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Dossié Montaigne e os Canibais Introdugio Montaigne (titulo com que batiza sua obra © sua pritica iloséfiea e que mais tarde seria empregado, embora num sentido diverso, para designar um género literdrio) foi provavelmente escrito entre 1578-1579, segundo a cronologia de Pierre Villey, elaborada através de minucioso levantamento das fontes ocultas do texto, Entre os tragos deixados pelas varias leituras do autor, encon. tram-se aqueles da postura filoséfica eética que, a partir do contato com as obras recém-traduzidas de Sexto Empirico, por volta de 1576, oferece-Ihe as lentes conceituais de que se valeu para observar a relatividade dos valores ¢ costumes dos diversos povos e ajudar a construir a futura antropologia modema. Para além, contudo, do eventual valor dacumental de suas descrigdes dos povos que entio habitavam o Brasil, seu texto reflete e convida o leitor arefleti sobre questées diversas, a comecar pelo problema de saber quais so os critérios de que dispomos para a aceitagio ¢ a compreensio dos diversos testemunhos disponiveis sobre os fatos (em particular, os fatos humanos). Como o leitor veré, entrardo em cena diversas ‘autoridades, tomadas como objeto de reflexdo acerca de sua confia- bilidade: os antigos, a literatura dos “viajantes”, os marinheiros, os indfgenas ¢, entre elas, o proprio autor. Que veredito extrait, ademais, da dispersio desses relatos acerca da diferenga entre a “arte” © a “natureza” ¢ qual valor atribuira cada uma? Esta questo é recorrente na filosofia do Renascimento, que igualmente & retomada noutros capitulos da obra, Como comparar, em vista disso, os povos diversos segundo seu grau de desenvolvimento e civilidade, de “proximidade dda natureza” ou de elaboragao cultural? ‘Sem prejuizo do sentido hist6rico dessas quest6es, desejamos, dle nossa parte, apenas sublinhar a condigdo particularmente curios em que nos situamos, agora e aqui, sob a mira deste olhar eivilizado O trigésimo primeiro captulo do primeico livro dos Ensaios de Hursanas, Carib, 78, p. 71-72 198-98. itor da UFPR n sobre o Novo Mundo. Seria muito enganoso, se nao impossivel, nos imaginarmos hoje na pele dos primeiros brasileiros que foram a Rouen, La eles descobriram, segundo Montaigne. “...omens satis- feitos © gozando de toda a espécie de comodidades, enquanto suas metades mendigavam as suas portas, descarnados de fome ¢ de pobreza, ¢ acharam estranho que essas metades to necessitadas pudessem sofrer uma tal injustiga sem pegar os outros pelo pescogo ‘0u atear fogo a suas casas.” Mas, descartada essa hipétese, estaria Por isso justificado o ufanismo delirante com que se sonha por vezes pisar em solo europeu? Ao leitor atento caberd, por certo, um jul- zgamento mais cuidadoso e detalhado sobre o valor civilizatério do ‘coméreio com um autor como este Nossa traducao bascia-se no texto francés da edicdo de Pierre Villey (Paris, PUF, colegio Quadrige, 1988) ¢ as notas que fazem ‘meng a esse comentador sZo tomadas de empréstimo do aparato critico dessa edigdo. Tomando por base o Exemplaire de Bordeaux, Villey distingue trés camadas prineipais de redagao. O sinal [A] precede as passagens de que basicamente 0 texto era composto na primeira edigdo publicada, em 1580. A elas foram acrescentadas, em 1588, as passagens precedidas por {B], como comentério ou desen volvimento do texto anterior. Os prolongamentos [C] correspondem todos aqueles feitos posteriormente a essa data, em notas marginais ‘manuscritas. Veja-se, portanto, que uma interpretagdo adequada da evolugdo do pensamento montaigneano ndo pode ignorar o fato de que o texto se constitui em camadas cronolégicas: trata-se de um entre outros problemas que impdem a necessidade de uma nova tradug30 para 0 portugués. Preservamos, igualmente, a divisio de paragrafos desse editor ¢ seguimos a sua pontuacdo modemnizada. Desejamos, por fim, agradecer & Livraria Martins Fontes Editora, por haver xgentilmente cedido os direitos de tradugao dessa ediga0 dos Ensaios para a presente publicagao. Luiz Antonio Alves Eva n urns, Cara 9.74 9.7 2 198-99. rad UFPR DOS CANIBAIS (ENSAIOS, I, 31)* Michel de Montaigne Quando o rei Pirro passou pela Itélia, depois que reco- nheceu a ordenagdo do exéreito que os romanos Ihe ‘mandavam defronte, disse: ~ Eu nao sei que bérbaros so esses (pois os gregos assim chamavam a todas as nagdes cs- trangeiras), mas a disposigdo desse exército que vejo nao é de modo nenhum barbara. O mesmo disseram os gregos daquele que Flamfnio fez passar em seu pais,” (C] ¢ Felipe, vendo dum outeiro a ordem e distribuigdo do campo romano em seu reino, sob Piblio Suplicio Galba.’ [A] Eis como devemos nos guardar de nos ligarmos as opinides do vulgo e julgé-las pela via da razdo, ndo pela voz comum, Tive por um bom tempo comigo um homem que permanecera dez ou doze anos nesse outro mundo que foi descoberto em nosso século, no lugar onde Vilegaignon aportou e que sobrenomeou Franga Antartica. Esta descoberta de um pafs infinito parece ser con- “+ -Tradugo,apesentago nots de Luiz Antonio Alves Eva, profesor do Depar- tamorto de Filosofia da Universidade Federal do Varin, dostorando em Fafa pela Universidade de Sto Plo 1A font, segundo Ville, € PLUTARCO, Vidar poralelas, Piro, VI (ad myo. 2A fomte, segundo Vile, € PLUTARCO, ibd, Famini, 1 3. ome, semundo Viley, TITO LIVIO. Hist de Roma, XXX1,x4xv. amanas, Cari, 7p. 78, 198-99, Eta da UFPR 2 [MONTAIGNE, M. Dos canals (Ensaio, 1.31) siderdvel. Nao sei se posso garantir que no futuro nao se faga outra, tantas personagens maiores que nés tendo se enganado nela, Temo que tenhamos 0s olhos maiores que a cara’ e mais curiosidade que capacidade. Abragamos tudo € &6 lagamos o vento. Platio” apresen tou Sélon contando ter aprendido dos sacerdotes da cidade de Sais, ‘no Egito, que outrora, antes do dilivio, havia uma grande itha denominada Atléntida, defronte & entrada do estreito de Gibraltar, ‘com mais territério que a Africa e a Asia juntas; que os reis desse pais, que eram possuidores néo apenas dessa ilha, mas to adiante se ‘estenderam em terra firme que alcangavam em latitude, na Africa, até © Egito ¢ em longitude, na Europa, até a Toscana, tentaram também abarcar a Asia e subjugar todas as nagdes da borda do Mediterraneo, até a entrada do mar Negro. Para tanto, atravessaram a Espana, Géulia e a Italia, indo até a Grécia, onde foram detidos pelos ate- nnienses. Mas, algum tempo depois, osatenienses, eles e sua ilha foram todos engolidos pelo dilivio. E bem verossimil que essa extrema devastagdo de aguas tenha feito estranhas mudangas nas habitagées da terra, tal como se sustenta que o mar separou a Sicilia da Itai {B} Heec loca, vi quondam et vasta convulsa ruina, Dissiluisseferunt um protinus ultraque tells, Una Foret [A] Chipre da Sfria, ailha de Negroponto da terra firme da Beécia, ealhures juntou terras que estavam divididas, cobrindo de limo e areia 95 fossos entre elas, 4 expres mfr seri“ oios moe ue a ais” As eis ae Montagne publics em via segundo Vile, sn compemctivam ee page or tes como ve de dag cg fone capt fem dvr al cre Gus poy ‘buch co tac unten i coda. © 3 tome ago eguno Wey, €0 MMe a Ii de Heo, XXIL XXIV. XXV, 0 commador sera got ene ests tecnnhes de Pio © Aste si frelenzmencemenconadon no aor de cont ayes, (GOMARA. Hire {ert des nar. Te Fae, 150% THEVET Split de la Proce rei, Siisse:BENZON Hlanrenawete du Ntusan Monte ra de Catton, 157 tse que Montgne postmen, sgn Vile. scompu deamon) © msn0 Saloyunaraedniny Arte as. “Dine qu ers frst sara cm vikenla conus, quando endo formovamam inn catiene.(WIRGILO, Bread M810) 1% Hlumanas, Cua, a7, p, 73-88, 1998-99, lia da UFPR. MONTAIGNE, M. Dos canitais (Ensaio, I 31) steilisque dia palus aptague rem, Vicinas urbes alt et grave seni aratrum. Mas nao parece muito que esta ilha seja esse novo mundo que acabamos de descobrir, pois ela quase tocava a Espana e seria um inerivel fendmeno de inundagao ter dela recuado mais de duzentas Iéguas para onde esta. Ademais, as navegagdes dos modernos jéestio ‘quase descobrindo que nao é uma ilha, antes terra firme e continente com a india oriental de um lado ¢ com as terras que hé sob os dois los de outra parte, ou mesmo que, se separada, ela 6 & por um tio ppequeno ¢ estreito intervalo que ndo merece, por isso, ser chamada de itha. [Aj Parece que ha movimentos, (C] alguns naturais, outros (B] febris, nesses grandes corpos como nos nossos. Quando considero a pressdo® que meu rio da Dordonha faz na margem direita de seu curso eo quanto avangou em vinte anos, derrubando as fundagSes de varias construgies, vejo bem que é uma agitagdo extraordindria: se ela tivesse sempre ido nessa marcha, ou se 0 for no futuro, a figura do mundo seria revirada. Mas advém-lhe mudangas: por vezes elas sg derramam de um lado, por vezes de outro, por vezes elas se contém. ‘Nao falo aqui das repentinas inundagdes das quais constatamos as causas. No Medoc, & beira do mar, meu irmao, senhor de Arsac, ve uma terra sua ser devorada pelas arcias que o mar vomita diante dela. ‘A torre de alguns prédios ainda aparece. Suas rendas e dominios trocaram-se por bem magras pastagens. Os habitantes dizem que, jé hd algum tempo, o mar se Ianga tio forte contra eles que perderam ‘quatro léguas de terra, Eissas areias so sua escolta: [C] vemos grandes dunas de areia movediga que marcham meia légua na dianteira e ganham terreno. [A] 0 outro testemunho da antiguidade ao qual querem repor- tar essa descoberta esti em Aristételes, ao menos se esse pequeno 11 “E um plintano, muito exile atdo dos res, limenta hoje ay eas rina sustena o pesado arad,.” (HORACIO. Arte podtict. p65) 8 impression: Villy enende que o terme tad igualmente a preston © 3s marcas que sa efito da pressdo. (Les essa, p. 208) 3 O sujeto desss oragtes, no eign, € mesmo elles; por certo, fexmo ale cliticamente is margens "les ives (rete et gauche) de sa descente” mans, Curb, 9.7.8, p. 7388. 1998-99, Faitora da UFPR -MONTAIGNE, M, Dos canibais Ensaio, 31) livreto das maravilhas inauditas & dele. La ele conta que certos cartagineses, tendo sc langado na travessia do oceano Atlintico para além do estreito de Gibraltar e navegado muito tempo, descobriram, por fim, uma grande ilha fértil, toda coberta de florestas e regada de grandes ¢ profundos rios, muito distante de todas as terras firmes; que eles, ¢ depois outros, atrafdos pela bondade e fertilidade do campo, foram para ld com mulheres e filhos e comecaram a se instalar. Os senhores de Cartago, vendo que seu pais pouco a pouco se despo- voava, proibiram expressamente, sob pena de morte, que qualquer ‘outro os seguisse e de ld expulsaram esses novos habitantes, temendo, segundo se diz, que com o passar do tempo eles viessem a se multiplicar de tal maneira que suplantassem a eles mesmos ¢ arrui nassem seu estado, Esta narrativa de Aristételes também no se acorda com as nossas novas terras. Esse homem com quem estive era simples e grossciro, o que é condigdo prépria para dar testemunho verdadeiro, pois as pessoas finas observam mais coisas, e bem mais curiosamente, porém as glosam. Para fazer valer sua interpretagio e persuadir, nfo podem evitar de alterar um pouco a histéria: eles nunca vos representam as coisas puras, inclinam-nas e mascaram-nas com a face que nela viram, Para dar crédito a seu julgamento e atrair-vos acle, apresentam de bom grado a matéria daquele lado, alongam-na ¢ amplificam-na. ‘Ou bem € preciso um homem muito fiel, ou bem to simples que no tenha com 0 que construir e dar verossimilhanga a invengdes falsas, com nada comprometido. Assim era o meu homem e, além do mais, apresentou-me a diversos marujos e mercadores que havia conhecido nessa viagem. Assim, contento-me com essas informagdes, sem indagar-me quanto ao que dizem os cosmégrafos. Precisarfamos de topdgrafos que fizessem narrativas particu- lares dos lugares onde estiveram. Porém. por terem sobre nés essa vantagem de terem visto a Palestina, cles querem usufruir do privilégio de contar novidades de todo o resto do mundo. Eu gostaria que cada um escrevesse o que sabe, tanto que sabe, no apenas nisso, mas em todos os outros assuntos. Pois alguém pode ter alguma particular ciéncia ou experiéncia da natureza de um rio ou de uma fonte, sem por isso saber do resto senao o que qualquer um sabe. Ele Humans, Carta 9.78, . T488 1988-99. Baiora da UFPR MONTAIGNE, M. Dos cana (Ensaios. 1,31) smpreenderd, todavia, para fazer correr esse pequeno riacho, a escrita crete ica Desse vii vazan vériave grandes inconvenénciss ‘Ora, eu acho, para retomar meu assunto, que no ha nada de birbaro e selvagem nessa nagio, pelo que me reportaram, sen que cada um chama de barbaro o que ndo € de seu uso ~como, em verdad, no parece que tenhamos outra mira da verdade € da razio que 0 Zherlo cai des pies e sang do pls de onde somos. 6 std sempre a religito percita,o regime politico perfeto, o emprego perfeito e acabado de todas as coisas. Eles sao selvagens do mesmo modo que chamamos de selvagens os frutos que a natureza, de si € de seu passo ordinério, produziu. La onde, na verdade, esto os que falteramos por nosso artificio e desviamos da ordem comum, estio 05 {que deverfamos antes chamar de selvagens. Naqueles esto vivas Vigorosas as verdadeiras e mais tteis e naturais propriedades, as quais abastardamos nestes, apenas acomodando-as ao prazer de nosso gosto corrompido. {C] E tanto mais que a delicadeza ¢ o proprio sabor aacham-se excelentes ao nosso gosto em diversos frutos dessas terras sem cultura, em detrimento dos nossos. [A] Isso néo é razio para que aarte ganhe o posto de honra, acima da nossa grande e poderosa mie natureza, Nés sobrecarregamos tanto a beleza e a riqueza de suas cobras pelas nossas invengdes que as acabamos sufocando inteira~ mente, Assim & que, onde quer que brilhe sua pureza, ela causa fantéstica vergonha nas nossas vas ¢ frivolas empresas, 8] Et veniunt edera sponte sux melius, Suagit etn sols formosiorarbutus ants Et yolucres nulla dlets arte eanumt fio poder foduzir [A] Todos os nossos esforgos nio podem sequer chegar a repr. UM edo menor para, ta ama sa blezae sla de Seu uso, nem mesmo a tecelagem da cativa aranha. (C] Todas a5 coisas, diz Platio, sao produzidas pela natureza, pela fortuna, ou pela nen cre ier semi, omen sana ces fla suaro onan i purnconam mls dosemeneem ane." PROPERCIO lest thio Humans, Crib, 0.78, p 73-88, 199899. tora da UFPR -MONTAIGNE, M, Dos canals sais, 1,31) ante; as maiores¢ mais belas, por uma das duasprimeiras, as menores e imperfeitas, pela tia." TA] Essas nagdes, portanto, parecem-me bérbaras assim: por terem pouco se formado pelo espinto humano ¢ serem ainda muito prdximas de sua naturalidade original” As leis naturais comandam- has ainda, muito pouco abastardadas pelas nossas. Mas por vezes desgraime que des preva lo ferhanos tio continents antes, no tempo em que havia homens que as poderiam ter julgado tnlhordo qu nds. Desagrademe que Lurgoc Plane atnbam Conhecido, pois me parece que aquilo que, por experiéncia, vemos naquelas nagdes ultrapassa, nfo apenas todas as pinturas.com que a poesia adomou a idade dourada e todas suas invengGes e fcgdes de uma feliz condigio dos homens, mas ainda a prépria concepga0 © desejo da filosofia, Eles no puderam imaginar uma naturalidade Wo purae simples como a podemos ver por experiencia, nem puderam trer que nossa sociedade pode se manter com to pouco do artificio e do solidar humanos. E uma nago ~ditia eu a Plato ~ na qual no hd nenhuma espécie de tatico, nenhum conhecimento das Letras, nenhuma cinciados nmeros; nenfum nome para omagistrado, nem para a superioridade politica; nenhum uso da servidio, da riqueza ou da pobreza; nenhum contato, nenhuma sucesso, nenhuma partitha, nenhuma ocupagao sendo ociosa, nenhum respeito de parentesco sendo odacomunidade, nenhumas vestimentes,nenhumg agricultra, rnenhium metal, nenhum emprego do vinho ou do trigo." As palavras mesmas que significam a mentia, a traigio, a dissimulagZo, avareza, a vontade, a detragdo, 0 perdao, sao inautas. Quito dstante acharia leg replica que imaginou dessa prfego: [C] vii ads recente” 11, Segundo Villy, a fone so as Les, Xp. 888 dara , ta trad de Fein, 12. Monisiene emprega mayer, eano carlato a mai native") gue no Francés do séeulo XVI designs ndo apenas “sncridade” mas amém "purcra”¢"carser natal 08 ‘erdadlr” (¢f GREIMAS, A.J; KEANE, T, M Dictionaie i Moyen Franpair. Larousse 1992. p. 431-432), portuguts mana! iamin prover do lati narra, relative 20 TS Villy sugere sproximagio dessa desrigdo a ere tent! tt io @ OSORIO. Hleronymi Osi 14 “Homes eeém crados por Deus" (SENECA. Eps, xe) Humanas, Curtba 0.78. 73-88, 1998.99, Edtorada UFPR MONTAIONE, M, Dos canis (Enso, f 31) |B] Hos natura modos primum dedit.'* [Em suma, eles vive numa terra mui agradével e bem tem- perada, de modo que, ao que me disseram minhas testemunhas,é raro ver um homem doente. Asseguraram-me néo terem visto nenhum trémulo, quebrantado, desdentado ou curvado de velhice. Eles se instalaram & beira do mar, encerrados por grandes ¢ altas montanhas ‘0 lado da terra, entre ambos havendo cem Iéguas ou quase de fextensio em largura. Tém grande abundncia de peixes e canes que no tém nenhuma semelhanga com as nossas, comendo-as sem outro antficio que o de as cozinhar. O primeiro que Ii conduziu um cavalo, mesmo tendo-Ihes jé freqiientado em varias outras viagens, causou- thes tanto horror nesse assento que o mataram a golpes de langa antes {que © pudessem reconhecer. Suas construgdes so bem grandes, podendo caber duzentas ou trezentas almas, urdidas da casca de grandes drvores, firmadas na terra por uma ponta e se sustentando apoiadas uma contra outra no cimo a moda de alguns de nossos silos, dos quais o telhado pende até a terra, servindo-Ihes de flanco. Tém madeira tao dura que dela se valem para cortar, das quais fazem suas espadas e espetos para grelhar suas cames. Suas camas sfo de um tecido de algodio, penduradas no teto, como as de nossos navies, cada tum com a sua, posto que as mulheres dormem separadas dos maridos. Levantam-se com o sol ¢ comem de imediato, uma vez de pé, por todo o dia, pois nio fazem outra refeigdo. Eles entdo ndo bebem — tal como diz Suidas de outros povos do oriente, que s6 bebem fora das refeigdes, bebem diversas vezes ao dia, & saciedade, Sua bebida, feita de alguma raiz, € da cor de nosso clarete. $6 bebem-na tépida, conserva-se por apenas dois ou trés dias. Tem o gosto um pouco picante, nao é nada espumante, é salutar ao est6mago ¢ laxante para fs nfo habituados, mas muito agradavel para os que se acostumam. Em vez do pio, utilizam uma certa matéria branca, como um conteito de coriandro, Provei: 0 gosto é doce e um pouco insipido. Passam 0 dia todo a dangar. Os mais jovens vo & eaga de animais com arcos. Uma parte das mulheres, enquanto isso, ocuparse de aquecera bebida, seu principal oficio. Algum velho, de manha, antes que cles se 15. “tiv as primeira leis que dew anataneza" (VIRGILIO, Geérscas, 1,20) umanas, Catia .78, 9. 78-88, 1998-99. aitora da UPR, MONTAGNE, M. Dos canta (Ensaios, 1,31) ponham a comer, faz, uma pregagao por toda a tenda, passeandy de jum canto a outro, repetindo uma mesma frase diversas vezes, até ter dado toda a volta (pois so construgdes que tém bem uns cem passos de comprimento), Ele nao thes prega senio duas coisas: a valentia para com os inimigos ¢ 0 afeto para com suas mulheres. E nunca esquecem de assinalar essa obrigago em seu refrao: sdo elas que mantém sua bebida quente e bem temperada.'® Vé-se em varios. lugares, dentre outros em minha casa, a forma de seus leitos, de scus colares, de suas espadas e dos braceletes de madeira com os quais, cobrem os punhos em seus combates ede grandes varas, abertas numa Ponta, pelo som das quais dio cadéncia & sua danga. Sao de todo raspados e cortam o cabelo bem mais reto do que o fazemos, 56 tendo navalha de madeira ou pedra. Acreditam que as almas sio etemnas ¢ ue as merecedoras de bem por parte dos deuses esto no céu, onde © sol nasce; as malditas, no lado do ocidente.!? Eles tém uma espécie de sacerdote ou profeta, que se apresenta bem raramente a0 povo, tendo sua moradia nas montanhas. A sua cchegada, faz-se uma grande festa e uma reuniao solene entre 0s varios povoados (cada silo, como eu disse, forma um povoado, distando cerca de uma Iégua francesa um de outro). Esse profeta thes fala em puiblico, exortando-os a virtude e a seu dever; porém, toda sua ciércia tica contém apenas dois artigos: firmeza na guerra e afeigio pelas mulheres. Este thes prognostica as coisas futuras e as venturas a esperar de suas empresas, encaminha-os & guerra ou dela os desvia E por isso que, quando falha a adivinhagio, advindo-Ihes algo diver samente do previsto, ele & mofdo em mil pedagos, se o pegam, € condenado como falso profeta. Por essa causa, aquele que uma vez se enganou nunca mais é vist. {C] E dom de Deus, a adivinhagdo. is por que seu abuso deveria ser uma impostura passivel de puniglo, Entre os citas, quando os adivinhos falhavam, eram deitados, algemados nos pése nas mis, 16, Alguns desses tstemunhos (os relatvos& sade e 2s bebidas, por exempo), segundo Vile, encontrumse também em OSORIO, op. cit, lve I~ bra ue Montane ‘era ido apenas spe 1580, 17st testemnho encortm-se, segundo Villy, em Jean de Léry (Histoire dine voyage en Terre du Brél xi). mes nada, no eceder dese cometade,ndcadeisvamete «que esa ea uma fant precisa neta pssagem Humans, Curia 0.7.8, p. 73:8, 1998-9, Editora da UFPR. MONTAIGNE, M, Dos canibls (Ensaio, I 31) sobre carrogas puxadas por bois, cheias de gravetos, onde os quei ‘mavam.'® Aqueles que manejam as coisas sujeitas & condugdo da capacidade humana sao desculpados de fazer o que podem. Mas esses ‘outros, que vém se gabando da seguranga de uma faculdade extraor- india que esta fora do nosso conhecimento, nao Ihes caberia punir por ndo manterem o resultado de sua promessa e pela temeridade de sua impostura? TAT Els (dm suas gueras com as ngs que esto além de suas montanhas, mais para o interior, as quais vo totalmente nus, tendo como armas apenas arcos ou espadas de madeira afiladas numa Ponta, como as Kaminas das nossas langas. E coisa admiravel afirmeza de seus combates, que s6 terminam com morte ou efusdo de sangue, pois nada sabem de medo ou de fugas.'” Cada um leva como troféu a cabega do inimigo por ele morto ¢ a prega na entrada de seu alojamento, Depois de ter por bom tempo tratado bem seus prisionei- ros, dispondo-Ihes de todas as comodidades que podem considerar, aquele que esté no comando faz. uma grande reunido com todos os seus conhecidos.”” Amarra uma corda num dos bragos do prisioneiro {C) puxando-o pela outra ponta, afastado de alguns passos, por medo de se ferir, [A] ¢ oferece ao seu melhor amigo outro brago, para que Co puxe do mesmo modo. E ambos, em presenga de toda a assembléia, fulminam-no a golpes de espada. Feito isso, assam-no e comem-no ‘em conjunto, guardando pedagos para 0s amigos ausentes. Nao é, como se pensa, para se alimentarem, como faziam 0s antigos citas, mas para manifestarem uma extrema vinganga.”! Tanto é assim que, tendo percebido que os portugueses, a0 se aliarem a seus inimigos, valiam-se de outra espécie de morte contra eles quando os prendiam ~ que era a de os enterrar até a cintura e picar de flecha o resto do corpo, para depois enforcé-los —, pensaram que essas pessoas vinham 1S Segundo Vile, afte HERODOTO. Hes Tea de Sit Vi. 15. Noor“ devon eto, exe usc” O hm oes design eine aminos ota 0 Mosen Prana a expres sgn Nagai jes expresso moder dévoe sighlin “Tuga Ssodenada eum ope 420. Osmesn fos segundo Villy, so narados por LERY (pit x0, THEVET (op cit a) © OSORIO op.) " te ‘21 Villey observa que Jean de Léry manifesta opiniio contriria (op. cit. xv), Humans, Cutie 9,78, 9.7888. 1998-9. Baitora ds UFPR a MONTAIGNE, Mf. Dos canals Ensaios, 1,31) de outro mundo, semeadores do conhecimento de muitos vicios em sua vizinhanga, muito superioes a eles em toda a sorte de maldades, e no tomaram como inoportuna essa espécie de vinganga:julgando: mais cruel que a deles, foram deixando o antigo costume para adoté-la, Ndo me desaponto com 0 reconhecimento do horror bar bbaresco que ha em tal ago, mas sim como fato de que, julgando bem os erros deles, sejamos tio cegos para os nossos. Penso que hii mais barbarie em comer um homem vivo do que em comé-lo morto; em esmembrar, entre tormentos e gemidos, um corpo ainda pleno de sensagtes, em assé-lo aos poucos, em deixar que seja mordido ¢ devorado pelos cées ¢ pelos porcos (como nés, nd apenas lemos, mas temos de fresca meméria,”* nio entre antigos inimigos, mas entre Vizinhos e concidadios e, 0 que é pior, por pretexto da religido), do que em assi-lo e comé:1o depois de morto. Crisipo e Zendo, chefes da seita estéica, pensavam no haver mal algum em que nos servissemos da nossa camiga em caso de necessidade, para nos alimentarmos.”> Como nossos ancestrais, que, sitiados por César na cidade de Alésia,** decidiram-se a enfrentar fome do cerco com o corpo dos velhos, das mulheres c dos outros personagens initeis no combate. [B] Vascones,famg.est, alimentistalibus usi Produsere animas. IA] Eos médicos nao temem se servirem dela em toda a sorte ‘de uso para a nossa satide, seja externo ou intemo.”° Porém nunca se achou opinido tao desregrada que justificasse atraigao,atirania ou a crueldade, que sto nossos erros comuns. 22. Sepuno Villy, seman ras dat steles pica - sels pian ms Cae Ret ra marc, ex MONLUG Conroe non 56 ne sh, conto Wik. SEXTO EMPIRIC. pipes, anh € DIOGENES LAERCIO. Vidas dos fildsofos ilustres (Crisipo). Petoves 2 “osgncih seinen vlendonedotslmenin, oni (Guvenal, xv, 93) ; een 2S Vy mero ago conto de opie st Je pn steoenpgs medina at msmnasegipcies, commodo, por enearplo, por Ambroie Par. ae Humanas, Cuitba 1. 7-8, . 7388, 1998.98 Editora da UFPR [MONTAIGNE, M. Dos casas (rsaios, 1,31) Nés podemos, portanto, bem chamé-los de barbaros em vista das regras da razio, mas nao em vista de nés mesmos, que os tultrapassamos em toda espécie de barbérie, Sua guerra é de todo nobre fe generosa e tem tanta desculpa ¢ beleza quanto pode haver nessa doenga humana: ndo possui outro fundamento, entre eles, que @ simples inveja da virtude.”’ Nao esto em discussao pela conquista de novas terras, pois ainda gozam dessa uberdade natural que lhes suistenta, sem trabalho e sem fadigas, de todas as coisas necessérias, fem tal abundiincia que néo t8m por que ampliar seus limites. Esto ainda nesse feliz ponto de nao desejar sendo 0 tanto que suas neces~ siddes naturais Ihes ordenam: tudo o que est além € supérfluo para cles, Eles se chamam uns aos outros genericamente irmaos, se da ‘mesma idade; filhos, 0s que vem depois; 0s velhos so pais de todos ‘9s outros. Estes deixam a seus herdeiros em comum essa plena posse ide bens individidos, sem outro titulo que puramente aquele que a natureza confere a suas criaturas, produzindo-as no mundo. Se os ‘vizinhos atravessam as montanhas para virem assedié-los e sobre eles obtém a vit6ria, o ganho do vencedor é a gldria ¢ a vantagem de permanecer mestre em valor e virtude, pois nada teriam a fazer com ‘0s bens dos vencidos. E retornam a scu pa(s, onde nao tém falta de nada necessério, nem sequer ainda a falta desse grande partido de saber fruir felizmente de sua condigio € com ela se contentar. O mesmo fazem eles, por sua vez. A tinica fianga que exigem de seus prisioneiros é a confissio e 0 reconhecimento de serem vencidos, mas nao se encontra um sequer durante um século que nao prefira a morte do que afrouxar seu comportamento ou sua palavra num minimo ponto de uma grandeza de coragem inveneivel, Nao se encontra enhum que nao prefira ser morto ¢ comido a pedir, simplesmente, no o ser. Eles mantém-nos em toda liberdade, para que a vida Thes Sef (amo mais cara, ¢os entretém com ameagas de sua morte futura fe dos tormentos que terio para softer, dos preparativos que fazem para esse fim, do esquartejamento de seus membros e do festim que fe far gragas a ele. Tudo isso, com 0 tinico propésito de arranear de sua boca alguma palavra vacilante ou humilhada, ow de dar-lhe 27 AfiagGes similares, segundo Ville, esto em LERY (p. 219) € OSORIO. 1, amaas, Curiam. 7-, p 73-68 198-99. tora da UFPR MONTAIGNE, M. Dos eanibais (sais. 1,31) vontade de fugir, para obter a vantagem de thes ter assustado ¢ confrontado sua constancia. Também porque, a bem consideri-lo, é esse tinico ponto que consiste a verdadeira vitoria: ° [C} victoria nulla est ‘Quam quae confessos animo quoque subjugathostes7* s hiingaros, combatentes mui belicosos, nfo conduziam ou- tora suas investidas para além de ter deixado o inimigo & sua merce, Pois, tendo arrancado dele essa confissdo, deixavam-no ir sem cofensa” e sem fianga, salvo, no maximo, obterem a palavra de que no se armariam doravante contra eles. [A] Muitas so as vantagens que obtemos sobre nossos i 'migos apenas de empréstimo, sem serem nossas. f qualidade de um estivador, ¢ ndo da virtude, a firmeza dos bragos e peas. E uma qualidade morta e corporal, a agilidade. E um golpe de sorte derrubar. © inimigo e se ofuscarem seus olhos com a luz do sol. E um dom de arte e de ciéncia, que se pode achar em pessoa frouxa e nula, ter capacidade na esgrima. O valor € prego de um homem consistem no seu coragao e na vontade, ¢ Id que se encerra sua verdadeira honta. ‘A valentia éafirmeza, nio de suas pernas e bragos, mas da coragem e€ da alma, Bla no consiste no valor de nosso cavalo nem de nossa armas, mas no nosso, Quem cai obstinado na sua coragem, {C) Strider d gens pognat™s [A] Quem, one pg da more visa, no cede um ponto cm un segurangs quem, enregando a . encara ainda seu inimigo com face firme e desdenhosa — esse ¢ abd, no por ns, mas pela foun; ease € mot, no € ven [B] Os mais valorosos so, por vezes, os mais desafortunados, 2 "Noh ise umn dtraaln dining cds.” {(CLAUDIANO, De sextu consulatu Honorii. p. 248) evaeeeconiens vei 2 of ao ie pune ures ean nme en, yor goa font € CALCONDIEAS.L iste de lo daca de mp ie a an tn es stm os rt as Chacon Fak ela Bede Vege, Pas N. Chsnea 1577 (00188, 21sec enim dele GENECR. Da pnt 32 fete sogand Vile, € SENECA. Ds contanci Hiumanas, Cra, a7, p, 73.68, 198-99, Editora da UFPR. [MONTAIGNE, M. Bos canta Ensaios, 1.31) IC] Também hé perdas triunfantes que rivalizam com as vitérias, Nem essas quatro vit6rias gémeas, as mais belas que o sol jamais viu com seus olhos, Salamina, Platéia, Mfcale e Sicflia, ‘Ousaram opor toda sua gloria conjunta d gloria da desdita do rei LeOnidas e dos seus, no estreito das Termépilas. ‘Quem jamais correu com vontade mais gloriosa e mais am; biciosa a vitéria num combate do que o capitio Iscolas & derrota?” ‘Quem mais engenhosamente e cuidadosamente se assegurou de sua salvaguarda do que ele de sua ruina? Ele se comprometera com a defesa de certa passagem do Peloponeso contra os arcades. Achando- se de todo incapaz para isso, em vista da natureza do lugar ¢ da desigualdade das forgas; apercebendo-se de que tudo o que se ofere- ‘cesse ao inimigo teria necessariamente de li ficar; estimando, de outra parte, serindigno de sua prOpria virtude e magnanimidade, bem como do nome lacedemdnio, falhar em seu encargo, tomou entre essas duas textremidades um partido mediano, da seguinte maneira: os mais jjovens e dispostos de sua tropa conservou para a defesa e servigo de ‘eu pais, e mandou-0s de volta. Com aqueles dos quais a falta seria menor, deliberou defender a passagem e, através de sua morte, fazer om que os inimigos pagassem 0 prego mais caro possivel por essa tentrada, como de fato ocorreu. Pois, tao logo esteve cercado de todos 105 lados pelos arcades, depois de terem cometido grande camificina, foram ele ¢ os seus passados no fio da espada. Ha algum troféu assinalado a esses vencedores que nio fosse mais devido aos venci- dos? A verdadeira vitéria tem como tarefa a batalha, nao a salvagio, cea honra da virtude consiste em combater, nao em bater. [A] Para retornar & nossa histéria, tanto falta para que esses prisioneiros se rendam por tudo que Thes fazem que, em vez disso, durante os dois ou trés meses que sio mantidos, apresentam uma expresso alegre. Incitam seus senhores a se apressarem em submeté~ Jos a essas provagdes, desafiam-nos, injuriam-nos, cagoam de sua ‘covardia e do nimero de batalhas que perderam para os seus. Tenho ‘uma cangao feita por um prisioneiro, onde hii um trecho assim: que 53 fone, esundo Ville. € DIODORO DA SICILIA. Set livres de histoires de Diodore sien nassellemen radanis de grec en francoys, Ted. de acques Ayo. Pars Michel de Vasconsan, 1558, XV. ‘Humans, Corban, 7-8 p. 7-88 198-99, Bator da UFPR MONTAIGNE, M. Dos canals (Enos, 1,31) venham eles todos com ousadia e se juntem para janté-o, pois comietdo assim seus pais e seus avds, que serviram de alimento e nutrigdo a seu corpo. Esses musculos, diz ele, essa came e essas veias silo as vossas, pobres loucos que sois, nfl recuntieceis que a substn- cia dos membros de vossos ancestrais ainda af est: saboreie-os bem € af encontrarvis 0 gosto de vossa prépria came.™ Invengio que ndo tem nenhum sabor de barbarie. Aqueles que os pintam moribundos ¢ Tepresentam essa ago quando so abatidos pintam o prisioneito ccuspindo no rosto dos que o matam, fazendo careta, Na verdade, no ccessam, até o timo suspiro, de Ihes afrontar e desafiar com palavras © gestos. Sem mentira, cis homens bem selvagens comparados conosco; pois, ou bem é preciso que, a sério, eles 0 sejam, ou bem que nds 0 sejamos: hd uma fantéstica distancia entre sua forma ¢ a nossa Lé 0s homens tém vérias mulheres ¢ as tém em niimero tanto maior quanto sao de melhor reputagdo na valentia. E uma notavel beleza de seus casamentos que 0 mesmo citime que tém nossas mulheres, para impedir aamizade eo bem-quererde outras mulheres, também as deles 0 possuam, para consegui-los, Sendo mais preocu- padas com a honra de seus maridos do que com qualquer outra coisa, elas buscam € empregam toda solicitude em obter @ méximo de companheiras que podem, posto que se trata de um testemunho da Virtude do marido, {C] Os nossos dirdo ser milagre, mas ndo é; € uma virtude matrimonial, porém do mais alto estégio. E, na Biblia, Sara c as mulheres de Jac6 ofereceram suas servas mais belas a scus 3 maridos.°° E Livia secundou os apetites de Augusto, para sua des vantagem,°° © a mulher do rei Dejétaro, EstratGnica, ndo apenas dispés ao servigo de seu marido uma belissima jovem criada que sg Pt Sezai Vile. posse a aproxinarumacanosogsem THEVET, op. 35. A fone, segundo Viley é AGOSTINHO. Cidade de Deus. XVI, x6, xxi 36 "Segundo Villy, o mesmo fo, narado em SUETONIO (Anus. ia dove {er sido cit por Mensigne a price our fone: HOUCHET (Senden. 183) Este, por saver lta passages deste ens m digo de 1545 da mesma obra. Humana, Cura. 7.8. 73-88, 1998.99. Bora de UFPR MONTAIGNE, M, Dos canis (Ensaio 30) servia, como cuidou cuidadosamente dos filhos ¢ os apoiou nt sucessto dos negécios de seu pai. ATE, afim de que néose pense que isso se faz poruma simples « servil obrigagao a seus usos e pela impresstio.de autoridade de seu antigo costume, sem razSo e sem julgamento,”* e por terem a alma tio estipida que ndo podem tomar outro partido, € preciso mencionar alguns tragos de sua capacidade. Além daquela que recitei como uma de suas cangdes guerreiras, tenho esta outra, amorosa, que comes dlizendo algo assim: Cobra se detenha; detenha-se cobra; a fim de que minha irma tire, do padro de tua pintura, a forma e a obra de um belo ‘colar, que eu possa dar & minha querida; assim seja, para sempre, tua beleza e tua disposiglo preferida a todas as outras serpentes. primeiro distico é0 refrio da cangdo. Ora, tenho suficiente fa Gade com a poesia para julgé-lo: ndo apenas nada tem de barbarie nessa imaginagio, mas ela € de todo anacreéntica. Sua linguagem, tem suma, € suave e tem sonoridade agradével, lembrando as termi rages gregas."” “Trés dentre eles, ignorando o quanto custaré, um dia, a seu repouso c & sua felicidade o conhecimento das corrupgdes de c4, que desse comércio nascerd sua rufna, a qual suponho j avangar; bem mniserdveis de se deixar encantar pelo desejo da novidade ¢ terem deixado a dogura de seu céu para virem ver 9,nosso, foram a Rowe vem vera _ ’ 6poca em que 0 rei Carlos IX Id estava."! O rei falow-thes lon: gamente, mostrando nossas maneiras, nossa pompa, a forma de uma bela cidade. Depois disso alguém perguntou a opinido deles e quis saber o que tinham achado de mais admirével. Responderam trés coisas, das quais perdi a terecira, 0 que lamento bastante, mas tenho tem meméria as outras duas. Disseram que acharam, em primeiro 37 Segundo Viley foe € PLUTARCO. Obras morals (Veni fit 6 femmes ade Any). SBN rigials“sansdscour sn jugement 3b Ned ae: anesttoy,culeor ala gue ma soe te ee paon etapinrentgonrivvrage tun fiche cordon qu pub doer ai: i ot iatemps ta bea ti uoponton peice us es ares sen 40" A mmexina obgervagto, segundo Villey, encontra-se em LERY, J. de. Paris: La octet, 1578 pO, 1 vikey ta que Monigne encores, de fo) nn coe em Roven, no moments en gue ade fo eta dos pests elo Dag de Gabe Hmanas, Cra, 9.7.8 p. 73-88, 198-99, tora da UFPR -MONTAIGNE, M. Dos canibls asi, 31) lugar, muito estranho que tantos grandes homens, barbados, fortes ¢ armados, que estavam em volta do rei (€ verossimil que falassem dos suigos de sua guarda), submetessem-se a ohedecer wma erianga e nflo escolhessem, em vez disso, um dentre eles para comandar. Em segundo lugar (eles possuem um modo tal de dizer que chamam os homens “metades” uns dos outros), que haviam percebido haver entre 1n6s homens satisfeitos e gozando de toda a espécie de comodidades, cenquanto suas metades mendigavam as suas portas, descamados de fome e de pobreza, e acharam estranho que essas metades to neces- sitadas pudessem sofrer uma tal injustica sem pegar os outros pelo pescoco ou atear fogo a suas casas. Falei com um deles mui longamente, mas tinha um intérprete que me seguia tao mal e que, por sua estupidez, estava tao impedido de compreender minhas idéias que nio pude obter nada muito sats fat6rio."” A minha questio sobre qual fruto tiravaele da superioridade ‘que possufa entre 0s seus (pois ele era um capitdo, que nossos maryjos cchamavam rei), disse-me que era 0 de marchar a frente na guerra; sobre quantos homens ele comandava, mostrou-me a drea de um lugar, querendo dizer que eram tantos quantos coubessem naquele espago, 0 que poderia ser quatro ou cinco mil homens. Sobre se, fora da guerra, toda sua autoridade expirava, disse-me que dela restava isto: quando visitava as aldeias que dele dependiam, abriam-Ihe caminhos através dos galhos de suas matas, para que pudesse passar facilmente. Tudo isso ndo vai to mal. Mas, que coisa, eles no usam calgas! 442 Nocriginal, "ecevoir mes imapeations Homanas, Cara 9. 7-8 . 728, 1998.99, Baitora de UFPR MONTAIGNE E OS CANIBAIS. Ronald Raminelli* ‘urante um século, os cinocéfalos americanos atormentaram 0 corpo humano, eram representados na iconografia do Velho Mundo como camniceiros, verdadeiros agougueiros de care humana. Com instrumentos cortantes, fracionavam bragos, pernas, troncos & cabegas dos aventureiros que penetrassem em seu territ6rio. A carto- srafia quinhentista localizava os espagos povoados por esses mons- {ros, alertando os navegantes para os perigos. Nos mapas, o Brasil era deniominado de Terra de Canibais, habitado por povos que perpe- travam 0 atroz rito de devorar seus semelhiantes. Na segunda metade do século XVI, 0 canibalismo tornou-se ainda tema da iconografia dedicada & feitigaria. As abomindveis priticas americanas foram assimiladas por pintores e gravadores dedicados a representa 0 sab das bruxas. Além dos contatos pouco urtodexos com 0 Diabo, as bruxas também ingeriam came humana, devoravam criancinhas como os filhos de Saturno residentes na América. Os canibais eram apenas concebidos como cinocéfalos, indios indias de corpos esculturais povoum os livros de viagem e as imagens do Novo Mundo. Nuas e esbeltas, as indias demonstravam o prazer em participar de * Profesor da Universidade Federal Fluminense umanas Cust, 2, 7-8, 9.89105, 1998-99. Edita da UFPR

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