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Fernando Cristévao (coord.) O OLHAR DO VIAJANTE DOS NAVEGADORES AOS EXPLORADORES Textos de Jodo David Pinto-Correia, Hordcio Peixoto de Araujo, Maria Liicia Garcia Marques, Maria Adelina Amorim, Alexandra Curvelo, Ana Vasconcelos, Alberto Carvalho, Rogério Miguel Puga, Maria da Graga Ventura, Joaquim Cerqueira Gongalves, Fernando Cristévao, Juan Gil ALMEDINA CENTRO DE LITERATURAS DE EXPRESSAO PORTUGUESA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA, L3. FCT COIMBRA, 2003 Do “Paraiso Terrenal” a “El Purgatorio”: percursos de desencanto Maria da Graga Mateus Ventura Nelson Goodman, na sua obra Modos de Fazer Mundos', explica muito claramente os mecanismos de leitura do mundo. Parece-me particularmente importante 0 modo de supresséo e completagao como explicagio da construgdo do mundo nos textos dos viajantes. Na verdade, a nossa capacidade de nao ver ¢ muito mais ilimitada que a de ver. Por outro lado, aquilo que retemos ou captamos constitui «fragmentos ¢ pistas» significativos que requerem completagao ¢ composi¢a0. E comum a consciéncia de que apenas encontramos aquilo que estamos preparados para encontrar e que, provavelmente, ficamos cegos face ao que nem ajuda nem impede as nossas buscas. A nossa meméria surge-nos, assim, como um registo subjectivo baseado em supressdes e completagdes, E, mesmo no interior do que perce- bemos e recordamos, descartamos como ilusério ou insignificante 0 que nao pode ser enquadrado na arquitectura do mundo que estamos a construir, Claro que se segue, naturalmente, 0 modo de deformagao que mais nio é que uma reconfiguragio, correcgio ou distorgao daquilo a que se poder chamar realidade. Levando este raciocinio a0 extremo, poderemos ser conduzidos a concluir, como Goodman chega a sugerir, que a realidade nao passa de uma ficgo e que o mundo nao existe. Se existe, nio é apreensivel jé que cada observador/ leitor do mundo é portador de cédigos de leitura, de expectativas, de sensibi- lidade e de interesses que condicionam a sua percepgio e descrigdo do mundo. Os viajantes sdo, antes do mais, leitores do mundo e, como tal, en- fermam das condicionantes enunciadas. O desajustamento entre o ideal e o real, ou entre a utopia e a realidade, conduz inevitavelmente a desilusdo. E neste quadro que se insere toda a problematica do desen- canto ou da desilusio, Colombo viu aquilo que queria ver, por isso morreu convicto de ter chegado a costa oriental da India. Por isso, também a designacio Indias Ocidentais subsistiu e resistiu a invengao 1 Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, Porto, Asa, 1995. 234 Maria da Graca Mateus Ventura de outro baptismo. Os descobridores, os colonizadores, buscavam incessantemente sinais que Ihes permitissem a concretizagao espacial dos mitos que justificavam a sua expectativa ou a sua ambigao: Paraiso Terreno, Ofir, Cidade dos Césares, Sete Cidades de Cibola, El Do- rado. O crescente sentimento de desencanto manifestado nas crénicas de descobrimento ¢ conquista ou nas cartas privadas ¢ acompanhado pela sucessiva transferéncia do espago de concretizagao das utopias, transferéncia que deixa rasto na cartografia até a actualidade. Juan Gil, um dos grandes autores no estudo das mitologias, aprofunda a natureza e a manipulacao dos mitos e a criagio de utopias no Renascimento, de forma magistral. Diz-nos, logo no inicio da sua obra Mitos y Utopias del Renacimiento?, que nunca até ao presente o homem empreendeu uma viagem ao desconhecido em termos abso- lutos. Houve sempre estudos, informagées e tentativas que antecede- ram qualquer viagem. Ou seja, voltando a Goodman, o viajante/leitor do mundo preparou-se para a sua funcio de autor, recolhendo e com- pilando a informagio facilitadora do contacto com 0 novo para que este ndo lhe surgisse surpreendentemente dissemelhante do velho. Dai que em muitos viajantes o espanto e a maravilha fossem remetidos para a similitude © no para a diversidade, Américo Vespiicio ou Pedro Nunes maravilham-se com os outros céus e as outras estrelas, Fernan- dez de Oviedo maravilha-se com a diversidade, sem duvida, mas so a comparagao e a analogia os processos discursivos preferidos para a apresentacao do diverso. Sao os velhos paradigmas de leitura a orientar a leitura do novo. J. H. Elliott? sintetiza esta ideia, considerando trés determinantes da visio do novo mundo: a tradigao, a experiéncia e a expectativa Elliott aproxima-se bastante de Goodmann, reafirmando exactamente a ideia de que os europeus do século xvi viam frequentemente aquilo que esperavam ver. A este propdsito cita o fildsofo-historiador Ed- mundo O’Gorman que diz, justamente, que a América no foi des- coberta, mas inventada pelos europeus do século xvi. J4 o humanista espanhol Hernan Pérez de Oliva antecipara essa ideia em 1528, no livro que intitulou, precisamente, Invencién de América*. A ideia de 2 Juan Gil, Mitos y Utopias del Renacimiento, 3 vols., Madrid, Alianza Editorial, 1988 3 J. H, Elliott, £/Viefo Mundo y ef Nuevo (1492-1650), Madrid, Alianza Editorial, 1995 4 Hernan Pérez de Oliva, Invencién de América, Bogota, Int, Caro y Cuervo, 1965. Do Paraiso Terrenal a El Purgatorio ae invengio da América e de mundos ¢ comum a varios autores moder- nos. Juan de Castellanos inicia as suas Elegias com um verso extra- ordinariamente expressivo: «Al occidente van encaminadas / las naves inventoras de regiones.» Esta construgdo metonimica que toma as naves pelos navegadores, mas sobretudo, a metéfora que a acom- panha, reporta-nos a um Colombo inventor, mais que a um Colombo descobridor, Este nao descobriu a América, inventou-a Nao a achou sequer, porque nao a buscava verdadeiramente, Nao a descobriu porque nao identificou o novo espago, apenas inventou um espago cuja realidade fisica ele nao estava capacitado para conhecer. Ou seja, nao assumindo a descoberta de uma nova unidade geogréfica, in- yentou-lhe a configuracao de prolongamento/extensao de India Mais que um desajustamento, trata-se de uma resisténcia a inovagao. Creio que o caminho certo para interpretar a leitura e a recepgao do(s) Novo(s) Mundo(s) pelos europeus seré o da compreensio da luta que se travou nos tempos modernos, € que se trava ainda hoje, entre tra- dicao e inovagio. Sao dois mundos e dois tempos em ajuste de contas: 9 mundo aristotélico ¢ ptolomaico, por um lado, e o mundo coperni- ciano, por outro. Do conflito entre estes contrarios resulta uma legi- timagao da Idade Moderna de que Hans Blumenberg’ nos fala com , Antonio Marques de Almeida tao bem sinte- mestria e que, entre ni tiza nos seus estudos sobre a histéria da Ciéncia’. O proprio estado de ansiedade e de expectativa era condicionado pelos medos ou pelos devaneios suscitados pelo quadro mitico da ve~ Tha Europa. Relativamente ao primeiro contacto com o Novo Mundo existiu, decerto, uma atmosfera de tensao entre os europeus, homens inexperientes e assustados, que esperavam a todo 0 momento ser surpreendidos por uma das alimarias monstruosas que dominavam a sua imaginacao moldada pelos classicos. £ exactamente neste clima de tensio que se manifesta o estado de maravilha/deshumbramento ingé- nuo ou construido. 5 Hans Blumenberg, The Legitimacy of the Modern Age, Cambridge Mss., mtP Press, 199 6 Ver, por exemplo, «Saberes impostos c saberes rejeitados. Historia de uma teia a trés niveis», in Viagens eViajantes no Atléntico Quinhentista, Actas das I Jornadas de Histéria Ibero- -americana, Lisboa, Edigdes Colibri, 1996, e «Conhecimento ¢ representagao do mun- do no tempo de Tordesilhas», in Actas de Tordesillas y sus Consecuencias. La Politica de las Grandes Potencias Europeas Respecto a America Latina (1494-1898), Colonia, Vervuett, 19955 PP. 29°39. 1" 236 Maria da Graca Mateus Ventura 1. «EI Paraiso Terrenal»y: 0 estado de maravilha, A literatura de viagens, enquanto espago de narrativa onde os autores sio personagens portadoras de uma cultura alheia 4 realidade dos Novos Mundos, ¢ um excelente campo de realizagao da fungao leitor do mundo, Escolhemos Colombo e Vespticio como reveladores da sedugio. Crist6vao Colombo, 0 quimérico, Américo Vespticio, © realista, como diz Antonello Gerbi’. O primeiro, almirante caido em desgra- 6a, 0 segundo, piloto elevado ao mais alto cargo na navegacao indiana, manifestam atitudes bem diversas na leitura do Novo Mundo. Co- lombo, determinado pela ideia obsessiva de chegar a {ndia, acabaria por ser vitima do seu desajustamento. Vespticio, oriundo do mundo do trato, manifesta uma humildade interrogativa que se traduz numa valorizacio dos sentidos e, consequentemente, numa capacidade de recepcao da novidade. Independentemente de ambos estarem condi- cionados, na sua leitura do mundo, pelo peso da expectativa ou pelas referéncias culturais europeias classicas ou modernas, os seus escritos revelam um estado de maravilha. Vejamos. A primeira carta de Vespucio, escrita em Sevilha a 18 de Julho de 1500, dirigida a Lorenzo di Pierfrancesco de’Medici, traduz uma certa ingenuidade narrativa’. Preocupam-no, ao contrario de Colombo, questées de ordem cosmografica e cartografica?, mas esta tranquilamente atento a nova natureza. Navega pela costa da América do Sul, pasando pelo Amazonas, Magdalena, golfo de Paria ¢ Mara- caibo. Vespitcio fica téo deslumbrado que se cré no Paraiso, por ven- tura inspirado na Divina Comedia: «O que aqui vi foi que vimos uma 7 Antonello Gerbi, La Naturaleza de las Indias Nuevas: de Cristébal Colén a Gonzalo Fer- ndndez de Oviedo, México, Fondo de Cultura Econémica, 1992. 8 Amerigo Vespucci: Cartas de Viaje, introducio ¢ notas de Luciano Formisano, Madrid, Alianza Editorial, 1986, p. 53 9 Na mesma carta di conta dessas preocupagdes: «He acordado, Magnifico Lorenzo, que asi como os he dado cuenta por carta de lo que me hi ocurrido, enviaros dos fi. guras con la descripcién del mundo hechas y preparadas con mis propias manos... no falta en esa ciudad quien entienda la figura del mundo y que quiz enmiende en ella alguna cosa; sin embargo, 1 que quisiera hacer alguna enmienda que espere mi lle- geda, porque pudiera suceder que me justifiquen. Ibid., p. 64. Do Paraiso Terrenal a El Purgatorio 237 infinitissima coisa de passaros de diversas formas e cores, € tantos pa- pagaios, e de tantas diversas sortes, que era maravilha: alguns colo- ridos como gra, outros verdes e coloridos e limonados, e outros todos verdes, e outros negros e encarnados; € 0 canto dos outros passaros que estavam nas arvores, era coisa tio suave e de tanta melodia que nos ocorreu muitas vezes quedarmo-nos parados pela sua dogura. As arvo- res so de tanta beleza e de tanta suavidade que pensdvamos estar no Paraiso Terreal, ¢ nenhuma daquelas arvores nem as suas frutas se pare- ciam aos nossos destas partes»!?. Vespiicio, imbuido de uma mentalidade profana mais inspirado em Petrarca e em Dante, contrasta com um Colombo marcado pela cultura crista. Para este é precisamente a Biblia que constitui o ma- nual da nova Natureza, como ocorre inumeras vezes na Relagao da Ter- ceira viagem (1498): «A Sagrada Escritura testemunha que Nosso Senhor fez o Paraiso Terreal ¢ nele pés a Arvore da Vida, e dele sai uma fonte donde resulta neste mundo quatro rios principais: Ganges na india, Tigre e Eufrates na Arménia, os quais apartam a Siria e fazem a Mesopotamia e vao ter a Pérsia, € 0 Nilo, que nasce na Etidpia ¢ vai ao mar em Alexandria. Eu nao acho nem jamais achei escritura de latinos nem de gregos que certificadamente diga o sitio neste mundo do Pa- raisoTerreal, nem vi em nenhum mapa-mundo salvo situado com auto- ridade do argumentoy!!, © rio Orinoco sera, segundo Colombo, a 4gua doce do Paraiso: «Grandes indicios so estes do Paraiso Terreal; porque 0 sitio é con- forme a opiniao destes santos e sacros tedlogos; e assim mesmo os sinais sao conformes, que jamais li nem ouvi que tanta quantidade de gua doce fosse assim dentro e vizinha da salgada, ¢ nele ajuda mesmo a suavissima temperanga!?. E digo que, se nao procede do Paraiso Terreal, que vem este rio ¢ procede de terra infinita que é o astro, da qual até agora nao se teve noticia. Mas eu muito assente tenho na alma que ali, aonde disse, ¢ 0 Paraiso Terreal, ¢ descanso sobre as razbes © autoridades sobrescritas»'3. 10 Ibid., p. 53- 11 Carta escrita em 31 de Agosto de 1498 aos Reis Catélicos. In Cristdbal Colén: Textos y Documentos Completos, edigao de Consuelo Varela, Madrid, Alianza Editorial, 1992 12. bbid., p. 380. 13 Jbid., p. 382 238 Maria da Graca Mateus Ventura Colombo convoca a tradigSo para justificar o seu feito, a desco- berta do paraiso terreal. Vespicio compara a Natureza ao Paraiso («pensavamos estar no Paraiso»), Colombo assegura té-lo descoberto («é 0 Paraiso Terreal»). Em comum tém a seducao pela Natureza, mas divergem tanto nos cédigos de leitura que o visiondrio faz o mundo & sua medida e © prético apresenta um mundo maravilhoso indepen- dente de si. Colombo procurava uma justificagao para a sua aventura, € certo, enquanto Vespticio era movido pelo interesse cosmografico e cartografico!*. As cronicas de descobrimento e conquista, por sua vez, permitem © estudo da passagem do estado inicial de maravilha a construgao de uma arquitectura de leitura do Novo Mundo baseada quer na defor- magdo quer na composicio ¢ decomposigao. Ou seja, do ajustamento da realidade ao quadro mitico europeu a uma certa frustracao decor- rente do desajustamento entre a expectativa ¢ a realidade. Assiste-se & transposicao dos mitos cristaos ¢ sua progressiva transferéncia num espaco tanto mais desajustado quanto mais ele é desvendado, As limitag6es que impediam uma visio objectiva da natureza ame- ricana eram de ordem intelectual. A primeira barreira mental dos descobridores era 0 conjunto de mitos e lendas com profundo enrai- zamento cultural: 0 mito da ilha Antilha e de S30 Brando, as sete ci- dades encantadas de Cibola, as amazonas, o El Dorado, a serra de Prata, etc.'5, Por outro lado, a influéncia dos livros de cavalaria, com ampla difusdo no século xvi, gerou um cédigo de conduta do conquis- tador que reproduz 0 cédigo de honra e fama proprio do cavaleiro medieval. A segunda barreira mental que impede uma clara percepgio do Novo Mundo é 0 desejo de répido enriquecimento. Os conquis- tadores manifestam uma visio economicista da natureza, deslum- brando-se com a riqueza em pérolas da ilha Margarita e Cubégua ou 14 Daniel Boorstin (Os Descobridores, Lisboa, Gradiva, s.d.) considera que 2 Colombo se colocavam quatro objecses fundamentais no reconhecimento de outro continente: 1) a doutrina crista que recusava admitir a possibilidade de terras habi-taveis abaixo do Equador; 2) a resisténcia da Igreja a ideia de existéncia de continentes ou terras soltas fora da tricontinentalidade conhecida; 3) a visio ptolomaica-crista da Terra, que consi- derava uma tinica massa de terra rodeada por agua; 4) a existéncia de outro conti- nente impedia a concretizacio do sonho de Colombo: uma passagem directa para a india por ocidente, 15 A este respeito, v. Enrique de Gandia, Historia Critica de los Mitos de la Conquista Americana, Madrid, 19295 e Juan Gil, ob cit. Do Paraiso Terrenal a El Purgatorio 239 com os tesouros mexicanos e peruanos. So os missionarios e sol- dados-cronistas que se distanciam desta visao limitada e nos revelam uma visio mais serena da Natureza do novo continente. A medida que se avanga no século xvi e os limites do Novo Mundo se alargam, a experiéncia ea familiaridade com o continente permitem um olhar mais atento ¢ distanciado, embora cada autor esteja sempre condicionado pela sua profissio, interesses (materiais ou espirituais), ideias e ideais. Dai que 0 soldado descreva a terra em fungao das condigées para a conquista, 0 colonizador se fixe nas con- digdes da terra para a sua exploragao € o evangelizador se centre num estudo etnografico e antropolégico. Para Hernan Cortés, o conquistador do México, importava sobre- tudo «saber o segredo da terra», pelo que a sua narrativa contempla aspectos sociais, politicos, etnograficos, orograficos, e dados relativos a organizagao da vida urbana e a rede de caminhos. Nas Cartas de Relacidn'® que escreve a Carlos V, adopta sempre 0 mesmo proce- dimento textual. Parte da narrativa dos seus movimentos militares para descrever, em seguida, o territorio. As suas descrigdes, aparen- temente espontaneas, obedecem a uma cuidadosa selecgao da infor- mag&o em fungo do seu designio, a par e passo evocado: «saber 0 segredo da terra». Com Cortés observa-se um significativo passo na captagao e descrig&o da natureza americana, passando-se de vagas im- press6es a informacao objectiva, Homem experimentado nas Anti- Ihas, a tinica novidade que o espanta é a grandeza e a exuberdncia da cidade do México e manifesta-o muito claramente sob 0 ponto de vista epistemolégico: «para dar conta da grandeza, estanhezas e mara- vilhosas coisas desta grande cidade de Temixtitan... como das outras que sao deste senhor [Montezuma] seria preciso muito tempo e mui- tos relatores e muito expertos; nao poderei eu dizer de cem partes uma, das que delas se poderiam dizer, mas como poderei dizer algumas coisas das que vi, ainda que mal ditas, bem sei que sero de tanta admiragao que nao se poderao crer, porque os que ca com nossos proprios olhos as vemos, nao as podemos com o entendimento com- preender, Mas pode Vossa Majestade estar certo que se alguma falta na minha relago houver, que sera antes por curto que por comprido, 16 Hernan Cortés, Cartas de Relacién, ed. Mario Hernandez Sanchez Barba, Madrid, Historia 16, 1998. 240 Maria da Graga Mateus Ventura assim nisto como em tudo o demais...»!7. Cortés tem consciéncia das limitagdes do seu cédigo de leitura e da dificuldade de recepeao do seu destinatario, vitima das mesmas limitacdes culturais. Para as coisas novas nao estao disponiveis novas palavras ¢ as velhas desajustam-se da nova realidade emergente, dada a exignidade da utensilagem cogni- tiva. A lingua resiste, mas abrir-se-4 para a inovagio porque o sistema linguistico ¢, porventura, aquele que beneficia de maior dinamismo enquanto espago de comunicagao. Em termos cognitivos, a mudanga joga-se na controvérsia entre o velho e o novo, numa profunda resis- téncia 4 novidade € no «apego aos velhos paradigmas que toldavam 0 entendimento e obscureciam as novas sinteses»!8, Bernal Diaz del Castillo, cronista tardio, participou na conquista do México integrado na hoste de Cortés. Na sua HistoriaVerdadera de la Conquista de la Nueva Espafia'? narra a conquista j4 com o filtro do tempo, um quarto de século depois. Asumindo-se como soldado, a sua visio do mundo americano ¢ prdpria do conquistador comum, despojada de elaboracio intelectual ¢ mediatizada pela cultura po- pular. Parco em recursos expressivos e profundamente marcado pelos livros de cavalaria, em especial Amadis de Gaula, recorre com fre- quéncia ao imaginario para descrever o real. Interessa-se pela descri- gio das campanhas militares, pelos aspectos econémicos e pela paisagem urbana. A natureza nao o atrai. Apenas o despertam os fe- némenos inéditos. Bernal Diaz olha, mas sé vé o que lhe interessa, dando particular énfase a0 quotidiano dos conquistadores e as facili. dades ou dificuldades que © cenario envolvente oferece i progressio militar. A sua escrita esta longe de qualquer atitude especulativa. A narrativa de Cieza de Len”, soldado conquistador do Peru, Constitui um avango, j4 que passa o limiar do olhar para o ver e daqui para o deslumbramento. Detém-se nas coisas «estranhas e de grande admiracdo», tanto naturais como antropoldgicas. Ver, contemplar e 17 «Segunda carta, Relacin de Hernén Cortes al emperador Carlos V, Segura de la Fron- tera, 30 Octubre de 1520», ibid., p. 131. 18 A. Marques de Almeida, «Conhecimento representagio do mundo no tempo de Tordesilhas», ob. cit 19 Bernal Diaz del Castillo, Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva Espaiia, edigio literdria de Carmelo Sienz, Madrid, csic, 1982 20 Pedro Cieza de Leén, Descubrimiento y Conquista del Peru, ed. Carmelo Saénz, Madrid, Historia 16; e também Crénica del Peru, .° ¢ 2.* partes. Do Paraiso Terrenal a El Purgatorio 242 anotar sio as operagées que realiza e expressa manifestando uma interiorizagao da realidade americana que o dispensa do recurso aos parametros culturais europeus. Para atalhar o caminho, porque este nao é o espago préprio a uma exegese exaustiva dos textos, diremos que uma primeira geracao de autores (Colombo, Cortés, etc.) escreve sob 0 impacto do descobri- mento, mediatizada pelos seus interesses ou bloqueios particulares. Numa segunda fase, os autores, ja distanciados desse impacto, apre- sentam uma visio mais objectiva © global, em que a contemplacao cede o lugar & especulagio. E © caso dos cronistas evangelizadores (Fray Toribio de Benavente, Bernardino de Sahagiin, Landa ou Lizar- raga) ¢ dos cronistas gerais (Las Casas, Lopez de Gomara, Fernandez de Oviedo, José de Acosta). Vale a pena determo-nos um pouco no padre Bartolomé de Las Casas e 0 comentério que lhe oferece a ideia de Colombo de que tinha encontrado 0 Paraiso Terreal. Na Historia de las Indias espraia-se sobre a natureza americana e, aplicando © cliché biblico sobre 0 Paraiso, justi- fica a ideia colombina, Contudo, o frade dominicano nao corrobora exactamente as palavras de Colombo, até porque ele nunca esteve no Boca del Dragén, Diz que a Colombo lhe parecia estar no Paraiso, mas distingue o ser do parecer, tal como Vesptcio. Aproveita a ideia da suavidade dos ares, a verdura e beleza das drvores, a disposigao gra- ciosa e alegre das terras associada 4 mansidio, bondade, simplicidade e liberalidade humanas e afavel conversagdo, brancura ¢ compostura da gente — ou seja, a identificagio das Indias com o Paraiso Terreal — para dignificar as Indias e os seus habitantes. Na verdade, sobretudo na sua Apologetica Historia, Las Casas passa de uma atitude de contemplagao a de especulacao tedrica na qual a defesa dos indios e da natureza indiana surgem associadas. Integra ¢ defende as Indias no conjunto da maquina mundial como uma terra muito apta para a vida humana, insurgindo-se contra as «difamagées»?! de alguns cronistas. O padre jesuita José de Acosta, transcorrido quase um século sobre a viagem colombina, marca um avanco extraordinério como 21 Por exemplo, Fernandez de Oviedo diz na sua Historia (livro 1, cap. v) que os indios sio ociosos, viciosos, gente de pouco trabalho, melancélicos, cobardes, vis ¢ mal inclinados, mentirosos, de pouca meméria ¢ de nenhuma consténcia, 242 Maria da Graga Mateus Ventura leitor do Novo Mundo. Na sua Histéria Natural y Moral de las Indias?2 empenha-se em esclarecer as causas e razdes das novidades ¢ estra- nhezas da natureza e sobre elas realizar «discurso ¢ inquisigion. S gundo Acosta, a natureza indiana deve ser estudada segundo trés niveis: 0 histérico, o filos6fico ¢ o teoldgico, 0 que corresponde a uma perspectiva naturalista, cientifista e meta-historica. Estabelece um discurso especulativo, pioneiro entre os cronistas, integrando «men- talmente o continente americano como parte geografica do globo terraqueo e como materia de primeira ordem no discurso histérico- -descritivo da histéria natural. Neste sentido, realizou uma brilhante contribuigdo para as ciéncias ao ampliar o objecto de estudo da geo- fisica do globo ¢ ao alargar, assim mesmo, 0 campo de especulacao da filosofia natural, ja que o continente americano se afirma desde entio como objecto e objectivo de primeira ordem das ciéncias naturais e da filosofia natural»?3, Em sintese, podemos integrar a leitura da Natureza do Novo Mundo no século xv1 num longo caminho que vai do olhar, do ver ¢ do contemplar ao especular. Os primeiros descobridores estio pro- fundamente constrangidos pelos modelos pré-concebidos da cultura europeia, pelo que a sua percepgao peca por deformagao. Os cronistas conquistadores, condicionados pelas duras condigdes de sobrevivéncia € pelos imperativos da imposi¢ao militar, esto limitados a uma leitura utilitaria, mas revelam algum distanciamento na descrigao da natureza americana. Os cronistas evangelizadores mostram maior empenho na descrigao antropolégica e cultural que na descrigao geografica e, nese campo, manifestam um forte eurocentrismo, ainda que a imagem do indio chegue 4 Europa associada a virtudes como a bondade, a humil- dade e a afabilidade. Os cronistas gerais, mais ou menos distanciados do seu objecto narrativo, oscilam entre a contemplagio e a especula- ao. Fernandez de Oviedo representa a primeira atitude, Acosta é 0 expoente méximo da segunda. Apés esta breve incursdo no discurso narrativo de alguns autores- -cronistas das Indias, regressemos ao tema central desta comunicacio. 22 José de Acosta, Historia Natural y Moral de las Indias, edigio literdria de José Alcina Franch, Madrid, Historia 16, 1987 23 Simén Valearcel Martinez, Las Crdnicas de Indias como Expresién y Configuracién de la Men- talidad Renacentista, Granada, Diputacién Provincial, 1997, p. 326. Tradugio da autora Do Paraiso Terrenal a El Purgatorio 243 EI Paraiso Terrenal ¢ El Purgatorio sio topénimos frequentes na cartografia hispano-americana, Revelam, por um lado, a transposigao do sistema mitico cristao para o Novo Mundo e, por outro, a passa- gem do deslumbramento inicial para um estado de desencanto. A geografia do imaginario tem na América uma primeira configu- ragao cujos elementos fundamentais sao os rios e os espagos insulares. Da Boca del Drago, no litoral venezuelano, a costa da Florida, encon- tramos 0 Paraiso, Matinino, Ofir, Bimini, 0 rio Jordio, o El Dorado. Trata-se de um percurso encantatorio sucessivamente transposto para 0 interior meridional, mas sempre associado aos rios ¢ as ilhas. Logo na primeira viagem, Colombo afirma ter visto uma ilha habitada sé por mulheres, a que chama Matinino. Mais nao fez que ajustar o mito das Amazonas a uma ilha onde as mulheres acorreram a praia a vista das caravelas, Pedro Mértir de Angilera nao cré nesta versio e, alguns anos mais tarde, Bernal Diaz?* desfaz o mito das Amazonas mate- rializado por Colombo na ilha Matinino: «A qual quiseram alguns que era povoada de Amazonas: € outras fabulas muito desviadas da verdade como parece pelos seus tratados e se averiguou depois pelos que vimos a ilha e as outras da sua paragem: ¢ é tudo falso 0 que desta se disse quanto a ser povoada por mulheres somente porque nao o €: nem se sabe que jamais 0 fosse». Mas 0 mito das Amazonas continua a ator- mentar a mente dos descobridores e ficara em definitivo na cartogra- fia. A ideia de Paraiso constitui outro mito em busca de concretizagao espacial, sendo por isso imimeros os topénimos a ele associados. Por exemplo, numa ilha do rio Paraguai: «Chamaram a esta ilha el Paraiso Terrenal pela sua abundancia ¢ maravilhosas qualidades que tem»?5, El Dorado surge pela primeira vez em 1539, sendo atribuido a Sebastian de Benalcazar o baptismo de um lugar em Nova Granada. Parece que nesta regido um cacique mergulhava todas as manhas num tanque e que saia da 4gua coberto de po de ouro. Este tanque trans- formou-se, na mitologia dos conquistadores, num lago localizado su- cessivamente em diferentes lugares, desde a Colémbia ao rio 24 Bernal Dfaz del Castillo, ob cit., vol. I, p. 33. Tradugao da autora 25 Ruy Diaz de Guzmén, La Argentina, p. 83 ¢ na p. 161: segundo Diaz de Guzmén, os espanhéis foram reconhecer «aquella tierra que laman el Paraiso que es una gran isla, que esta en medio de los brazos que divide el rio, tierra tan amena y fértil, como queda referido». Acrescenta que os indios sio muito amigiveis e amigos dos espanhdis, que o tempo ¢ o clima s3o amenos, que no ha Inverno nem Verao. 244 Maria da Graga Mateus Ventura Amazonas. Este mito, que remonta 4 mitologia grega, atormentou as mentes obcecadas de descobridores e conquistadores da América como Federmann, Jiménez de Quesada, Bendlcazar e Pizarro. A descoberta do tesouro de Atahualpa configurou o mito na regiao do Peru. Avangam os conquistadores, retrocede o El Dorado, sempre inacessivel. Este mito, associado a obsessao pelo ouro, foi um dos mobiles da exploragao das profundezas do continente americano?6. O pseudocenério mitico convoca o delirio perante a riqueza facil, alimentado pelos relatos dos navegantes e dos conquistadores desejo- sos de acrescentar as suas hostes. A expectativa e a obsessao, defor- mando a realidade, acabam por suscitar a desilusao. As crénicas esto repletas de exemplos. Diaz de Guzman?’ da conta deste contraste: os espanhéis encontraram na provincia de Guairé «unas piedras muy cristalinas» que se criavam no subsolo, e assumiam cores diversas com «tanta diafanidad y lustres» que pareciam pedras preciosissimas. Os conquistadores «acreditaram que possulam a maior das riquezas do mundo» e decidiram deixar esta terra ¢ caminhar para a costa a fim de partir para Espanha com as suas familias. Ofir, terra do ouro, era um mito que vinha de longe (recolhido por Herédoto) e percorreu toda a Idade Média. Colombo situa-a na Espanhola, associada ao mito das Sete Cidades de Cibola. Ofir e Cibo- la*8 aparecem sucessivamente nos relatos de descobridores do Atlanti- co ao Pacifico. O mito de Ofir est ligado ao Eldorado?? que mobiliza numerosos aventureiros sujeitos aos maiores perigos ¢ movidos pela 26 A este respeito ver, por exemplo, além de Gandia e de Juan Gil, Carmen y Serge Gruzinski, Del Descubrimiento a la Conquista. La Experiencia Europea, 1492-1550, Me- xico, Fondo de Cultura Econémica, 1996, 27 Diaz de Guzmén, ob cit, p. 257 28 No seu mapa-mundi J. Ruysch distingue a Espanhola da Antilha e escreve: «Esta isla de Antilia fue descubierta antafio por los portugueses; ahora cuando se la busca no se encuentra». Apud Juan Gil, ob cit., p. 84. Cibola aparece com a variante de «Ciudad de los Césares» em Diaz de Guzman, ob cit., p. 64 € Jeronimo de Vivar, Crénica de los Reinos de Chile, edigao literdria de Angel Barral Gémez, Madrid, Historia 16, 1988, p. 280. Anténio Galvao refere que Hernando de Cérdoba encontrou no Yucatin templos de pedra e cruzes que atribuiu 4 anterior presenga de cristdos, 0 que levou os soldados a crer tratar-se de Cibola (Tratado..., p. 114); também Frei Marcos de Niza em 1538 na sua viagem para norte do México baptizou uma terra de Cibola, pela noticia que havia de terra rica em ouro, prata, pedrarias ¢ gados de la muito fina (ibid., p. 154) 29. O Eldorado surge em Guzman, ob cit., p. 72, como Laguna del Dorado, onde nasce 0 Parané Ibauy, afluente do Parana. Do Paraiso Terrenal a El Purgatorio 245 obsessio do ouro. O seu rasto fica nas crénicas e na toponimia. Se o estado de maravilha corresponde ao primeiro impacto do contacto com a natureza do Novo Mundo, o estado de desencanto vai-se instalando 4 medida que se frustram as expectativas de riqueza facil. 2. «El Purgatorio»: 0 estado de desencanto. O éxito militar da conquista e 0 sucesso relativo da evangelizacao nao foram acompanhados de idéntica satisfagZo individual e colectiva por parte de conquistadores e colonizadores. As dissensdes politicas, a iniquidade na reparticao da riqueza, o desajustamento entre expec- tativas e realidade e uma natureza muitas vezes adversa, justificam o desencanto que as fontes revelam. Si0 memoriais de conquistadores em que estes se queixam de que «padecem necessidade», sio cartas de vitivas ou de maridos ausentes a reclamar da imensa saudade. Maria Diaz escreve do México, em 1577, a sua filha Inés. Como tantas outras missivas familiares, é uma carta de desengano e de tris- teza que revela o estado de desencanto e de desilusao comum a muitos viageiros, A expectativa de riqueza facil ¢ de uma vida comoda e agra- davel nao era compativel com os perigos da viagem e com a dureza da vida e com a lonjura da familia que se deixava. O desencanto manifesta- -se logo na travessia atlantica: «Filha minha, o que por esta se oferece seré avisar-vos dos grandes trabalhos e perigos nos quais nos temos visto no mar eu € vosso pai, que certo, se entendesse os grandes peri- gos e tormentas do mar em que nos vimos, nao terlamos vindo, porque além das tormentas que nos sucederam no mar, sobre todas foi uma que nos teve dois dias ¢ duas noites, e decerto pensémos perecer no mar, porque foi tao grande a tempestade que quebrou o mastro da nau, mas com todos estes trabalhos foi Deus servido que chegdssemos ao porto, onde estivemos alguns dias e despachamos alguma mercadoria da que traziamos... ¢ logo que chegamos, ao cabo de quinze dias [o vosso pai] tornou a recair da prépria enfermidade, da qual foi Deus servido de leva-lo... nao permitais que cu esteja nesta terra s6 e desam- parada, se no levar-me a terra aonde eu morra entre os meus, porque depois da salvacaio nenhuma outra coisa desejo...»°°, 30 Apud Enrique Otte, Cartas Privadas de Emigrantes a Indias (1540-1616), Sevilha, Junta de Andalucia, 1988 246 Maria da Graca Mateus Ventura Lope de Vega, num epitafio ao poeta Medina Medinilla, escrevia «No mar da América se perdeu a flor e a nata de nossa épocay?!, ideia corroborada por Géngora e outros autores. Afogados nos rios, nos portos ou em mar alto, morreram muitos marinheiros e viageiros, muitos dos quais ndo sabiam nadar ou tinham alguma vez visto o mar. Tormentas no mar, fome ¢ doenga em terra, eram problemas quotidianos no periodo turbulento da conquista. Fernandez de Oviedo, retratando 0 quotidiano dos conquistadores, evoca intimeras vezes a situagao de fome de que estes eram vitimas. Em Santo Domingo os primeiros cristéos passaram tanta necessidade que comeram todos os animais de quatro patas que havia na ilha — caes da terra, coclhos, os lebreus, iguanas, ¢ nem perdoaram aos lagartos, la- gartixas ou cobras das quais havia «muitas e de muitas maneiras de pinturas»32, Fray Antonio de Remesal33 salienta a morte desastrosa dos con- quistadores e governadores das indias, morte pouco consentinea com a heroicidade veiculada pela literatura cavalheiresca. Os primeiros espanhdis deixados nas indias (Puerto de Navidad) foram mortos pelos indios que Colombo apresentara com gente doméstica e mansa. Cris- tovao Colombo, meio despojado, tolhido de gota, melancélico ¢ pesa- Toso da mé paga de tio avantajados servigos, morreu mais pobre do que esperava. Francisco de Bobadilla morreu no mar vitima de naufra- gio. Alonso de Ojeda, primeiro governador da Nova Andaluzia, apds muitos sofrimentos, morreu miseravelmente na Espanhola e tao pobre que os padres de Sao Francisco o enterraram, por esmola, nos umbrais do portal da sua igreja. Diego de Nicuesa, primeiro governador de Castela do Ouro, morreu na viagem de Terra Firme para a Espanhola, quando se dirijia até Espanha. Vasco Nuifiez de Balboa, 0 primeiro adelantado de Terra Firme do Mar do Sul, foi degolado pelo futuro sogro, o temivel Pedrarias de Avila. Juan de Grijalva, descobridor do Yucatan e Tabasco, morreu as mios dos indios numa emboscada noc- turna. Diego de Almagro foi degolado e afogado pelos pizarristas. Francisco Pizarro, conquistador do Peru, foi morto por Diego de Al- magro filho ¢ este degolado pelo licenciado Vaca de Castro, Blasco 31 Apud Jacques Lafaye, Los Conquistadores: Figuras y Escrituras, México, Fondo de Cultura Econémica, 1999, p. 114 32 Fernandez de Oviedo, ob. cit, livro I, cap. xu. a Do Paraiso Terrenal a El Purgatorio 247 Nuiiez de Vela, que havia prendido Vaca de Castro, foi morto por Gonzalo Pizarro, ¢ este justiciado por Pedro de la Gasca. Juan Pizarro morreu em Cuzco as maos dos indios. D, Pedro de Mendonza, pri- meiro governador do Rio da Prata, morreu de sifilis quando regres- sava a Castela e foi langado ao mar3+, enquanto Fernando de Souto foi Iangado ao Mississipi depois de morrer de calores e dores de costado?5. Poderiamos acrescentar Joio Dias de Solis, morto no Parana, ou Fer- no de Magalhaes, morto na ilha de Matan. Enfim, mortos num clima de discérdia, as maos dos indios ou numa simples viagem de regresso. Bernal Diaz dé conta das doencas mais frequentes entre os sol- dados no México, Queixam-se de dor nos lombos: «uma coisa aconte- ceu naquele tempo a seis ou sete soldados, mancebos e bem dispostos, que lhes deu mal de lombos que nao se puderam ter pouco nem muito em seus pés se no os levavam as costas: ndo soubemos de qué; diziam que de ser regalados em Cuba, e que com o passo € calor das armas Ihes deu aquele mal»36. Uns soldados que haviam ido povoar Pinuco regressaram doentes, amarelos ¢ com as barrigas inchadas pela fome que passaram. Os espanhdis da hoste de Cortés, que estavam em Se- gura de la Fontera, gozavam-nos chamando-lhes panciverdetes, porque traziam as cores de mortos ¢ as barrigas muito inchadas*”. Os conquistadores enfrentaram ainda aquilo a que Oviedo designa por «mal das indias», niguas?8 e bubas, Sobre a socializagio da doenga, diz: «e desde ha poucos meses no ano dito de 1496 se comegou a sentir esta doenca entre alguns cortesaos: mas no principio era este mal entre pessoas baixas e de pouca autoridade: e assim se cria que 0 cobravam chegando-se a mulheres piblicas e daquele mal trato libi dinoso: mas depois estendeu-se entre alguns dos maiores e mais prin- 33 Fray Antonio de Remesal, Historia General de las Indias Occidentales y Particular de la Gobernacion de Chiapa y Guatemala, edigao literéria de Carmelo Saenz de Santa Maria, Madrid, Editorial Atlas, 1964, livro IV, cap. 1 34 Diaz. de Guzmin, ob. cit., p. 125. 35. Maria da Graga A. Mateus Ventura (ed.), Relagdo Verdadeira dos Trabalhos que 0 Gover- nador D. Fernando de Souto ¢ Certos Fidalgos Portugueses Passaram no Descobrimento da Flo rida. Agora Novamente Feita por um Fidalgo de Elvas, Lisboa, cNeDP, 1998. 36 Bernal Diaz, ob.cit., p. 61. 37 Ibid., p. 304, 38 Sobre as niguas, ver Anténio Galvao, Oviedo e Jeronimo de nindez de Oviedo, Histéria General y Natural de las Indias, tomo I, p. 53 far, entre outros. Fer- 248 Maria da Graga Mateus Ventura cipais. Foi grande a admiragao que causava em quantos o viam»?9, A doenga de uns associava-se ao descontentamento de outros, pela ma repartigao do ouro dos saques, e manifestavam-no, por exemplo no México, escrevendo grafites na parede da casa onde Cortés estava instalado. Todas as manhas surgiam «escritos motes», uns em prosa e outros em verso, «algo maliciosos & maneira como pasquins ¢ libelos». Uns diziam que o sol e a lua e o céu e as estrelas e 0 mar e a terra tém os seus cursos, ¢ que se algumas vezes saem mais da inclinagao para que foram criados mais das suas medidas, que voltam a seu ser, € que assim havia de ser a ambigao de Cortés; e outros diziam que mais con- quistados os trazia que a mesma conquista que fizeram no México e que nao se designassem por conquistadores de Nova Espanha, mas conquistados de Fernando Cortés. Referindo-se directamente ao ouro, outros diziam «Oh que triste est a alma minha até que a parte vejal> ¢ outras coisas que Bernal Diaz nao ousa relatar. Como Cortés, saindo todas as manhis lia estas frases bem escritas e rimadas, com muito es- tilo, respondia também com «buenos consonantes y muy a proposito». Como cada dia fosse crescendo o tom insultuoso, Cortés escreveu «parede branca, papel de néscios» e, no dia seguinte, aparecia «e ainda de sabios e de verdades». Até que Cortés, identificando os autores de tais impropérios, os ameagou ¢ acabou com os protestos literrios*?. O descontentamento pela reparticao feita em Tutepec por Pedro de Alvarado gerou igualmente protestos que Bernal Diaz, 0 soldado- -cronista, muito bem sintetiza: «e quando os vizinhos que nela fica- vam viram que os repartimientos que Ihes davam nio eram bons, ¢ a terra doente e muito calorosa, e haviam adoecido muitos deles, e as naborias e escravos que levavam tinham morrido; e ainda muitos mor- cegos € mosquitos e até pulgas e, sobretudo, que 0 ouro nao o repar- tiu Alvarado entre eles eo levou, acordaram de deixar e despovoar a vila, e muitos deles vieram para 0 México e outros para Guaxaca e Guatemala, e se derramaram por outras partes»*!, A obsessao pelo ouro era forte e a frustrag3o quase sempre inevitavel. Bernal Diaz ilustra bem a confusio entre realidade e fantasia quando diz. que em Cempoal 0s cavaleiros espanhéis que exploravam 0 povoado confun- 39 Bernal Diaz, ob.cit., p. 418. 40 Ibid., p. 442. 41 Ibid., p. 442. Do Paraiso Terrenal a El Purgatorio 249 diram o branco reluzente das paredes das casas com prata, dizendo que aquelas eram de prata*?. Por toda a parte o desencanto se generalizava, sem prejuizo de um punhado de homens obter indiscutivel sucesso, quer no que res- peita a dignificagao pessoal, de acordo com os cdnones da literatura cavalheiresca, quer relativamente 4 obtengao de um estatuto de poder e de riqueza. Ruy Diaz de Guzman acentua a vertente negativista da aventura americana quando escreve a propésito do Rio da Prata: «acontece as vezes ser aos homens tio adversos os sucessos no que empreendem, que entendendo sair deles com honra, e acrescenta- mento, vém a dar no infimo das misérias e infortunios. Desta maneira sucedeu aos nossos espanhdis na conquista do Rio da Prata, donde pensaram sair muitos ricos ¢ aproveitados, e foi tao ao contrario, que nao houve algum que tivesse voltado remediado a sua patria, antes acabaram os mais deles as suas vidas miseravelmente»*}, Na epistolografia privada encontram-se ecos de desencanto, como vimos na carta de Marfa Diaz. Em 1556, Dona Isabel de Guevara es- creve de Assungao a princesa governadora Dona Joana, queixando-se da ingratidao de que fora alvo no repartimento de terras ¢ de indios. Apés uma exposi¢ao detalhada sobre 0 contributo feminino para o su- cesso da expedigao de D, Pedro de Mendonza, no Rio da Prata, subli- nha a legitimidade dos seus direitos de conquistadora, independente dos beneficios do marido: «Quis isto trazer 4 memoria de V. A., para fazer-lhe saber a ingratidao que comigo se usou nesta terra, porque ao presente se repartiu pela maior parte dos que ha nela, assim dos antigos como dos modernos, sem que de mim e de meus trabalhos se tivesse nenhuma memoria, e me deixaram de fora, sem me dar indio nem nenhum género de servigo. Muito me quisera achar livre, para me ir a apresentar diante de V. A., com os servigos que a V. M. fiz e os agravos que agora me fazem; mas nao esta na minha mao, porque estou casada com um cavalheiro de Sevilha, que se chama Pedro Esquivel, que, por servir a V. M., foi causa que meus trabalhos ficassem esquecidos e se me renovassem de novo, porque trés vezes The saquei o punhal da garganta, como ai V. A. saber. Ao que suplico mande me seja dado repartimento perpétuo, e em gratificagao de 42 Mbid., p. 86. 43° Ruy Diaz de Guzman, ob. cit., p. 147. ws Maria da Graga Mateus Ventura meus servigos mande que seja provido meu marido de algum cargo, conforme a qualidade de sua pessoa; pois ele, de sua parte, pelos seus servigos o merece», O frade franciscano Toribio de Benavente, ou Motolinia, na sua Historia de los Indios de la Nueva Espafia, escrita em 1565, apesar de se congratular com a conquista como acrescentamento de almas para 0 Reino de Deus, apresenta um quadro negro da presenca ibérica no Mexico, enunciando as dez pragas trabalhosas com que Deus castigou aquela terra*S, E uma andlise que ser4 retomada em 1619 pelo domi- nicano Antonio de Remesal. O balango € tragico: 1) a variola e o sarampo que dizimaram, em muitas provincias, mais de metade da populagao india; 2) a mortan- dade elevadissima provocada pela conquista; 3) a fome decorrente da ocupagao e da destruicao das colheitas; 4) a apropriacao da terra dos indios por estanceiros espanhdis; 5) os tributos e servigos a que os indios foram sujeitos; 6) as minas de ouro onde, pelo trabalho exces- sivo, morreram muitos indios; 7) a edificagio da cidade do México que, pela massiva mao-de-obra e pela dureza do trabalho, provocou elevada mortalidade; 8) os escravos feitos em série que entravam no México como grandes manadas de ovelhas, ferrados na cara com ferro privado ou d’el-rei, «tanto que toda a cara traziam escrita, porque de quantos era comprado e vendido levava letreiros»; 9) 0 servico de apoio as minas a que os indios eram obrigados, tendo de se deslocar a grandes distancias para levar mantimentos aos mineiros, acabando por morrer no caminho; 10) as divisées ¢ bandos entre os espanhdis que originaram muitas mortes entre eles e pds em risco o dominio da terra, Desencanto para os Espanhdis, sofrimento para os indios. As crénicas dos vencidos dao conta da sua expectativa e do seu desen- canto. Tambem os Aztecas ¢ os Incas integraram os Espanhdis no seu sistema mitico. Mas esta sera outra leitura. Outro parametro de leitura ¢ 0 baptismo do Novo Mundo. Se na fase de descobrimento se baptiza o Novo Mundo de acordo com cri- térios essencialmente liturgicos e miticos, na fase de conquista e colo- nizacdo a toponimia corporiza a frustragao e o desencanto. Subsistem 44 Jacques Lafaye, Los Conquistadores: Figuras y Escrituras, México, Fondo de Cultura Eco- némica, 1999, p. 299. Traducio da autora. 45. Fray Toribio de Benavente, Historia de los Indios de la Nueva Espaiia, edigo literria de Claudio Esteva, Madrid, Historia 16, 1985, Tratado I, cap. I, pp. 67-73 Do Paraiso Terrenal a El Purgatorio 2st na cartografia mexicana actual, por exemplo, topdnimos que ilustram. a emocionalidade dos viageiros: El Encanto, Islas Encantadas, La Encan- tada, El Eden, El Delirio, El Ideal, Las Delicias, Esmeralda, El Dorado (Nuevo Leén, San Luis de Potosi, Sinaloa), Paraiso (em Campeche, México, Oaxaca, Yucatan, Queretaro, Quintanaro, Guanajuato); ¢ do desencanto: El Purgatorio, El Infierno, El Triste, El Perdido, El Olvido, El Imposible. A cartografia, s6 por si, funciona como texto onde a leitura condicionada do mundo, as expectativas e as vivéncias dos «invento- res» da América, se registam em topénimos cujo estudo permite tragar as rotas do imaginario europeu transferido para a América, ou seja, os percursos do desencanto. 3. Conclusao. Partimos da ideia de inveng&o da América como processo de transferéncia de valores e de concretizagao de mitos, ¢ propés-se uma abordagem as questdes da recepcio e da representasio a partir da di- cotomia tradigao/inovagao. Consideramos os viageiros ibéricos como leitores, partindo de Nelson Goodman, Elliott e Blumenberg. Vimo- -los aprisionados, nos primeiros tempos de modernidade, pelos para- digmas culturais que remontam a Epoca Clissica. Como tal, a resis- téncia a uma natureza e a uma cultura diversas bloqueou, por algum tempo, a inovagio que inevitavelmente acabaria por se impor: 0 reco- nhecimento da autonomia geografica do novo continente e da integri- dade humana do indio. Percorremos os textos quinhentistas em busca da mudanga que se operava na capacidade de leitura de um Mundo Novo — de Colombo a Vespiicio e ao Padre José de Acosta. Foi uma viagem muito fugaz, mas, porventura, esclarecedora do aliviar da ten- sio do impacto cultural inicial. O aliviar da tensio foi acompanhado do desencanto. Desencanto que se manifesta quer nas crénicas, quer nas narrativas privadas, cro- nicas produzidas apés a conquista territorial, quando o deslumbra- mento ja cedia ao desespero de uma busca desajustada ¢ de éxitos adiados. Ficou por explorar a representac3o cartografica do Novo Mundo, mas deixdmos uma réplica para o estudo da cartografia en- quanto texto narrativo e um espago privilegiado de representagao e recepgao do novo. Na cartografia a toponimia ganha especial im- 252 Maria da Graga Mateus Ventura portancia, nao apenas como convite 4 viagem, mas também como re- presentagao de um itinerario do encantamento e do desencanto, da transposigao e deambulagao de mitos e como espago rememorativo, A iconografia, como os textos narrativos, sao representagGes cujo valor intrinseco consiste na dualidade objecto/sujeito. A informacao que contém ganha valor pelo que traduzem das possibilidades de leitura do mundo, ou seja, dos paradigmas europeus de recepsio e leitura.

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