You are on page 1of 16
HOMO VIATOR Estudos em homenagem a FERNANDO CRISTOVAO Edigées Colibri ! VIAGEIROS PORTUGUESES NO RIO DA PRATA. DA VIAGEM DE SOLIs (1515) A EXPEDIGAO DE CABEZA DE VACA (1542) Maria da Graca A. Mateus Ventura* 0. Introdugao™* Os portugueses partilharam o descobrimento da costa atlantica da América, marcando presenga no litoral brasileiro ¢ devassando continuamente as aguas equatoriais em direccao ao sul. O meridiano de Tordesilhas delimitaria o espaco de intervengdo dos estados ibéricos, embora as interferéncias nas «zonas de fronteira» fossem comuns a portugueses e espanhéis, sob os olhos e os ouvidos atentos dos embaixadores. Neste breve estudo nao se abordaré a rivalidade luso-castelhana decorrente da delimitagao a partir do meridiano de Tordesilhas, questo sobejamente estu- dada pelas historiografias ibéricas, Trata-se, ao invés, de uma aproximagto as cumplicidades entre portugueses e espanhis enquanto participantes nas viagens de descobrimento ¢ nas expedigdes de conquista, a partir do Rio da Prata, em direcgao 4 almejada Serra de Prata. Na verdade, pilotos ou marinheiros mais empenhados no desvendar de um espago novo que em manter-se fiéis a uma entidade abstracta, Estado espanhol ou Estado portugués, misturaram-se com facilidade nessa aventura. Assumiram, capitaneando, expedigdes ao servico de Castela. Mergulharam naqueles mares imensos, deixando rasto nas cronicas, apenas quando 0 invulgar se tornava notério ou quando a eficdcia se mostrava herdica. Tantos anénimos que nos ficaram, mas os poucos rasteados bastam para confirmarmos a sua presenca por todo o lado. * Presidente do Instituto de Cultura Ibero-Atlantica, Doutora em Letras ‘Este texto, no essencial, foi apresentado na X Reuniio da Nautica, realizada no Rio de Janeiro em 2000. Tratando de viageiros portugueses, pioneiros no sul da costa atlantica da América, € com muito prazer que 0 dedico ao Carissimo Professor Fernando Crist6va viageiro de sempre, com quem tive o privilégio de navegar no Rio da Prata, em direcgao a Colénia do Sacramento ¢ a Montevideo, em Margo de 2004. HOMO VIATOR ~ Estudos em Homenagem a Fernando Crist6vdo, Lisboa, Edigdes Colibri, 2004, pp. 209-224 210 HOMO VIATOR ~ Estudos em Homenagem a Fernando Crist6vao 1. Viagens e expedigées Joao Dias de Solfs, ao servigo de Espanha desde cedo!, primeiro associado a Vicente Yafiez Pinz6n (com o qual assinou capitulagaio em 1508) na viagem ao golfo de Higueras e depois piloto-mor da Casa da Contratagio desde 1512, foi ao Darién com Pedrdrias Davila nesse mesmo ano, navegando de cé para 14, passando pelos cArceres da corte, antes de morrer no rio Parana. Razao tinha Oviedo ao dizer que Joao Dias de Solis era bom piloto e habil nas coisas do mar, mas nas coisas da guerra terrestre nunca exercitou esquadrao de pé nem a cava- 103, por isso foi em terra que morreu, as miios dos indios. O rio que navegou ficar-lhe-ia com 0 nome enquanto nao chegava o baptismo definitivo, misto de mito e realidade*, ‘Na viagem de Solis ao futuro rio da Prata, por capitulago com a Coroa de Castela, assinada em Novembro de 1514, que nomeava seu irmo Francisco Souto piloto-mor substituto na Contratagao, participaram varios portugueses dos quais apenas conhecemos trés sobreviventes: Henrique Montes ficou por lé tempo suficiente para arder em sonhos e atormentar Sebastiio Caboto com a obsessio da prata; Aleixo Garcia, também companheiro de Solis, tinha morrido, justamente, em demanda da riqueza que o Parand anunciava de prata; o outro, Diogo Garcia, natural de Lisboa, fora destinado a outro futuro. Diogo Garcia, portugués, vizinho de Moguer, foi mestre de um dos navios da expedig&o de Jodo Dias de Solis ao Rio da Prata. Alguns anos mais tarde 1 Varios autores Ihe atribufram a nacionalidade espanhola, entre os quais Pedro Martir de Anglerfa, Ruy Diaz. de Guzmén e Anténio Galvao (embora j4 Damiao de Géis, na Crénica de D. Manuel, 0 identifique como portugués). Hoje nao hé qualquer davida sobre a sua nacionalidade. A este respeito, ver o excelente estudo de José Torfbio Medina, Juan Diaz de Solis: estudio hist6rico, Santiago do Chile, 1897, 2 vols. 2 José Torfbio Medina publicou varios documentos relativos & actividade de Solis ao servigo de Castela no seu estudo Juan Diaz de Solfs...Ver, por exemplo, «Capitulacién real con Vicente Yéfiez Pinz6n y Jodo Dfaz de Solfs - 23 marzo 1508» (p. 26), «Real cédula para que se pague a Juan Dfaz de Solis cierta suma A cuenta de su sueldo ~ 21 junio de 1511» (p. 53), «Real cédula para que se entreguen cuatro mil ducados a Juan Diaz de Solis - 24 novienbre de 1514> (p. 113) e «Real cédula por la que se dispone levantar una informacién respecto al reclamo interpuesto por el Rey de Portugal contra Juan Diaz de Solis - 22 febrero de 1517» (p. 173). 3 Femandez de Oviedo, Histéria General y Natural de las Indias, Ed. y estudio preliminar de Juan Pérez de Tudela Bueso, Madrid, Ed. Atlas, 1992. Parte Il, liv. IV, Cap. I. também 0 Epistolario de la Nueva Espata, 1505-1819, vol. I (1519-1529) contém documentos impor- tantes relativos 3 actividade de Solis: cap. De uma carta do rei A casa da Contratagio para averiguar 0 que se passou entre Pinz6n e Solis, em 1509 (p. 2); Confirmagao da justeza da prisio de Solfs em que o rei ordena que o preso seja levado & corte acompanhado do proces- so; carta do rei D. Fernando aos oficiais da Contratagao informando que Solis est bem preso no cércere da corte (p. 4). 4 Na verdade, o Rio da Prata ou Paran4 nao conduz directamente & Serra de Prata, mas sim 0 rio Paraguai que com ele se mistura, a sul de Assungio. Viageiros portugueses no Rio da Prata a empreendeu nova viagem a esta regido da qual deixaria uma Relacién e derrote- ro*. Tendo safdo da Corufia a 15 de Janeiro de 1526, chegaria no ano seguinte 20 Rio da Prata. Navegando muitas léguas, terra adentro, seguiu Sebastiao Caboto e encontrou antigos companheiros de outras viagens, como Martim Garcia®, Contando com a preciosa colaboragaio do portugués Gongalo da Costa (que se encontrava em S. Vicente e se pds ao servigo de Castela), subiu o Parané e o Paraguai em demanda de ouro e prata. Em 1530, de regresso a Sevilha, Diogo Garcia culpa Caboto pelo fracasso da viagem. A relago que apresentou ao rei mostra animosidade e fraca conside- rago por Sebastiéo Caboto, desqualificando os seus méritos de marinheiro’. Alimentava ainda sonhos dourados, como se depreende da sua relagdo: «e estas geragdes dio novas deste Paraguai que nele hé muito ouro e prata, e grandes Tiquezas e pedras preciosas, e isto é 0 que sabemos deste descobrimento...»4, Diogo Garcia reivindicou pagamento dos prejufzos causados pelos gastos com a viagem ao Prata’, mas a magra quantia conseguida (6.000 maravedis) f€-lo 5J. Toribio Medina, Coleccién de documentos inéditos para la historia de Chile: desde el viaje de Magallanes hasta la batalla de Maipo( 1518-1818), Santiago do Chile, Imprenta Ercilla, 1889, no t. III contém «Relacién € derrotero de Diego Garcia que salié de la Corufia en 15 de enero de 1526, en el Mar Océano, llegé en 27 al rio Parand, donde naveg6 muchas leguas tierra adentro la armada de Sebastian Caboto. Describe las generaciones que habitan en las orillas deste Rio é su riqueza. Aijade que quinze afios antes abia estado allf, é abia descubierto aquellas tierras, de donde traxo gran procion de plata» (p. 40).Toribio Medina transcreve 0 documento original que se encontra no AGI, Patronato, est. 1, caj. 2, leg. 2... t IIL, pp. 40-48. O autor publica, sem data, outros documentos sobre o piloto portugues, tais como: «Condiciones puestas por el capitén y piloto Diego Garcfa, para armar dos carabelas con las cuales irfa a hacer descubrimientos en el mar del sur» (p. 347) ¢ «Memoriales de Diego Garcia, capitan y piloto, pediendo ayuda para él, su mujer e hijos» (p. 449). A toponimia local d4 conta da presenga de pilotos portugueses, como foi o caso do nome de uma pequena ilha na foz do Parand, «Martin Garcfa», além do «Rio de Solfs» ¢ das «islas Rodrigo Alvarez». O proprio nome «Argentina» deriva, segundo Gandia, da prata que 0s portugueses no Brasil afirmavam existir no Potosi. A lenda do Eldorado (aqui, um lago onde dormia 0 sol e 0 rei branco e nasciam as quatro partes do mundo) atraiu muitos guaranis ¢, mais tarde, espanh6is e portugueses. Atraiu os ndufragos de Solis e desviou as naus de Caboto. De facto, 0 mito assentava na existéncia de importantes jazidas de prata que os espanhdis, ¢ numerosos portugueses, viriam a explorar. (Cf. Enrique de Gandia, nota 14 da introdugio a La Argentina, p. 10). 7A propésito da necessidade de navegar no hemisfério sul, quando af fosse vero, ¢ de partir de Espanha, quando aqui fosse inverno, escreveu: «¥ esta navegacién no supo tomar Sebas- tian Caboto con toda su estrulugia; tomé la contraria como hombre que no sabia nada». Mais adiante, a propésito das correntes que saem dos rios da Guiné: «Estas corrientes no supo tomar Sebastian Caboto por que no era marinero ni sabia navegar.» (Cf. Coleccion de diarios..., p. 13). 8 Idem, ibidem, p. 18. ° Ver Toribio Medina,

You might also like