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Portugal e Bra il no advento do Mundo a A FLUIDEZ DE FRONTEIRAS ENTRE O BRASIL EA AMERICA ESPANHOLA NO PERIODO COLONIAL Maria da Graga A. Mateus Ventura” Introdugao Nos sécs. XV a XVII, a fronteira politica nfo implicava necessaria- mente a consciéncia de pertenga a um espago colectivo nacional. Romero de Magalhaes considera que a comunidade de interesses dificilmente se compatibiliza com as delimitag6es fixadas em convénios entre reis, que para nada ouviram os povos!. Partilhando desta nogao de fronteira como obstaculo fictfcio, mas sem pretender entrar em questdes decorrentes da cartografia politica, diria que os Estados ibéricos impuseram o meridiano de Tordesilhas contra a tendéncia natural das comunidades locais indias, portuguesas ou espanholas. Foi a pressdo do Estado, concretizada na pro- gressiva organizagiio administrativa do territ6rio, que permitiu a consoli- dacao dos limites, embora os interesses individuais empurrassem os homens para ld das fronteiras. J no periodo de descobrimento e configurago do espago de coloni- zagdio de Portugal e de Espanha, os portugueses integravam viagens e expedigdes a partir do Rio da Prata, enquanto os espanhéis se abasteciam de viveres no Brasil. Estabeleceu-se uma cumplicidade, a par de uma apa- rentemente paradoxal rivalidade, com Santa Catarina, Cananeia, S. Vi- cente ¢ Rio de Janeiro. Mais tarde, quando ja se promovia a delimitagao territorial do Brasil e das governagdes espanholas, sao os bandeirantes *Doutoranda em Histéria dos Descobrimentos e da Expanstio Portuguesa na Universi- dade de Lisboa. Vice-presidente do Instituto de Cultura Tbero-Atlantica. 1 Ver Joaquim Romero de Magalhies, “O enquadramento do espago nacional”, in Histé- ria de Portugal (Dir. José Mattoso), vol. III - No Alvorecer da modernidade. (1480- -1620). Lisboa: Circulo de Leitores, 1993, Portugal ¢ Brasil no Advento do Mundo Moderno, Lisboa, Ediges Colibri, 2001, pp. 257-268. 258 Portugal e Brasil no Advento do Mundo Moderno paulistas que penetram no Paraguai devassando as aldeias / missdes jesui- ticas (1628-29). Independentemente das razdes de Estado, a prata, a mio-de-obra indigena e o trafico negreiro foram, na fase de colonizagio, o leit motiv que justificou amplamente as iniciativas individuais de penetragao portu- guesa, do Brasil, em direcgao ao Alto Peru, sobretudo a partir de Buenos Aires. Pretende-se, fundamentalmente, demonstrar que os portugueses, indo do Brasil, alegavam arribadas forgadas para se instalar em Cartagena das fndias, ou invocavam o trafico negreiro e 0 comércio com Buenos Aires (incessantemente solicitado pelos moradores e sistematicamente, embora com raras excep¢des, proibido pela legislaco filipina) para se instalarem neste porto ou subir até ao Potosi, fixando-se nas principais cidades da governagao de Tucuman. 1. Complementaridade Brasil / Buenos Aires Se as expedigdes de conquista no Rio da Prata, se assumiram como iniciativa do Estado, sobretudo a partir da expedigao de D. Pedro de Mendonza, 0 1° governador (1536), e visavam uma apropriagao e delimi- taco do territ6rio, a proximidade do Brasil alimentaria a relagao dina- mica de cumplicidade e rivalidade. Muito tempo antes da negociagaio dos limites do Brasil, encontramos centenas de portugueses nas governacdes espanholas do sul. No perfodo de efectivo dominio colonial, quando 0 povoamento se reorganizava a leste e a oeste do meridiano de Tordesilhas, a fronteira permanecia imagindria j4 que os portugueses de Sao Paulo continuavam a percorrer os caminhos em direcgo ao Potosi, em busca da prata, é os colonos espanhdis de Buenos Aires reclamavam autorizagio para comer- ciar com os portugueses do Brasil, em busca de uma complementaridade necessdria 4 sua sobrevivéncia econémica. Os Estados teimavam em demarcar a fronteira enquanto as populagdes insistiam na cumplicidade. A fronteira imagindria torna-se cada vez mais concreta e as populagées sao apertadas pela produgao legislativa e pelos avancos estratégicos que persistem em impor a jurisdigao politica e restringir a cumplicidade. O asiento de Pedro Gomes Reinel (1595) permitia-lhe despejar escravos negros também em Buenos Aires e abrir caminho a infiltragao de portugueses. O bispo de Tucuman, o portugués D. Francisco de Vit6- tia, insistia num comércio tao rentavel quanto ilegal e escandaloso. Os governadores espanhdis queixavam-se sistematicamente, embora sem grande éxito. A Fluidez de Fronteiras entre 0 Brasil e a América Espanhola 259 Entre 1580 e 1640 foram identificados 329 portugueses que entraram pelo porto de Buenos Aires a um ritmo crescente?, Se entre 1580 e 1589 entraram a uma média anual de 1,5, j4 na década seguinte a média anual foi de 9,6, com um pico mais elevado em 1599. Entre 1600 e 1609 verifi- cou-se um fluxo migratorio ainda mais significativo com uma média de 10,6 entradas ao ano. S6 em 1603 entraram 41 portugueses. E exacta- mente nesse ano que se verifica a maior expulsdo em massa de portugue- ses sem licenga, quase todos os procedentes do Brasil, por acco do capi- tio Manuel de Frias, zeloso cumpridor da cédula proibitiva de 1595 repetida em 1601. As queixas dos governadores contra a entrada clandestina dos portu- gueses correspondem & evidéncia dos mimeros de que dispomos, acres- centando-lhe a avaliagio do impacto deste movimento migratério na socie- dade e na economia regional. Na verdade, quando se verificava um intenso fluxo migratério (1594, 1603, 1619, 1629, 1635), os governadores de ‘Tucumén e Rio da Prata, ou 0s vice-reis do Peru, insistiam junto do rei para que decretasse medidas proibitivas da entrada de portugueses, pelo que as cédulas promulgadas correspondem exactamente aos picos da emigragao. Em 1588, Juan Ramirez de Velasco, governador de Tucumén, escre- ve a Filipe IP, solicitando medidas contra os portugueses que, ilegal- mente, entram pelo Rio da Prata, vindo do Brasil, com o objectivo de chegar ao Peru, Foi-lhes impedida a passagem por nao serem portadores de licenga. O governador solicita ao rei que tome medidas contra esta situagdo pois “nao convém que entre no Peru gente ruim e que foi dester- rada de Portugal”. Acrescenta ainda que, como o territério est pacifi- cado, um homem sozinho pode passar de Buenos Aires ao Potos{ sem ser incomodado. Dois anos mais tarde’, a 10 de Abril de 1590, 0 mesmo governador volta a insistir na necessidade de tomar medidas para evitar a passagem de portugueses sem licenga, caso contrério “se encherd o Peru de gente portuguesa”. Sugere que os oficiais reais de Buenos Aires e a justica daquele porto nao deixem desembarcar os portugueses e os mandem regressar ao Brasil, castigando os mestres dos navios para que os nao tra- gam a bordo. 2 Sobre a presenga de portugueses na regio, ver Lafuente Machain ~ Los portugueses en Buenos Aires (siglos XVII). Buenos Aires: Real Academia de la Hist6ria, 1931. 3 Roberto Levillier (dir.) - Gobernacién del Tucumén: papeles de gobemadores... pp. 247- -251 ~ Carta de Juan Ramirez de Velasco a S, M. Santiago del Estero, 1588-1589. 4 Roberto Levillier, ibidem, p. 280. 260 Portugal e Brasil no Advento do Mundo Moderno No mesmo ano, a 2 de Outubro, Ramirez de Velasco persiste nesta matéria, acrescentando agora que além de portugueses também entram em Buenos Aires mercadorias procedentes do Brasil, “ainda que poucas”’. Em 1594, Garcia Hurtado de Mendonza, vice-rei do Peru, escreve de Lima a Filipe II, manifestando a mesma preocupag’o’. Enquanto D. Lou- rengo de Figueroa vai descobrindo muita terra e indios e anda povoando até aos confins do Brasil, no caminho aberto de uma parte e de outra, vao e vém portugueses de ld ao Potosi, pelo que sera necess4rio providenciat para ter em conta aquela porta e entrada para estas provincias dado o afluxo desmesurado de gente de todas as nagGes, com ou sem licenga, sendo de espantar que ainda haja “tanta paz, quietude e justiga”’. Tendo em conta as sucessivas queixas dos governadores, constatando que muitos estrangeiros entram pelo Rio da Prata e passam a Tucumén e aos Chareas, comerciam e vivem naquelas terras, Filipe II, em 1595, envia uma real cédula ao governador do Rio da Prata na qual proibe a entrada de portugueses sem licenga e ordena que expulse os que j4 tive rem penetrado naqueles territérios’. Esta cédula é reafirmada em 1601 € em 16128, Esta proibigdio estende-se ao Paraguai, por cédula de Filipe IV emitida em 1625, j4 que pelo Brasil continuam a entrar, e a passar ao Peru, muitos estrangeiros®. Contudo, houve, por parte dos moradores de Buenos Aires, alguma resisténcia 4 expulsdo dos portugueses. O cabido da cidade varias vezes solicitou ao governador autorizagio para que alguns portugueses permanecessem na cidade, invocando a sua grande utilidade. Entre aqueles que foram autorizados a ficar, a pedido do cabido, encontravam-se quatro lavradores, dois pilotos, um ourives de prata e um negreiro. Em 1631, Filipe IV escreve ao visitador D. Juan de Caravajal y San Diego, que se desloca a La Plata (Audiéncia de Charcas), ordenando-lhe que proceda contra os portugueses que tiverem entrado nas {ndias pelo porto de Buenos Aires! Segundo informacao enviada ao rei pelo doutor Juan de Solorzano Pereira, fiscal do Conselho das Indias, os portugueses, contrariando as ordens régias, entraram pelo porto de Buenos Aires pro- 5 Roberto Levillier, ibidem, pp. 288-289. © Roberto Levillier (dir.) ~ Gobernantes del Peru: cartas y papeles, siglo XVL.. pp. 160- “161 7 AGI, Charcas, 112 ~ Real cédula emitida em Valladolid, 6 de Abril de 1601. 8 Recopilacion de leyes de los reynos de Indias... T. Il, p. 320. 9 Idem, p. 321 - cédula, Madrid, emitida em 28 Fevereiro de 1625. 10 AGI, Charcas, 415, lib. 3 A Fluidez de Fronteiras entre o Brasil e a América Espanhola 261 cedentes do Brasil e dirigiram-se 4 Vila Imperial de Potosi “do que resul- tam muitos inconvenientes”, pelo que o rei ordena ao visitador que profba a presenga destes portugueses ¢ os envie a Espanha aplicando-Ihes as penas previstas na lei. Nos primeiros anos da década de 40, Gerénimo de Garavito, procu- rador geral dos agougueiros do Potosi, escreve a Filipe IV repetindo as queixas que apresentara em memorial de 1636, sobre os imensos danos e prejuizos causados pelos portugueses através do Brasil'!, Nesta extensa carta da conta da facilidade com que os portugueses penetravam nos ter- rit6rios de jurisdi¢ao castelhana, disputando fundamentalmente a prata do Potosi e os indios evangelizados no Paraguai. As preocupagdes manifestadas por Garavito siio comuns as autorida- des civis, militares e religiosas. De facto, a forte emigracio portuguesa por Buenos Aires € os avangos dos bandeirantes pelo Paraguai, nao s6 constitufam uma ameaga aos interesses dos mercadores de Lima e ao Consulado de Sevilha (pela saida da prata em troca de mercadorias atra- vés do Brasil), como possibilitava a entrada de judaizantes que beneficia- vam da inexisténcia do Santo Oficio no Rio da Prata. Além, naturalmente, de constituirem uma ameaga & colonizagio espanhola nos territérios con- tiguos ao Brasil. A pressdo portuguesa no Paraguai e a importéncia estra- tégica de Buenos Aires levou a uma certa reversio do processo expansivo espanhol a favor do eixo Buenos Aires — Tucumaén — Potosi. Buenos Aires, também por acco dos mercadores portugueses (como o bispo D. Francisco de Vitéria), torna-se 0 epicentro do intercambio comercial até a criagdo da alfandega de Cordoba de Tucuman em 16221”, Em 1586, Gerénimo de Bustamante, tesoureiro da Real Hacienda, escreve de Cérdoba a Filipe II, acerca do que se passa na provincia de Tucuman', Buenos Aires relaciona-se estreitamente com Tucuman, ja que o Rio da Prata é porta de entrada e safda de pessoas e mercadorias. Efectivamente, em 1584, entrara em Buenos Aires um bergantim, proce- dente do Brasil, que trazia muito agicar e ferro e levou, apesar da proibi- go, muitas mercadorias que se podiam trazer a Tucumén e daqui ao Potosi e ao Peru. Aconselha o rei a tomar medidas contra o trato de "AGI, Charcas, 117 2 A governagio de Tucumndn (criada em 1563 pelo vice-rei do Peru) abrangia um vasto territ6rio com cerca de 700,000 Km’, Confrontava com a futura governaciio de Buenos Aires e com a governagdo do Paraguai. Tendo em conta a geografia actual, cobria 0 noroeste da Argentina ¢ estendia-se pelas actuais provincias de Jujuy, Salta, Catamarca, La Rioja, Tucumén, Santiago del Estero Cérdoba, 13 Roberto Levillier, ibidem, t. I, 2.* parte. p. 218 262 Portugal e Brasil no Advento do Mundo Moderno D. Francisco de Vitéria para evitar que as rendas reais sejam defraudadas, pois este atravessava a provincia com muitas mercadorias realizando trato muito avultado. Conclui defendendo que as mercadorias que vém do Bra- sil deveriam fazer escala no porto de Buenos Aires, pois ai pagariam os direitos reais, e poderiam ser levadas a Tucumén, pois uma vez “vendidas e beneficiadas pelos oficiais reais dobrar-se-ia a moeda e se poder-se-ia levar ao Potosi 0 procedido da venda”. Em 1595, o vice-rei D. Garcia Hurtado de Mendonza, em carta a Filipe II, datada de Lima, constata a importancia do comércio com o Bra- sil para a vitalidade de Buenos Aires": “Escrevi a Vossa Majestade quao aberta est a navegagdo e caminho pelo Rio da Prata a estas provincias ¢ havendo sido informado que eram muitas as mercadorias e escravos que por ali entravam ordenei que se executasse a cédula de Vossa Majestade em que 0 proibe, e feita nisto diligéncia que convinha pareceu nao ser da importancia que informaram e que aquelas provincias (por ser tio pobres) se despovoariam e perderiam totalmente se se thes fechasse de todo aque- la porta e a contratagao que t¢m com o Brasil, e que entendo que acudirao a suplicar a Vossa Majestade hes faga mercé, digo que so dignos dela pela sua grande pobreza e necessidade”. Efectivamente, em 1598, 0 Cabido de Buenos Aires escreve a Filipe IIL pedindo que seja restabele- cido 0 comércio com o Brasil dado o estado miserdvel em que se encontra aquela cidade por se ter proibido este comércio!S. Em 1602, 0 comércio com o Brasil e Guiné foi autorizado por periodos limitados, alternando-se proibigdes e licengas. Esta alternancia e irregularidade reflecte a contra- digo entre o interesse das autoridades coloniais em evitar a presenga de portugueses e o desejo das populagdes em manter vivo 0 comércio que as sustenta!®, Os interesses em jogo eram muito grandes e manifestam-se na penetracio cada vez maior do comércio portugués que se foi implantando, através de contratos com espanhéis, com a conivéncia das autoridades locais. Em 1599, 0 novo vice-rei do Peru, D, Luis de Velasco, em carta a Filipe I, associa 0 trato negreiro, ao abrigo do asiento de Reinel, ao contrabando e entrada de portugueses do Brasil!’. No Ambito do referido asiento, diz o vice-rei, Pedro Reinel comegou a meter alguns negros no 14 Roberto Levillier — Gobernantes del Peru... pp. 334-341. Tradugdo da autora, 13 AGI, Charcas, 33. 16 Idem. 17 AGI, Lima, 33, N. 36. A Fluidez de Fronteiras entre o Brasil ea América Espanhola 263 Potosf pelo porto de Buenos Aires'®, Por ser aquela entrada tio remota e os funciondrios régios, “cujo cargo € mirar o que entra ¢ sai ¢ cobrar os direitos reais”, “ndo to espertos e vigilantes como conviria”, € aquela entrada propicia a grandes fraudes “assim para meter muita fazenda sem conta nem razio como para desaguar-se por ali grande parte da prata de Potosi”. Além deste inconvenient, nfio € menor o ter entrado, ao abrigo do asiento, “grande soma de portugueses do Brasil, gente solta e inquieta muito suspeita em coisas da fé de que aqui se tem experiéncia e bem se sabe quanto aquela costa se povoou, no seu principio, de delinquentes”. Na verdade, o asiento de Reinel, como em geral os asientos portugueses, permitiam que a tripulagao dos navios fosse, indiferentemente, castelhana ou portuguesa, além de obrigar a presenga em cada navio de dois feitores ou agentes!®, pelo que o ntimero de portugueses que se fixaram nas fndias, ao abrigo deste trato, era muito elevado. O vice-rei ordenou ao ouvidor da Audiéncia de Charcas que procedesse contra os portugueses, castigando-os pelo contrabando e compelindo-os a regressar pelo mesmo caminho, mas este verificou que era gente pobre sem possibilidades para regressar. D. Luis de Velasco considera que a tinica solugao ser fechar totalmente a passagem por Buenos Aires ou, pelo menos, castigar Reinel, com penas graves, para que no dé lugar a que entre mais gente. Parece, contudo, que os moradores mais uma vez nao concordavam com esta proibicao. Assim, em 1608, na sequéncia da peste que assolara Buenos Aires, 0 cabido pede a Filipe IV que os autorize a comprar negros de Angola, em troca dos frutos da terra, para que possam sustentar as semen- teiras e edificar e acudir ao bem da repiiblica®. Em 1618, por cédula real, apenas fica autorizado 0 comércio directo no eixo Buenos Aires ~ Brasil ~ Sevilha. Em 1622, Filipe IV, decreta em Madrid a proibigao de toda a comu- nicagdo, passagem, comércio ou tréfico com o Brasil?!, Em Tucumén, passo principal para o Peru, foi criada uma alfandega para controlar 0 18 Efectivamente o contrato é muito claro relativamente a possibilidade de Reinel colocar ‘em Buenos Aires até 600 escravos negros por ano de vigéncia do contrato, embora ressalve a eventualidade de cessacao desta cldusula: “contanto que se convier assim a nosso servigo mandaremos cessar de todo a navegagdo do dito Rio da Prata, e cerrar 0 porto de Buenos Aires:..” sem que haja lugar a qualquer gratificagio ou desconto. In Diego de Encinas, Cedulario Indiano. Vol. IV, p. 402 € ss. 19 Ver asiento in Diego de Encinas. 20 Carta del cabildo al rey... Buenos Aires, 28 Junho, 1608. In Roberto Levillier (comp) = Correspondencia de la ciudad de Buenos Aires... p. 271. 21 Recopitacién de leyes ... Il, p. 512. 264 Portugal e Brasil no Advento do Mundo Moderno comércio pelo que € proibido usar outro caminho para o Paraguai, Bue- nos Aires, Rio da Prata ou Brasil. Profbe-se qualquer comunicagao com 0 Brasil. A mesma lei determina que pelo porto de Buenos Aires nao entrem passageiros nem passem aos portos secos de Cérdoba de Tucu- mén. No predmbulo alega-se que entram no Peru muitos passageiros por Buenos Aires, autores de fraudes e ocultagdes, em que ha grande desor- dem e que nos navios que carregam em Portugal para o Brasil, levam mercadorias de todos os géneros e a maior parte muda de rota e vai a Buenos Aires, onde as descarregam, com grave prejufzo para 0 comércio de Espanha e das indias®, Estas medidas foram prejudiciais para Buenos Aires jd que conferia a Cérdoba um papel central no controle de mercado- rias. Fundamentalmente, esta opgfio, tentava proteger os interesses estra- tégicos de Lima e Portobelo e, consequentemente, de Sevilha. O afluxo de prata a Buenos Aires baixou significativamente, apesar do comércio ilegal. De tal modo que, em 1655, Filipe IV, ao pedir a contribui- go dos rio-platenses para a guerra, obtém como resposta que os moradores apenas podem dispor de gado vacum, se houver barcos para o levar, A quase totalidade dos estrangeiros estantes ou residentes na provin- cia de Tucumén chegou na tiltima década do séc. XVI a uma média de 7 ou 8 por ano. No que respeita aos portugueses, incluindo Buenos Aires, a ultima década do séc. XVI e primeira do séc. XVII correspondem aos principais picos de emigragdo. A quebra progressiva pode ser explicada pela apertada vigildncia exercida pelas autoridades, conforme se pode verificar pelas insistentes queixas dos governadores contra a presenca de portugueses ou pela baixa na produgdo da prata no Potosi. A maior parte dos estrangeiros em Tucumén entrou pelo porto de Buenos Aires, embora alguns tivessem tomado outras vias - Cartagena ou Panamé. 6 notorio uma importante corrente migratéria a partir do porto de Buenos Aires em direccio a Tucumdn, onde a presenca portuguesa é dominante. 2. Brasil - Antilhas - Cartagena das {ndias: rotas de desvio ou falsas arribadas* Em 1630, entre intimeros portugueses de procedéncias diversas que entraram ao abrigo do trato negreiro ou de arribadas forgosas, em Carta- 22 Recopilacion de leyes ... . Il, p. 514, 23 Ver AGI, Indiferente, 427 ~ Real cédula, Medidas contra navios mercantes que, sob pretexto de irem ao Brasil, arribam em portos da América espanhola. 1589, 07, 09. A Fluidez de Fronteiras entre o Brasil e a América Espanhola 265 gena das {ndias, encontravam-se varios oriundos do Brasil. Estes alega- ram arribadas a Santo Domingo, Porto Rico ou Jamaica e daf passaram a Cartagena das fndias. De todos conhecemos a profissio jA que, interroga- dos por serem estrangeiros e residentes sem licenga%, tiveram de identifi- car-se e justificar a sua presenga na cidade, Vieram quase todos de Per- nambuco, acossados pelos holandeses. Francisco Alvares, natural do Porto, sapateiro, veio do Brasil para Cartagena com treze anos. Aqui casou com mulher natural e s6 em 1630 foi preso por ser estrangeiro e ter entrado sem licenga?5. Lourengo Alva- res, também natural do Porto, lavrador, ia para o Brasil quando foi atacado pelos corsarios e artibou a Jamaica donde partiu para Cartagena onde chegou em 1627. Era casado no Porto e partiu sozinho. Em Carta- gena ficou como estanceiro do capitao Alonso Quadrado*6, O caso de Francisco de Andrade é bastante curioso. Natural da Serta, casado com uma mulher de Evora, chegou a Cartagena em 1625, com vinte e um anos. Fora ao Maranhao, como alferes, com 0 governador da Bafa de Todos os Santos. A Pernambuco fora buscar 6.000 ducados em roupa para pagamento da infantaria, mas foi forgado a arribar a ilha Mar- garita cujo governador se apropriou da roupa. Foi, entiio, a Santo Domin- go e daf a Cartagena onde ficou sem cabedal. Parece que nao tinha vonta- de de regressar 4 Bafa, talvez. por a arribada a Margarita nao ter sido tao forgada como pretendia””. Matias Gongalves, natural do Porto, com vinte e nove anos, partira do Porto rumo a Bafa de Todos os Santos, como capitdo do navio S. Jodo Baptista. Com tempos contrarios, virou para Santo Domingo onde arribou. Daqui foi para Cartagena onde foi interrogado em 163078, Luis Carvalho, natural de Lisboa, veio do Brasil, com vinte e quatro anos, para Cartagena no navio de Diogo de Fonseca. $6 seis anos depois de ter chegado a cidade € identificado como estrangeiro na relagio de 1630. Fazia selas de brida e de gineta além de ensinar a dangar®. Cristévao Dias, natural do Porto, veio de Pernambuco com um navio carregado de agticar para Lisboa. No caminho foi atacado pelos holande- 24 Relagdio de estrangeiros mandada fazer por San Isidro Manrique, presidente da Audién- cia de Santa Fé, em 1630 (AGI, Santa Fé, 56B, N. 73A). 25 AGI, Santa Fé, S6B, N. 73° 26 Idem ibidem. 27 Idem, ibidem. 28 Idem, ibidem. 29 Idem, ibidem. 266 Portugal e Brasil no Advento do Mundo Moderno ses que 0 deixaram num navio de negros que ia para Cartagena, em 1628, quando tinha trinta e oito anos. Aqui ficou como mercador de agticar.5° Dois alfaiates mal sucedidos. Pedro Dias, natural de Paradela de Pinho, veio pela via de Pernambuco a Cartagena, tinha entdo vinte e oito anos. Entre 1624 e 1630 ficou em Cartagena, sem licenga, Declara ter s6 40 pesos de cabedal quando é forgado a identificar-se!. Lourengo Veiga € natural de Pernambuco donde vai com a mie para Cartagena, em 1624, como soldado do presidio, no navio de Anténio Pereira que trazia arma- ao de negros, sem licenga. Embora passasse a exercer 0 oficio de alfaia- te, em 1630, diz que nao tem bens e que sua mie vive da esmola®. Ligados ao trato negreiro temos dois casos sintomiticos da relagiio entre o peso da comunidade portuguesa em Cartagena e a importancia estratégica deste porto, no que respeita ao comércio negreiro, como centro distribuidor. Pedro de Farias, natural de Guimaraes, percorre um amplo périplo até chegar a Cartagena. Em 1630 declara ter vindo do Brasil, numa nau de armagao de negros, a Porto Rico donde embarcou para a Espa- nhola. Atacado pelos corsérios, foi deixado em Caracas e daqui veio para Cartagena donde passou ao Peru. De Lima, baixou a Cartagena para com- prar negros para Diogo do Vale no valor de 5.000 pesos. E ent&o que é identificado pelas autoridades de Cartagena as quais declara ter apenas 200 pesos de cabedal e ser mercador de negros**, Anténio Fernandes Landin, natural de Lisboa, chegou a Cartagena quando jé tinha setenta anos. Ia na nau Santiago com registo de negros. Anda por todo o mundo, diz em 1630. Esteve em Caminha e em Pernambuco onde o portugués D. Luis da Rocha, alcaide de Cartagena, tem muitos parentes™*. Um mercador de vinhos. Mateus da Gama, natural da Madeira, com quarenta e dois anos, dirigia-se 4 Bafa de Todos os Santos, com 80 pipas de vinho e doces para vender, no navio Nossa Senhora do Rosario, quando foi forgado a arribar a Santo Domingo. Daqui foi para Cartagena, sem licenga, sendo obrigado a regressar em 1630 por estar ilegal 35, Jorge de Ferreira, natural de Guimaries, saiu de Espanha em 1628, em conserva dos galeses, no navio S. Francisco por capitio e administra- dor de Angola. Ao chegar 4 costa do Brasil foi atacado pelos inimigos 30 Idem, ibidem. 31 Idem, ibidem. 32 Idem, ibidem. 33 Idem, ibidem. 34 Idem, ibidem. 35 Idem, ibidem. A Fluidez de Fronteiras entre 0 Brasil e a América Espanhola 267 sendo forgado a arribar a Santo Domingo onde permaneceu mais de um ano, A mando do presidente da Audiéncia, carregou frutos para Espanha e foi para Cartagena a fim de se integrar na armada de D. Fabride. Mas 0 navio partiu-se ¢ voltou a arribar a Cartagena donde espera partir para Espanha®, Gongalo Brés de Lombas, natural de Pico de Regalados, foi na armada do Maranhao, perdeu-se e arribou a Santo Domingo donde, qua- tro anos depois, foi para Cartagena em 1615, sem licenga37 Manuel Madriz, natural de Caminha, em 1608, com dezasseis anos de idade, foi como grumete num patache de aviso e ficou em Cartagena, sem licenga. Marinheiro ¢ piloto, declara em 1630 que esteve no Brasil e que em Pernambuco so todos de Caminha e arredores — Viana, Ponte de Lima, Ponte da Barca e Arcos de Valdevez*. Mateus Soares, natural da Galiza, mestre de navio, diz que nasceu na Galiza, em 1582, e foi criado em Viana e no Brasil. Fez varias viagens a Cartagena e S. Juan de Ultia com armaco de negros. Possui uma fragata com a qual navega nos portos caribenhos. Obteve naturalidade em Carta- gena em 1630". Estes so apenas alguns percursos que documentam nao s6 a mobili- dade dos portugueses no periodo colonial como a relagdo estratégica entre Pernambuco e Cartagena, através das Antilhas. Conclusao O sul do Brasil estabelece, desde as primeiras viagens e expedicdes, uma cumplicidade fundamental com o Rio da Prata e o Paraguai. De Sao Paulo, avangam as expedigdes de bandeirantes numa tentativa clara de sobrepor os interesses individuais aos desfgnios do Estado. De Pernam- buco, viajam para Cartagena das Indias muitos portugueses alegando fal- sas arribadas motivadas pelos ataques de corsérios holandeses ¢ france- ses. Qs portugueses, a partir do Brasil, instalam-se nas {ndias de Castela, rentabilizando as rotas negreiras e a prata potosina. Embora os sucessivos governos filipinos considerassem ilegal a penetragdo portuguesa nos ter- Titrios sob sua jurisdiga0, as iniciativas individuais nao perdem o seu cardcter sistematico provando que os interesses dos individuos se sobre- 36 Idem, ibidem. 37 Idem, ibidem. 38 AGI, Santa Fé, 109, N. 19A. 39 AGI, Santa Fé, 109, N. 27. 268 Portugal e Brasil no Advento do Mundo Moderno poem, muitas vezes, as razdes de Estado e que a fronteira politica resulta de uma demarcacdo artificial alheia as realidades culturais e aos interes- ses dinamicos das comunidades. Falar de fluidez de fronteiras entre o Brasil e a América espanhola implica 0 reconhecimento desta realidade e relanca a discussio em torno do processo de construgao das fronteiras politicas e da natural ou forgada coincidéncia entre Estado e Nagao. Fontes e bibliografia AGI, Charcas, 18, R. 7, N. 1134 — Relago de estrangeiros em Chareas, em 1610 AGI, Charcas, 26 - Relagdo de estrangeiros em Tucumén, em 1607 AGI, Charcas, legados 33, 42, 43 e117 AGI, Lima, 300 - Cartas de governadores de Tucumdn ¢ de vice-reis do Peru. AGI, Santa Fé, 56B, N. 734 — Relacdes de estrangeiros em Cartagena, 1630 Almeida, Luis Ferrand de — A diplomacia portuguesa e os limites meridionais do Brasil. Vol. I (1493-1700). Coimbra: FLUC, 1957. Asdriibal Silva, Herén ~ “Las provincias rioplatenses”, in Historia de las Americas I. Coord. de Luis Navarro Garcia, Madrid: 1991. Cedulario Indiano (recop. de Diego de Encinas), Ed. Fac-similada da ed. de 1596. Madrid: Ediciones Cultura Hispanica, 1945. Vol. IV. Lafuente Machain ~ Los portugueses en Buenos Aires (siglo XVII). Buenos Aires: Real Academia de la Historia, 1931 = Los conquistadores del Rio de la Plata. Buenos Aires: Ed. Ayacucho, 1943 Lavalle, B. - “Les étrangers dans les régions de Tucumén et Potosf (1607- -1610)”, in Bulletin Hispanique, tomo LXXXVI, n° 1-2. Bordeaux, 1974. Levillier, Roberto (dir.) - Correspondencia de la ciudad de Buenos Aires con los reyes de Espana. T. 1 (1588-1615). Municipalidad de Buenos Aires, 1915. —— - Gobernacién del Tucumén: papeles de gobernadores en el siglo XVI. Documentos del Archivo de Indias. T. I, 12 parte. Madrid: Imprenta de Juan Pueyo, 1920 = Gobernantes del Peru: cartas y papeles, siglo XVI. Documentos del Archivo de Indias. T. XI - El virrey Garcia Hurtado de Mendonza, Marqués de Caiiete. 2" parte: 1593-1596. Madrid: Sucesores de Rivadeneyra, S. A. — Artes graficas, 1926 Rodriguez Vicente, Maria Encamnacién ~ “Los extranjeros en el reino del Peru a fines del siglo XVI”, in Homenaje a J. 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