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Saberes escolares, Imperativos didaticos e dinamicas socials Jean-Claude Forquin A222 8 exoth dos contetds do ensno ¢ de sua inorpragto nos programas institucionalizados permaneceu por muito tempo um ponto cego da sociologia da educagto. Foi através de amplas enquetes sobre os fluxos de escolarizagto e das relagdes entre estes fluxos certas caracteristicas estruturais, dda educagio conquistou, a partir dos anos 60, sua a. E 6 frequentemente pela realizago de uma sa dos processos de interagdo social no interior dos estabelecimentos escolares ¢ das salas de aula apreendidos como microsocieda- des que ela encontra hoje os eaminhos prvilegiados de seu desenvolvimento € de sua renovagto, Entretanto, pode-se também considerar que uma abordagem mais explicita €ediretamente centrada nos contetidos cognitivos e simbélicos das transmissBecs escolare mais em conta aquilo que faz a especficidade das instituigbes ja, fato de serem locais © meios organizados som vistas @ transmitir a um pablico numeroso e diversficado por meios sistematicos conjuntos de conhecimentos, de competéncias, de representagies e de disposi- sBescomespondendo a uma programasdo deliberada, A escola nioé apenas, com efeito, um local onde circulam fluxos humanos, onde se investem € se gerem mde se travam interagdes sociais e relagbes de poder, ela & —olocal pores: E por isso que a questdo do curticulo como forma institucionalizada de estruturagio e de programagdo de conteidos de ensino deveria estar no centro de toda reflexto sociologiea sobre a educasto. O objetivo do presente estudo & © de contribuir para v desenvolvimento de uma tal reflextio. Para isso nos ‘poiaremos nas contribuigdes de um certo nimero de trabalhos recentes realiza- Teoria & Educagao, 1992, $ 28 salmente na Franga ena Gra-Bretanha, Quatro temas serio abordados ente: os conteidos de ensino como produtos de uma selesto no interior da cultura, as caracteristicas da cultura escolar, 0s fatores sociais em jogo ‘na organizagto disciplinar dos saberes escolares, a questo da esraificagio dos ‘contetidos de ensino.! A “selegdo cultural escolar” 1)Uma primeira evidéncia que se deve sublinhar & que se a conservagio © 8 ‘ransmissfo da heranca cultural do passado constituem inegavelmente uma fungfo essencial da educagio em todas as sociedades (pois ninguém pode se subirair ag imperativo da perpetuagto do mundo humano e da continuidade das gerag6es)?,€ preciso prontamente admitirtambém que esta reprodugto se efetua to prego de uma enorme perda ao mesmo tempo que de uma reinterpretagto ¢ funciona sempre na base do esquecimento e que os ensinos dispensados nas, escolas nfo transmitem nunca sento uma irfima parte da experiéncia humana acumulada ao longo do tempo. ‘Sabe-se que para os defensores da tradig%o humanista clissica, esta dade opera principalmente no sentido de uma “decantagao” e de uma “cr no tempos da Repiblica das 0 valor permanente das do homer” que sto o nico objetivo de toda comemorago,o que vale dizer também de todo pensamento e de todo ensino possiveis.* ‘grandes obras intelectuaise artisticas, » Teoria & Educagao, 1992, 5 Com Raymond Williams ¢ os socidlogos da cultura, observar-se-6, entretan- to, que trabalho de decantagio e de cr de uma “tradig#o” esté longe ilo que se poderia chamar de motivagdes “‘intrin- seus ancestrais.® O que quer dizer que a meméria cultural ¢ sempre uma reinvengo. A mesma coisa vale, naturalmente, pare aquela parte da memoria 40s trabalhos de historiadores e de socidlogos da educago, Durkheim’ ¢ do proprio Williams,” que de acordo com as lientelas escolares, as deologias ,ntlo slo 0s mesmos aspectos, 08 mesmios a que dio lugar a referéneia, a interpretagio ov & ‘dos programas escolares. Acrescentaremos que & pré- io escolar no passado aparece como eminentemente passaito incondicionalmente; acolé, uma concepsilo “seletive ‘mesma forma, a perspectiva “arqueolégica”” (que se interessa pelas camadas ‘ccultss sob o presente) nfo pode ser confundida nem com o ponto de vista ig8es e por uma lute permanente contra a obsolescéncis), 0 ppassado pode permanecer presente, mas sob forme implicta ou latene, incor- prado em habitus intelectusis, em modelos de pensamento, em procedimentos 4 dimenso temporal da cultura pode se revestr no interior do curriculo de toda a especie de graus e de modulagbes. Teoria & Educagdo, 1992, 5 30 2)Um outro aspecto da “selego cultural escolar” merece ser igualmente sublinhado: é que ela nfo se exerce unicamente em relagHlo a uma heranga do ppassado, mas incide também sobre o presente, sobre aquilo que constitui num ‘momento dado a cultura (no sentido antropol6gico assim como no do intelectual do termo) de uma sociedade, isto é, 0 conjunto dos saberes, das representagoes, ‘das maneiras de viver que t8m curso no interior desta sociedad e so suscetiveis, por isso, de dar lugar a processos (intencionais ou ndo) de transmissto e de aprendizagem. “Como se efetua a selegdo consttutiva de um curriculo, como gsionado «partir de um nimero quae ilimitado de 5 pergunta, assim, John Eggleston, “Certos aspectos sve da mesma forma Denis Lawton, “‘certostipos de conhecimento, certas aitudes e certos valores sfo considerados, na verdade, custosas (as escolas). Mas nem tudo aquilo que constitui uma cultura ¢ considerado como tendo ‘uma tal importin todo modo, dispomos de um tempo limitado; por isso tura, Os docentes podem ter hierarquias de prioridades docentes e todas as escolas fazem sclegdes de um tipo ura. Proponho utilizar 0 termo curriculo para a bastante evidente a questio de saber quai sto estes aspectos da cult i s despesas de toda natureza que supte um ensino sistemitico € dos programas escolares revela cera certa medida arbitrrio da aprendido ou adquirido em outros contextos, de acordo com as ocasides © 08 aacasos da vida, Exit, quote ee ponte, wna opis doutrinéria fundamental entre descompartimentagdo ¢ da abertura, Pode-se, como o faz por exemplo Basil ‘Bemstein, interrogar-se sobre as condig8es e as implicagdes sociaise politica dos processos de reforgo ou de atenuacto das dvisdes entre estes diferentes tipos 31 Teoria & Educagao, 1992, 5 Com Raymond Williams ¢ os socidlogos da cultura, observar-se-4, entretan- que & forma como uma sociedade representa 0 passado e gere sua relagdo com ‘consttui uma dinémica altamente conflituosa e depende de bitrério e supSe na verdade um questionamento c: 5 que quer dizer que a meméria .esma coisa vale, naturalmente, para ‘gerida pelas instituigBes de educacdo formal ¢ que sto incorporadas nos ue nfo considera o passado mais que como uma etapa. Da ‘mesma forma, a perspectiva “arqueolégica” (que se interessa pelas camadas ceulas sob o present) flo pode ser confundide nem com o ponto de vista (que recua no tempo com vistas a esclarecer ou explicer 0 nem com a abordagem “histérica” (que supSe uma reconstituigo “distante”). nos ensinos onde o passado nilo se torna o objeto de uma atengBo ou explicita (como é 0 caso, 0 mais freqUentemente, nas ienicas, onde o saber se constréi por uma superaglo ‘por uma Tuts permanente contra a obsolescéncia), 0 passado pode permanecer presente, mas sob forma implicita ou latente, incor- porado em habitus intelectuais, em modelos de pensamento, em procedimentos ‘operatdrios considerados como naturais ¢ evidentes, em tradigbes pedagogicas. Assim, a dimensio temporal da cultura pode se revestir no interior do curriculo de toda a espécie de graus e de modulagbes. Teoria ce Educapao, 1992, 5 30 2)Um outro aspecto da “‘selego cultural escolar”” merece ser igualmente sublinhado: & que ela nfo se exerce unicamente em relagdo a uma heranga do passado, mas incide também sobre o presente, sobre aquilo que constitui num ‘momento dado a cultura (no sentido antropol6gico assim como no do intelectual do termo) de uma sociedade, isto é, 0 conjunto dos saberes, das representayies, das maneiras de viver que tm curso no interior desta sociedadee sfo suscetiveis, por isso, de dat lugar a processos (intencionais ou nio) de transmissto e de de conhecimento, certas aitudes e certos valores sto considerados, na verdade, ‘como tendo suficiente importancia para que sua transmissio a gerago seguinte ‘fo seja deixada ao acaso em nossa sociedade, mas sea confiada a profissionais ‘especialmente formados (os docentes) no contexto de instituigdes complexas © custosas (as esc0 Mas nem tudo aquilo que eonsitui uma cultura €considerado como tendo ‘Aqui se coloca de forma bastante evidente a questio de saber quais so estes aspects da cultura, quais so estes conhecimentos, estas atitudes, estes valores que justificam as despesas de toda natureza que supe um ensino sistemético € dos programas escolares revela certamente o caréter instével, aleatorio e numa certa medida arbitririo da demarcagio entre 0 que pode ou deve ser transmitido ‘num contexto altamente institucionalizado do tipo escolar, ¢ © que pode ser aprendido ou adquirido em outros contextos, de acordo com as ocasibes © 08 ‘casos da vida, Existe, quanto a este ponto, uma oposi¢go doutrindria fundamental entre aquilo que se poderia chamar de filosofias da especificago e da separago, que insistem sobre # imedutibilidade epistemol6gica e cult competéneias suscetiveis de serem edquiridos nas escol descompartimentagio ¢ da abertura. Pode-se, como 0 ‘Bernstein, interrogar-se sobre as condigSes ¢ as implicagdes sociais © dos processos de reforgo ou de atenuagdo das divistes entre estes diferentes tipos ar Teoria & Educagéo, 1992, 5 de saberes, aqueles que sto dotados de uma legitimidads académica © aqucles que tendem a serem excluidos do corpo de coisas ensinéveis nas escolas, Teoria & Fducagao, 1992, $ jicas ¢ que nflo deixam nunca de dispen- 32 sar as muletas do didatismo, “Toda pritica de ensino de um objeto pressupfec a ‘ransformacto prévia deste objeto em objeto de ensino”,'* observa Michel Verret ‘pela intermediago do processo didético, finaliza seu proceso . “0 processo didatico se beneficia por isso”, prossegue Verret, “de continuidades das pesquisas interrompidas (a transmiss¥0 ‘ransmissto histérica exitosa de pesquisas exitosas), proteo contra a dispersio na apreensio do objeto (a transmissto diddtica estrutura @ pesquisa sobre seus romentos fortes, fazendo com isso economia do detalhe)”."° ‘Mas o tempo que é assim ganho do lado da invengto é muito evidentemente perdido, ou a0 menos gasto, do lado da exposiglo (ars exponendi), pois que & ‘exposiglo diditca, &diferenga da exposiglo tebrica, deve levar em conta nfo apenas o estado do conhecimento mas também 0 estado do conhecente, 05 estados do ensinado e do ensinante, sua posiglo respectiva com relago 80 saber ‘¢0 forms institucionalizada da relagfo que existe entre um ¢ outro, em tal ou qual contexto social ‘A.esses imperativos de transposigo se acrescentam, observa Verret,!7 im= perativos de interiorizaglo, pois que se trata nlo apenas de fazer compreender, .bém de fazer aprender, isto é, de fazer de forma que o saber se incorpore 20 sob a forma de esquemas operatorios ou de habitus. £ esta a raziio pela qual toda pedagogia supde sempre a repetigto, enquanto que na exposi¢’o {ebrica esta consttui sempre uma imperfeigZo © uma desordem. Acrescentemos cenfim os imperativos propriamente insitucionais, aqueles que decomem da natureza do contexto institucional no qual se desenrolam as aprendizagens. iE evidente, por exemplo, que os saberes escolares so fortemente marcados pelo modo propriamente cscansto do tempo, a organizaglo dos ‘estudos por anos ¢ a teparti lades no interior do ano, a duragto dada roles, et. A cultura escolar ceriagto ou de invengao, mente a uma fungdo de mediagt {erminada pelos imperativos que decorrem desta Fungo, como se v8 através destes produtos edestes instrumentos cearacteristicos constituidos pelos progamas e insirugdes oficiais, manuais 3 Teoria & Educart, 19 ou reflexivas, sublinhar os fsitoa de rotinizagdo, de! conversio de uma heranga essencal de expergnciase de pensamentos em capitulos de manuais, temas de deveres ¢ de questdes de exames. preciso reconhecer,enretanto, por um lado, que aqui que pode aparecer como artefato ou subproduto “‘reificado” em nome de uma concep¢ao roméntica lum fenémeno constante e uniforme, mas varia em suas formas, em sua intensi- dade, em seus resultados, segundo as sociedades, os piblicos escolares € os niveis de ensino, as matérias ensinadas, as ideologias as pritices pedagbgicas «© que ele depende, por isso, exatamente como o processo de selego cultural anteriormente evocado, de uma andlise sociol6gica diferencia ‘Mas ¢ preciso ir mais longe na andlise e reconhecer que estes conceitos de \ransposigdo diditica ou de rotinizagto académica da cultura nfo permitem dar conta de certos aspectos mais especificos dos saberesescolares enquanto objetos. de ensino, Pode-se perguntar se de fato todos os saberes ensinados nas escolas ‘ilo sto verdadeiramente sentio o resultado de uma selegao ede uma transposig#0 efetuadas a partir de um corpo cultural pré-existent, se nfo se pode considerar Teoria & Educagdo, 1992, 5 ey ‘escola como sendo também verdadeiramente produtora ou criadora de confi- es cognitivas ¢ de habitus originais que constituem de qualquer forma o clemento nuclear de uma cultura escolar sui generis. Particularmente sugestiva a este respeito ¢ a anélise que propte André Chervel’? da constituigio na Franga desde hé dois séculos daquilo que podemos Adcsignar como sendo tipicamente uma “gramatica escolar”, pois que ela nto repousa verdadeiramente sobre uma ciéncia de referéncia existindo anterior € ‘exteriormente a ela (no e480, aquela elaborada pelos tesricos da gramética eda lingoistica), mas constitui uma “tcoria ad struida inteiramente por pedagogos tendo em vista servi de suporte e de justficagdo para o ensino da crtografia francesa num contexto de unificagao politica ¢ de alfabetizagto de massa. A mesma andlise valeria sem davida, segundo Chervel,”” para outros ‘Antigo Regime, uma construgio ad usum delphini, em acordo com as conve- nigncias e os esforgos da civilizagdo cristi (mas se pode dizer, sem divide, a mesma coise, como o sublinha Antoine Prost,”! da “me manuais. Para Chervel, estas configuracées cognitivas nto podem ser consideradas , lando, nem como o reflexo nem como o substitutivo de “saberes 1a vida social ou elaborados pelos profissionais do ‘mas constituem entidades culturais préprias, scola recepticulo de subprodutos culturais da ‘08 savoir-faires os maneiras de fazer, 0s tipos de exercicios (08 modos de avaliagBo dos desempenhos que se dio nas escolas, ser na escola, ditados e exercicios de gramética, 35 Teoria & Educacdo, 1992, 5 Entretanto, se a escola pode muito bem aparecer como o lugar e a matriz de saberes tipicas e de formas tipicas de atividades intelectuais, é preciso reconhe- cer que estes elementos originais nfl permanesem sempre encerrados nos limites do mundo escolar, mas sio capazes também, por seu poder de modelagem de habitus, de influenciar o conjunto das priticas culturais e 0s modos de rituais de reconhesimento ¢ de consagrasdo social aos quais ela dé lugar) de esquemas lingdisticos e culturais os mais gerais transmitidos pelo casino, Podemos a este propésito lembrar por exemplo o que diz Erwin Panofsky da excoléstica medi “ tpi siti ore para a escola e obedevendo a uma codificago formal de funglo essencial- larficagto incondicional,hierarqua logica das articulagdes do iaglo dos contrérios no ritual lisputatio), mas que pode se inscreve “forga formadora de hibitos”, de mancira suficientemente Profunda nos comportamentos cognitivos dos contemporineos para que possa- ‘mos encontrar-Ihe a manifestagdo em certos elementos estruturais especiticos da arquitetura gotica.”” E podemos, no mesmo espirito,refletir sobre o papel de estruturasfo intelec- tual e cultural que péde jogar nas sociedades modems escolarizadas, e que joga Particularmente na Franga, através do ensino da filosofia nas classes terminais do secundério, « aprendizagem escolar de técnicas de redagto ¢ de composigo {ais como a estruturago da exposig2o em partes bem distintas (mais freqdente- ‘mente em mimero de so do diseurso a partir de pares nocionais que fancionam como quase-automatismos verbais (tas como a oposigdo do fundo e da forma), ou o recurso a um repertério comum de referéncias e de citagbes obrigatorias, ete ‘Como o sublinha Picrre Bourdieu, a cultura escolar dota assim os individuos

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