diz Sulpicio Se- vero no episédio do pinheiro derrubado por Sao Martinho. Numa das narrativas similares da Vida de Santo Eloi, estes sacerdotes pagaos formam um grupo de notaveis (praestantiores loci) pertencendo a familia do senhor do palacio de Néustria, Herquenoaldo. O chefe destes dirige- -se directamente ao santo, que pretende proibi-los de ce- lebrar 0 solsticio de Verao: «Jamais, romano que és, mesmo que nos repitas sem cessar a mesma coisa, conseguirdés abolir os nos- sos costumes: celebraremos sempre as nossas soleni- dades como 0 temos feito até hoje, e nao ha ninguém no mundo que possa proibir—nos estas festas antigas que nos sao tao caras.» hagiografica, o confronto do santo e dos pa- parte dos casos, colocado sob 0 signo da JEAN-CLAUDE SCHMITT violéncia: violéncia dos pagaos, que querem matar o santo antes de serem vencidos; violéncia de Deus, que manifesta o seu poder pelo milagre e dé A maioria destes episddios 0 aspecto de um ordAlio; violéncia do santo, por fim, que in- cendeia os templos, queima as arvores, derruba os {dolos. Era isto suficiente para acabar com as observancias pa- gas? A propria Igreja duvidou disso, visto que, além dos modelos heréicos da hagiografia, também procedeu com mais prudéncia e comedimento, quer aceitando um com- promisso que a presséo da cultura autéctone Ihe impunha de facto, quer procurando muito conscienciosamente substi- tuir por um culto cristo os cultos pagaos sem pretender erradicar de uma s6 vez estes tiltimos. O episddio de Sao Marcelo de Paris e do dragao dos pan- tanos do Biévre (que se tornaram, no decurso da Idade Mé- dia, o bairro parisiense de Saint~Marcel, na margem es- querda do Sena) apresenta 0 exemplo de tal compromisso. Otestemunho mais antigo de que dispomos sobre este dra- gao é uma passagem da Vida de Sao Germano de Auxerre, de Venancio Fortunato, no século vi. Jacques le Goff mos- trou que a interpretacao simbélica negativa do dragao, equiparado a serpente do Génesis, somente se impés pro- gressivamente. Na Alta Idade Média ainda predominam, entre os préprios clérigos, quer uma interpretagao «cien- tifica» herdada das histérias naturais da Antiguidade e, em particular, da de Plinio, usta inbepaptersgarbive. lente de facto imposta pela «c o dragao era, com efeito, HISTORIA DAS SUPERSTIGOES na narrativa hagiografica, Sao Marcelo domou 0 dragao em vez deo matar. O caso, alias, no é inico: encontra-se 0 mesmo motivo hagiografico em Roma, a propésito dos santos papas Silvestre e Gregorio Magno e de dragies sai- dos do Tibre, e muito mais tarde nas margens do Rédano, na lenda de Santa Marta e da Tarasca, mito etiolégico de Tarascon. A violéncia do santo deve por vezes apagar-se perante a necessidade do compromisso. Mas, ao mesmo tempo, o santo nao leva somente o Evangelho a estes luga- res inéspitos: é um heréi civilizador que, transigindo com anatureza selvagem eas suas forcas sagradas, estabelece, como em Paris, um novo bairro da cidade. Noutros casos, a procura do compromisso é ainda mais explicita: incapazes de destruir completamente um culto pagao, os homens de Deus conservam 0 enquadramento espaciotemporal e mesmo algumas formas, que se limitam. a «baptizar». Este método de conversao dos lugares, dos tempos e das praticas correspondia a uma directiva quase oficial da Igreja. Com efeito, o papa Gregorio Magno fizera essa recomendagao muito claramente ao arcebispo Melito de Canterbury, apéstolo da Grande Bretanha: é preciso destruir os fdolos, mas, depois, «que se benza a agua, para com ela aspergir esses mesmos templos, que neles se cons- truam altares e se depositem as reliquias». Esta Carta a Melito, citada por Beda, o Venerdvel, na sua Historia da Conversdo dos Anglos e dos Saxées (concluida em 731), ser- via ainda de «autoridade», no inicio do século x, ao arce- bispo Hervé de Reims. Quando 0 arcebispo de Rouens 0 consultou sobre a maneira de converter os normandos pagaos instalados na sua diocese, Hervé respondeu—lhe ci- JEAN-CLAUDE SCHMITT Quando se quer atingirocumede uma montanha, nao se deve subir directamente, mas tomarcaminhos sinuosos [...]» Toda a hagiografia é também perpassada pela convic- ¢do de que o método da forga néo é necessariamente 0 melhor, ou que nao é suficiente. Acerca do préprio Sao Martinho, Sulpicio Severo escreveu: «Onde destruira templos pagaos, construia ime- diatamente igrejas e mosteiros.» Nocasojacitado do monte Helariuse daigreja dedicada a Santo Hilario, o bispo de Javols pretendeu, com toda a evidéncia, tirar partido da homofonia dos nomes da mon- tanha e do santo do Poitou, para desviar os pagaos do seu erro. Tal substituigao s6 podia ter éxito caso se enraizasse, ao mesmo tempo, no espago consagrado pela tradigdao e no tempo do calendario: aigreja de Santo Hilario foi edificada o mais perto possivel do lago sagrado (ab ora stagni) e é provavel que a festa do santo, em 28 de Fevereiro, coinci- disse com a festa anual dos pagaios; a narrativa da tem- pestade sugere uma festa invernal que marcava, aparen- temente, 0 inicio do ano (o 1. de Margo, no calendério romano). \ Na Vida de Santo Eli, o santo, para edangas» celebrados anualmente num vi de Noyon, impoe em sua sul { HISTORIA DAS SUPERSTICOES seguinte para exorcizar cerca de cinquenta pagaos que de- sejavam a sua morte. O que da forga a uma festa é a regu- laridade, estabelecida pelo calendario, do seu regresso em data fixa. As «superstigdes», tributo da cristianizagao Estas substituigdes, de que se poderiam citar ainda muitos outros exemplos, foram naturalmente um factor importante para a manutengao das «supersti¢des» apds 0 baptismo das populacées pagas; sob as aparéncias do cul- to cristao, as praticas ancestrais persistiam em segundo plano, ou chegavam mesmo a coexistir. Por exemplo, se- gundo Gregério de Tours, havia em Brioude «um templo em que se venerava, sobre uma coluna muito alta, uma es- tatua de Marte e de Mercurio»; ora, este templo era vizinho do ttimulo de Sao Juliano! Mas sdo essencialmente os textos da pastoral que infor- mam acerca das «superstigdes» na Alta Idade Média. B possivel distinguir trés géneros: em primeiro lugar, as ho- milias, sobretudo as de Cesario de Arles (m. 542), visto que estes «sermoes ao povo» (em particular os sermées 13, 54, 192, 193) serviram de modelo aos pregadores ulteriores (so, por exemplo, retomados textualmente no sermao contra as «superstigdes» atribufdo a Santo Eldi e inserido_ JEAN-CLAUDE SCHMITT Notemos que todos estes textos, nao s6 os sermées, de- pendem em menor ou maior grau de Cesdrio de Arles, a tal ponto que Dieter Harmening negou que tivessem qual- quer valor documental para o estudo das verdadeiras «su- perstigdes» depois do século vi. O meu ponto de vista é um pouco diferente: se éinegdvel que estes textos retomam in- cansavelmente as mesmas formulas, pode observar—se, em primeiro lugar, que existem variantes no tempo assim como no espago (para a Alemanha, no inicio do século xi, 0 caso do penitencial de Burchard de Worms ¢ particular- mente esclarecedor). De resto, a repetigao dos mesmos ca- nones durante séculos revela com evidéncia a pressao con- tinua, pelo menos até ao século xu, de praticas e crencas bem reais, seja qual for a fidelidade dos testemunhos ecle- sidsticos. Entre os séculos v e x, destacam-—se, dentro dos limites geograficos actuais da Franca, mais de vinte sinodos diocesanos que trataram em pormenor das «superstigdes»; reuniram-se inicialmente em cidades do Sul (Arles, Agde, Eauze, Narbonne), depois no vale do Loire (Orléans, Tours, Nantes) e, por fim, no Norte (Chalon-sur—Saéne, Clichy, Reims, Rouen, Paris, Metz, Anse). A estas decisdes ofi- ciais da Igreja devem acrescentar-se as dos soberanos que abragavam totalmente a mesma causa nesta matérias: os reis merovingios Quildeberto I (m. 558) e Gontrao (m. 593), depois, sobretudo, os carolingios. Com efeito, a Admonitio generalis de 789 e uma quinzena de capitulares tratam, entré outros assuntos, ences com for- HISTORIA DAS SUPERSTICOES- produzido menos do que a Grande Bretanha (penitencial do Pseudo-Teodoro, primeira metade do século vim) e, so- bretudo, que os paises germAnicos (penitenciais de Pirmin. de Reichnau, em meados do século vil, Reginon de Priim, no infcio do século x, ou Burchard de Worms um século, mais tarde). Quanto ao século vim, nao se tera em conta, portanto, se nao um penitencial borgonhés e dois peniten- ciais respeitantes & diocese de Paris. No século Ix, deve so- bretudo citar—se o penitencial do bispo Halitgaire de Cam- brai (817-831). Por fim, embora nao parega que auténticos «tratados das superstigdes» tenham sido escritos na Alta Idade Média, eclesidsticos de elevada posi¢ao consa- graram-Ihes optisculos importantes; pode evocar-se, ultrapassando os limites geograficos deste estudo, 0 im- portante De correctione rusticorum do bispo Martinho de. Braga (m. 580), 0 anénimo Indiculus superstitionum et paganiarum (século vit), que fornece numerosos equiva- lentes germAnicos das nogées latinas, ou ainda uma parte da obra de Hraban Maur, arcebispo de Maienga (m. 856). Mas utilizarei de preferéncia os optisculos escritos pelos arcebispos Agobardo de Lyon (m. 840), a propésito dos «fa- zedores de tempestades», e Hincmar de Reims (m. 882), por ocasiao do «divorcio» do rei Lotario Il. Em toda esta literatura, as «superstigdes» sao tratadas como um conjunto descontinuo, objecto de enumeragoées e delistas de «praticas» («Fecisti?», «Fizeste isto ou aquilo?», pergunta-se ao penitente) e de «crengas» («Credisti?») cuja ordem é imposta unicamente pela cultura dos clérigos. E 9 caso do sermao 13, «aos habitantes das paréquias», de Cesario de Arles; este expde as virtudes fundamentais do caridade), insiste no baptismo como JEAN-CLAUDE SCHMITT rito de iniciagao e garantia de rectidao da vida do cristao, enumera as obrigagoes rituais deste ultimo: ir & igreja no dia do Senhor, escutar de pé a leitura dos textos sagrados, mandar administrar ou receber, ele préprio, a ungao dos doentes que cura a alma e também o corpo. Em seguida, surge, sem ordem aparente, a enumeragao de todas as con- dutas negativas que o cristao deve evitar, desde o recurso aos augurios a visita das fontes sagradas ou, ainda, as dangas e mascaradas nas igrejas. No penitencial de Halit- gaire, a referéncia as «superstigoes» alterna mesmo com a referéncia a outros géneros de delitos; encontra—se assim, sucessivamente, a rapina, os maleficios, 0 sacrilégio, «di- versos capitulos» consagrados a mutilagao voluntaria, a0 aborto, ao roubo dos bens de outrem, aos ferimentos infli- gidos a um adversidrio, ao incéndio de uma igreja, 4 em- briaguez e a fornicagao, «causas menores» (como deixar cair no chao a héstia consagrada ou comer a carne de um animal encontrado morto) ou, um pouco mais adiante, 0 in- cesto, a adoracao dos idolos, o roubo por necessidade, 0 adultério, etc. A dentincia do que os clérigos chamavam «superstigées» e definiam simultaneamente como sobrevi- véncias do paganismo e adoragao dos deménios inscrevia- —se para eles num programa muito mais vasto de reforma religiosa e moral; a sua vontade de impor uma ordem so- cial era inseparavel da preocupagao propriamente pasto- ral de salvar as almas. O ministério religioso dos bispos da Alta Idade Média nao se baa HISTORIA DAS SUPERSTICOES. mostrar uma notdvel moderagiio, sobretudo se comparada & severidade dos juizes laicos e mesmo eclesidsticos a par- tir do século xiv. Notemos, antes de mais, que a Igreja nunca inflige castigos corporais; a lapidagao ou a condena- ¢do a morte sdo um recurso dos laicos, nao dos clérigos. A propria priséo é desconhecida. A pena eclesidstica por exceléncia é a peniténcia; esta varia em duragao e intensidade — peniténcia simples ou agravada durante certo tempo de jejum a pao e 4gua —, conforme a gravidade do pecado e 0 estatuto social do pe- cador na Igreja; os clérigos sao mais duramente castigados do que 0s laicos. No penitencial de Halitgaire de Cambrai, as «supersti- des» acarretam peniténcias que duram trés semanas, as mais ligeiras— para uma crianga que comesse, sem saber, carne imolada a {dolos —, e sete anos, as mais pesadas — no caso de um maleficio que tenha causado uma tempes- tade ou levado & morte de um homem. Nestes dois tiltimos casos, os culpados sao respectivamente postos a pao e agua durante trés ou quatro anos e sete anos. Porum maleficio por causa de amor, sem que hajamorte humana, um laico nao sofre mais de meio ano de penitén- cia; um simples clérigo, um ano inteiro; um diacono, trés anos; um sacerdote, cinco anos, dos quais dois a paoe Agua. Seo maleficio conduziua um aborto, sera necessario acres- centar a estas peniténcias seis Quaresmas, seja qual for 0 estatuto do culpado. dasipeel eocisers siuov. ance ica caaasernPat JEAN-CLAUDE SCHMITT eas fontesou «ligamentos»,e, por fim, aos que se mascaram nas calendas de Janeiro. As peniténcias que duram, segundo os casos, quarenta dias, «trés Quaresmas» ou doze semanas, visam aqueles / quecomem ritualmente junto de um templo pagao (fanum), | sendoa pena agravada se o fizeram depois de jd terem sido | admoestados num sermao. ; Poder-se-ia comparar esta lista de peniténcias gradua- das a de outros penitenciais, como 0 de Burchard de Worms, mais tardio. As «superstigdes» mencionadas podem variar, mas 0 género e a moderagao relativa das penitén- cias sao equivalentes. A lista das peniténcias impostas pela Igreja traduz so- mente a ideia que os clérigos faziam da gravidade respec- tiva,naordem do pecado, das diversas «supersticdes». Mas essa hierarquia nada nos diz da significagao e da funcao destes comportamentos ou destas crengas para aqueles que, em particular entre os laicos, delas eram acusados. E. necessério, portanto, tentar inverter o nosso ponto de vis- ta, privilegiar o que parecia, pelo contrario, essencial a massa dos fiéis e podia justificar a sua adesdo duradoura as condutas ou as representagées incriminadas. ‘Trés dominios atraem especialmentea atencao. Em pri- meiro lugar, numa civilizagao agraria eA meré das forcas da natureza, a preocupagao de assegurar a fertilidade, a fecundidade, a reprodugao dos homens, dos animais e dos produtos da terra. Em seguida, o dominio simbélico do espago, para favorecer justamente a influéneiaidothomem sobre 0 ambiente e para inscrever no HISTORIA DAS SUPERSTICOES: estavam em jogo no conflito entre a Igreja e as «supersti- ges». Essenciais, por fim, sao 0 conhecimentoe, se possivel, ocontrolo do tempo, do tempo que faze ameaga a ruina das colheitas, assim como do tempo futuro que os pressagios talvez permitam adivinhar. Nao se poderia, por conseguinte, analisar de forma au- ténoma, nestes trés dominios, as motivacdes daqueles que a Igreja acusava de «superstigao»; sem divida, porque 0 saber do historiador passa necessariamente pela mediacao dos textos eclesidsticos; mas talvez, sobretudo, por outra razao, que permite nao deplorar demasiado este limite da documentagao: a realidade histérica é feita da dialéctica das diversas praticas sociais e culturais, de conflitos e compromissos que foram sempre a ocasiao privilegiadada _ produgao dos documentos aos quais o historiador pode, actualmente, recorrer. Feiticeiros e adivinhos na Alta Idade Média A adversidade biolégica: homens, animais e colheitas A angustia da adversidade biolégica conduziu A multi- plicagao dos meios de proteccao ou, eventualmente, de cura, que os clérigos condenavam de acordo com dois tipos de argumentos. Afirmavam, em primeiro lugar, que os fi- lactérios, «caracteres» e outros amuletos depositadosjunto das fontes, nas drvores, nas encruzilhadas, o recurso aos curandeiros ¢ as invocagoes feitas aos deménios nao ti- nham eficdcia em comparagao com a medicina natural, a physica, legada pela Antiguidade: «A propria disciplina dos médicos condena todos estes ligamentos e todos estes remédios», conforme se repete desde Santo Agostinho a Graciano, Acrescentavam que estes recursos nao possuem nenhuma das garantias de ortodoxia dos ritos efectuados pelos proprios clérigos com vista a salvagao biolégica dos homens, dos animais ou das plantas: sacramento dos doentes, exorcismos, béngaos, procissio das preces, etc. Pior ainda, os ritos e formulas proibidas substituem a in- voeagao donome de Deus ou dos santos pelo dos deménios: JEAN-CLAUDE SCHMITT estes «ligamentos de ossos ou de ervas», afirma o concilio de Tours de 813, nao passam de «armadilhas do Diabo»; se os amuletos ¢ as invocagées tém eventualmente alguma eficdcia, é somente aos deménios que a devem; quanto aos curandeiros — os «encantadores» (praecantatores), adivi- nhos, feiticeiros, caragi que poem caracteres —, sao 08 cai- xeiros viajantes do Diabo. Escutemos Cesario de Arles: «Acontece, meus irmaos, que um homem chega a cabeceira de um doente, da parte do Diabo, para o perseguir e lhe diz: ‘Se deres ouvidosa tal encantador, serds curado: se quiseres pendurar breves (caracte- res) por cima de ti, depressa recuperaras a satide.’ Se cedeis a tal perseguidor, sacrificais ao Diabo; se, pelo contrério, o desprezais, adquirireisa glériado martir.» Noutra passagem, Cesdrio indica quais séo as medici- nas da Igreja e os seus méritos: «Vede, irmao: aquele que acorre a igreja num caso de doenga merecer receber, ao mesmo tempo, a satide do corpo e o perdao pelos seus pecados. Se po- demos, ent&o, encontrar um duplo bem na igreja, por que havera infelizes que atraem uma infinidade de males recorrendo aos encantadores, as fontes e as Arvores, aos filactérios diabélicos, aos magicos ou aos hardspices, e aos adivinhos ou ainda aos enfeitigado- res?» HISTORIA DAS SUPERSTICORS — de curas por ela consideradas «supersticiosas». A eficdcia simbélica em geral nao era também o fundamento do seu poder sobre os homens? A intervengao de um sacerdote, a presenga de reliquias reconhecidas, a recitagao de uma oragao em devida forma, sem falar dos milagres realizados. por um santo quando vivo ou depois de morto através das suas reliquias, nao eram diferentes dos filactérios e das in- vocagdes que se condenavam; mas ostentavam marcas de reconhecimento que bastavam para os autentificar. Des- de o ano 400, aproximadamente, Severo, 0 Retérico, poe em cena, no Canto Bucdlico sobre a Morte dos Bois, dois boieiros, Buculo e Titiro, que discutem as maneiras de afastar a epizootia:

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