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RUMOS E ESCRITA DA HISTORIA — Estudos em Homenagem a ESCOVAR A HISTORIA A CONTRAPELO, EM BUSCA DE IND{CIOS REVELADORES Maria da Graca A. Mateus Ventura Instituto de Cultura Ibero-Atlantica Os processos inquisitoriais que se encontram nos Arquivos nacionais do Peru e do México retinem documentagiio preciosa, quer para uma histéria quan- titativa, no que respeita aos negécios dos mercadores portugueses (cargas, pre- cos, investimentos, ganhos, perdas, juros), quer para uma hist6ria social (redes Glientelares, estrutura familiar) e cultural (espagos de sociabilidade, afectos, gos- to, devogdo e representagiio). Articulando a variada documentagio que inclui inventérios de bens, memérias de contas, correspondéncia comercial ¢ familiar, deniincias e depoimentos, podemos delinear percursos biogréficos e mapear espagos de intimidade e de sociabilidade. Escovar a histéria a contrapelo, construir biografias a partir de indicios, definir trajectérias individuais paradigma do universo mental burgués, anuncia- dor de modernidade. Estabelecer uma relagiio dial6gica com as fontes, atrever-se a suspeitar, para além de uma intencionalidade ébvia, de um universo emocional e de uma identidade confessional, arriscar-se a um naufr4gio de imediato previ- sivel por aqueles que buscam nos documentos apenas as certezas que os pren- dem a uma terra ilusoriamente firme. Este é 0 desafio a que nos propomos com este texto de homenagem a Ant6nio Marques de Almeida, evocando, na seman- tica do discurso, os seus autores de referéncia — Lucien Febre, Michel Foucault, Hans Blumenberg, Paul Ricoeur. Lemos a correspondéncia privada de varios mercadores conversos, proces- sados pelos tribunais do Santo Offcio de Lima e do México, em busca de um cardcter revelador que enquadre o gosto, os afectos e a confessionalidade. Arris- camos uma arqueologia do siléncio, conscientes das implicagdes da distancia no tempo e no espago, ancorados num cruzamento constante da informagao, atentos a eventuais contradigdes. Exercitdmos a leitura com a vasta documentagao que Rumos e Escrita da Historia. Estudos em Homenagem a A. A. Marques de Almeida, Lisboa, Ediges Colibri, 2006, pp. 507-522. 508 Rumos ¢ Escrita da Hist6ria integra os processos de mercadores portugueses como Manuel Baptista Peres, Jorge da Silva, Luis Gomes Barreto, Simao Vaz de Sevilha, entre muitos outros conversos. Elegemos como companheiro de viagem aquele cujo processo € mais Tico em diversidade de informagio ¢ que suscita maior perplexidade e inquieta- Go ~ el capitén grande. Manuel Baptista Peres, relaxado sob acusagao de apéstata, relapso e faze~ dor de hereges, em 21 de Janeiro de 1639, no grande auto-de-fé de Lima, reali- zado na Plaza Mayor, era um dos homens mais ricos da capital vice-reinal. Natural de Angi, viveu em Lisboa ¢ em Sevilha, antes de passar & Guiné ¢ daqui a Cartagena das Indias e se fixar em Lima, envolvido no trato negreiro!. Nascido no seio de uma familia de notéveis mercadores conversos com ligagées ao Oriente, a Amesterdio e a Africa, era cristo baptizado e confirmado, segundo confessou aos inquisidores de Lima. O seu tio-avd materno era o rico mercador Jorge Gomes Lamego, pai do mercador lisboeta Diogo Rodrigues de Lisboa, «o cantiga>, Passou a sua juventude em Sevilha, entre 1601 e 1619, acompanhado de seu pai, jA vitivo, ¢ de seus tios e primos. Aos vinte anos de idade o trato de negros introduziu-o no comércio transatlantico. Em Cartagena das Indias estabe- Jeceu contacto com os mercadores portugueses Jorge Fernandes Gramaxo, Duar- te de Leo e Ant6nio da Silveira. Em 1627, casou nessa cidade com sua prima em segundo grau, Guiomar Henriques, neta dos tios que o criaram desde tenra idade em Lisboa e que o levaram para Sevilha. O matriménio foi apadrinhado por Anténio Nunes Gramaxo, o herdeiro do poderoso e influente negreiro Jorge Fernandes Gramaxo. Apés 0 casamento, fixou-se definitivamente em Lima, onde teve cinco filhos e reuniu, em sua casa, cinco cunhados, além do seu amigo Jorge Rodrigues de Lisboa, mestre de navio na rota de Lima - Acapulco. Baptis- ta Peres reconstituiu, na sua casa em Lima, uma estrutura familiar alargada cons- titufda por irmaos e cunhados, como era tradigao na familia. No momento da sua Priséo pelo Santo Oficio, viviam em sua casa doze parentes, nao contando com 08 criados e os escravos. Ele, que fora criado no seio de uma familia de merca- dores, conhecia bem o valor da confianga para uma boa gestdo de negécios avul- tados. A sua fixagdo na capital vice-reinal do Peru, como mercador negreiro, foi facilitada pela rentabilizagao da rede de contactos que estabelecera no amplo. espago colonial hispano-americano ¢ portugués. Em Lima, centro politico, eco- némico e cultural da Hispano-América do Sul, construiu uma rede intricada de relagdes sociais assentes na sua florescente actividade comercial. Instalou loja na Calle de los Mercaderes, adquiriu casas de morada junto ao Convento de $0 'O estudo detalhado deste mercador, quer no que respeita & sua genealogia, quer no que se refere & sua rede comercial e as suas vivéncias pode seguir-se na obra da autora, Portugue- Ses no Peru ao tempo da Unido Ibérica: mobilidade, cumplicidades e vivencias, 2 vols., 3 tomos, Lisboa, INCM, 2005. Escovar a Hist6ria a Contrapelo, em Busca de Indicios Reveladores 509 Domingos, uma quinta no Vale de Bocanegra, uma fazenda nas Lomas de Pachacama, casas para negros no bairro de S. Lazaro. Depositou dinheiro no banco de Juan de la Cueva, aproximou-se de eclesidsticos influentes. A rede comercial de Baptista Peres alimentava-se da relaciio dinamica entre um amplo mercado de produgdo e de consumo interno, polarizado pela capital vice-reinal, sede da companhia, ¢ o mercado abastecedor externo, de dimensio extra-regional. Como mercador de negros, criou uma ampla rede de distribuigao por todo 0 vice-reino, de Santiago do Chile ao Alto Peru ¢ a Quito. A corres- pondéncia que guardou cuidadosamente no seu escritério reflecte, nado sé a amplitude geografica dos circuitos de distribuigdo, como as relagdes miltiplas com uma larga rede de consumidores de diferentes estratos sociais. Recebia em sua casa centenas de clientes, a fina-flor da sociedade colonial € varios amigos religiosos, como o seu parente Diogo Lopes de Lisboa, mordo- mo do arcebispo de Lima, pai do cronista das {ndias — Anténio de Leao Pinelo. A familia que ficara em Lisboa e em Sevilha ocupava também lugar proeminen- te na sociedade, através da fortuna, do crédito e da nobilitagao. Em Lisboa, seus primos, filhos de Diogo Rodrigues de Lisboa, eram Cavaleiros da Casa Real € da Ordem de Santiago, as primas realizaram casamentos estratégicos: Isabel Henriques casou com o primo Diogo Lopes de Torres, fidalgo da Casa Real ¢ Cavaleito da Ordem de Santiago e Filipa Henriques casou com o banqueiro Alva- ro Fernandes da Costa que se movia nos meios financeiros ¢ mercantis de Lisboa, Sevilha e Madrid. Em Sevilha encontrava-se também um cunhado de Guiomar Henriques, Duarte Rodrigues de Leao Reinel, casado com Branca Henriques. As numerosas cartas de negécios arquivadas nos processos dos mercadores portugueses, acusados de judafsmo, denotam o conceito de rede, através de inter-relagdes horizontais ou verticais, entre membros da mesma familia que actuavam em espagos geo-econdémicos complementares. Todos parentes e todos membros da mesma rede que se amplificava por todo o reino do Peru ¢ extrava- sava os limites regionais, chegando ao México, a Sevilha, a Lisboa, 4 Guiné, a Pemambuco e a Amesterdio. Sao as teias das cumplicidades construidas sobre os lagos familiares, suporte de uma cumplicidade mais vasta que abrange os lagos de conterraneidade e, porventura, da fé. Escovar a histéria a contrapelo, feliz expresso de Walter Benjamin. Se o percurso biogrfico de Manuel Baptista Peres nao é gerador de controvérsia, pela objectividade da informagao compulsada na documentagio, a natureza da sua confessionalidade intima suscita-nos dividas inquietantes. Nés, leitores dis- tanciados, temporal e emocionalmente, levados pela intuigio mais que pela Tazo objectiva, sabemos que, muitas vezes a vida se esconde no esquecimento, ou seja, no siléncio. Procurar nas entrelinhas da meméria é uma acco condicio- nada pela subjectividade. A arqueologia do siléncio tem limites, logo qualquer tentativa de resgate do esquecimento é proviséria. Estamos cientes dessa limita~ oa 510 Rumos e Escrita da Historia Quando os inquisidores de Lima empreenderam a grande campanha perse- cutéria dos mercadores portugueses, em 1635, conhecida como a Grande Cum- plicidade de Lima?, tomaram como certas as acusagoes cometidas contra estes. Os autos entdo lavrados permitem-nos penetrar no quotidiano dos réus (pela variedade e riqueza dos documentos que integram os processos ¢ pelas contradi- torias interpretagdes dos factos), embora condicionem a nossa Jeitura devido aos constrangimentos inerentes aos interrogatérios. A historiografia tradicional, cris- t& ou hebraica?, caiu na tentagao de catalogar os réus de acordo com a natureza das sentengas — cristio convicto, apéstata pertinaz, judafzante arrependido ou martir da fé, Uma nova tendéncia, critica da dicotomia maniquefsta, vai-se afir- mando — a possibilidade de uma sincera dupla confessionalidade, resultante da conjugagao de uma heranga cultural familiar hebraica com uma cultura religiosa cristi imposta‘. Esta nova leitura integra a consciéncia da nossa fragilidade como historiadores e traduz a nossa preocupagio em considerar a complexidade dos factos apesar de eventuais evidéncias de linearidade. A consideracao de uma duplicidade devocional auténtica, expressa na exteriorizagio cristi e no secre- tismo judaico, revela-nos na nossa temporalidade e condigao subjectiva, marca- da pela valorizagio do relativismo e do direito a liberdade de consciéncia. O his- toriador est tio comprometido com o seu tempo como 0 seu objecto de estudo. ‘A assungao dessa inevitabilidade nao nos nega o direito de escolher, repartir, agrupar documentos e de interpretar os factos ou os siléncios. Impde-nos o dever de assumir a provisoriedade das nossas certezas ¢ a inevitabilidade da davida. A educagio tridentina contagiou a sociedade colonial, assente em meca- nismos de afirmagio social que dependiam dos rituais de representacio publica. A vivéncia do espaco piblico determinava o olhar do outro e, logo, a aceitagio ou rejeigdo social. Por isso, se tora to dificil distinguir a intencionalidade da exteriorizagao da devogao cristé. Os mercadores cristéos-novos tinham, pois, duas razdes decisivas para gerir com cuidado a sua participagfio no espago ptiblico de representagao — contrariar 0 estigma que os acompanhava, manifes- tando publicamente profunda devogio cristi, e ganhar notoriedade social, quer pela acumulacdo de fortuna quer pela gestio de influéncias e pela pratica bene- mérita. Os autos lavrados nos processos so um excelente campo de ensaio para a construgdo de uma historia a partir de indicios. Os inquisidores, movidos pela suspei¢do e pela delagiio, procuravam contradigdes nos réus e convertiam as ambiguidades em certezas acusatorias. N6s teremos de trabalhar com aquilo que 2.Sobre a Grande Cumplicidade de Lima, ver José Toribio Medina, Historia del Tribunal del Santo Oftcio de Lima (1569-1820), 2 tomos, Santiago do Chile, Fondo Historico y Biblio- grafico J. T. Medina, 1956, ¢ Paulino Castafieda e Pilar Hernandez, La Inquisicién de Lima, 2 tomos, Madrid, Ed. Deimos, 1989. 3 E 0 caso, por exemplo, de Boleslao Lewin. 4 Nesta perspectiva, Nachtan Wachtel e Pedro Pérez Guibovich sao dois autores de referencia. Escovar a Hist6ria a Contrapelo, em Busca de Indicios Reveladores su 0s inquisidores ndo viram, omitiram ou simplesmente néio estavam preparados para ver. Teremos de reinterpretar os indicios sem qualquer carga ideolégica ou confessional. Ainda assim, as nossas certezas serdio sempre provis6rias. Quando a Inquisicao apertou o cerco aos portugueses, os inimigos de Bap- tista Peres langaram contra ele acusagdes gravissimas de judafsmo que uma vida devota e o prestigio social néio seriam suficientemente fortes para contestar. Baptista Peres passou quatro anos nos cdrceres inquisitoriais, atormentado pela desonra que se abatera sobre a sua familia, pelo receio do futuro e pelas frequen- tes monigdes a que era sujeito. Na prisio, as raras alegrias que sentiu vinham das cartas calorosas do cunhado Sim&o Vaz Henriques que cuidava de sua casa e da familia e rezava com os poucos amigos que restaram — os frades franciscanos que ensinavam 0 seu filho mais velho, ainda menino — a Nossa Senhora de Copacabana para que o milagre da justiga se cumprisse. Mas a voracidade dos inquisidores ¢ a inveja demolidora dos seus rivais no trato no deu tempo & Suprema de Madrid para ponderar a sentenga do tribunal de Lima. Os trinta delatores acusavam-no de organizar reunides secretas no seu escritério, 0 que ele refutava alegando que a sua casa era de tanto negécio que era frequentada por mais de trezentas pessoas de todas as nagGes, quer portugue- ses quer castelhanos, e «entravam a todas as horas no seu escritério para nego- ciar com ele de portas abertas sem distingdo de pessoa e sem nenhum segredo»', Acusavam-no de conversas secretas nas esquinas das ruas principais, de receber em sua casa hereges flamengos, de leituras proibidas no recato da sua livraria. Acusagées frivolas que nao colheram unanimidade entre os inquisidores ¢ que, apés a execugdo da condenacio, mereceriam reparos da Suprema de Madrid por falta de substncia. Para n6s, as alegages de Baptista Peres corroboram a com- plexidade dos seus negécios e a importancia da sua casa enquanto espaco de sociabilidade tipicamente burguesa. O contetido das acusagées sé teria valor de indicio de crime se confirmado com factos. Foi 0 que os inquisidores tentaram obter, sem éxito. Ao revistar a sua livraria, livro a livro, esperavam encontrar titulos proibidos que pudessem confirmar as acusagées de leituras heréticas. Nio os encontraram, 0 que nado os demoveu de transformar as suspeitas em certezas irreversivelmente condenatérias. Perversamente, a suspeita dos inquisidores possibilita-nos uma aproximagdo ao gosto e ao nivel cultural de um mercador portugués nos confins do Peru em plena Epoca Moderna. Manuel Baptista Peres manifestava-se cristio devoto, mais coerente no comportamento social que muitos crist4os-velhos. Se as acusagdes que sobre ele recafram eram verdadeiras, ou seja, se praticava secretamente o judafsmo, nao seria esta uma forma de resisténcia ao risco de diluigio da sua identidade cultu- 5 Archivo General de 1a Nacién (Lima, Peru), Inguisicién, Santo Oficio, Contencioso, caja. 40, exp. 383, fl. 278r. 512 Rumos e Escrita da Historia ral? Nao seria este cripto-judafsmo, nunca assumido mesmo perante uma morte violenta, uma forma de manter viva a meméria da famflia (cristéos-novos, con- versos forgados, alguns queimados), tal como a posse de livros portugueses poderia representar o desejo de preservar a meméria do seu pafs? E os jarros de Estremoz que sua esposa Guiomar tanto prezava ¢ que s6 encontrémos entre os bens dos portugueses? Teria Manuel Baptista Peres sido vitima da «fé da lem- branga», belissima expresso criada por Nachtan Wachtel®? Ou acreditaria num Deus tinico, dividindo-se na inquietude da pratica de ritos consentidos ¢ de ritos proibidos? Seria Manuel Baptista Peres, efectivamente, o grande oriculo da nagio hebraica, o ilustre rabino que organizava, no recato do seu escritério ou nas casas de §. Lazaro (onde depositava os seus negros), juntas clandestinas? A perplexidade dos inquisidores, confrontados com as deniincias de cripto- -judafsmo contradizendo a imagem de bom cristio, nao os demoveu de uma condenagio fatal. Alids, a propria Suprema de Madrid, na sequéncia de repetidos requerimentos de Guiomar ¢ de Isabel Henriques, as vitivas de Peres ¢ do seu sécio e cunhado, exigin aos inquisidores de Lima informes minuciosos sobre os processos ¢ sentengas de relaxe executadas em 1639, o que indicia algumas Giividas sobre as provas apresentadas. Seria uma coincidéncia o zelo excessivo dos inquisidores limenhos em processar tantos mercadores portugueses? Talvez se possa convocar argumentos mais crediveis, nomeadamente a hostilidade dos mercadores do Consulado de Lima contra o alegado monopélio dos portugueses, ou as caréncias de recursos financeiros por parte do Santo Oficio de Lima. Na prisiio durante quase quatro anos, Peres nunca vacilou nas suas declara- gGes de inocéncia nem se contraditou nas suas justificagdes. Pediu aos carcerei- ros que lhe facultassem papel, tinta e plumas com os quais escreveu varias cartas cifradas ao seu cunhado Sebastido Duarte, também preso, demovendo-o de se entregar, em nome da preservagio da honra das esposas ¢ dos amigos. Recebia cartas na prisio que o pretendiam animar com notfcias dos progressos escolares do filho mais velho, recebia mimos da casa preparados carinhosamente por Guiomar. As oragées dos frades franciscanos, 0s tinicos que nao 0 abandonaram, a Nossa Senhora de Copacabana nao foram suficientes. Com o prolongamento da prisdo ¢ a consciéncia da sua impoténcia para contrariar as acusagdes, foi perdendo a esperanga, por isso, decorrido quase um ano apés a detengao, deu trés facadas na barriga. Numa das cartas cifradas que dirigiu ao seu cunhado Sebastiio Duarte escreveu que mais valia morrer honrado que viver infame 0 que explica a tentativa de suicidio. E a honra que assenta no constante confronto entre a familia e a comunidade e na aparente conformidade entre a vida privada e vida publica. E 0 olhar omnipresente de cada um sobre 0 outro que decide nao 6 Nachtan Wachtel, La foi du souvenir: labyrinthes marranes, Paris, Seuil, 2001. Ver tradugio portuguesa, A fé da lembranca: labirintos marranos, Lisboa, Editorial Caminho, 2003 Escovar a Histéria a Contrapelo, em Busca de Indfcios Reveladores 513 86 0 que cada um é, mas também aquilo que diz dele?. Assim se pode entender a preocupagio de Peres, como homem piiblico, cuja imagem queria preservar a todo 0 custo negando o mais secreto de si, se, porventura, era judeu convicto como afirmavam os inquisidores. As mais de trinta deniincias, associadas ao reconhecimento de Peres da sua ascendéncia judaica, a prisdio de familiares assumidos como judafzantes, o clima de suspeigdo e 0 fervor contra-reformista, foram mais fortes que as evidéncias crists de Peres. O sacrificio de Baptista Peres torna-se inevitével numa conjun- tura de intolerancia e de animosidade relativamente aos ricos mercadores portu- gueses, numa perfeita confluéncia dos interesses dos espanhdis do Consulado de Mercadores de Lima, do Estado e da Igreja. O Consulado de Mercadores de Lima protestava contra o prejuizo que 0 monop6lio dos negreiros portugueses causava ao seu negécio. A Inquisig%io de Lima queixava-se de falta de receitas. O sequestro dos valiosos bens dos mercadores portugueses resolveria de vez os problemas de todos, uma vez que enchia os cofres da Inquisicao e arrasava as redes comerciais mais poderosas do Peru. Provavelmente, nunca saberemos se Manuel Baptista Peres era cristio con- victo, cripto-judeu ou, simplesmente, um crente dividido entre o ser e 0 parecer. Pelos livros inventariados, no chegdmos a crengas ou ritos judaicos. Mas é pos- sivel que Baptista Peres se tivesse desfeito das obras comprometedoras nos trés meses que mediaram entre as detengdes dos primeiros portugueses, no ano fati- dico de 1635, € a sua prisdo, ao meio-dia de um sdbado de Agosto de 36. Os escritos religiosos ocupavam na livraria de Baptista Peres um espago que corres- pondia mais & exteriorizag&io da sua devogao cristd que a uma dupla confessionali- dade, 0 que no invalida uma profunda inquietagio interior. Eventualmente, o interesse de Peres pela leitura, especialmente pelas obras religiosas cristas, poderia resultar do seu espirito atormentado por problemas de consciéncia moldados por uma dupla confessionalidade, ou seja, a sua actuac&o pablica expressava a tradi- ao catélica, o que nao impediria que a tradigao judaica tivesse subsistido, de for- ma pouco coerente e sem rigor’. Esta interpretag&o concorda com alguns depoi- mentos de testemunhas no processo e ajusta-se ao comportamento social de Peres. No recato da casa, poderia praticar, de forma irregular, por secreta devogao, os ritos judaicos mais simples, como o jejum, as libagdes ¢ uma dieta restrita. Na sua livraria, recebia os amigos, todos cristiios-novos, e com eles poderia ter discutido a lei de Moisés, sem prejuizo de, com igual devogao, praticar os ritos cristios no espago piblico da igreja ¢ discutir com os seus amigos jesnitas as questdes teol6- 7 Arlette Farge, «Familias. A honra ¢ 0 segredo», Histéria da Vida Privada, Vol. 3, Lisboa, Circulo de Leitores, 1990. 8 Cf. Pedro Guibovich Pérez, «La cultura libresca de un converso procesado por la Inquisicién de Lima», Historia y Cultura, Revista del Museo Nacional de Historia. Lima (Peru), n° 20, 1990. sia Rumos e Escrita da Hist6ria gicas em voga, nomeadamente a problemdtica mariana. Para os inquisidores, aves~ 50s a ambiguidades, foi mais simples classificé-lo como apéstata e cristao fingido. ‘A verdade & que o proprio Baptista Peres nos confunde com as suas omissGes, os seus siléncios ¢ as suas explicagoes to crediveis quanto engenhosas. Era, segura- mente, um homem afectuoso, que estimava e respeitava profundamente a familia e cultivava inteligentemente a sua boa imagem piblica O processo de Baptista Peres ¢ do seu cunhado Sebastido Duarte inclui um vasto conjunto de cartas de negécios e familiares (cento e treze) provenientes de Portugal, Espanha e Peru®. Além da definigdo da amplitude geogréfica da sua rede comercial e da avaliago do volume de negécio, este espdlio é revelador do quotidiano de um mercador abastado e de uma teia de afectos ¢ de cumplicida- des. Trata de vivéncias e percepgdes da realidade que nos conduzem ao autor ¢ ao seu horizonte de expectativas. As suas cartas privadas denotam um espaco mental complexo, moldado por uma vida social intensa, um claro desafogo eco- némico publicamente ostentado, 0 gosto pela leitura e pelo embelezamento da casa, e rigor na gestéo dos seus negécios. Escritas amitde, as cartas revelam uma vida familiar feliz com a esposa e 0s filhos, uma boa relaco com os amigos mercadores, sobretudo os parentes. ‘As cartas entre os mercadores portugueses, ctimplices nos negécios ou na amizade, assumem uma dupla funcionalidade afectiva e comercial. Nao cabe aqui uma anélise detalhada da riqueza informativa, implicita ou explicita, das fontes epistolares, mas, como nota marginal, queremos sublinhar a importancia da carta, quer no reavivar dos lagos afectivos entre autor e destinatario quer para a oportunidade e pertinéncia das transagdes comerciais. Apesar das reservas ine- rentes ao risco de circulagio da correspondéncia privada, podemos dizer que 0 universo mental dos mercadores cabe dentro de uma carta — 0 afecto, 0 gosto, 0 negécio. Sao informagées sobre a familia ausente, jtibilo pelos amigos, queixu- mes dos inimigos, medo da incerteza e da inseguranga e, sobretudo, pregos dos negros, das pérolas, dos panos. Para os inquisidores, intrusos inesperados no espaco comunicativo, os textos epistolares assumem uma importancia Obvia exactamente pela rearticulag%o que estabelecem com 0 autor, 0 objecto de cen- sura, de julgamento e de castigo. A auto-referéncia do discurso afectivo, interca- lado no discurso de funcionalidade comercial, reenvia-nos para o autor estabele- cendo com ele a dialogia que nos aproxima da sua biografia!®. A fungio 9 AGN, Lima, Inguisicién, Santo Oficio, Contencioso, caja 30, expediente 299. 10 Ver, da autora, Portugueses no Pert... ob. cit., cap. 1, vol. I, t. Tl, A respeito da fungao autor, ver Michel Foucault, O que é um autor?. Lisboa, Vega, 1992, e Roger Chartier, EI orden de los libros: lectores, autores, bibliotecas en Europa entre los siglos XIV y XVII. Barcelona, Editorial Gedisa, 1996, sobretudo 0 ensaio «Figuras del autor». Sobre a lin- ‘guagem como discurso, ver Paul Ricoeur, Teoria da interpretagdo: 0 discurso e 0 excesso de significacao, Lisboa, Edig6es 70, 1996. Escovar a Histéria a Contrapelo, em Busca de Indicios Reveladores 515 rememorativa das cartas, uma vez que o texto sai, forgadamente, da sua esfera privada, enriquece-se pela possibilidade de partilha do seu valor informativo. Da esfera intima da casa, para o Tribunal do Santo Oficio e daqui para os arquivos, estes textos acrescentam A sua estrita funcionalidade original, a possibilidade de ilustragao de uma realidade colectiva complexa nas suas formas ¢ nas interpreta- gGes que suscital!. E a relacdo dialégica que estabelecemos com as cartas que nos permite valorizé-las enquanto fonte essencial para o estudo do funcionamen- to do mercado e para uma aproximagio, cautelosa, A esfera intima da familia. Nesta perspectiva, a epistolografia ocupa lugar central na recuperagao das bio- grafias dos mercadores portugueses. Gosto, intimidade e sociabilidade. Cerca de vinte dias apés a prisio de Manuel Baptista Peres, 0 notério de sequestros, acompanhado pelo alguazil-mor do Santo Oficio, dirigiu-se as suas casas de morada onde procedeu a um inventé- rio minucioso de todos os bens méveis!2. A livraria, primeiro espago suspeito, foi alvo de uma busca sistemética. Além dos cento ¢ cinquenta e quatro corpos. de livros, registados um a um, 0 notédrio identificou cerca de uma centena e meia de quadros, além de porcelanas, vidros, prataria, vestuério, roupa de cama e de mesa, mobilidrio, tapegarias, jdias, utensilios de cozinha, escravos e criados. Os inventrios sao dridos, mas 0 historiador deve socorrer-se da sua capa- cidade imaginativa para ler para além da pura enumeragao. Foi 0 que fizemos para interpretar o inventério da livraria e da pinacoteca. Seguir, como uma som- bra, a comitiva inquisitorial e perceber, no percurso subjacente ao inventério, a geografia da casa, 0 mapeamento dos afectos, a hierarquia dos espagos em fun- ¢ao da intimidade e da sociabilidade. Cada sala foi inventariada de forma siste- matica, surpreendendo-nos pela revelagio da cenografia do espago: as cores, as dimensées, as texturas dos objectos e sua funcionalidade. Imaginamos uma familia burguesa ocupada na sua rotina doméstica. Convocamos os depoimentos dos amigos ¢ dos inimigos de Peres, a sua argumentagao, as suas cartas privadas © remetemos para a casa um novo olhar feito de sabor do mate de chocolate e da cola da Guiné que ele servia aos seus convivas, do tabaco que guardava no taba- queiro, das vozes das cinco criangas que corriam no andar de cima e dos amigos que falavam portugués, castelhano ou flamengo, do aroma floral dos perfumado- res espalhados pela casa. Um retrato familiar a partir de indicios é possivel, se n&o nos cingirmos a intencionalidade 6bvia do documento. Os livros - instrumento de afirmagao social ou de fruigai0? Sendo um mer- cador invulgarmente culto, ser legitimo interrogarmo-nos sobre a sua bagagem cultural. Educado em Lisboa, na infancia, e em Sevilha, na adolescéncia, no seio 11 Ver Nelson Goodman, Modos de fazer mundos, Porto, Asa, 1995 12 AGN, Inquisicién, Santo Oficio, Contencioso, caja 40, expediente 383. 516 Rumos e Escrita da Histéria de uma familia de mercadores influentes, Manuel Baptista Peres escrevia com igual facilidade, cartas de negécios e familiares, contratos e cartas de pagamen- to, em portugués ou em castelhano. As cartas que escrevia de Lima para os seus numerosos amigos revelam um homem atento as novidades do mundo, por isso se interessava pelas novas edigdes safdas em Portugal e em Lima. Sua esposa também sabia escrever em castelhano, os seus filhos foram educados em Lima por religiosos portugueses. Em sua casa, dispunha de instrumentos essenciais para uma escrita correcta — 0 manual de Pedro Dfaz Morante!?, um Calepino!* ¢ um compéndio de ortografia castelhana. Escritérios, escrivaninhas, salvadeiras, plumas, tinteiros nao faltavam em sua casa. A eficacia da sua rede comercial libertou-Ihe tempo para a leitura e para as polémicas teolégicas que mobilizavam os letrados. No seu escritério, onde rece- bia os amigos, foi acrescentando estantes, A medida que lhe chegavam os livros. Mercador letrado, assim 0 poderfamos chamar, nao s6 porque detinha uma habi- lidade pouco vulgarizada (escrita e leitura) como se diferenciava cultural ¢ socialmente da maioria iletrada escolhendo criteriosamente os seus livros e par- ticipando no espago de discussio com os intelectuais religiosos no espago restri- to da Universidade. Baptista Peres pode ser considerado um homem culto no seu tempo, nao s6 pela posse de livros que representam as grandes questdes debati- das no ambiente contra-reformista e barroco, como pela atitude enquanto leitor participante nas discussées académicas em Lima. Marca de distingaio, forma de representagao, simbolo de status, de distingao e de instrugao, eis a importincia da posse do livro na Epoca Moderna. Sob o ponto de vista das preferéncias literérias, Manuel Baptista Peres era, provavelment, © leitor com mais livros em portugués e sobre Portugal, no Peru. excepgdo de um ou outro titulo, n’io comprava os seus livros em Lima, rece- bia-os de Sevilha ou de Lisboa, através de Cartagena, por via da Guiné. Nao revelaremos aqui 0 processo que adoptémos para a identificagio dos livros da livraria de Manuel Baptista Peres!, aqui, importa apenas frisar que os seus livros se podem agrupar em trés grandes areas teméticas: Humanidades, Reli- gido, Ciéncia e Técnica. No ambito das Humanidades (61,3%), as preferéncias de Baptista Peres vio para a Historia, seguindo-se a Literatura em prosa e em verso, os escritos da Antiguidade Classica e as Biografias. Sobre Religiio (28,6%), os tratados sobre matérias canénicas ¢ teolégicas ocupam o primeiro 13 Tercera parte del arte nueva de escribir... la mds diestra y curiosa de todas, Madrid, 1629. 14 Dictionarium decem linguarum, de Ambrésio Calepino. 15 Esta questiio foi desenvolvida na obra da autora Portugueses no Peru ao tempo da Unido Ibérica... ob. cit, vol. I, t. Il, cap. I. Ver também Teodoro Hampe Martinez, Bibliotecas pri- vadas en el mundo colonial. Frankfurt /Madrid, 1996; Carlos Alberto Gonzélez Sanchez, Los mundos del libro: medios de difusién de la cultura occidental en las Indias de los si- glos XVI y XVII. Sevilla, Universidad de Sevilla, 1999 e Pedro Guibovich Pérez, «La cultu- ra libresca ...», ob. cit.. Escovar a Histéria a Contrapelo, em Busca de Indicios Reveladores 517 lugar, seguido de perto por sumas de cardcter espiritual ou moralizante e por escritos religiosos — hagiografias. No campo da Ciéncia e Técnica (8,6%), os treze titulos distribuem-se pela matemdtica ¢ pratica comercial!®, geografia e astronomia’’, lexicografia, Direito e medicina. Entre os titulos identificados, verifica-se uma ampla representagéio de Por- tugal, quer no que respeita a impressos em oficinas do pais, quer no que concer- ne a autores portugueses, sobretudo no campo da Histéria, embora a literatura de entretenimento e a medicina também estivessem presentes através dos seguintes autores: Bernardo de Brito, Duarte Nunes de Le&o, Diogo do Couto, Diogo de Paiva d’ Andrade, Joo de Barros, Jeronimo Corte Real, Luis Coelho de Barbu- da, Fernao Mendes Pinto, Francisco de Andrade, Francisco Soares, Francisco Rodrigues Lobo, Lufs de Camdes ¢ Joao Fragoso. Baptista Peres viveu pouco tempo em Portugal, contudo, até partir para Cartagena esteve sempre em contacto com a familia, inclusive na Guiné, onde se encontrava um dos seus irmaos. Quer em Cartagena, onde residiam outros mer- cadores portugueses, quer em Lima, onde se relacionava com um dos seus parentes mais cultos (Diogo Lopes de Lisboa), a relag&o com a familia manteve- -se firme. Em Sevilha, onde passou a juventude, além da sua familia (tios, pri- mos, pai ¢ irmis), residia uma forte comunidade portuguesa que mantinha lagos fortes com o seu pafs, em plena unio politica com Espanha. Essa comunidade e a tradicdo cultural familiar decerto funcionaram como forte referéncia cultural. Neste contexto, caberd interrogarmo-nos sobre a fungiio do livro enquanto mecanismo de afirmagao da sua identidade cultural. O contetido do livro revela do seu proprietdrio o nivel de adesio aos padrdes do gosto, da conduta e de valo- res aceites — 0 gosto autorizado, o zelo religioso e a moral ideal. Ora, 0 contetido da livraria de Baptista Peres revela que este nao s6 se mantinha actualizado rela- tivamente A produgio literéria no seu pais, como em relagao as questdes religio- sas e culturais do seu tempo. Embora os escritos religiosos ocupassem o segundo lugar na hierarquia dos temas dos seus livros, no deixam de ser relevantes, mais pelo contetido (encon- trémos Julian Martel, Pedro Maldonado, Luis de San Juan Evangelista, Santo Agostinho, Tomés de Kempis, Lorenzo de Zamora, Juan Bautista Fernandez, Hip6lito de Olivares y Butrén, e Alonso de Bonilla) que pelo quantidade. A sua escolha resultaria de uma necessidade de apaziguamento das suas inquietagdes filosdficas e teoldgicas ou da necessidade de afirmagio no espaco piblico? Como leitor, Manuel Baptista Peres distinguia-se, porventura, por alguma inquietagao resultante da contradigao entre a sua heranga cultural judaica e a aculturacao, porventura, forcada, ao catolicismo. Suspeitamos que, independen- 16 Hevia Bolafios, Juan Pérez de Moya, Miguel Jerénimo de Santa Cruz, Juan Diaz Freyle ¢ Diego Suérez. 17 Um Calendarium, Abraham Ortelio e Giovanni Botero. 518 Rumos ¢ Escrita da Historia temente dessa eventual inquietagao, o gosto pela leitura definiu um espago de intimidade em torno do livro. No recato do seu «escritério», onde recebia os amigos mais intimos, privatizava a leitura, uma pritica moderna de relagdo com © texto cujas implicagdes a nivel da possibilidade de interiorizagdo e de uma espiritualidade assumida ou contestada desconhecemos'®, Provavel companheiro da intimidade, 0 livro assumia-se, para Peres, também como factor de sociabili- dade. Daf a sua preferéncia por livros de Historia, devocionais ¢ moralizantes, os mais propicios nao s6 a uma leitura silenciosa interiorizada como a sociabiliza- go com outros leitores. ‘A sua permanéncia em Sevilha, no seio de uma familia portuguesa, prepa- rou-lhe o espirito para uma cultura hispanica, na acepgao quinhentista da pala- vra, facilitada pela Unido Ibérica com todas as implicagées culturais e politicas. Nao era comum, entre os negreiros, a posse de uma biblioteca mais que mediana € muito menos um relacionamento regular com a comunidade de letrados. Neste sentido, Peres seria um caso extraordindrio de leitor furtivo!®, como leitor & margem da comunidade socioprofissional a que pertencia e que usava a cultura livresca como instrumento de sociabilizagao. Em torno do livro e, sobretudo, da leitura reflexiva, penetrou no espaco piiblico da discussio teolégica e da repre- sentacio literéria, situagio que nos é revelada pelos inquisidores e que pode explicar a diversidade e a qualidade da sua livraria. O sagrado e o profano na intimidade da casa. Manuel Baptista Peres deco- rou a sua casa com gosto, 4 moda europeia com o toque exético de um viageiro. Criou, no interior da sua casa, situada préximo da Calle de los Mercaderes ¢ do Convento de Sio Domingos, um ambiente requintado. Reposteiros de damasco, dosséis e colchas de cetim e de seda, mobilidrio de nogueira, cedro, ébano, mar- fim, caoba, caixas da Alemanha e do Japio, vidros de Veneza, talheres de prata, louga da China, bilhas de Castela, jarros de Portugal, pedagos de unicémio, gatos-de-algilia, traduziam fortuna, bom gosto e uma multiculturalidade prépria de um mercador viajado. Efectivamente, pelo inventério dos seus bens e pela sua correspondéncia, podemos afirmar que 0 cosmopolitismo burgués, com tragos de exotismo préprios da modernidade, aliado a valorizagao da familia, dos afec- tos e da confianga era definidor do cardcter deste cristao-novo, portugués emi- grado no Novo Mundo, excelente gestor de negécios e que preferiu morrer a desonrar a familia com uma confissio que traisse a imagem que concebera para si. 18 Roger Chartier, «As praticas da escrita», Histéria da Vida Privada, Vol. 3, Lisboa, Circulo de Leitores, 1990, 19 Ver Roger Chartier, El orden de los libros: lectores, autores, bibliotecas en Europa entre los siglos XIV y XVIII, Barcelona, Editorial Gedisa, 1996. Escovar a Historia a Contrapelo, em Busca de Indicios Reveladores 519 Os seus amplos recursos financeiros permitiram-lhe alimentar 0 gosto pelo embelezamento da casa. Pelo mobilidrio, inventariado com detalhe, e pelo néimero de residentes, resulta claro que a casa de Baptista Peres era de grande dimensao, dotada de espacos de sociabilidade ¢ de espacos individualizados. De dois pisos, com vestibulo, corredor, escadas, aposentos, cozinha, dispensa, cava- lariga, um balcdn que devia correr ao longo do quarto de dormir principal, a casa dispunha de quatro espacos principais de sociabilidade distinta: 0 escritério, a sala de comer, a sala de estar ¢ 0 quarto de dormir principal, Comprou, em Lima e em Quito, quadros gravados, outros pintados a tém- pera, mandou vir «paises» da Flandres. Entre as suas 151 imagens, contavam-se vinte e seis «paises» a témpera, entre os quais doze da Flandres, e onze telas a 6leo da Fama, quatro mapas e dois retratos da filha Justa. Que relagio se poderd estabelecer entre a iconografia que foi trazendo para casa, disposta criteriosamente nos varios espagos da casa, com 0 seu gosto pes- soal, © gosto da época e a sua confessionalidade? Comparando 0 contetido da sua livraria com a iconografia, nao encontramos grandes discrepancias. O impacto causado pela pintura, selectivamente disposta nas paredes dos aposentos principais, era bvio. Na livraria, espaco de maior recato, os t{tulos dos livros recolhiam-se nas lombadas alinhadas nas estantes de madeira do Panama. O fac- to de, na sua livraria, predominar a Histéria ¢ a literatura profana, e de na sua pinacoteca ser dbvio 0 predomfnio dos temas devocionais, nfo revelaré grande contradigao ou incoeréncia. Evidencia-se, sim, uma criteriosa distribuigao dos quadros consoante a visibilidade do espago. Se nos espagos de exteriorizagao (espago introdutor do interior — 0 corredor — ¢ a sala de estar) prevalecem os temas religiosos, nos espacos de maior intimidade (escrit6rio ¢ sala de comer) dominam os temas profanos, nomeadamente retratos, mapas ¢ paisagens. O escritério, no contexto da casa, e sob 0 ponto de vista da sociabilidade privada, ganha particular relevancia. Sobre a fruig&io deste espaco, dispomos de dois tipos de testemunhos contraditérios: os delatores de Peres consideram-no um espaco secreto onde este ensinava a lei de Moisés e partilhava, com os seus amigos, a confessionalidade proibida. Embora confessasse que este era um espa- go de recato e de intimidade de si, pela pratica da escrita, 4 noite, Peres apresen- ta-o, sobretudo, como 0 espaco de sociabilidade funcional, associada 4 pratica dos seus negécios!. Poderé a andlise da iconografia desfazer esta ambiguidade? Talvez ainda nos confunda mais. A cenografia do escrit6rio evoca-nos a Flan- dres, muito pouco a religiosidade barroca. E, de facto, o espago de um mercador organizado, preocupado com a gesto dos seus negécios no espaco € no tempo e, eventualmente, menos devoto no intimo que na exteriorizag3o ptiblica. Quatro mapas e um relégio so objectos simbélicos da mentalidade burguesa, tal como 20 AGN, Inquisici6n, Santo oficio, Contencioso, caja 40, expediente 383. 21 Archivo General de Indias (Sevilha), AH'N/ Inquisicién, legado 1647, exp. 13, n. 1, fl. 278r. 520 Rumos ¢ Escrita da Histéria os manuais de escrita, de direito e de contabilidade s&o instrumentos essenciais para uma gesto eficaz. Nas paredes, doze «paises» da Flandres, com molduras douradas, ¢ onze telas da Fama completavam o ambiente profano propicio ao trabalho de um homem de negécios. Além de um ou outro icone religioso guar- dado em caixas, alguns objectos mencionados no inventério so reveladores do conceito intimista deste espago — uma prensa de cartas e dois tabaqueiros. Trata- -se de uma intimidade de si e de uma intimidade partilhada com aqueles que entreteceram cumplicidades afectivas ou confessionais. Espaco de leitura e de escrita, 0 escritério era também o lugar dos encontros quotidianos com os mer- cadores e das reunides com os amigos mais {ntimos. O espago privado do escri- torio , pois, simultaneamente um espago de solidio e de sociabilidade na inti- midade dos amigos, ctimplices nos negécios, nas recordagées e, porventura, na confessionalidade. Seguindo o inventério de bens, somos levados 4 sala de comer. O mobilié- rio € os utensilios da mesa, para doze pessoas, ¢ as vinte e quatro varas de ocu- padas pelos trinta e seis quadros e telas que se alinhavam nas paredes, advertem- “nos para um espaco de grande dimensio cujo mobiliério foi minuciosamente identificado e registado. A preponderincia de iconografia religiosa nao afecta a familiaridade e o hedonismo facilitado pela qualidade das iguarias, servidas sobre toalhas de damasco, em porcelanas da China, vidros de Veneza, talheres de prata e jarros de Portugal. ‘Ao contrério da sala de comer, a sala de estar de Baptista Peres era 0 espa- 0 de visibilidade de uma pseudo-intimidade. Forrada, em toda a extensdo, com uma colcha dura de tafet carmesim e amarelo, esta sala apresentava uma icono- grafia exclusivamente devocional, com um claro predominio de representagoes de santos e da Virgem Maria, em trinta e uma imagens constituidas por laminas, lienzos e quadros, além de dezassete objectos de culto, como crucifixos, tergos € rosdrios. A iconografia da sala de estar sugere um espago destinado a estabelecer a ponte entre o espaco privado e 0 espaco puiblico. Nao seria um espaco de iden- tificagtio com a verdadeira intimidade, mas 0 espago de organizagtio da represen- tago exigida pela necessidade de coeréncia com a exteriorizagao de valores, de crengas ¢ de atitudes préprias da civilidade barroca. Cremos que 0 apertado con- trolo social, proprio da sociedade contra-reformista gerou nos judafzantes uma necessidade de valorizagao da intimidade e do segredo em simultineo com a intensificagaio de manifestagGes de exteriorizacao publica e privada da devocio imposta. Pode ter sido o factor condicionante da organizagao do espago e da decoragao da casa deste mercador cristZio-novo. © quarto de dormir principal, dos donos da casa, sugere um mapa dos afec- tos e da intimidade. Cruzando informagiio, designadamente os depoimentos dos cunhados moradores em casa de Peres, podemos reconhecer outros espagos da casa, como os quartos das criangas, de visitas, etc., dos quais pouco sabemos. Sem entrar em detalhe na interpretago do quarto de dormir dos proprietarios da casa, apenas queremos corroborar a importancia da organizagio do espago Escovar a Hist6ria a Contrapelo, em Busca de Indicios Reveladores 521 doméstico para o estudo da intimidade e da geografia da sociabilidade. Espago privado, o quarto de dormir nfo configurava intimidade absoluta j4 que podia ser também um espaco de recepgio em momentos solenes como 0 pds-parto, 0 que era proprio da sociabilidade da Epoca Moderna. Daf que a iconografia devocional (ao todo quarenta e oito quadros de diferentes dimensdes e suporte) fosse dominante. As paredes eram forradas de tafeté amarelo, a cama, de dossel, com cortinas de damasco carmesim, as almofadas, bordadas a ouro e seda, as sobrecamas, de veludo e damasco (azul de Castela e damasco mandarim amarelo e verde), Neste festival de cor e de luxo, havia ainda espago para um toque de intimidade — 0 retrato da filha num bastidor, jarros de Estremoz, muito estima- dos por D. Guiomar, e pomos de gua perfumada. Considerando a disting&o sociolégica entre os conceitos de casa ¢ de fami- lia na Epoca Moderna?2, o primeiro definidor de status para a aristocracia de corte, 0 segundo préprio da sociedade burguesa, consideramos que Manuel Bap- tista Peres, embora integrado na elite colonial, marcada pela ritualizagao do poder da corte vice-reinal, era dotado de uma mentalidade profundamente bur- guesa. Claro que também para ele a casa assumia um cardcter distintivo social- mente, mas 0 seu conceito de familia (cimentada por afecto, cumplicidade e con- fianga) presidia & organizagao e vivéncia do espago privado. No caso de Peres, a importincia da familia, propria da esfera burguesa, associa-se & necessidade de preservar uma boa imagem, socialmente reconhecida, de si e daqueles com quem partilha a sua vida. Talvez esta tivesse sido a principal razdo da sua recusa em aceitar a acusagdo que o Tribunal do Santo Oficio Ihe fizera. Recusa que jus- tificou, explicitamente, em carta cifrada ao seu cunhado: E vejo-0 com pouco 4nimo e desejo de viver e se no tormento hé-de confes- sar, faga o que lhe parecer e viveremos com perpétua infamia e avise-me do que se resolve e em quem dé e como a aceitam, e se se determinar nao toque em Jorge Rodrigues nem em Simo Vaz, e diga-me nos que der... J4 digo, faga 0 que Ihe parecer, pois nao se sente com animo de morrer, € guardando nossas companheiras, que nao sei se hdo-de querer passar por isso, porque para dar a dona Guiomar antes quero morrer mil vezes, e agora © quisera estar pois de levantar falsos testemunhos a meus amigos ¢ conhe- cidos e viver com perpétua infimia e desonra quem tanto a professava como eu?3, Concluindo este breve exercicio de aproximagao A vida de Manuel Baptista Peres, um dos mercadores proeminentes nas fndias, na 1." metade do século XVIL, cristdo-novo, condenado por judafsmo por um Tribunal évido de prata de hereges, queremos sublinhar a dificuldade ¢ 0 fascinio do trabalho do histo- 22 Ver Norbert Elias, A sociedade de corte, Lisboa, Editorial Estampa, 1995. 23 AGI, AHN/Inguisicion, Legado 1647, exp. 13, fl. 184v. 522 Rumos e Escrita da Hist6ria riador quando colocado perante siléncios. Os processos inquisitoriais dos mer- cadores portugueses processados em Lima contém documentagio riquissima para o estudo da estrutura e dimensio das redes mercantis 4 escala regional ¢ transatlantica, mas também para o conhecimento da circulacao do livro e da arte entre a Europa ¢ o Novo Mundo. Contudo, hé que interpretar os siléncios, as omissées, a intencionalidade, como Lucien Febre propés, atento As contradigdes entre o ser e o parecer proprias da cultura barroca. Como Walter Benjamin, escovar a hist6ria a contrapelo e assumir que 0 éxito da arqueologia dos silén- cios resultard de um equilfbrio entre o distanciamento critico, a intuigao ¢ a sen- sibilidade do historiador. A traject6ria individual de Manuel Baptista Peres abriga outros percursos biogréficos e contém virtualidades nfo afloradas, apenas sugeridas. A pertinén- cia deste exercicio resulta da tangencialidade e intercepgao desta trajectoria com as de outros mercadores, e da nossa convicgiio de ela é representativa de um universo mental marcado pela contradigo entre imposigio ¢ rejeigtio de padrdes culturais.

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