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Quando o corpo conta histérias ' Ursula Patricia Neves Leite” Devo confessar que um dos motives de escotha do meu oficio & o gosto pelas histérias. Gosto de ouviclas © contii-las. E ao longo do meu percurso pela sicanilise e pela clinica aprendi que esta iltima implica inclinagao. Aprendi, também, com um bom mestre e amigo, que se essa inclinagio-clinica nio for amorosa/transferencial, que se esse encontro com 0 outro que nos procura no itar isto, niio & possivel que nada mais acontega.” Nesse texto trago uma historia que pude acompanhar de perto, que me fetadas, eu e minha clinica inclinei sobre ela, destacando, sobretudo, o quanto fom com 0 seu enredo. Penso que nunca mais, depois de estar com aquelas criangas, escutei da mesma forma; embora, todo © inusitado da situagdo parecesse-me, a principio, distanciar © método ¢ a técnica, quebrar regras, pondo-me, de fato, no lugar de nao saber. Eu, sempre tio rigorosa em defesa do setting, do contrato terapéutico, do lugar do analista, precisei escrever aquilo que chamei “Diario de Bordo” para dar conta, fazer trabalhar esse sentimento de inadequagdo, Hoje essa historia € aqui narrada, ¢ mais trangiila lembro Winnicott’ que diz: Meu oficio consiste em ser eu mesmo... Foi no ano de 2005 que comegou tal histéria, A época fazia um curso de especializagao em psicologia clinica-psicanilise no EPSI: Espago Psicanalitico, 0 qual mantinha uma linha de estégio na area institucional. Préximo ao periodo do estigio, ‘Texto consruido a parr da pesquisa O corpo e a linguagem abrigam do caos a brincadera, desenvolvido como pate do projeto de pesquisa Corpo, Pulsdo'e Linguagem realizado pelo EPS| — Espaco Psicanaltico em parceria 2m Universidade Catoica de Pernambuco na linha do pesquisa Por uma metapsicotogia do corpo. * ecdioga, Especialsta em Psicologia Clinica Paicandsa, Expocialsia em Sade Publica, Memtro da Sociedade Psicanalica da Paraiba, Membro do EPSI ~ Espago Psicanaiicoe do Laborato de Psicopaldiogia Fundamental do EPSL ‘Ver © corpo ne Giiice psicanalice Contemporénea em ALMEIDA, Ronaldo M. © Lugar da Cur constugéo 60 situagdo psieanalica. 080 Pessoa: Eira Unversial UFPB, 2007 “ WINNICOTT, D. W. Tudo comega em Casa. 3 Edigao ~ So Paul: Marins Fortes, 1959. uma colega que desenvolvia um trabalho de estimulagio cognitiva com criangas d°A. Casa‘, inspira um grupo de estagirias e um projeto a0 nos apresentar Jodo, crianga que chegou na Casa bebé, ¢ aquele tempo, j4 menino com pouco mais de dois anos, & apontado como louco, por no falar e se comunicar aos gritos ¢ pontapés. Enearregada de fazer a primeira visita 4 CASA para apresentar 0 projeto de trabalho, prevendo a escuta a instituigo e © atendimento a grupos de criangas, formado por aquelas apontadas pelos técnicos do abrigo como as que apresentavam maiores dificuldades, me deparo com um casario de dois andares ¢ janelas altas que se abrem para 0 jardim e patios. Nao podendo precisar o que mais impressiona nessa primeira visita, lembro-me apenas dessa casa “aberta” como sendo “sem cor”, al, © qual nfo & meu espanto ao descobrir, meses depois, que o casario tem paredes brancas omadas de rosa e verde. Nunca antes tinha visto essas cores, somente 0 cinza que la no estava, Lembri -me, também, dos rostinhos das criangas, ¢ de corpos feridos ¢ olhar de angastia, uma visio igualmente cinza, Pergunto-me se nfo vejo a casa “cinza, esse lugar sem cor” com e através do olhar desamparado das criangas que encontro por li. ‘Ao chegar li no encontro Jodo. Ele fora adotado na semana anterior e mudou para outra casa. Ji mais trangiiilo, seu terror, expresso aos gritos, parece ter encontrado um lugar de acolhida contengio junto ao trabalho feito pela colega e a esses pais que Ihe escolhem e abrigam. Iniciam-se 0 atendimentos, em dois grupos que chamamos oficinas terapéuticas, um com criangas em idade que variavam entre 3 ¢ 5 anos € outro com ctiangas entre 5 ¢ 7 anos. A proposta é um espago que propicie a brincadeira; entao, fico responsdvel por acompanhar 0 grupo de criangas entre 3 ¢ 5 anos. Posteriormente chamamos 0 espago de oficina do brinear, ¢ por fim entendemos tratar-se de um Espago Terapéutico, uma vez que p bilita elaboragdes ¢ produz. um efeito sobre as criangas. * Abrigo de menores érfaos, abandonados elou sob protegda juicial, mantido pela FUNDAC, érgo piblica estadual Devo dizer que as particularidades da formago destes grupos nunca nos autorizaram a falar, com tranqiilidade, que se tratava de um grupo terapéutico nos moldes que conhecemos. As cenas falam, ¢, no primeiro dia de grupo, loucura e caos. Somos, terapeutas e criangas, abrigados em um grande pavilhto com um paleo alto ao fundo. Deparo-me com corpos que se atiram ¢ grudam ao meu, com mios estiradas a solicitar insistentemente para que seus nomes sejam escritos nelas ¢ no meu caderno, Essa cena me choca, incomoda, mobiliza; penso que elas parecem ter a necessidade dessa inserigdo nos seus corpos e fora deles. Nesse momento, um movimento se destaca: pular do paleo alto ao som da misica, uma vez, vezes repetidas; o mais impressionante & que pulam sem esperar jim, eles acabam caindo, mas nio que me coloque em sua frente para seguri-los. A: choram. Parece que nao thes di 0 corpo. Meu olhar se volta para 0 lugar ocupado pelo corpo nessa realidade, 0 modo como cada erianga usa seu proprio corpo para se mostrar, experimentar ¢ falar. Observo a falta de limites e o transbordamento pulsional quando vejo criangas se expondo a situagdes de perigo, subindo em parapeitos de janelas, paredes e méveis; se jogando de mesas; escalando os corpos dos outros; desafiando as leis da fisica tentando passar por espagos estreitos ¢ impossiveis; e reagindo sempre aos berros, chutes ¢ tapas frente a qualquer situagdo de frustragao. Nesses primeiros momentos a leitura de Maria Helena Fernandes’ adverte ¢, em certa medida, me trangiiiliza quando diz “que a escuta, tomada em seu sentido analitico, supée que exista sempre uma palavra a ser ouvida, mais precisamente a ser acothida, Mas serd que a escuta implica apenas 0 que pode ser FERNANDES, Maria Helena. Corpo. Sao Paulo: Casa do Psicélogo, 2003, ouvido? O trabalho cotidiano nas instituigdes de satide em geral mostra que ndo podemos “escutar” sem “ver”... (2003, p. 28). Outro encontro, uma porta de comunicagdo entre as salas é descoberta. Uma morena ativa, Flivia, se agarra & mesa da segunda sala e tenta fazé-la passar pela porta se atirando junto com a mesa ao vao desta, numa cena violenta e bizarra, Observo perplexa ¢ Ihe digo: “Nao cabe Flivia, nfo vai dar para passar por ai”. Ela continua tentando até a exaustdo, Nesse mesmo dia, Patricia se recusa a devolver a boneca que segura no fim da sesso e a sair pela porta ja aberta; insisto, e a angdstia refletida em seus olhos grandes ¢ no corpo encolhido cresce. Sugiro que ela nao quer sair desse lugar e parece querer levar algo, A resposta é um brilho no othar opaco, Saco, entio, uma fita azul da sacola de brinquedos ¢ amarro no seu brago, dizendo que ¢ um pedacinho do grupo de mim que pode ir com ela, ficar com ela e voltar na préxima semana, Impressiono-me ee deixa a s com 0 efeito: ela larga a boneca, despede-s la. Os outros, a partir dai, passam a recorrer 4 fita frente a qualquer momento de maior angistia na hora de deixar a sala em que acontece o grupo. Uma outra cena: Marcos sobe em uma mesa € chama minha atengao: “vou pular!”. Respondo que pode pular, estou ali de seu lado. Para minha completa surpresa ele se joga da mesa se atirando no chio e se machuca seriamente. Essa cena choca-me como nenhuma outra, Vejo Marcos se jogando ao chao e no brincando de pular; vejo nesse corpo atirado ao abismo, algo de desligamento, de morte. Certo dia um espelho 6 descoberto; eu me questiono se nunca antes essas criangas haviam s visto, ja tinham entre 3,4 anos Marina se espanta ¢ brinca com a propria imagem, ¢ Francisco, at6nito, parece nao acreditar que fosse ele refletido; digo “€ voc” ¢ ele levanta lentamente bragos e pernas como que para se certificar Certa feita, Joana e Marcos sobem na bancada e brincam de saltar, mas agora pedem ajuda e esperam que estejamos de bragos estirados para Ihes segurar. Algo se passava, e penso que uma mudanga se punha em marcha. Ainda, a essa época, vejo coxpos repletos de ferimentos, alergias machucados, € intuo que aquela riqueza de “sintomas somiticos” fala da situagdo psiquica das criangas, ou, pelo menos, tenta responder a esta, Ocorre uma mudanga na dire¢ao do abrigo ¢ nesse tempo as criangas so fardadas, aparecem “iguais”, todas calgadas, andando em filas indianas. Neste momento, volta o eaos nas sessies. Também o nimero de machucados aumenta e as manchas vao (re)aparecendo no corpo. As janelas durante bom tempo sio atragio, no as deixam fechadas. Vio 1a, abrem, sobem no parapeito, ¢ olham quem passa, criando histérias, provocando brigas. Brinquedos so langados longe; as pessoas na calgada so sempre alguém ité-lo: importante que vem v pai, mie, avés; a rua é bela ¢ os carros levam ao caminho da praia, Querer abrir as janelas, olhar por ela, se debrugar ~ 0 mundo de fora ou o de dentro que é visto? Durante esse tempo passei do choque, da paralisia, a narrativa e 4 interpretagao. ‘A colega que me acompanhava constata: “vocé agora narra © grupo, 0 que acontece, ¢ isso tem um efeito”. Gilberto Safra’ chama atengao para o papel ¢ efeito da narrativa na clinica, considerando-a um elemento fundamental que refere 4 possibilidade de compartithar experiéneia em “gue o analisando possa vir a experimentar a presenca do Outro-raiz que de alguma forma Ihe possibilite 0 acesso ao pertencer e & experiéncia do reconhecimento de si” (2006, p. 29). Esse autor destaca 7 SAFRA, Gero, Deselando.a memiria do humano: 0 brincan narra, 0 corpo, 0 sagrado, sinc Sho Plo: Bigbes ‘Sebormost(Colegdo Pensamento Cinio de Gilberto Sata), 2006 que a narrativa contempla a origem, 0 caminho e o fim, assim & composta de pasado, presente e futuro, Quero acreditar que quando passo a narrar, nfo as histérias dos livros, mas os acontecimentos do grupo, comega um movimento de certa continéneia para cessas criangas. Tempos depois as janclas sio esquecidas, trancadas, e por cles amarradas, literalmente. Interpreto que nada pode sair daquele lugar, ficar a vista, Diminuem as brigas, mordidas, tombos e machucados; comegam as brineadeiras. Pereebo que © corpo mostra-se como a forma possivel de expresso dessas criangas, De inicio indago o porqué, ¢ se 0 espago do grupo possibilitaria ampliar essa linguagem. Renate Sanches* sugere que criangas duramente privadas apresentam dificuldades em simbolizar, carecem de experiéneias no conereto, pois no vivenciaram © espaco de transicionalidade. Ao que parece, 0 corpo dest criangas abrigadas no foi erotizado. As criangas do grupo precisavam viver e falar com 0 corpo todas as coisas; vislumbro esses corpos e imagino um primeiro tempo de muita privagdo, a falta de uma mie para tocar, conter, erotizar, dar significado e apresentar 0 mundo. Entdo surgem outros tempos. Tempos em que os livros da estante mudam © foco da cena, Eles passam a espalhar os livros guardados na prateleira pelo chao, deitam sobre eles, folheiam, e encantam-se nas descobertas de figuras que podiam ser até nds mesmos; e Francisco sempre as voltas com um escrito em francés cujo titulo, surpreendentemente, é “Quem sou eu?” Tempos em que brincam de casinha, formando quadrados com as cadeiras. Também de policia e bandido ¢ nfo se esmurram; apenas encenam a prisio. SANCHES, Renate Meyer. Winnicott na clinica e na instiuipdo, S8o Paulo: Edtora Escuta, 2006. Sara passa a brincar sempre com dois bonecos, seus bebés, ¢ como so mal tratados esses bebés, jogados, esmurrados... Desse movimento todos participam, Um dia digo- Ihe que os bebés choram muito, seus corpos doem, esto com fome ¢ frie, Sara passa a cuidar dos bebés: eles sio, a partir de enti, alimentados ¢ agasalhados, sustentados de brago em braco sem nunca mais fiear no chao. A porta e as janelas, ja trancadas, so vigiadas por eles: Joana esbarra na porta ¢ Kaio the diz. “nao cabe nao, nao passa, esta trancada”. O dentro € 0 fora, 0 corpo © 0 ambiente jé nao brigam e se chocam. Os limites ¢ as regras do grupo, ¢ também a sobrevivéncia nossa, terapeutas e grupo em si, a esse primeiro tempo de loucura, caos & dio parece ter funcionado como protetor ¢ estruturante. Partindo da perspectiva do corpo como a primeira possibilidade de constituigdio da subjetividade, da pulsdio como conceito limite situado entre o psiquico © © somitico, e destacando 0 elo entre corpo e psiquismo, esse corpo “habitado” pelas pulsdes, entendo que tivemos acesso ao a manifestagdes corporais, Como Freud, que, no primeiro tempo escutou o corpo das histéricas, vejo 0 corpo das criangas roubar a cena e entendo, nao sem antes passar pelo ttinel nebuloso de angiistia e incertezas, que precisava de olhos para ouvir esses corpos, uma vez que eles foram a tinica expresso de linguagem possivel até certo tempo. Aprendo que nesse lugar a escuta precisa ser ampliada, implica ver para escutar, Edilene Queiroz” aponta, quando analisa a clinica da perversio, que a psicandlise pde a percepedo auditiva em primeiro plano, ¢ indagando-se como agir frente ao “espaco siderado pela imagem”, fala que o perverso diz mostrando, que para ele 0 olhar do outro é indispensavel; assim sendo, o analista precisa “escutar-olhando’ Para as criangas que atendi também o corpo apresenta-se como recurso para dizer, encenar 0 que niio era possivel sair com palavras. Nao foi simbolizado? Podemos pensar * in QUEIROZ, Eailene Free. 4 Clint aa Perverido So Paul: Edita Escuta, 2004 que a linguagem do corpo é bastante arcaica, diz mostrando, sentindo, gozando, como bem ressalta Edilene. ara essas criangas, tdo duramente privadas, a subjetivagao ainda passa pelo corpo, e a palavra no assumiu a fungio mediadora. A elas, n’A Casa, ndo & facilitada 4 minima singularizagao, tudo é de e para todos, roupas, brinquedos, material de higiene. Recordo Safra quando diz: “O ser humano, a fim de que possa acontecer emergir como si mesmo, precisa iniciar seu proceso de constituigdo a partir de uma posigéo, de um lugar. Esse lugar ndo é um lugar fisico, é um lugar na subjetividade de um outro..." (2001, p. 18)" As historias das criangas, contadas pela instituigio, apontam sempre um quadro de separagio precoce, de perdas, de privagdes econdmicas, entendo também privagdo psiquica. Sabemos que a mie, ou seu substituto, & esse lugar subjetivo que se empresta e media as primeiras aproximagGes entre o bebé e © mundo, entre o dentro e fora, tocando, cuidando, traduzindo, dando contorno e continéncia, possibilitando a simbolizagao, Entretanto, observo que no abrigo 0 cuidado é descontinuo, nio afetivo, lidava com a manutengdo da vida, algo de auto-conservagio; pouco espago & dado 4 vida psiquica, a0 acontecer subjetivo, e essa falha no cuidado se apresenta através desses corpos falantes, que se punham claramente 4 frente como para responder aos conflitos internos. © grupo como lugar de continéncia e investimento foi estabelecido e fortalecido ao longo das sessdes, na medida em que ampliamos nossa escuta. Ouviamos! viamos esses corpos, ¢ conseqiientemente interpretivamos, comegando a falar por eles. Ao que parece 0 grupo em certa medida serviu para libidinizar os corpos dessas criangas. "in COMPARATO, Maria Cecilia Me Monteiro, Denise de S. Feliciano (org). A crianga na contemporaneidade @ @ ‘psicandlse: mentes ¢ midi: dlalogos interdscilinares I. S8o Paulo: Casa do Psicélogo, 2001, Entdo, a palavra toma lugar, Uma palavra especialmente é usada: cuidar. Cuida-se do bebé, das feridas, da casinha, da comidinha... E tempo de despedidas, disso também se cuida; uma festa ¢ montada, e a volta para casa é falada e antecipadamente comemorada, isto quando surge a possibilidade de Joana sair do abrigo com 0s irmaos € ir para outra instituigao, Certa feita, Flavia esta brincando estirada no chio, pede para deitar na barriga da terapeuta, se acalma, fecha os olhos, levanta-se e diz. que vai pra casa, Vale lembrar, que também a essa época, a sala era sempre arrumada por cles mesmos antes do final das sessdes, cho varrido e cadeiras alinhadas. Durante 0 tempo do grupo, pouco mais de meio ano, eles eresceram, corpo fisico ¢ também outro, psiquico. O caos dos primeiros encontros foi dando lugar ais brineadeiras, ¢ as cenas de corpo versus outros corpos, versus ambiente (cadeiras, paredes, portas, estantes, etc) foram se acalmando. © brinear, no primeiro tempo nada diz, nio é um meio de expresso possivel a eles; carrinhos sio puxados sem rumo, atirados pelas janelas, bonecas no podem ser ninadas, nao sio bebé Entendi que isso se da em fungao dessa falha no cuidado, na traduco, na passagem desse corpo biolégico ao ps Aos poucos, vislumbra-se uma mudanga, a brincadeira toma lugar de expresso, ¢ entdo a saida, a perda da diretora é por eles encenada em uma brincadeira em que a raiva ¢ tristeza podem se presentificar. Francisco e Marcos, por sessdes seguidas, tiram os livros da estante, sobem nela ¢ brincam de dormir na prateleira, Mariana, vez ou outra, se esconde em baixo da mesa. Nessas ocasides repetiamos que brincavam de esconder/aparecer, ressaltévamos que podiamos ver seus corpos. © cumprimento das regras do grupo igualmente ocupa lugar importante, estruturante diria, ¢ interpreto que 0 dentro, embora angustiante, pode ser “vivido” naquele continente. Os movimentos de subir © escalar, de gritar de se baterem, de tentar aleangar aquilo que esti no alto, o inatingivel, sempre se repetem. Mas entdo as regras ja estiio postas e aquele que bate sai do grupo. Mas, a principio, sai aos berros, se jogando no chio. Certo dia Flavia me morde e olha-me com ar de contentamento, repito a regra, tiro-a do grupo, ao que reage chorando, se debatendo no chao, gritando, Ela sai como ferida aberta, mas sai, voltando na sesso seguinte. Lembro Francisco, um menino de corpo franzino que mai parece um “prego” sempre de pé e alerta, que no primeiro dia, langando-se loucamente de ed pra lat a corer e pular, gritando a cangio “poeira, poeiraaaa, levantou poeira..."", cantou tocou sem parar, juntando-se a0 caos que se espalhava pela sala, Compreendo que do caldeirio que ferve com o caos, 0 ddio, a dor, 0 abandono, tudo de mais primitivo, o grupo consegue caminhar e elaborar, chegando a um ponto de “fervura” em que se evidenciam as expresses, representagdes, ¢ a elaboragio. Volto a Francisco, No iltimo dia, ele, que antes corre batendo nos méveis ¢ gritando a cangdo, monta uma festa imaginaria com bolos ¢ bolas e se despede de mim cantando parabéns, seguido de uma brincadeira em que salta como um pissaro da mesa e me deixa segurar “seu bebé”, para no final me olhar e dizer “agora eu cuido dele”, Esse & meu tiltimo registro no Didirio de Bordo, o registro de um Francisco dizendo 0 que sente, brincando, fazendo festa, fantasiando, achando os livros muito ais interessantes que as paredes janelas, comunicando para além do corpo “prego” que sempre a postos e em defesa da lugar & leveza, quando aparece a fantasia e a palavra, ¢ ele voa como passaro, multicolorido. Para recontar essa hist6ria, frente a dificuldade de ser objetiva, recorro, novamente, a Maria Helena Fernandes que nos diz: “A partir do momento em que a posigdo do observador se vé transformada pelo risco transferencial, uma escrita que pretende ser meramente um relato do que é observado no paciente torna-se, por isso mesmo, duvidosa, Sendo impossivel” (2003 , p. 70). Assim sendo, volto ao inicio © termino reforgando as palavras ditas ao comegar, o quanto fomos afetadas eu e a minha clinica por essa experiéneia, Referéneias ALMEIDA, Ronaldo M. O Lugar da Cura: consirugdo da situagdo psicanalitica Joie Pessoa: Editora Universitiria/ UFPB, 2007. COMPARATO, Maria Cecilia Me Monteiro, Denise de S. Feliciano (org). 4 erianga na contemporaneidade e a psicandlise: mentes e midia: diélogos interdisciplinares Il. Sto Paulo: Casa do Paieélogo, 2001 FERNANDES, Maria Helena. Corpo. Sao Paulo: Casa do Psic6logo, 2003. LAPLANCHE, Jean & PONTALIS [tradugio Pedro Tamen] Vocabulirio a Psicanéilise Sto Paulo. Martins Fontes, 1992. QUEIROZ, Edilene Freire, 4 Clinica da Perversio Sto Paulo: Editora Escuta, 2004. SAFRA, Gilberto. Desvelando a meméria do humano: 0 brinear, 0 narrar, 0 corpo, 0 sagrado, 0 siléncio, Sa0 Paulo: Edigdes Sobornost, 2006. SANCHES, Renate Meyer. Winnicott na clinica e na instituigdo, So Paulo: Editora Escuta, 2005, WINNICOTT, D. W. Tudo comeca em Casa 3* Edigao — Sao Paulo: Martins Fontes, 1999.

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