You are on page 1of 6
Os saberes sobre a cidade: tempos de crise?” Christian Topalov Tradugio de Maria Cristina da Silva Leme Revisto de Jorge Oseki © titulo desta comunicacdo utiliza 0 termo “crise” Foi mia Sugestio dos organizadores deste congresso, mas foi também uma como- ddidade que voluntariamente adotet para fazer rer que ira falar de um assunto importante. E preciso, entretanto, admitir uma evidéncia sempre renovada e sempre esquecida. Cada Epoca tem, de tempos em tempos, necessida- de de se pensar, ou pelo menos aqueles que por profissio produzem idéias tém necessida- e de pensar sua época, como radicalmente nova, Estamos sempre face ao ‘‘sem prece- dente”. De Forma eada vez mais permanente, vivemos “uma virada””. Metafora perigosa, porque a geometria sugere que a longo praizo fu se faz ziguezagues ou se acaba por girar fem elrculos.. ‘Uma das formas desta representacio do pre- Sente como nunca visto se exprime através do vocabulério da “crise”: uma ordem de coisas que conhecemos ou cremos conhecer €, portanto, uma ordem de palavras se des- fazem, sem’ que os tracos da ordem que The seguem sejam ainda legiveis. Ha, ent, ur- sgéncia de pensar 0 novo e escutar aqueles ‘Que so pagos para isso. Aparecem duas de- mandas insistentes dos produtores de repre- Sentagdes eruditas, ligadas, por um lado, Posigdo que ocupam face ao restante da so- ciedade e, por outro, as rivalidades intelec- tuais, aos processos de formagio e contesta- ‘e20 de legitimidades no interior do campo Social que constituem, A no¢io de “rise urbana” me parece set uma ilustragao gritante deste fendmeno, Ho- je se ha uma crise urbana € porque existe luma crise econOmiea hi dez ou quinze anos airs, porque havia uma “rise de cresci- mento". A Grande Depressio dos anos 1880 fez nascer uma ci€ncia da “‘degeneragao ut- bana” na Inglaterra e os “roaring twenties” produziram um estudo critico da aberragdo das “cidades-dinossauros” nos Estados Uni- dos. A cada época, os especialistas da cida- de ¢ do territorio podem, de fato, mobilizar sem risco uma terminologia da “rise” para ‘enunciar a urgéncia de uma “questo urbana’ Estas observagbes introdutérias t&m um obje- tivo muito simples: indicar 0 objeto e método desta comunicagdo. Nzo quero dizer que no exista hoje, novamente, ou sob novas formas, tuma crise da cidade e do territério, Podere- ‘mos discuti-ia e este congresso nao deixara de 9 fazer. Quero simplesmente sugerir que, a0 fazé-lo, guardemos « meméria dos discursos passados de nossas disciplinas e que, se deve- ‘mos nos repetir um pouco, que ao menos NOs © saibamos, E para isso, também, que pode servir a historia. Meu objetivo esta noite & portanto limitado. Nao pretendo desenvolver tum debate sobre a crise na sociedade, mas sobre a crise eventual de nossa pequena comu- nidade de produtores de representasdes cientficas! sobre a cidade e o territério, em sintese sobre a crise de nossos conhecimentos. Parece-me que esta crise existe realmente, Des- ta vez, a encenagio do drama, assegurada pe- Jo uso do termo “rise”, nfo & de todo inade- quada. O que se desfaz hoje nd sio apenas os modos intelectuais de ontem, & uma constru- Ho hist6rica, muito antiga, da relagao entre Saberes e poderes nos dominios que nos inte- ressam, Creio que é necessaria uma perspecti- va temporal longa para medir a amplitude das mudangasem curso: um séeulo, outalvez mais. Com infinitas variantes ou através de multi- plas controvérsias, nossas disciplinas e seus paradigmas se edificaram sobre uma base co- mum: 0 elo estreito entre o discurso cientifi- ‘co ¢ progresso social, entre os saberes sobre cidade ou o territorio © um projeto progres- sista de racionalizagao. Creio que este elo festd em vias de se dissolver e, portanto, a base de toda esta construcdo se desmanchar. * Contertncespreetads no IV Encontro Nacional ds ANPUR,Salraor, 2 de mao de 19 22 Sendo, talvez, um pouco enfatico, diria que tudo se passa como se um longo perfodo his- ‘rico estivesse em vias de terminar. A ofen- siva praticae intelectual das foreas que deno- rminamos de ‘‘mercado" consezuiu, de fato, Aestruir,tjolo por tijolo, uma casa que com preendia muitas moradias. Entre seus cons- trutores e habitantes existem aqueles que, @ partir das tltimas décadas do séeulo XIX, tém por oficio decifrar a ordem escondida sob a desordem urbana e demandar uma in- tervengao consciente da sociedade sobre 0 cur- so “natural” das coisas, Deste ponto de vista, toda uma série de cor- rentes intelectuais que se colocavam antes co- ‘mo adversirias irredutiveis se encontram si ‘multaneamente desmobilizadas. Sua ma sor- te comum sugere que estes irmtos inimigos pertenciam & mesma familia, & 0 que gostaria de mostar agora: inicil- mente, enlatizar a relagdo estreita entre a cigncia urbana ¢ 0 projeto de uma ordem espacial; em seguida, desenvolver duas eran- des dimensdes desta tiltima, como ordem pro- utiva e como ordem politica; enfim, invo- car algumas das estratégias socias e intelec- tuais que estavam a nossa disposicio, para realizar o projeto fundador de nossas cién- cias. A questo sera entio saber 0 que nos resta hoje. 1. Ciéneia urbana e ordem espacial Hi algum tempo jé a cidade se tornou ob- jeto da cigncia. Deixemos de lado 0 longo Periodo, apds a segunda metade do séeulo XVIII, quando se constituiram saberes par- ciais sobre as sociedades urbanas com a es- tatistica sanitéria, a epidemiologia, a erimi- nologia ambientalista, a observagdo sistem fica dos cortigos ¢ de seus habitantes. To- ‘memos apenas, como ponto de partida, a emergéncia de Saberes sobre 2 cidade como ‘objeto global, como organismo, ou ainda, para utilizar um vocabulério um pouco ana. rénico, como sistema. Entre os precurso- res, Cerda, euja Teoria geral da urbaniza- 40 foi publicada em 1867. Mas 0 momento Aecisivo € posterior: s40 os anos 1900-1910 quando aparecem simultaneamente na Gri Bretanha o “city survey” ¢ 0 “town plan ning”, na Franea, a ‘‘ciéncia das cidades”” © o“‘urbanismo”, nos Estados Unidos, o “city planning”, que’ precede em mais de uma dé- cada a "human ecology”. Os saberes sobre @ cade: tempos de ens? © que marca desde a origem estas disciplinas aiprocura de uma ordem econdida Sob a lesordem aparente, a0 mesmo tempo que a efinigao de meios para remediar esta desor- dem. Escutemos os autores do Regional Plan of New York, primeiro estorco de estudo sis- temético de uma grande metrépole, langado em 1921 com o apoio da Russel Sage Foun- dation. Vejamos © texto do inglés Thomas ‘Adams, um dos fundadores do movimento Garden City e que ditigiu o projeto: (Gu) Para 0 observador superficial, a destinagto tio solo a seus diferentes usos parece tr sido feta plo Chapeliro Matuco do cha de Alice. Alguns, {nire ar mas pores, vver em corigs, em terre nos bem loclizados ede grande vale”). dois passor da Bolsa de Valocs,o a et lmpreenado pelo aroma das torefagdes deca, a cem tetsos {Se Times Square ha © mau checo dos matadou fos. Tal stuagto € um ultraje & ordem, Tudo pat rece estar no lugar errado. Temos vontade dear omar esta clcha de retathose de colocar as ct fs em sts devidos lugares” Duas observacdes sobre este pequeno texto ‘do qual podemos encontrar dezenas de exem- plos semelhances em diversos lugares ¢ em Aiferentes momeates, Em primeiro lugar, a ciéncia das cidades nas. ce de uma irritagao que dé lugar ao enuncia do fundador de uma “questo urbana’: qual quer que seja a forma como é caractetizado © mal de que a cigncia deverd se ocupar, tratar-se-a sempre de recolocar as coisas em seus lugares. Em outras palavras, trata-se de instaurar uma ordem espacial nova, meio ¢ resultado de uma nova ordem social Em segundo lugar, os termos pelos quais a realidade ¢ analisada ou simplesmente descri ta designam implicitamente (como se em ne gativo) um molde desta ordem a ser gestada. A desordem € a imagem invertida de uma ordem escondida, ainda potencial, e que * cigneia urbana e'uma politica experimental Sevem tornar real Pairick Geddes, biélogo autoditada, autor de Cities in evolution, um dos principais inspi- adores de Lewis Munford, exprime isto mui- to bem em uma palestra & Sociological So- ciety de Londres, em 1908: ‘(...) até para econhecer o que 6 anormal, € mais ainda para remedif-lo, nos devemos conhecer alg ‘ma coisa do curso normal da evolugao".” Com outro vocabulério ¢ quase trés quartos de século mals tarde, pode-se ler em Manuel Castells, grande revolucionario na época: *O trabalho te6rico realizado (...) permite uma 2 fe — | capa Deon nt 24-191 | reformulagdo das questdes formuladas em uma Derspectiva que ajudaria a criar as condig®es Ge seu tratamento cientifico e de sua supera- Gho social, através de uma pratica politica justa™* Estes dois textos me parecem se apoiar em dima base epistemoldgica comum: uma re presentagdo do progresso © do método pré- fico que conduz ¢ define as categorias fun- damentais da analise centifica. E toda a di- erenga e toda a semelhanca entre a ciéncia progressista moderna e a utopia. Os cientis- Tas. ao contrario dos utopistas, sabem que 0 Social nasce do social e que a aco deve obe- ever as leis da realidade se pretendem per mitir que ela seja modificada. Mas, como os opistas, os cientistas forjam categorias de ldeserigdo € de anise que petmitem repre- Sentara realidade atual em sua relagdo ne- tessiria com aquilo que se quer que ela se torne. Em outras palavras, os modelos de {nteligibilidade sao estreitamente relaciona- dos com tum modelo de sociedade. Creio que se pode mostrar, no detalhe, que tate elo intimo entre © momento cognitivo © © momento prético € constitutive de nossas ‘isciplinas. Ele permite dar conta historica- mente do cardter variavel de suas fronteiras, Segundo épocas e paises, de seus paradigmas, fassim como de seus instrumentals, desde téc- hicas de pesquisa de campo até categorias estatisticas. Se esta proposigdio tem sentido, entao se des- faz a oposigdo entre ciéncia e ideologia, en- tre pesquisa bisica e pesquisa aplicada, en- ire epistemologia ¢ historia das disciplinas. Ou ainda, estas dicotomias que sio reais, ‘dado que S40 formuladas por atores, podem flag mesmas se tornarem objetos de uma his~ {ria social. [Ew me referi a um modelo de sociedade, e até ‘mesmo a uma utopia fundadora, que estaria, ha propria base das categorias da prética cien- tifiea, Este vocabulério pode causar conf So. De fato, 0 modelo em questo no cai do céu, ndo'é arbitrario © ndo depende de ‘uma pura historia das idéias. Ele depende da historia social da producdo, das representa ‘g6es cientficas e, em particular, da historia 0 proprio mundo da ciéncia em si e de suas relagdes com a sociedade. E com esta hipéte- se que retomo a “citncia da cidade” e que ostaria de interrogar a0 mesmo tempo nos- Sas origens e a fonte de todas as nossas ale- arias e de todos os nossos problemas. Hi} 20 {A cigncia urbana, ao se constituir no inicio do século, esta desde logo ligada a uma pré- tiea, o planejamento urbano. Ela Ihe fornece sua lepitimidade, seus conceitos, sua metodo- Togia e seus especialistas. Gracas a esta nova disciplina que esto em vias de inventar, os pais-fundadores se emancipam de suas pro- fissoes de origem, em que tinham, em geral, ‘um estatuto subordinado: médicos que se tor hharam inspetores sanitarios, engenlieiros em: pregados pelas municipalidades, arquitetos for- fads na pratica ou arquitetos desprovidos de relagdes pessoais que assegurassem uma Clientela, assistentes socials. Mas ao mesmo tempo, eles conservam suas ligagbes originais com o meio mais amplo onde se formaram ¢ ‘do qual fazem parte, aquele dos reformado- res sociais. De fato, no € suficiente reivindi- car uma legitimidacle cientfica,€ preciso tam- bbém aleangar uma legitimidade social que thes seta concedida pelos grupos dominantes que testo procurando definir as formas de uma nova ordem social mais produtiva e menos ‘conflituosa. Nao esquecamos que o titulo ori ginal do livro de Howard, Garden cities of tomorrow, reeditado em 1902, era, em 1898, Tomorrow. A peaceful path to real reform. (Amanba. Um caminho pactfico para uma verdadeira reforma social). |As relagdes entre os novos especialistas eo meio reformador nao sio destituidas de ten- S0es, Os candidatos & profissionalizacio de- Sejam se libertar da tutela estreita em que feram mantidos até aquele momento por seus “patrOes™, a burguesia esclarecida. Eles in ventam unta profissio que consiste em fazer nnascer um objeto da ciencia e da pritica, a cidade como totalidade, e em aplicar neste objeto os meios racionais de anise e de in- fervengiio. Mesmo que a maior parte deles Seja prudente na delimitagao de suas estraté- fias cognitivas, em fungSo dos limites fixa- dos pelas demandas de sua base social, cles ‘fo inevitavelmente conduzidos a entrar em onflito com certos interesses em jogo, inclu- sive os econdmicos - por exemplo, uma parte {dos proprietarios imobillérios rentistas ou as ‘companhhias de servigos urbanos. Em muitos pases, eta estratégia de “auto hhamiagao"" €conderida em um contexto de fmplagio das competéncias das administa- Goes locals centras em matéria de ordena- S40 urbana, De forma natural, e geralmente Sem dogmas # prior! sobre o papel do Esta- do, uma boa parte dos homens da ciéneia {urbana tornamse adminisradores ou experts 1 servigo dos aparelhos governamentais. Es- fe movimento tem momentos de aceleragao espetacular no decorrer da primeira guerra ‘mundial, na depressao dos anos 30, apds a segunda’ guerra e no periodo de reconstru- ‘80 que Se segue. © paradigma desta nova ciéncia urbana se ‘apdia nas seguintes proposigdes: 1. A cidade pode se tornar num fator de progresso, Para o discurso dominante do lltimo quarto do século XIX, ela se cons- tituia em um mal em si. Precisamente por acreditar que se dispoe entao dos meios cientificos e téenicos para controlar a ur~ Danizagao, esta mudanca de perspectiva se toma possivel. O desenvolvimento ur- bano 6 analisado como evolueao de uma série de Fungoes. Cada uma delas respon- de a uma necessidade do individuo ou da coletividade, seja esta nevessidade perce- bida ou nao pelas populagdes (como as de habitacdes salubres) ou pelas adminis- {rages municipais (como as de sistemas racionais de transportes). Enquanto obje- {0 de cigncia, as funcoes urbanas s80 ob- jetivas podem ser traduzidas por nor- mas (standards). 2. A cidade é um organismo, ou um sistema, ‘onde o bom funcionamento dos elemen- tos, depende do bom funcionamento do cconjunto e vice-versa. A ciéncia das cida- ‘des tem por objeto este sistema, 0 estudo de suas leis, 0 exame de suas patologias e ‘a definigao de como remedié-las, a plani- ficagdo sendo o primeiro das remédios. 3. A citncia das cidades apoia-se sobre um ‘método experimental concebide sobre o mo- delo da medicina: ela € arte ao mesmo tempo que eigncia, Se os prineipios raci nis da organizagao urbana slo universais, sua coneretizagio é sempre singular. A citn- ia repousa sobre a pesquisa, cla é um ddiagnostico e um prognéstico. Ela formu- la suas prescrigdes de forma que as leis de ‘desenvolvimento do organismo urbano pos- ‘sam ocorrer sem entrave. Ela determina ‘com preciso as fontes da desordem: os interesses econ6micos imediatos, a buro- ‘racia a submissd0 dos politicos a seu elei- torado, os modos de vida inadlequados das popuilagdes, Tantos os alvos para a acto Feformadora quantas serdo as disciplinas- irmas da cigncia urbana: planificagao eco- ‘ndmica, ciéncia municipal e cigncia polit ca, sociologia ¢ eugenia _____ os sabores sobre a cidade: tempos de ies? ‘Acitncia regional, que naseealgumas décadas snais tarde, apola-st nos meson fundamen: tos, Mudar aécala da anise €madar acca. inde um projeto racionalzador inalterado ‘Fraga as fronteiras das tepies,hierarquiza? 2 cidades em rede, desethar as esruuras tbanas, étamo descrever uma realidade co. mmo iar uma norma. E enunciar no que co Siste uma "boa" reido, um desenvolvimento {uulibrado e demunciar as organtzagdes ad- fuistrativasultrapassadas, os comportamen: tos econdmicos etrogados ou inadaptados Estas formulagbes podem parecer um pouco obsoletas. Seu conteiido paradigmatico ainda @ atual na medida em que ele ressurge duran- te quase um século nos voeabulérios cienti £08 € doutrindrios os mais diversos. [Em todos os casos tratava-se de instaurar uma ‘ordem espacial, que deveria desdobrar-se em iresso social) e uma nova ordem politica (ga- Tantia do progresso democratico). £ 0 que desenvolvo na segunda parte, 2. Ordem espa ordem politica , ordem produtiva, Por falta de tempo, enfatizarei apenas um aspecto da relacdo entre racionalizagao urba- nna e racionalizagio industrial. No inicio do século, os reformadores sociais sto confrontados, nas metrOpoles dos paises industrializados, com uma realidade urbana que evoca por diversos tragos aquela de pai- ses periférioos hoje. As grandes cidades que ‘os abeecavam ficaram & margem da prime! ra revolugao industrial - a da industria tx til, da metalurgia pesada, da siderurgia. Seu tecido econémico, 2 parte os negocios, as finangas ¢ 0 grande comércio de consumo de luxo emergente, é formado por uma infi- hidade de pequenas empresas. A maior par- fe delas estd solidamente integrada a uma divisao de trabalho dominada pela 1bgica ca- pitalista, porém a forma produtiva que The E pressuposta estd ausente. Por multiplas ra- 2oes, ligadas principalmente as capacidades de resistencia ao assalariamento que a gran- de cidade propicia @ populacao trabalhado- 1a, a fabrica nao existe na grande cidade, ou pelo menos é bastante marginal. ‘Ora, quando nasce a ciéncia urbana, a fbr cea é cada vez mais genericamente pensada Como 0 lugar tipico e a forma necessiria de a 2 Espapo & Debates n? 34-1991 uma ordem produtiva moderna. Esta crenga pode ser vista entdo como um critério fu fneatal de diferenciagao entre progressistas © Conservadores. Se os segundos consideram a ‘grande indiistria como uma aberragao ined ‘moda 2 qual possivel e necessirio por um term, o8 primeiros véem nela o futuro da hhumanidade. Deste ponto de vista, o patro- rato paternalista das industrias rurais e as corporagdes de oficios das grandes cidades fstdo do mesmo lado ¢ se opdem tanto as antecipades proféticas de Marx, quanto aos patrbes esclarecidos das novas ‘indistrias & Seus engenheiros, notadamente um certo Ta- ylor. Quanto aos operarios das metr6poles, eles fogem das fabricas para as oficinas e, quando podem, deixam de ser assalariados para trabalhar por conta propria Neste conflito, a ciéncia urbana nascente to- ma claramente partido. Sé6 0 desenvolvimen. to do sistema fabril permitiré realizar dois de seus principais objetivos: por um lado, des- congestionar as grandes cidades e descentra- lizar as indistrias para as periferias ou cida- des satdlites; por outro lado, separar de for- ma precisa no espago zonas de trabalho © zonas de residéncla. Para por fim & desor- dem urbana - da qual os bairros populares ‘onde se misturam cortigos e oficinas so 0 simbolo - a esperanca esti no desenvolvimen- to plancjado da expansio urbana. ‘A partir da primeira guerra mundial, a mets fora da cidade-fabrica se superpde & metdfo- +a do organismo urbano. Sob este ponto de vista, 0s arquitetos do movimento moderno sto pioneiros, em particular Toni Garnier em 1907 com seu projeto para a “cidade indus- trial”, seguido por Le Corbusier que intro duzird a nocdo de “maquina de habitar”” em 1926. Este vocabulaio difunde-se rapidamen- te no interior da ciéncia urbana. Assim, 0 turbanista francés Jaussely define em 1922 a “organizacdo econdmica das cidades como uma espécie de “taylorizacao'em grande esea- Ja de uma enorme oficina’”. Alguns anos mais tarde, 0 Regional Plan da Russel Sage Foundation afirma que ‘‘o teritorio de Nova York € seus atredores pode ser comparado ao piso de uma fébrica. O planejamento ional indica 0 melhor uso deste piso - a adequacto das areas aos usos"”* Esta visio, que se antecipa amplamente 20 desenvolvimento da industria, inspirara por ‘muito tempo as cigneias urbanas e regionals Com poucas modificagdes, cla sobreviverd & substituicdo da ideologia industrial pela ideo- Togia da sociedade pds-industrial. 2 De todo modo, a orem urbana que a nas- cente ciéncia da cidade procura nfo ¢ somen- te uma ordem produtiva, mas antes, prova- vvelmente, uma ordem politica, ‘Ja hd algum tempo, a cidade era sin6nimo de civilizaeao. Fla era 0 lugar da ‘‘urbanidade””, qualidade particular das classes dominantes desde que elas tinham deixado de residir nas suas tefras, Mas € somente a partir do inicio do séeulo XIX, logo depois que os “‘antiqua~ ros" inventaram a tradigao “eléssica”, que ‘cidade (sto é Atenas e Roma) torna-se tam beri o lugar de nascimento do cidadao (cito- vyen, citizen). A partir do fim do “bom selva- gem” do Luminismo, os mitos fundadores dda cidadania passam a ser urbanos. Do historiador francés da “cidade antiga’, Fustel de Coulange nos anos 1860, & Max Weber nos anos 1910, se desenvoive uma representasio da cidade como berco da de- mocracia. E claro que este discurso dé lugar 4 numerosas produgdes cientificas principal- mente da parte de juristas ou de historiado- res que estudam a5 origens do direito bur- ‘gues (vocabulario que é também 0 de Mars) © a revolugdo das comunas da Idade Média nna Europa, Esta nova mitologia cientifica das origens no pode ser separada do discurso sobre a dege- nerescéncia urbana que Ihe & contemporaine. ‘A cidade, que deu origem ao individvo ¢ 8% insttuigdes polticas modernas, torna-se tam- bbém o lugar emblematico da dissolug20 do lo social. Para as sociologias nascentes, esta ‘questo € obsessiva. Tonnies vé a “‘socieda- de” substituir a “comunidade’”, Durkheim ‘nalisa a anomia, Tarde e Pareto falam da fra das “'massas”, Park, um pouco mais tar- de, estudara a “desorganizacdo social”. Os antigos modelos da ordem politica io con- denados, e se quer fazer erer que € pela urbs— nizagdo, Nem a integragdo estreita entre os individuos nas comunidades de vilarejos so- postamente “tradicionais”, nem a deferéncia do povo as “auloridades Sociais naturais”, Tembradas com saudade por Le Play, pare ccem vidveis na grande cidade. Estas representacdes so a claborago fica de um panico social amplamenie dido entre a burguesia da época. Mas, sob outro ponto de vista, 0 discurso cienifico fabre novos caminhos. Rectiar 0 elo social sobre novas bases: eis af o programa dos fun- adores das cigncias sociais e também dos especialistas nas novas cigncias da cidade ‘Uma cizcunstancia tornard a tarefa urgente. ‘Com a extensio do direito de voto na maior parte das nagbes industrializadas, as ‘'mas- sas" passam a jrromper nas instituigdes poli ticas, principalmente a nlvel municipal. Co mmo transformar os “-baebaros” que vagavam as portas da eidade em cidadaos conscientes de seus direitos e de seus deveres? Nao existe ‘geragio espontdnea do cidadao. E Jacob Riis, tum jornalista que nos anos 1890 construit sua carreira denunciando 0s cortigos novaior- uinos, que afirma: “nfo se pode deixar as pessoas viverem como porcos ¢ esperar que eles se tornem bons cidadaos”.? Os reformadores sociais se mobilizam e os partidos socialists trabalha fe na “educacio do proletariado” cidadaos, moldé-los a partir de uma ms ria-prima dificil, toma-se para todos um im- perativo de ordem pritica. Hoje, o eufemis- ‘mo utilizado para designar o mesmo traba- Iho histérico junto a populagao € “aprendi zado de democracia”. Ora, neste mesmo momento, no decorrer dos ‘anos 1900-1910, se produz um fendmeno sur- preendente. Para uma parte dos assistentes Socials, para os urbanistas e logo em seguida para os soci6logos, a visto do bairro popu- lar muda de sinal. Percebe-se que estes luga- res no so mais os “abismos” como Jack London, jornalista e revolucionario, ainda (via em Londres em 1903:! eles s20 orga- nizados por sociabilidades e por instituigbes, algumas das quais so a promessa de uma ppacificagdo social, Ao final dos anos 1880, ‘Charles Booth jé havia descoberto que a maio ria dos pubs do East End ndo eram neces- sariamente locais de perdigio destinados 20 alcoolismo e ao fechamento pela policia, mas locals de reunigo, respeitaveis “‘clubes de trabalhadores".? A nogdo de neighborhood work torna-se, nos anos 1910, um lugar co- mum dos social workwers norte-americanos, ‘Todos estes elementos positivos da vida so “al popular poderiam se desenvolver sem en trave easo fossem organizados como convém em um ambiente reformado. ‘As mudangas de vocabulario testemunham es {a evolugao. Aos cortigas e habitagdes insalu bres se opdem as cidades-novas, aos slums os novos neighbourhoodsou communities. bair~ +0 popular, por muito tempo olhado como © lugar de todos os males sociais e de todos os perigos, passa entio a ser considerado como 6 instrumento de uma possivel regeneracto. Pereebe-e que justamente o expaco primeiro da democracia representativa € una ctcuns. erigdo territorial, um balro. All votam os elellores eos partidos eonstrdem suas bases, & lique podem ser edueados © organizados 0s cidadaos, Os regimes democriticos nao po. dem prescindit de disciplinassilenciosas e do constrangimento aberto. Mas sua especiic dlade se apoiar também ov em primelt logar Sobre formas socials auto-reguladas: a com nidade local reformada pode bem serumadelas, Desde sua origem, a cifncia urbana esté as- sim em busca desie objetivo de “‘reconstru- ‘fo social’” em conjunturas ¢ sob formas ex- ‘remamente diversas. Entre elas 0 “urbanismo planejador” quer se trate do urbanismo do Garden City Mo- vement ou do urbanismo da carta de Ate- nas. Para os planejadores de todas as cor rentes, a cidadenova ou a grande operacdo planejada na periferia urbana prometem mais que uma racionalizago do espago: elas de- vem rectiar as condigdes de restauragdo de uma “comunidade” perdida sobre novas ba- ses, Modificando radicalmente 0 conjunto das atividades cotidianas, elas permitirao reor- ganizar no somente os habitos individuais, ‘mas também a vida coletiva das classes po- pulares. Como dizia Henry Sellier, prefeito Socialisia © promotor dos subirbios-jardim na regio par de “ordenar a lum pouco mais tarde Arthur C. Comey, planner do New Deal, trata-se de “‘organizar comunidade” Esta titima expressfo nfo & exclusividade dos trbanistas echocratas. Organizar a com dade "peta base”, desde a origem, 0 objet- vo de uma ovtra covrente das cigncas da cida- de, is vezes aiada, as vezes oposta & prece- site, mas necessariamente em didlogo com tla. & “reconstrugao do baiero™ € um tere Central para os trabalhadores socais aps 0s Selilement houses britinieds e nore-ameria- nos do inicio do século. A mesma preoeupa- fo est na base dos esidos de comunidade Fealizados em, Chicago 20 longo. apos. os amos 1920 e 1930. Um dos captulos de The City, olivro-programa publicado em 1925, as Sina por Burgess, tempor titulo Can aelgh borhood work have a scientific Basi” tes fundaores ém ertea gue a anon trbana pode dar lugar um eo renovado, @ Ser econsiruido parindo de sociabilidades Populares Estas evem ser, por um lado, 2 eee spapo & Debates n? 34 1991 respetadas ¢ protegidas, desenvolvidas ¢ re Fads com a ajuda dagueles que soube- fam estudtas, Este objetivo est no Funda. trento. Gas principal correntes da pesquisa Abana, ontem e hoje, da ety survey antro- pologs urbana, passando pea socologia da Eilura urbana ea dos “"movimentos socias {banes™ A teabltagto do povo, empreen- dida muitas vezes em oposisho ads projetos dos tecnoeratas, desemboca freqientemente na abertura de negosiacdes com ests. tal vero indicio de que o discurso se drigia « thes, desde inci. Nao se trata de amaleamar préticas cientificas « politicas t8o diferentes. Pretendo sublinhar ‘que, como principio de numerosos saberes o- bre'a cidade, encontra-se um mesmo projeto prético: realizar, gragas a uma comunidade Focal reconstruida, a intepracdo social das po- placbes em uma ordem democratica, Isto po- de ser considerado como uma situagao a ser faperfeigoada ou como um objeto que impli- que em mudangas politicas fundamentais. 0 ‘método para reeonsiituir a comunidade perdi dda pode partir de cima ou da base, do projeto lurbanistico ou da organizagao popular. Evi- dentemente, existem ai muitas nuances. Pode- ramos talvez observar um movimento pendu- lar entre estes dois polos, riumado pelas possi- bilidades de acesso go Estado oferecidas ou recusadas aos especialistas segundo as con- junturas politicas, as disciplinas e as novas, ‘eragdes que entram no mercado de trabalho. [Em todos esses casos, espera-se de uma mu- dana urbana e da cigncia que a orienta um progresso de ordem politica. Este progresso implica na mobilizacao consciente de atores sociais: 0 simples jogo de mercado é julgado incapaz de produii-lo. Se fosse de outra for~ ma, 0 objeto da ciéncia urbana desaparecia. 3. Pretensbes, decepedes e estratégias dos produtores de saberes Na tltima parte desta exposigao gostaria de falar algumas palavras sobreas pretensbes dos produtores de saberes sobre a cidade eo terri trio, as estratégias de legitimagao que estao a sua disposigao e de suas decepedes atuai ‘A ciéncia urbana, como outras ciéneias so- ciais, tem permanentemenie duas faces. De lum lado, ela reivindica enunciar os saberes produzidos por procedimentos de objetivacao do método cientifico, distintos dos saberes om finalidade prética. Quanto mais as disci mu plinas slo institucionalizadas, principalmente hha Universidade, mais precisamente se arma a legitimidade e a especificidade da ‘cigncia pura”. Em certos paises, principalmente na Franga e na Inglaterra, os especalistas tém, de fato, segundo a expressdo de Pierre Bour dieu, “inveresse no desinteresse™. Mas, por outro lado, seu estatuto social ¢ os recursos a sua disposiedo dependem também do reconhecimento que a sociedade confere & Sua produsio. De que atores e de que insti- twigBes podem eles, podemos nds, esperar es- te reconhecimento? As respostas a esta ques- tio variam segundo o curso da historia © se- ‘gundo © pais, mas elas tm em todos os casos lum impacto decisivo sobre os papéis sociais acessiveis aos intelectuais e, portanto, sobre © proprio desenvolvimento ‘cientifico. E al ‘vez em conjunturas onde este reconhecimen to social tornou-se problematico que aparece uma ‘crise de projetos”, acompanhada de uma “erise de saberes”. As estratégias disponiveis se exprimem em ‘um numero limitado de figuras historieas, aue representam formas de legitimagao acessiveis ‘uns e inacessiveis a outros segundo o pals © a conjuntura. Deixarei de lado o erudito e © intelectual para me deter mais no expert, no ‘administrador e no pesquisador de campo."™ nal cuja legitimidade se apdia em um “saber fazer” © em uma capacidade em resolver problemas. Diferen- temente do cientista puro, ele nfo pretende Formulac por si mesmo as questdes, mas rei vindica ser consultade e, sempre que possi- vel, aceito. Mas, para que as questdes ds quais cle é capaz de dar resposta sejam colocadas, € necessario que previamente elas sejara reco. nhecidas como quesiGes pertinentes por aque- Tes que decidem. Os campos de consultoria se constituem, portanio, gravas a definigto de “problemas” novos, em uma interagio entre os inventores de una profissio e uma de- manila, ou melhor, um mercado. Nao existe possibilidade de construcdo de um vocabuld- Fo comum sem uma alianca social ‘Assim nasce 0 usbaaiamo moderno, no en- conto etre cna 4 profsonaiaco, lantropos, indasriais progresistas ov nieipalidadesreformistas. assim aasce&citn- cia e 0 planejamento regional, gracas a0 de- Senvolvimento de burocracia exondmicas, Jos governos centais ou regonais, as Tend Ses privadas ou dos organismos internacio- fais. Assim nasce o planejamento estratéico, fracas ao enfraquecimento ou mudancas de brientagao das burocracias precedentes e pela necessidade de negociar decisdes pablicas com ‘grupos econ6micos ou organizagdes popula. Tes, 480 as insttulgBes estejam dispostas a suseitarefinanciar suas demandas de pesquisa. ‘A consultoria é, portanto, um mercado emi- nentemente fluiuante, suas formas slo di- versas ¢ desigualmente acessiveis aos preten- dentes segunclo os recursos de que dispdem. Sas evolugdes tém, em toclos os casos, plicasoes mais amplas sobre a orientagao das rodugoes cientifieas, Por muito tempo acreditamos que o destino natural do expert seria se tornar um admi- nistrador. A partir da segunda metade do séeulo XIX, a burocratizacio das fungdes Administrativas se desenvolve na maior parte dos paises com a criagdo de uma funea0 pi- blica, © reerutamento por concurso, o de- senvolvimento de institutos de formagdo ou ‘mesmo a profissionalizagao politica. “A bu- rocratizagdo anuncia o triunfo da adminis- tragao cientifiea onde as competéncias subs- tituem 0s privlégios de nastimento ou os favores clientelistas, Desde entdo, as cigncias da cidade sto can- didatas naturais a administrar e encontrar ‘como aliados naturais 0s politicos eujo inte resse politico ¢ preconizar uma politica des- politizada ‘A expansto das tecnocracias € particularmen- te rapida nos periodos em que a ideologia do eseavolvimento planificado fornece ao po- der politico um vocabulirio suscetivel de ci- ‘mentaraunidadenacional:aguerrade 1914-18 nna Europa, o New-Deal, 0 Estado Novo, © Welfare State, o partido trabalhista britanico, estado “gaulista” francés, os Estados Unt dlos de Kennedy Johnson. ‘estes periodos, no somente os experts sio mobilizados pelo Estado para o essencial, mas também povoam 4 propria adminisragao. As cigncias urbanas conhecem, entdo, um répido desenvolvimen- to. Tornam-se cigncias do Estado. © pesquisador de campo é uma figura distin- ta das precedentes, Sua competéncia consiste em reunir e formalizar os conhecimentos so- bre grupos sociais cujas possibilidades de ex- pressio, no interior do sistema institucional, slo fracas e que, por alguma razo, const tuem “problema para as autoridades. Ele & pago para observar os que se escondem, para fazer falar aqueles que se calam. 03 saberes sobre ade: tempos de cise? pesquisador pretende por vezes ser somen- fe 0 eco fiel da realidade, dela fornecer uma interpretagdo especificamentecientifica, Mas, como regra geral, ele 6 conduzido a abracat em larga medida 0 que considera como a “causa do povo” e a se fazer porta-vor de seus sofrimentos, de suas necessidades e de ‘suas aspiragdes. Sob este ponto de vista, 0 itinerdrio dos pro- fissionais do trabalho social que inventam a “pesquisa social” & caracteristico. Desde o injcio do século, eles se distanciam das pers- pectivas repressivas da “caridade organiza da’ de onde so origindrios, para viver 0 cotidiano dos bairros populares das grandes idades. Destas experitneias e de seus méto- ddos nasce a sociologia urbana, aquela dos discipulos de Booth na London School of Economies, dos soci6logos de Chicago a par- tir dos anos 1910, dos catblieos sociais fran- ceses de pére Lebret a Chombard de Lauwe, nos anos 1940. & também a trajetéria de um sear Lewis ou de um Richard Hoggart, fun- adores da antropologia urbana nos Estados Unidos e na Gra-Bretanha e inventores da “cultura da pobreza”. Como nao fazer paralelo com o itinerario dos estudantes eeducadores progressistas dosanos 1960 que vao a0 povo oferecer as armas da sociologia critica? Receberdo eles, em troca, ‘uma nova legitimagao social muito nevessaria ‘auma diseiplina euja institucionalizacto con- ‘inua fragil e que, além do mais, recruta cada ver mais fora das elites sociais tradicionais? ‘As relacbes do pesquisador com 0 poder po- Iitico compreendem uma forma particular de ambiglidade, Ao contritio da pretensio no: mativa dos primeiros urbanistas, ele se pre- tende o intérprete cas efetivas necessidades sentidas pelo povo e ignoradas pelos que de- cidem, tecnocratas ¢ politicos. Sua menss- gem é, portanto, geralmente critica, ao mes- ‘mo tempo em que visa ser ouvido pelo poder. Porque ele dé forma ao social que o politico ignora e que inquieta o administrador, o pes- guisador de campo ou © antropélogo urbano 00 informante privilegiaco do teenocrata Enquanto ele demanda cada vez mais demo- ceracia, € como substitute cémodo & demo- cracia’representativa que o solicitam. Extas diferentes estratégias de legitimagao en- contram-se hoje em perigo. Creioaue sito acontece € porque o projeto cienifico © pri: tico que constitui o Se fundamento é cada vex mais contestado, Para demonstri-lo, € 25 ol Espago & Debates n° 34-1991 reco que eu retorne, brevemente, 20 que erie urbana e regional podem propor ociedade Em primeiro lugar, a cigncia assume um ob- Jlo.gue soment ela fem condigdes de ver ou Ser existe, um objeto que escaps 20s tutrosatores soci. Ela descobreo que et Snvisvel: 0 fato socal segundo Durkheim, & tSsencia, como dizia Marx, a lei, a estrutura eso as poss epoca, ay mals Cmpircas, implicam nesta erenea: 0 prvi fo do observador sobre 0 observado consste fa transferencia de saberes de lugares onde tstdo-dspersose confusos, para outros onde esido eoncentrados ¢sistematizados. O cero {eve sempre acesto # misterios cuja contem- Plagao for proibida aos leigos. Logo, a cigneia esté em condiedes de enun- ciar uma racionalidade superior, global, que texprime os verdadeiros interesses do corpo Social e pela qual pode-se mensurar a valida- de das fepresentagdes, dos objetivos e das priticas do comam dos mortals. No nosso campo, esta posicso geral tem pelo menos {rs pontos principais de aplicacao, malidade superior que jcadas as modalidades con- tretas do desenvolvimento urbano e regi nal. A recorréncia ao tema da ‘‘desordem no discurso da cigncia urbana é gritante. Es- rca “critica” e os conservadores pa- ra uns slo sempre os progressistas para ou- tos, Se, por diversas razdes, © modelo de racionalidade que fundamenta esta critica per- de sua clareza ou sua credibilidade, um pe- Hlodo de “rise de saberes" se anuncia, em nome deste modelo que sero também avaliadas as politicas, os politicos, e 0 poll- tico mesmo. Com efito, a ciéncia urbana contém os principios de um governo racio- nal das cidades, raramente adotado pelas au toridades. Com maior ou menor viruléncia, ‘os cientistas questionardo portanto, 4s_ve 2es, a cegueira do principe, a irracionalidade ‘das instituigoes representativas ou ainda a natureza de classe do Estado. Estas criticas slo geralmente toleradas ou até ‘mesmo levadas a sério pelas autoridades. De ato, mesmo se as recomendagdes dos espe- cialistas so por vezes contraditorias © no pesam muito na pratica, o mundo politico de nosso séeulo XX fez sempre apelo Acie cia para justificar suas decisdes. E talvez a Principal vitéria obtida pelos intelectuais, tal~ vez seja também uma’ das Tronteiras mais 96 sélidas que delimitam © espago no qual po- de se dar a democracia ‘As cincias da cidade apdiam-se, assim, so- bre uma relaglo privilegiada e ambigua com a politica. E com o Estado que elas dialo- gam, as vezes visando seu cume e a implan- tagio de uma administracdo racional, outras vvezes passando pela base e esperando de uma participagto popular esclarecida a transfor- ago do proprio Estado. Se, por diversas razbes, este didlogo com a politica é inter- rompido, mais uma vez uma “erise de sabe- res” € provavel. Enfim, € segundo o ertério da racionalidade {que slo avaliadas as praticas da populag4o. A cigneia urbana & educadora do povo. Os primeiros urbanistas observam sem prazer, ‘mas sem surpresa, que os habitos populares se contrapdem em geral aos objetivos de me- Thoria que eles fixaram e esperam da trans- formacio do espaco construldo que ela mo- difique em profundidade os modos de vida. ‘Mudar a cidade para mudar 0 povo. Existem progressistas que recusam esta pers- peetiva paternalista ou autoritaria e procu- Fam no Seio do povo os germes de uma ra- ionalidade superior. Eles buscam, portan- to, sujeitos sociais que sera0 os agentes d sa ‘racionalidade: por exemplo “as verdadei ras classes trabalhadoras"” ddos reformadores ngleses do inicio do século, “a classe traba- Thadora’” dos socialistas e “os novos movi- mentos sociais” ou as minorias oprimidas. Estas diversas operagdes te6rieas ¢ priticas tém por propriedade comum o fato de esta- belecer mais ou menos explicitamente uma triagem entre o bom e o menos bom para 0 ovo, a0 designar 0 alvo de uma coopera- $40 possivel entre os partidirios da citncia © 0s portadores da mudanga social. Para ser acreditada, a ciéncia urbana deve provar sua capacidade de constituir 0 povo seja em ob- jeto de reforma, seja em sujeito da historia © freqiientemenie, os dois ao mesmo tempo. Ora, acontece que © povo thes escapa. As. sim hoje na Europa ocidental, as explosdes sociais se produzem justamente nos espagos lurbanos nascidos de um projeto reformador: (05 bairros de habitagto popular. Em outros lugares, principalmente na América do Nor~ te e do Sul, malogram as esperangas nos _movimentos Sociais urbanos. Constata-se sua integrag20 ao cotidiano da’ vida municipal, seu controle pela criminalidade organizada, sua deriva politica populista ou simplesmen- {e-0 retorno das familias a estratégias indi- vidualizadas. Face a estas diversas circunstancias, ¢ exis- {em certamente muitas outras, os saberes cons- ‘dtuidos pela cigneia urbana perdem muito da sua legitimidade social. Conclusio E hora de concluir e deixar espago para as diseussbes. Procurei examinar, me apoiando nna evocagiio de um longo periodo histérico - ddo qual somos 0 produto -, as condigdes de lepitimacso social dos especialistas da cidade edo territério. Desde © nascimento destas disciplinas, inteleetuais © experts, adminis- tradores € pesguisadores organizaram seus discursos em torno de um projeto de pro- gresso dirigido direta ou indiretamente a0 politico. A. serenidade dos produtores de sa- ber dependeu assim essencialmente de suas relagdes com 0 poder. Sio justamente estas relagdes que estdo hoje abaladas. Certamente, elas 0 esto porque as poiticas mudaram, mas principalmente por- que os préprios termos de sua legitimacao Sfo ditados por um outro discurso, por uma otra racionalidade: aquela do mercado, ot ‘melhor do luero, As eigncias da racional fo urbana e das finalidades sociais sao, dicalmente colocadas em questo pelas cién- cias da celebragto do mercado ¢ da "‘revo- Iugdo liberal” (Os especialstas de umas ¢ de outras ndo slo ‘do mesmo mundo. Nosso saber esti, aberta ‘ou secretamente, a servigo do Estado, o eles std, sem complexos, a servico da empres Quaisquer que sejam nossas inclinagdes poli tas, nossas definigdes disciplinares ou nos- sas preferéncias teéricas, temos talvez algo ‘em comum: os adversirios. A “crise” de saberes sobre a cidade ¢ o terri {rio resulta do fato de que a evidéncia refor- madora construida durante quase um século std profundamente abalada, ow mesmo que festa pertence agora ao passido. A perda de legitimidade social resultante se transforma Jogo em desencanto cientifico. E nao atribua- ‘mos, nossos problemas a “rise das ideolo- sias" Existe, de fato, uma ideologia que con- tinua prevalecendo, Este dado me parece im- portante para elaborar hoje nossas escolhas de pesquisa e nossas estratégias profissionais (Os suberes sobre @ cade: tampos de cis? Gostaria de terminar esta comunicaco com uum dilema formulado hi trngae ceo anoe or Claude Levi-Strauss nos Tristes trdpicos: “Se (0 ctndgrafo) pretende contribuir para a melhoria de seu regime social ele deve conde~ nar, sempre onde existrem, as condiges and logas aquelas que ele combate, sob pena de perder sua objetividade e sua imparcialidade, Por outro lado, o distanciamento que Ihe im pSem o escripulo moral eo rigor cientifico 0 impedem de criticar sua propria sociedade, dado que ele nao quer julgar nenhuma para poder conhecer todas. Atuando em sua pro- pria sociedade, priva-se de compreender ores ante, mas a0’ querer tudo compreender, re- ‘nuneia a nada mudar.""" Vou modifica ligiramente esta dima frase para fazba servr aos mets propisfor: "A- tuando em nossa propria sociedade, somos Condenados 2 nao compreender 0 que n= tessirio, mas 20 queree tudo compreende, clusive a forma pea qual compreendemos, fenuncamos a quelguer po de mudang™ Nossa posta clentin se apéia sobre rs fundamento eminentemente Histrico eon sgn re em um progrene pepe agas 4 moblizag dos suberes pelos deten- {ores do poder = nas profisdes, no Estado, nos movimentos populares ov, As Vezs, nos {res ao mesmo tempo Como 0 cindlogo deve se distanciar de sua propria sociedade, precisamos, eu cteio, re- ‘conhecer 0 arbitratio cultural que fundamen ta nossos saberes. Isto nos leva a renunciar a uuma dupla iusto, a de uma cigncia livre de amarras e a de uma politica cientiica, Mas existe, talvez, uma diferenga entre uma ilusao e uma crenca. A pesquisa das ordens escondidas é meu oficio e ndo tenho outro. A. terenga de que isto pode servir a um progresso Ede minha etnia ¢ € a heranca que me deixe. ram meus ancestrais. Alguns me dizem que {std aeabado, estes 0 meus adversdrios. Crcio também que so a grande maioria. © pro: ‘Bress0 ¢ seus saberes s8o ilusorios, que se jam, Mas uma vez reconhecida a ilusio, me Testa a crenga. Eu o sei bem, mas mesmo assim, eu prossigo. Christian Topotoy & soislogo,pesqusador do Cen- {re de Sociologie Urbane (CSU) ~ CNRS - Paris. a lll Notas 1. No orginal, savanes. N. 7. 2 Commie ofthe Regional Plan of New Y lan of New York i Els, Rela! Survey of Ree Yok at is Environs, New York region! pan Oe York and environs, 1, 809; 9a _) The assgnement ofthe land the various es seems 10 the peril obssre f teen made bythe Mad Hater st Scns party. Some of the poorest pepe ine "ene ted sms on beh ried ee) Sioue'sthow ftom the stock exch airs led wt he ron of reas age Few bandied fet from Times Square eae ech of saugher houses) Sues se ‘outages one's sense of order Every misplaced: One yearns to searange neh pode aid opt things wher they beng 4. Patrik Geddes, ives as concrete and applied ‘in Sociological Papers, vol G2 te 10 coi, mich st, the ‘ermal course of evolution. nt & 4 Manuel Cases, La question urbaing,P sot Maspo, 1972, ago, ws Pais Fran 5. Léon Jausely, A st ausely,“Avertsement n Raymond Up. win Uéude prague tor len ue Ss eo lbvairie Cental des Beat Ars, 1922, 6 it 6 Commitee of the Retonal Plan of Regional Survey, vs spi 38 6.) the ates of New York may be linkened to the fi ‘01 Resion! pan or this or space te ee designates the basse Proper adjustment of ‘ment of Socal and Public Sena sociation, 1916, p12 ‘arian As. om, Te 4M ee ft es", La vie urbaine, n° 13, avril 1923, p 86. OF the Abyss, (Arthur C: Comey, Communion me MRx S: Webely, “Planned ‘ational Resures Co Urbanise Conic, Supleniemary Repo 2, Urban Planning and Land Poses epee ton, D.C, 1999 60 1. No origina, engueteur de eur de tern 22 Cue ens Tate ps 1955, redion I-13, 196, pase eh ais, Plon As maquinarias inglesas do conforto+ Francois Beguin ‘Traduedo: Jorge Hajime Oseki Revisto: Suzana Pasternak As grandes pesquisas de 1840-1850 Entre 1840 ¢ 1845, duas grandes pesquisas foram efetuadas na Inglaterra pela adminis- tracdo pilblica sobre o que chamariamos ho- je 0 habitat.’ Denominacio sem diivida mal escothida ja que o interesse dessas pesquisas @ justameate mostrar como o habitat se cons- titui, administrativa eteenicamente, como um novo dominio de intervensao politica. E, por- tanto, somente a posteriori que podemos en- contrar nessas pesquisas 0s primeiros desen- volvimentos de uma politica do habitat e is- lo porque as quesides que foram abordadas £00 tratamento que les foi imposto caracte- Fizam bem 0 que hoje, para nés, englobaria uma politiea do habitat. Bem decepcionantes, para quem procurava ‘arandes visdes arquitetOnicas da habitacio, estas pesquisas referem-se mais & doenga e & delinglncia, a Agua, 20 ar, & luz © aos es- ‘got0s, as formas fisicas através das quais 05 Tluides ¢ as préticas poderao ser canalizados ¢ regulados; mas também 0 que custa trati- los, assist-fos ou reprimi-los e o que custa- ria reduzir estas despesas agindo sobre a sé- rie de componentes fisicos que constituem 0 ambiente do pobre [Nada de grandes programas arquitetOnicospor- fanto - nesta época 0 habitat interessava pou- €0 0s arquiletos -, mas uma gigantesca empreitada® que visava a reduzir o ambiente a tlados téenicos euja incidéncia sobre o com- ortamento ea doenca fosse estabelecida esta tisticamente, caleulada em seus efeitos ¢ com- parada sempre aeste outro modo de funciona ‘mento do ambiente possibilitado pelos mais recentes progressos tecnolbgicos e pela redis- tribuigao dos poderes no seio do empreen- dimento? urban. De fato, se a arquitetura aparece como um ‘componente importante destes programas de fence de salubridade, esta sempre é reduzi- da as aptidees fsicas das formas utilizadas na habitagdo ¢ dos efeitos produzidos por estas formas sobre os Muidos ou sobre um modo d distribuigdo de pessoas e servigos. Ereitos cuja particularidade é serem eles préprios subordi- hados a outros 6rgdios de maquinaria urbana ~ os esgotos, oaparelho de distribuicdo dedgua-, tcestarem assim intimamente ligados as earac” teristicas ambientais do objeto arquitetOnico. Entre estes aparelhos eestesespacos, uma con- tinuidade fol estabelecida, o que faz com que ‘6 habitat seja alguma coisa bem diferente da construgto de habitacdes e bem proximo de tuma série de normas tecnicas que definem as condigdes gerais de habitabilidade, NAo pro- ‘curemos portanto nestas pesquisas um grande ddiscurso sobre aespacialidade, tentemos antes ‘yer como nelas noves saberes, novos apare- Thos e novos atores definem um novo regime para o ambiente do pobre a partir dos compo- rentes mais materiais deste ambiente. Nao va- ‘ios nos deeepcionar sendo encontrarmosuma grande visto da cidade ou da casa e se, 20 {nvés, pudermos ver como categorias médias, econdmicas © a aritmética reduzem a cidade ¢ ‘acasa a dados puramente téenicos, a mimeros, prego do desconforto ‘A. moniante destas investigagbes, uma multi- ‘go de pesquisas pontuais realizadasa partirdo a :

You might also like