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Sao Paulo: segregacaéo urbana e desigualdade FLAVIO VILLACA Introdugio ROVAVELMENTE 0 maior avango ocorrido no campo da ciéncia da geografia em todos os tempos tenha sido a consciéncia e a recente difusao da ideia (Lefébvre, Harvey, Gortdiener ¢ tantos outros) de que o espago social — no nosso caso, 0 espago urbano ~ ¢ socialmente produzido, ou seja, nao é dado pela natureza, mas é produto produzido pelo trabalho humano. A partir dessa concepgao do espago social, ¢ s6 a partir dela, foi possivel inserir seu estudo na légica do materialismo histérico, da dominagio e do conflito de classes, coisa que nao s6 nao tinha sido possivel antes, como também vinha entravando o de- senvolvimento da geografia, impedindo-a de ultrapassar a etapa primaria de uma ciéneia humana que se limitava a simples descrigao do espago. Este texto procura mostrar uma abordagem do espaco urbano como pro- duro produzido. Parte da premissa de que nenhum aspecto da sociedade brasileira poderd ser jamais explicado /compreendido se nao for considerada a enorme desigualdade econémica e de poder politico que ocorre em nossa sociedade. O maior problema do Brasil nao é a pobreza, mas a desigualdade e a injustiga a ela associada. Desigual- dade econémica ¢ desigualdade de poder politico. Daj decorre a importincia da segregagao na andlise do espago urbano de nossas metrdpoles, pois a segregacio € a mais importante manifestagio espacial- urbana da desigualdade que impera em nossa sociedade. No caso das metrdpoles brasileiras, a segregagio urbana tem uma outra caracteristica, condizente com nossa desigualdade: 0 enorme desnivel que existe entre 0 espago urbano dos mais ricos ¢ © dos mais pobres. Transferido para o campo do urbano, a pre- missa dada passa a ter o seguinte enunciado: nenbum aspecto do espaco urbano brasileiro poderd scr jamais explicado/compreendido se nao forem consideradas as especificidades da segregacio social e econémica que caracteriza nossas metrépoles, cidades grandes ¢ médias, Da mesma forma, a segregagio urbana s6 pode ser satisfatoriamente en- tendida se for articulada explicitamente (e nao apenas implicitamente ou suben- tendida) com a desigualdade. Essa explicitagdo se d& desvendando-se os vinculos especificos que articulam 0 espaco urbano segregado com a economia, a politi € a ideologia, por meio das quais opera a dominagio por meio dele. a Estubos AVANCADOS 25 (71), 2011 37 Os avangos Destacamos, neste texto, seis aspectos nos quiais nossas reflexes sobre segre- gagao urbana (Villaca, 2009) se articulam explicitamente com a desigualdade e a do- minagio e avangam em relagio 4 maioria dos estudos brasileiros atuais sobre o tema: Elas avangam no sentido de: 1) ... negar a forma clissica de segregacao que se apresentaria sob a forma de circulos coneéntricos, com os mais ricos no centro e os mais pobres na peri- feria. 2) ... historicizar a segregagio. A falta de insercio his ponsiveis por varias das limitagées nas anilises atuais sobre segregagio urbana. 3) ... mostrar como se dé a relagdo entre a segregacio ¢ a totalidade das estruturas social ¢ urbana. Sem isso, os estudos sobre segregacio ficam incom- pletos e por isso inaceitiveis. 4) ... mostrar a relagdo entre a dominagao e a segregagao, esclarecendo as especificidades da dominagao através do espaco urbano, ou seja, mostrar © papel do espago urbano no proceso de dominagao. 5) ... abordar a segregagao, nao mais por bairro, mas por regi@o geral da ci- dade, essa abordagem traz um enorme potencial explicativo muito maior que 0 da segregacio por bairro, ¢ $6 ela é capaz de explicar as relagdes aqui indicadas 6) Finalmente, e em sintese, avangam no sentido de explicar a segregagio, ¢ nao apenas no de denuncié-la, descrevé-la ou medi-la. Orica é uma das res Os estudos tradicionais da segregagio (como os da sociologia urbana ame- ti s décadas de 1950 ¢ 1970), ¢ alguns produ mostram objetivamente (4s vezes, nem implicitamente) as relagdes entre, de um lado, a segregagio ¢ o restante da estrutura urbana, e, de outro, suas relagdes com os demuis aspetos da totalidade social, ou seja, com seus aspectos econdmi- co, politico e ideoldgico. A forma mais tradicional de estudo da segregagio urbana é aquela que aborda o centro versus periferia urbanos. Essa forma raramente € apresentada como segregagito nem € analisada sob essa 6ptica. Tem o mérito de nao ser por bairro, mas por regido urbana ou conjunto de bairros. Entretanto, limita-se fundamentalmente a uma descrigio. As abordagens sob a 6pti periferia, quando ultrapassam a descrig2o, limitam-se a denunciar a injustica, nao conseguindo explicar a segregagao nem articuli-la ao restante da estrutu- ra urbana da totalidade social. Além disso ~ e isso ja seria motivo suficiente para rejeité-la -, é falsa como descrigdo da segregacao, Segundo ela, em nos ana entre idos no Brasil, nao a centro versus metropoles (¢ também nossas cidades médias e grandes), a segregagio dar-se-ia segundo circulos concéntricos, com os mais ricos no centro ¢ os mais pobres na periferia. Essa falsa visio decorre da teoria dos cfrculos concéntricos da Escola de Chicago, do inicio do século XX. O Rio de Janeiro, por exemplo, sempre desmentiu essa visio, pois a Zona Sul nunca teve periferia pobre. Seja no inicio do século XX, tempo em que Ipanema e Leblon eram periferia, seja no tempo 38 EsTUbOs AVANCADOS 25 (71), 2011 em que Barra da Tijuca o era, seja hoje, quando o Recreio dos Bandeirantes 0 é. Favela incrustada na mancha urbana (como a Rocinha) nao € periferia segundo nenhum conceito do termo. Além disso, em Sao Paulo, Granja Viana, Alphaville ou Aldeia da Serra mostram que hé décadas existem areas mais ricas ndo s6 fora do centro, mas na periferia afastada. Abordagens recentes da segregagio Talvez a forma mai destacada de estudo da segregagio moderna s ja sua manifestagao sob a forma dos condominios fechados. Esses estudos — como a maioria daqueles sobre segrega¢io — nao colocam a segregagio num contexto histérico nem a articulam com o restante da estrutura urbana, como também, no mostram explicitamente (as vezes deixando apenas subentendidas) as arti- culagdes entre a segregagio e as esferas econdmicas, politicas ¢ ideolégicas da sociedade. Enfim, nao explicam esse tipo particular de segregagio, limitando-se a articulé-lo ao advento da seguranca, da violéncia urbana, dos interesses imobi- ligrios, da cultura e dos novos valores por esses criados ¢/ou divulgados Em que os condominios fechados se distinguem das tradicionais de segregagio, por classe ¢ por bairro, que existem ha mais de um século em nossas cidades? Em que se distinguem do Jardim América, Pacaembu ou Alto de Pinheiros? $6 no tocante & protegio contra a violencia? Aos controles de por- taria? A produgdo imobilidria? No tocante 4 novidade imobilidria, eles em nada se distinguem desses bairros hi 50 ou 80 anos. H poueas interpretagdes dessas novidades que ultrapassem as relagdes com os inter de um novo “produto” imobilidrio) ou com a questao da seguranga. Em que € por que esses aspectos sao algo significantemente novo? Claro que s20 novos. A questio é, insistimos, se sio significantemente novos. Em que € por qué sio irrelevantes ou relevantes? Como integrar sua anilise a processos socioespaciais, mas amplos? Como interpretar os condominios fechados superando a dentincia € 6s interesses dos moradores? Sobre isso pouco ou nada tem-se falado. formas es imobilidrios (a criagao Esses estudos — como muitos estudos urbanos - rem um fundo nao mui- to claro e nunca explicitado. E um fundo moral, ético, que destaca a injustiga. Quando destacam a opressdo ou a dominagao, fazem-no sob a Optica da injustiga. Como sua causa real nao € estudada nem claramente explicitada, ela passa ao leitor (0 que deve ocorrer também na cabeca de muitos dos autores) a ideia de que sua causa € a maldade, a gandncia ¢ os interesses mesquinhos dos homens. Nessa base ética esta o maior perigo de qualquer anilise social, as urbanas inclufdas. Isso jé foi denunciado ha mais de um século por F. Engels ao criticar os socialistas utépicos que criticavam 0 capitalismo com base na ética. Criticou-os por acreditarem que com esse socialismo despontava 0 reino da razio ¢ que com ele “a superstigio, a injustica, o privilégio e a opressio, seriam substituidos pela verdade eterna, pela eterna justiga, pela igualdade b: e pelos homemy” (Engels, s. d., p.19). A segregagio é, assim, vista por esses estudos sob a Optica da justiga e da razao e assim moralmente condenive direitos inaliendveis do ture? Estubos AVANCADOS 25 (71), 2011 39 Quais sao os limites dos estudos da segregagao por bairro, por classe social, ou daqueles que abordam os condominios fechados ou o centro versus periferia? JA mostramos antes que essa visio € falsa. A descri¢ao centro versus periferia nao permite, por exemplo, que se articule a segregacao com as estruturas urbana e social. Essa descrigio nao explica, por exemplo, por que o centro tradicional de nossas cidades cresce mais numa determinada diregi0 do que em outras (ou isso nada tem a ver com a segregagio urbana?). Pela propria légica do esquema centro versus periferia, o centro deveria crescer mais ou menos uniformemente em todas as direges. No entanto, hé mais de um século isso nao ocorre em nossas metr- poles. Nao explica ainda a articulagao da segregagdo com as esferas econdmicas, que se di por meio da atividade econdmica que maior interesse tem no espago ur- bano: a atividade imobilidria. Nao toca sequer nas articulagdes entre, de um lado, a segregacio e, de outro, o poder politico e a ideologia. Como tantas anilises segregacao, ela enfatiza — explicita ou implicitamente — a desigualdade como injustiga, nio deixando clara se ela é ou nao devida A maldade dos homens. E preciso ultrapassar nao s6 a descrigio, mas especialmente a explicagaio fundada em raz0es éticas € morais. Em obras anteriores, abordamos a segregacio por classes, mas no por bairros, mas por grandes conjuntos de bairros, ou seja, por grandes regides da ci- dade. Com isso abriu-se uma enorme possibilidade de explicagao e compreensio nio sé do proprio processo de segregacio, mas também com suas articulagdes com aspectos fundamentais da sociedade. da Descrever e explicar A diferenga entre descrever e explicar nio é simples varia de um grupo de ciéncias para outro; ciéncias exatas abstratas (matemética), ciéncias exate aplicadas, ciéneias da natureza ou ciéncias sociais. Vamos abordar apenas 0 caso das cincias sociais, de uma maneira simplificada, porém fundamental, e de um Ginico processo social: a segregagio urbana. Em que consiste explicar ou entender a segregagio urbana? Temos insis- tido que a abordagem da segregagio por regido da cidade tem um poder expl cativo muito maior do que sua abordagem por bairro. Isso porque ela permite uma melhor explicagao da estrutura urbana como um todo e de suas articulagao com 0s processos sociais fundamentais ¢ do proprio processo de segregacio. Simplificadamente, explicar qualquer processo social — a segregagao urba- na inelufda = é articuli-lo A totalidade social (os aspectos econdmico, politico ¢ ideolégico da sociedade) e a seus movimentos. E por meio dele mostrar como a segregagao se articula com a mais importante (mas nao a tinica) das manifes tages explicativas das transformagées sociais, ou seja, a dominagio social, que gera a desigualdade, especialmente acentuada no Brasil Nao basta, portanto, nem denunciar, nem medir a segregagio em nossas grades cidades e metrépoles, seja por bairros, seja por conjuntos de bairros. E preciso explicé-la o 40 EsTUbOs AVANCADOS 25 (71), 2011 A participagio do espago urbano na dominacio social Para haver uma boa interpretagio ou explicagdo de um proceso social, é preciso haver antes uma boa descrigao desse processo. Essa, entretanto, é uma condigio necessaria, mas nao suficiente para uma boa explicagio. Uma boa des- criggo nao leva necessariamente a uma boa interpretagao, mas uma mé descriga0 leva necessariamente a uma mi interpretagio, a no ser por coincidéncia ou acaso (0 que, cientificamente, ndo tem nenhum valor). No caso particular das cidades brasileiras, é indispensivel articular o papel da segregagio urbana nas produgio da desigualdade ¢ da dominagio sociais Isso porque a segregagio (em geral, ¢ em intimeras de suas manifestagdes “ofi- ciais”) é aquela forma de exclusio social ¢ de dominagio que tem uma dimensio espacial. Essa dimensio aparece, por exemplo, na determinacao, comum nos Es- tados Unidos até a década de 1970, de que os negros ocupem os tiltimos luga- res dos 6nibus (componente espacial), usem sanitirios separados (componente espacial), fequentem escolas separadas (componente espacial) etc. Nenhum estudo do espago urbano sera satis gregagio espacial urbana. Hi muitas décadas, a segregacio residencial vem sendo objeto de inves- tigagao por muitos estudiosos. Entretanto, nao sé as articulagdes aqui mencio- nadas ndo tém sido esclarecidas, como também apenas a segregacio tem sido estudada. fatdrio se nao entender a se- ‘sidenci Ha tempos estamos desenvolvendo a tese de que a segregagio deve ser da por regido da cidade (¢ nio por bairros) ¢ ultrapassar a segregagio residencial. Vamos aqui abordar essa ultrapassagem e analisar, também, a segre- gacao dos empregos, do comércio e dos servigos. O estudo das relagées entre espaco e sociedade é tio antigo quanto comple- xo. Nossa tentativa de enffentar essa complexidade levou-nos a simplificar 0 “lado social” e 0 “lado espacial” da andlise. Nasceu assim a ideia da regiao da cidade. O poder explicativo da segregacio ficard tio maior quanto mais simples ¢ profundo ele for, ou seja, quanto mais se conseguir sair do terreno movedigo que, em geral, envolve o estudo das classes sociais. Do “lado social”, dividimos entio a sociedade metropolitana (no caso, S¥0 Paulo) em apenas duas classes sociais que chamaremos: “os mais ricos” ou “as camadas de mais alta renda”, € os mais pobres ou os de ”mais baixa renda” Do lado do espaco, essa simplificagao teve suas consequéncias. Tendo em vista que qualquer metrépole tem centenas de bairros, a segregacao por bair- ro acaba perdendo seu poder explicativo, pois essa quantidade leva a andlise para um lado abstrato, jd que conduz 0 estudo a baitros ideais ou tipologias de bairros. Esses poderiam, entio, ser agrupados em regides homogeneas. Isso, entretanto, nao tem sido feito. Foi esse o caminho que exploramos ao analisar conjuntos de bairros ou regides urbanas. Inicialmente, vejamos como se dé a segregagio na capital paulista. analis. Estubos AVANCADOS 25 (71), 2011 41 Analisando distribuiga0 espacial das classes sociais no municipio de Sao Paulo, verifica-se que hd uma regiio geral da cidade onde ocorre uma excep- cional concentragao das classes de mais alta renda. Essa regiao ¢ integrada por varios bairros, das mais distintas classes sociais, porém a maior parte daquelas classes est concentrada nessa regido. Ela foi por nés chamada de Regio de Grande Concentragiio das Camadas de Mais Alta Renda. No caso de Sio Paulo, 6 seu Quadrante Sudoeste mostrado nas figuras 1 a 8. Essas figuras mostram a segregacio das camadas de mais alta renda do Quadrante Sudoeste de acordo com uma grande variedade de indicadores. Elas jf foram apresentadas em outras obras nossas.' Chamamos a atengio especialmente para © mapa que mostra clima na cidade (Figura 4). Até o clima — que supostamente nao seria obra dos homens ~ é mais ameno no Quadrante Sudoeste do que no restante da cidade Isso se deve ao fato de essa regido ter muito mais parques e ser muito mais arbo- rizada do que o restante da cidade (como também da metrépole). No caso do Rio de Janeiro, o clima nao € produzido (como em sio Paulo), mas as camadas de mais alta renda sempre se apossaram das regides ambientalmente mais favors s. Desde 0 final do século XIX, essa regiio é sua conhecida Zona Sul. O estudo da segregacdo das camadas de mais alta renda, ou dos mais ricos (c por oposigio, a das classes de mais baixa renda), encarado do ponto de vista de uma regito geral da cidade, permite as seguintes articulagdes: + Com os aspectos politicos: por meio da legislagio urbanistica, da atua s40 do Estado, especialmente sobre o sistema de transportes (produtor, como veremos adiante, de “localizagées”) ou da localizacao dos apare- Ihos do Estado. O Quadrante Sudoeste, enfatizado antes, € privilegiado tanto por esse sistema como por essas localizagoes. + Com os aspectos econdmicos: especialmente por meio do mercado da terra, formacio dos precos da terra ¢ pela atividade imobilidria. Essas sio muito mais dindmicas no Quadrante Sudoeste ¢ a terra ali tem prego mais alto (outras coisas sendo iguais). Basta olhar os cadernos de iméveis dos principais jornais de qualquer me- tropole brasileira para ver a concentracio da atividade imobilidria nas respectivas reas de concentragio das camadas de mais alta renda. A Figura 1 mostra que, no Quadrante Sudoeste, concentram-se as Areas com “nenhuma ou baixa privaga0” social (reas essas que respondem por 22,1% da populagio), numa pesquisa sobre Vulnerabilidade Social (Folha de S.Panlo, 23.2.2002, p.C-3) Segundo a fonte, o conceito de “vulnerabilidade social” desenvolveu-se ultimamente, fazendo parte, até mesmo, da Proposta de Carta Mundial do Di- reito & Cidade, aprovada no Férum Social das Américas, realizado em Quito, Equador, em julho de 2004. A Figura 1 mostra os distritos de menor Vulnera- bilidade Social do Municipio de Sio Paulo. 2 Esrupos Ava PADOS 25 (71), 2011 Fonte: Centro de Estudos da Metrépole (CEM) ¢ Centro brap), em pesquisa encomendada pela Secretaria da Assist Iciro de Analise ¢ Plancjamento (Ce- Social da Prefeitura de Sie Paulo. Figura I — Vulnerabilidade social. Pai eS Fonte: Cepid/Fapesp, Centro de Estudos da Metrépole (CEM) ¢ Centro Brasileiro de Anilise € Planejamento (Cebrap). Figura 2 — Distritos com no maximo 10% de negros — Censo 2000. ESTUDOS AVANGADOS 25 (71), 2011 4% Fonte: Centro de Estudos de Cultura Contemporinea (Cedec). A figura mostra esses dez distritos. Figura 3— Os melhores locais para jovens. Fontes. Defesa Civil do cipio de Sao Paulo ¢ “Ih Figura 4 — Clima: temperaturas no municipio. 44 EsTUbOs AVANCADOS 25 (71), 2011 Fonte: Feldman (1996). Figura 7 — Zoneamento 1972-2004. Zonas exclusivamente residenciais unifamiliares (Z-1). Fonte, Programam de Aprimoramento das Informagdes de Mortalidade no Municipio de Sio Paulo (Pro-Aim). Elaboragio: Secretaria Municipal de Planejamento (Sempla)/Departamento de Estatistica ¢ Produgao de Informagao (Dipro). Figura 8 — Niimero de dbitos por homicidio por 100 mil habitantes. 46 EsTUbOs AVANCADOS 25 (71), 2011 A Figura 2 mostra a distribuiga0 de negros na cidade. Ela mostra que, no Quadrante Sudoeste, esté concentrada a maioria dos distritos com menor popu- lagao negra. Neles ha, no maximo, 10% de negros (pretos e pardos, na termino- logia da pesquisa) (Folba de 8. Paulo, 21.9.2003, p.C-4). A Figura 3 mostra que, no Quadrante Sudoeste, estio localizados todos os dez distritos considerados os “melhores locais para jovens” (nota acima de 0,65 numa escala de 0 a 1: quanto mais alta a nota, melhor para jovens é a regiao). Nessa pesquisa, foram considerados “percentuais de populagio jovem, mi adolescentes e viagens por lazer, além de crescimento populacional, mortalidade por homicidios, escolaridade, indice de mobilidade ¢ rendimento familiar” (Re vista da Folha, 24.8.2003, p.6) A Figura 4 mostra que o clima, no Quadrante Sudoeste, € mais ameno que no restante da zona urbana do municipio. Nesse Quadrante, a temperatura varia entre 25 ¢ 29 graus, enquanto, na Zona Leste, varia de 29 a 33 graus. Nele a temperatura chega a ser 9 graus menor que na Zona Leste (Folha de S.Paulo, 15.2.2004, p.C-8). Nossa interpretagao é que isso se deve ao fato de 0 Qua- drante Sudoeste ser mais arborizado ¢ ter mais pragas ¢ dreas verdes que a Zona Leste, por exemplo. O fato nio tem relagio com a altitude, como se poderia imaginar. A maior parte dos bairros ao longo do Rio Pinheiros, e mesmo afasta- dos dele, como os Jardins América e Europa, Alto de Pinheiros e City Butanta, por exemplo (todos no Quadrante Sudoeste), tem a mesma altitude que a maior parte da Zona Leste. A Figura 4 mostra as Areas de Temperatura Mais Amena, excetuadas, evidentemente, as regides serranas da Zona Norte (Serra da Canta- reira) e do extremo sul do municipio. A Figura 5 mostra que, no Quadrante Sudoeste, esto concentrados todos os seis distritos com mais alto [ndice de Desenvolvimento Humano (IDH) do municipio. Numa escala de 0.a 1, sendo os valores mais altos representativos de melhores indices, esses distritos eram: Moema, com IDH igual a 0,884, 0 mais alto do municipio; Morumbi, com 0,860; Jardim Paulista, com 0,850; Pinhei- ros, com 0,833; Itaim Bibi, com 0,811; ¢ Alto de Pinheiros, com 0,801. Nesse Quadrante, estava também localizada a maioria dos distritos com IDH acima de 0,651. Esses distritos reuniam apenas 13,53% da populagao do municipio. Dentre esses, apenas os distritos de Mooca, Tatuapé e Santana estavam fora do Quadrantes Sudoeste. A Figura 6 mostra que 0 Quadrantes Sudoeste concentra a totalidade dos distritos com as mais altas rendas médias domiciliares (acima de R$ 3.000,00, em valores da época) segundo a Pesquisa Origem e Destino realizada pelo Metro em 1997. A Figura 7 mostra que, no Quadrante Sudoeste, estavam localizadas prati- camente todas as Zonas Z-1 (Zonas Exclusivamente Residenciais Unifamiliares) S do zoneamento que vigorou no municipio entre 1972 ¢ 2004 (Feldman, 1996, p.164-5). Segundo 0 zoneamento aprovado em 2004 nos Planos Regionais, a ESTUDOS AVANGADOS 25 (71), 2011 "7 absoluta maioria da Zonas Exclusivamente Residenciais (ZER) continuava con- centrada no Quadrante Sudoeste Embora com alguns distritos na Zona Norte, a maioria dos distritos com menor néimero de dbitos por homicidio por 100 mil (abaixo de 5) zada no Quadrante Sudoeste. tava locali- Com processos ideolégicos, por meio dos quais a classe dominante pro- duz e difunde ideias que visam esconder os processos reais de producio do espa- go urbano desigual, que nao é necessariamente centro versus periferia. Tendo em vista que este tiltimo € muito pouco abordado ¢ conhecido (apesar de sua grande importincia), vamos falar mais sobre ele. A ideologia domina 0 pensamento da maioria que o adota como verdadeiro. Trata-se de entender quem produz esse pensamento e com que finalidade. Daremos apenas dois exemplos, lembrando sempre que, sem a nossa abordagem da segregacio por regides urbanas, eles seriam impossiveis. O primeiro se refere & identificagao com “a cidade”, daquela parte da cidade de interesse da classe dominante. O segundo, mostra, além desse aspecto, também outro que chamaremos de “natu- agio dos proc iais”. O primeiro é ilustrado pela seguinte id nante: “A cidade do Rio de Janeiro esté comprimida entre o mar ¢ a montanha”. Nada mais falso. Isso vale apenas para a Zona Sul. Essa zona (a zona ocupada pela classe dominante) € assim identificada com “a cidade”. Assim, quando a prefeitura abre uma nova via na Zona Norte, ela est beneficiando a Zona Nor- te. Quando ela abre uma via na Zona Sul, ela est beneficiando “a cidade”. O segundo exemplo mostra os dois casos antes mencionados. A ideia do- minante é 0 centro da cidade esti se “deteriorando”. A deterioragio, ou apo- drecimento, é um processo natural que s6 ocorre com os seres vivos. Essa ideia pretende esconder o processo real rotulado de “decadéncia!” e que é de respon- sabilidade da classe dominante, mas que nao quer assumi-lo. A verdade é que a chamada “decadéncia” decorreu do fato de essa classe ter abandonado o centro, ‘ia domi- dele retirando suas lojas, escritérios, cinemas etc., e mesmo suas moradias, como as da Av. Sio Luis. Justamente a partir do momento em que o centro deixa de ser patrocinado pelas elites passa a ser patrocinado pela maioria popular, cria-se aideia de que ele esta se deteriorando. Mais ainda. Justamente quando a maioria toma conta do centro, cria-se a ideia de que esse nao é mais o centro da cidade, e que essa teria um novo centro. Esse ter-se-ia mudado para a Av. Paulista, ou para a Av, Faria Lima, ou para toda a regiao que inclui dessa avenida até o vale do Rio Pinheiros. Torna-se também dominante a ideia de que essa suposta decadéncia seria motivada pela velhice ¢ obsolescéncia dos edificios centras (deterioragao). Essa ideia tornou-se plenamente aceita pela maioria das populagées de nossas metrépoles. Se a idade dos edificios fosse uma importante causa da “decadén- cia” dos centros, o que seria dos centros de Roma, Paris, Berlin, Madri ou Lon- dres? A realidade € que a classe dominante considera que 0 centro que for sew (€ nao © da maioria) seré o centro da cidade. Hi mais de um século, a clientela 48 Esrupos Ava PADOS 25 (71), 2011 de alta renda vem abandonando o centro de Sao Paulo ¢ deixa seus “restos” para as camadas populares (As quais pertence hoje todo o centro “velho”). O deslocamento do centro de Sao Paulo ~ sempre na diregao de crescimento dos bairros residenciais dos mais ricos — pode ser tracado pelo deslocamento de ruas que sintetizam 0 comércio ¢/ou servigos das elites. Inicialmente a Rua XV de Novembro (até o final do século XIX) depois a Rua Direita, depois a Rua Barto de Itapetininga, depois para a Av. Paulista e parte do final da Rua Augusta, até chegar hoje 4 Av. Faria Lima, 4 Marginal do Rio Pinheiros ¢ 4 Av. Lufs Calos Bertini. Ja no final da década de 1940, prenunciando sua “decadéncia”, a Rua Direita tornou-se, nas noites de fim de semana, um tradicional ponto do footing dos negros. A produgio dessa ideologia seria impossivel sem a abordagem da segrega- sao por regiao da cidade Em outras oportunidades,? ja desenvolvemos varias consideragoes a respei- to dessas ideias, que fazem parte de um processo mais amplo de dominagio por meio do espaco urbano. Resumidamente, podemos jé adiantar, essa dominagao se da pela desigual distribuigio das vantagens ¢ desvantagens do espago produ- zido; essas vantagens ¢ desvantagens dizem respeito especialmente & manipula- gio, pela classe dominante, dos tempos gastos nos deslocamentos espaciais dos habitantes da cidade. 2 A estrutura urbana e os deslocamento espaciais A importancia que a segregagio por regiio apresenta para a compreensio da estrutura urbana é mostrada ao longo de todo esta segdo, mas vamos destacar apenas os seguintes aspectos, que mostram como: a) ... aabordagem da segregacio por regitio da cidade permite seu relacio- namento com toda a estrutura urbana, ao focalizar a inter-relagao entre a produ- gio do espaco urbano como um todo, com a segregacio das residéncias dos mais ricos (e, por oposigao, a dos mais pobres), com a segregacao dos seus locais de emprego ¢ servigos e finalmente com a dominagao por meio do espaco urbano. b).... ela faz aflorar novos possiveis tipos de segregacao problematizando seu conceito. E 0 caso da segregacio dos locais de emprego destacada neste texto A segvegacio dos empregos: 0 espaco Ao falarmos da segregacio e da localizagio dos empregos, estaremos fa- lando do espago. As ideias desenvolvidas a seguir sobre estrutura urbana e segregagio dos locais de emprego referem-se a $i0 Paulo, mas poderiam perfeitamente referir- se a Rio de Janeiro, Belo Horizonte ou Salvador. Acredito que 0 estudioso de cada cidade ou metrdpole brasileira nao encontrara dificuldade em fazer as necessirias adaptagoes. Essa possibilidade, alids, é uma outra esclarecedora van- tagem da abordagem da segregagao por regiao da cidade. Toda cidade brasileira acima da média rem uma regio geral segregada tal como a aqui descrita para Estubos AVANCADOS 25 (71), 2011 49 Sao Paulo. Ela existe no Rio, com sua conhecida Zona Sul, especialmente em décadas mais recentes, com o crescente advento da Barra da Tijuca como local de shoppings, servigos e escritérios em geral, e corporativos em particular. O mesmo ocorre com todas as Regides Metropolitanas do Brasil, como em Por- to Alegre (Independéncia/Moinhos de Vento), em Belo Horizonte (Lourdes/ Savassi), em Recife (Boa Viagem), em Curitiba (Batel), em Fortaleza (Aldeota), ou Salvador (regido do Iguatemi). Isso facilita muito aos moradores dessas me- trépoles a transposigio, para elas, das questoes aqui apresentadas. Iniciemos destacando que a localizagio dos empregos tercidrios apresenta um duplo interesse para a populagio que deles se utiliza; na maior parte dos casos (0s empregos que atendem o piiblico), cada ponto de emprego desse setor é no s6 um local de emprego, mas também um local de atendimento da popu- lagdo nas suas compras € nos seus servigos. Assim, a concentragao dos empregos tercidrios tem um duplo interesse, coisa que nao corre com o setor secundério, que nao atende 0 pitblico. Todas as nossas metrdpoles desenvolveram sua Area de Grande Concen- tragio das Camadas de Alta Renda. Como j& foi aqui mostrado, no caso da Regiao Metropolitana de $a0 Paulo, essa area € seu Quadrante Sudoeste (ver figuras 1 a 8, especialmente a Figura 1). Partindo do centro, situam-se nesse Quadrante os bairros de Higienépolis, Pacaembu, Consolagao, Av. Paulista, Vila Mariana, Aclimagao, Ipiranga, Sumaré, Perdizes, Vila Pompeia, Altos da Lapa ¢ Pinheiros, Jardins, Butanta, Morumbi e vizinhangas, Moema, Brooklin, Alto da Boa Vista, Granja Julicta etc. Para aqueles que pensam que af ests rout Si Paulo, lembramos que essa regido, incluindo os bairros populares nela contidos, no abrange nem 20% da populagio da Regitio Metropolitana, e que dela estio exclufdos as zonas Norte ¢ Leste (até Mogi das Cruzes), além de ABCD, Maué ¢ Ribeirio Pires, Guarulhos, Osasco, Carapicuiba etc. Dela estio também exclu- fdos, embora localizados fora do municipio, porém dentro do Quadrante Sudo- este ou suas bordas (confirmando nossa tese de direcdo tinica de crescimento), os bairros de Granja Viana, Tamboré, Alphaville ¢ Aldeia da Serra, No caso do Rio, a segregacio é ainda mais acentuada. Sua conhecida Zona Sul, da Gléria ao Recreio dos Bandeirantes, ¢ incluindo a Rocinha ¢ suas demais favelas, tem apenas 10% da populacio da Regiio Metropolitana A segregacio residencial tem sido muito estudada ha décadas. Vamos ape- nas acrescentar a cla a segregagio dos empregos ¢ dos locais de compras ¢ ser- vigos. Trata-se de uma abordagem tio particular quanto fundamental. Vamos mostrar 0 caso de Sao Paulo, destacando as concentragdes dos empregos da maioria (os mais pobres) e da minoria mais rica E sabido que a absoluta maioria dos empregos em nossas metrépoles é constituida pelos empregos do setor tercidrio. Nesse setor, trabalha a maioria dos mais ricos (a recfproca nao é verdadeira). No setor terciério, esti a grande concentrago dos empregos dos mais ricos, especialmente nos escritérios (das 50 Esrupos Ava PADOS 25 (71), 2011 varias profissdes liberais e ainda os das atividades modernas como © marketing, a publicidade, comunicagio, propaganda, informatica ete.) nas sedes das corpora- ges multinacionais, nos bancos e nas financeiras, nas sedes das empresas médias ¢ grandes das mais variadas naturezas, consultérios ete., ¢ ainda no comércio varejista. Esses empregos esto concentrados numa tinica drea, que € precisa- mente a mesma onde esto concentradas suas residéncias dos mais ricos, que € justamente o Quadrante Sudoeste da cidade. As ja mencionadas figuras mostram a segregacio dos mais ricos nesse Quadrante segundo varios indicadores. No Quadrante Sudoeste de Si0 Paulo, concentram-se nao apenas os locais de emprego dos mais ricos, mas também seu comércio (seus shoppings), suas escolas elementares ¢ secundatias, as escolas de judd ou natagio (que frequente- mente exigem também o deslocamento da mae), os saldes de beleza, os hospi- tais, os parques, os per-shops, as choperias e reas de diversio (Vila Madalena ou Moema), os médicos, as academias de gindstica, os dentistas... até suas igrejas € cemitérios! Enfim, toda uma infinidade de servigos prestados aos mais ricos Assim, os mais ricos minimizam os tempos de deslocamento para os locais de diversio, lazer, compras ¢ servigos de todos os membros da familia A maior parte dos mais ricos trabalha no setor tercidrio. A maior parte dos mais pobres também trabalha no setor terciétio. Os mais ricos produziram uma inica area de concentragio dos seus empregos (os do terciério). Entretanto, essa Grea é também uma drea de concentragio dos empregos dos mais pobres. $6 que para esses ela est longe de sera tinica. Os mais pobres tém varias reas de concentracao dos seus empregos, além de té-los (ao contratio dos mais ricos) tanto no setor secundério (industrias) como no tercidrio. Antes de prosseguir, destacamos que, quando se fala em “local do empre- go”, esti-se falando tanto do emprego da mulher como do marido; no caso dos mais pobres, como também no dos fillhos adolescentes (majoritariamente, caso dos mais pobres). Iniciemos pelos locais de concentragio dos empregos tercisrios. Os estabelecimentos do setor tercidtio sto extremamente espalhados pelo espaco urbano; basta pensar nas centenas de lojas, farmécias, oficinas diversas, bares e padarias, pequeno comércio etc. que hé espalhados por toda a cidade, aré mesmo nos bairros pobres. Hi, entretanto, dreas onde e excepcionalmente concentrados. Apesar de os empregos tercidrios serem espalhados, a classe dominante, que neles predominantemente trabalha, produziu uma tnica érea onde esses empregos Isso nao quer dizer que os empregos dos mais ricos ali predominem; pelo contririo. Além disso, a classe dominante também produziu a area de grande concentragio das suas moradias, onde ocorre igual- mente a grande concentragio de seus préprios locais de emprego, comércio ¢ servigos. Como ja foi dito, nessa drea ocorre também uma grande concentragao empregos sio io mais concentrados Estubos AVANCADOS 25 (71), 2011 St dos empregos dos mais pobres (pessoal de limpeza, garcons, vendedores, bal- conistas, auxiliares em geral, pessoal de mais baixa qualificacao, segurangas etc.) que nelas, alids, predominam. Além dessa, os mais pobres rém empregos tercidrios. Em primeiro lugar, destacam-se os “decadentes” centros principais de nossas metrépoles, que sd0, cada vez, mais, areas de grande con- centracao de empregos dos mais pobres. Nao vamos desenvolver aqui a questio da importineia do centro “antigo” para a estrutura urbana. No passado, ele jé foi um elemento fundamental. Hoje, jd nfio se pode afirmar isso com tanta se- guranga. Além dele, hi ainda as concentragoes representadas pelos subcentros de comércio ¢ servigos, todos eles populares, com diminuta participagio dos mais ricos (subcentros da Lapa, de Pinheiros, de Santo Amaro, da Penha ete.), € ainda os centros — todos eles populares — que sio os centros principais de muitos municipios da Regio Metropolitana, como o centro de Santo André, 0 de Sao Bernardo, o de Guarulhos, o de Osasco, o de Maud, o de Pos ete. Todos sio 1 s6 centro de empregos, como também centros de comércio e servigos. Note-se que essas sio apenas as dreas de grande concentragio dos empregos tercidrios, pois, como ji foi destacado, tais empregos sio muito espalhados. Isso dificulta ainda mais os deslocamentos moradia/trabalho dos mais pobres. ‘Vejamos agora as concentragées espaciais dos empregos industriais A patticipagio dos mais pobres sobre © total de empregos industriais é muito maior que a participagio dos mais ricos. Numa indtistria de tamanho médio ou maior, hi relativamente poucos empregos dos mais ricos para muitos milhares de empregos dos mais pobres. Assim, uma zona industrial é uma zona de concentragio dos empregos dos mais pobres, mas no € uma zona de con- centragao dos empregos dos maios ricos. A grande maioria dos que trabalham na indiistria é constitufda pelos mais pobres, Nao é verdade que a reciproca seja verdadeira, mas a parcela dos mais pobres que trabalha na indtistria € bem maior que a dos mais ricos. Assim, a segunda fonte de emprego, que € a indiistria, € muito mais importante para os mais pobres do que para os mais ricos. Daf decorre que a localizagao das zonas industriais € muito mais importante para os mais pobres do que para os mais ricos, que, aliés, moram afastados delas. A proximidade ao emprego industrial nao é disputada pelos mais ricos, por isso os mais pobres a disputam. Assim, sempre que possivel, os trabalhadores dessas Zonas procuram localizar-se perto das zonas industriais (especialmente ABCD, Guarulhos ¢ Osasco). Isso mostra por que a Zona Leste — que quase nao tem indistrias -, do Belém/Mooca a Mogi das Cruzes, é a grande regitio dos mais pobre da metré- pole. Servida por apenas uma linha de metré (incompativel com suas dimensoes demogrificas ) ¢ por um péssimo servico ferrovidrio suburbano, é a regiio dos “derrotados”, ou seja, dos que perderam a disputa (de pobre versus pobre) pela vérias ourras dreas de concentragio de io 52 Esrupos Ava PADOS 25 (71), 2011 proximidade do emprego industrial ¢ da maior concentragao de empregos terci- arios da metropole (que na época j era também sua maior concentragio desses empregos dos mais pobres: 0 centro “velho”). Dada a pobreza de sua popula- cio, também nao se desenvolveu na Zona Leste (a0 contririo do Quadrante Sudoeste ou do ABCD), uma grande rede de subcentros de comércio e servigos. ‘A Zona Leste jé teve, no passado, 0 segundo (depois do centro principal) maior subcentro diversificado da metrépole — o Bris. O proceso de “decadéncia” por que passou esse bairro, semelhante ao do centro principal, bem reflere o empo- brecimento da populagio da regito por ele polarizada ~ a Zona Leste ~ a partir de meados do século XX. Além disso, 0 Brés tornou-se muito central; por isso, consideramos que a Zona Leste se inicia no Belém/Mooca. Os mais pobres tém, entao, virias dreas de concentragao de seus empre- gos. Virias concentragdes tercisrias ¢ virias zonas industriais. Os mais ricos tém apenas uma. Ao comandar a produgao do espago urbano, a classe dominante comanda no s6 a sua produgio material e direta, seu valor € seu prego (comandando o mercado imobilidrio). Comanda também as agdes do Estado sobre esse espago (legislagao urbanistica, localizagio dos aparelhos de Estado, produgao do siste- ma de transportes etc.) ¢ ainda a produgao das ideias dominantes a respeito dele Tudo isso na verdade € 0 que especifica o espaco urbano. Os deslocamentos espacimis: 0 tempo Ao falarmos dos deslocamentos da populagao, estamos falando do tempo. Vamos falar muito da relagao espago/tempo mais adiante. Ja adiantamos, po- rém, que a otimizagio dos tempos gastos no deslocamento espacial (tempo) dos moradores das cidades é © mais importante fator explicativo da organizagao do espago urbano ¢ do papel desse na dominagao social que se processa por meio dele. A classe dominante manipula a produgao desse espaco priorizando sempre a otimizagio dos seus tempos de deslocamento. Os tempos gastos pelos habitantes das cidades em seus deslocamentos es- paciais hé muitas décadas vém sendo objeto de pesquisas muito desenvolvidas pela engenharia de trifego. Sio pesquisas que investigam os deslocamento da populacao entre os locais de moradia e de trabalho, compras, ensino etc., € ainda as raz6es desses deslocamentos. Em Sio Paulo, essas pesquisas vém sendo feitas decenalmente pela Cia. do Metré hé mais de quatro décadas, e em toda a Grande Sio Paulo. Sio as chamadas Pesquisas OD, ou seja, de Origem e Destino das viagens feitas pela populagao. As pesquisas OD partem de um espago urba- no dado. Mesmo quando b. ago urbano, essas se fazem a partir de tendéncias historias de comportamento do mercado, especialmente o mercado imobilirio. A partir dai, avaliam os mais diversos deslocamentos territoriais da populagao (incluindo os a pé) segundo os meios de transporte utilizados ¢ os motives dos deslocamentos (trabalhar, ir 3s compras, 4 escola etc. ). adas em projecdes das transformagdes do Estubos AVANCADOS 25 (71), 2011 53 Baseados na ideia exposta no inicio — a de que 0 espago urbano nao é um dado da natureza, mas € produto produzido —, estamos procurando mostrar como é produzido esse espago que, por sua vez, produz determinados desloca- mentos dos habiantes da cidade As pesquisas OD estudam deslocamentos que sempre partem da mora- dia: moradia local de emprego, moradia/local de compras, moradia /escola ete. Tendo em vista que os mais pobres tém varias concentragées de seus locais de trabalho, 0 que ocorre entio com os deslocamentos dos membros das familias mais pobres? O marido trabalha num local, a esposa em outro local diferente (em geral, no s6 longe de sua moradia, mas também longe do emprego do marido), os filhos adolescentes trabalham em outro local ¢ as criangas vo a uma escola ou a uma creche que, talvez, por sorte, esteja perto da casa ou dos locais de trabalho da mae ou do pai. A eventual existéncia de escolas ou creches perto das residéncias dos mais pobres nao chega a atenuar minimamente seus proble- mas de deslocamento. Embora as mais importantes viagens urbanas s de moradia aos locais de trabalho, hé outr gjam as que ligam os locais s viagens — tipicas das pesquisas OD — também importantes; sio as viagens moradia-escola, moradia-compras ¢ servigos, ¢ moradia-lazer. Entretanto, a importincia dessas outras viagens para os mais ricos é muito diferente do que o € para os mais pobre Tal como entre os mais ricos, também entre os mais pobres o deslocamen- to moradia-emprego envolve tanto o deslocamento do marido como o da mu- Iher. Mas a semelhanga para por ai. Entre os mais pobres, é maior o nfimero de trabalhadores por familia, pois o niimero de adolescentes que trabalha € maior que nas familias ricas. Por isso, seus deslocamentos, além de mais numerosos, sao também mais penosos. Isso produz um grande impacto sobre a familia mais pobre, especialmente sobre a economia familiar e sobre a satide dos seus mem- bros (cansago e redugao das horas de sono, por exemplo). Para os mais pobres. é pequeno o peso dos deslocamentos motivados pelo destino das criangas. Es evidentemente nao vio a aula de natagao, nem de judé, nem de balé. Vio com a mae para alguma creche ou escola que, por sorte, possa haver perto do emprego da mae, ou ficam em casa (com a avé ou com alguma vizinha), ou vao a pé a es- cola proxima. Além disso, os deslocamentos entre moradia-comércio e moradia- servigos (shopping centers, academias, parques, diversdes, cinemas, restaurantes, bancos, saldes de beleza, per-shops etc.) sio muito maiores entre os mais ricos do que entre os mais pobres. Portanto, para os mais ricos, alm dos deslocamen- tos moradia-trabalho, hi vérios outros também importantes, embora nao tanto quanto esses. Para os mais pobres, nao. Finalmente, cabe destacar — apenas no tocante aos deslocamentos urbanos — que os mais pobres nao sio penalizados somente pela estrutura espacial urbana que produz os locais de origem e destino de suas viagens. S20 também muito penalizados por outros fatores associados aos deslocamentos espaciais, especial- sas Estubos AVANCADOS 25 (71), 2011 55 mente a propriedade ¢ 0 uso de vefculos privados (os mais ricos tém dois, trés ou mais automéveis por familia, que os usam quase diariamente ¢ para as mais variadas finalidades)* e ainda pelos sistemas vidrio ¢ de transportes que, sabida- mente, sempre privilegiaram os mais ricos. O peso das obras urbanas referentes a transporte — tempo de deslocamen- to ~ € enorme. Nossos governantes ~ prefeitos ¢ outros — conferem uma es- candalosa prioridade as obras voltadas para o transporte privado individual, em detrimento do transporte coletivo piiblico. Em qualquer metrépole brasileira, o sistema vidrio da area de concentraga0 dos mais ricos é muito melhor e maior que no restante da cidade. No Rio, enquanto 90% da populagio é atendida por um péssimo servigo de trens suburbanos ¢ dnibus, o metré ja esté em Ipanema € em breve chegari ao Leblon ¢ & Barra da Tijuca. Em Sao Paulo, sio gastos billtoes de délares em rodoanéis, tiineis e via expressas, enquanto sua Regio Metropolitana tem um metré menor que o de Santiago do Chile (onde a cons trucio do metré € carissima pela necessidade de protegio contra terremotos), cuja populagio da Regiio Metropolitana € um quarto da de Sio Paulo. Conclusaio O controle do rempo de deslocamento é a forga mais poderosa que atua sobre a produgio do espaco urbano como um todo, ou seja: sobre a forma de distribuigao da populagao e seus locais de trabalho, compras, servigos, lazer etc. Nio podendo atuar diretamente sobre o tempo, os homens atuam sobre o espa- go como meio de atuar sobre o tempo. Dai decorrem a grande disputa social em rorno da produgao do espago urbano ¢ a importineia do sistema de transporte como elemento da estrutura urbana. Dai decorre também a segregag’o como um mecanismo espacial de con- trole dos tempos de deslocamento E assim que é produzido o espago que, por sua vez, produ origem e destino dos deslocamentos das populagdes urbanas. No Quadrante Sudoeste da Cidade de Sao Paulo, ocorre uma tripla se- gregacio dos mais ricos: das suas residéncias, de seus empregos (os do setor tercidrio) ¢ ainda do seu comércio e de seus servicos. Este texto apresentou nao sé uma visto mais ampla da segregacao socio- espacial tipica de nossas metrépoles, mas também uma visdo que mostra como © espaco urbano se integra 4 desigualdade socioeconémica ¢ © seu papel na dominagao social. A obscena desigualdade que existe na sociedade brasileira se manifesta na enorme segregacdo que se observa em nossas cidades. Essa segregagio cria um dnus excepcional para os mais pobres ¢ uma excepcional vantagem para os mais ricos. 0s pontos de Ao contratio do que se pensa, o tempo ¢ 0 espaco urbanos nao sito obras da narureza, mas produros do trabalho humano. No caso urbano, 0 tempo se manifesta fundamentalmente por meio do tempo gasto pelos moradores da ci 56 EsTUbOs AVANCADOS 25 (71), 2011 dade em seus deslocamentos espaciais. Como mostramos, esse tempo esti intrin- secamente ligado ao espago urbano produzido. Assim, tanto quanto o clima em Sao Paulo ou seu espago urbano, também o tempo nao é produto da natureza. No espago urbano, como em outras esferas sociais, a dominagao social se faz mediante desigual distribuigao, entre as classes sociais, dos frutos do traba- lho. Notas 1 Para que as Camadas de Alta Renda nao sejam caracterizadas ~ como diz 0 nome — apenas pela renda, mas também por outros indicadores, repetimos aqui (acrescen- tando apenas do mapa referente a homicidios) figuras que j4 aparecem em nosso site () no texto As ilusdes do plano diretor, ¢ também, no mesmo site, na pesquisa realizada juntamente com a Profa. Dra. Silvana Zioni (O transporte sobre trilbos na regiao metropolitana de Sao Paulo), hoje docente da Universidade Federal de Sto Paulo. 2 Cf Villaga (2009, espec. a partir da p.311), ¢ ainda Souza et al. (1999, p.221). Para as relagdes entre a segregacao e a ideologia ¢ © poder politico, ver também nossos textos sobre © Rodoanel, no site 3 Em 1997, cerca de 80% da populagao integravam familias com renda familiar inferior a 20 salirios minimos. Embora a pobreza tenha diminuido nos iltimos anos, a desigual- dade na distribuigio da riqueza, ou seja, entre os rendimentos do trabalho ¢ os ren mentos do capital (nd confundir com a desigualdade de salirios aqui mencionada), tem se alterado pouco. 4 Por mais que se difunda a ideia (0 discurso que esconde a realidade) de que “hoje em dia todo mundo tem automével”, a verdade ¢ que a uma violenta desigualdade de riqueza corresponde também uma violenta desigualdade no uso de automoveis, celula- res, televisores, geladeiras, computadores etc. 5 Na pesquisa que fizemos juntamente com a Profa. Dra. Silvana Zioni (ver nota 2), foi mostrado que, desde que comecou a funcionar, o Metrd tem atendido, crescentemente, as populagdes ¢ os bairros do Quadrante Sudoeste. A propria prioridade dada ao Metré em detrimento da modernizagao das ferrovias de subiirbio mostra a prioridade dada 3 populagao mais rica. Enquanto na Arca Metropolitana de Sao Paulo os poderes estadual € municipal gastam bilhoes em obras para o automével (tiineis sob o Rio Pinheiros ou sob o Parque Ibirapuera, ¢ intimeros taneis menores, rodoanel, alargamento das mar- ginais etc., além de obras biliondrias anunciadas, como um tiinel de varios quilémetros ligando a Ay, Roberto Marinho & Rodovia os Imigrantes ¢ novas vias expressas para a cidade). Referéncias ENGELS, F. Do socialismo utépico ao socialismo cientifico. Sio Paulo: Global, s. d. FELDMAN, S. Planejamento ¢ zoneamento. Sto Paulo 1947-1972. Sio Paulo, 1996, ‘Tese (Doutorado) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Sio Pau- lo. ESTUDOS AVANGADOS 25 (71), 2011 57 SOUZA, A. de et. al. Metrépole ¢ globalizagao. Efeitos do espago sobre © social na me- trépole brasileira. Si Paulo: Cedesp, 1999 VILLAGA, F. Espaco intra-urbano no Brasil. Sto Paulo: Studio Nobel, Fapesp, Lincoln Institute, 2009. RESUMO ~O texto se inicia com a ideia de que 0 espaco urbano nao é um dado da natu reza, mas um produto do trabalho humano. Propée entio uma nova maneira de abor- dar a segregasio urbana, utilizando para isso © caso da cidade de So Paulo, Mostra, entretanto, que essa nova abordagem vale também nao sé para a Regio Metropolitana de Sio Paulo, como também para todas as demais Regiées Metropolitanas do Brasil clarece os avangos por ela possibilitados, a saber: tanto o relacionamento da segregacio com a estrutura espacial urbana como um todo, como seu relacionamento com todos os componentes da roralidade social. Nesse sentido, fiz uma andlise da segregacio es pacial dos empregos da populagio na cidade de Sie Paulo, mostrando a relagao entre a segregagio residencial e a segregagio dos locais de emprego, bem como a relagio dessas segregagdes com a desigualdade ¢ a dominagio sociais. Finalmente, mostra a relagio entre a produgio social do espago e a produgio social do tempo, mediante anilise da relagio entre o espago urbano ¢ 0 tempo gasto pelos moradores das metrdpoles em seus deslocamentos nesse espago. Patavras-crave: Espago urbano, Segregagio urbana, Desigualdade social, Metrépole brasileira, Dominagio social Agsi.acT~"The paper starts with the idea that urban space is not a product of nature but of men’s labour. Ir proceeds presenting a new way of focusing and analyzing urban s gregation, using the city of So Paulo as a case study. Through several social indicators, presented in 8 illustrations, it shows urban segregation in Sto Paulo. It shows however that this new way also applies to any Brazilian metropolitan area. Important aspects sho- wn by this new way are: on the one hand, the possibility it offers of analyzing the rela- tionship between urban segregation of residences, working places and the overall urban. spatial structure; on the other hand, the possibility of analyzing the relationship betwe- en urban segregation and the social inequality which prevails in Brazilian society as well as with social domination. It finally shows the relationship between human production of urban space and human production of time and the importance of the former. Kerworps: Urban space, Urban segregation, Social inequality, Brazilian metropolitam areas, Social domination. Flavio Villaga & professor aposentado de Planejamento Urbano da Faculdade de Ar- quitetura e Urbanismo da Universidade de Sio Paulo (FAU-USP). @ — flavila@uol.com.br Recebido em 10.2.2011 ¢ aceito em 23.2.2011 58 EsTUbOs AVANCADOS 25 (71), 2011

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