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Praticas da Memoria Feminina* RESUMO. Como tornar posstvel uma histéria das mulheres se a nds foi negado até muito recentemente 0 acesso ao espaco piiblico, lugar por exceléncia da historia? A dificit tarefa de chegar ds fontes, e mesmo a de produsi-las a partir de pistas ténues, avaliada pela autora no intuito de trazer para 0 campo do conhecimento historiogrdfico os recénditos da meméria feminina. Michelle Perrot™* ABSTRACT How is a history of women to become possible, if we were until very recently denied access 10 the public sphere, the place of history par excellence? The author evaluates the difficult task of arriving at the sources, and even of producing them from tenuous clues, so as to bring the hidden places of women's memory into the range of historical Anowledge No teatro da mem6ria, as mulheres so sombras ténues. A narrativa hist6rica tradicional reserva-Ihes pouco espago, justamente na medida em que privilegia a cena piblica — a politica, a guerra - onde elas pouco aparecem. A iconografia comemorativa Ihes € mais aberta. A estatudria, mania cara a Terceira Repiiblica!, semeou a cidade com silhuetas femininas. Porém, como alegorias ou simbolos, clas coroam os grandes homens, ou se prostram a seus pés, relegando um pouco mais ao esquecimento as mulheres reais que os ampararam ou amaram, ¢ as mulheres criadoras cujas efigies Ihes lancariam sombra.? Mas existem aspectos ainda mais graves. Essa auséncia no nivel da narrativa se amplia pela caréncia de pistas no dominio das “fontes” com as quais se nutre o historiador, devido a deficiéncia dos registros primarios. No século XIX, por exemplo, os escriturdrios da histéria — administradores, ™ Antigo originalmente publicado na revista TRAVERSES n? 40 (“Théatres de la Mémoire”), . 18-27. * Universidade Paris 7. Tradugio: Prof. Dr. Claudio Henrique de Moraes Batalha ¢ Prof* Dra. Miriam Pillar Grossi. 11871-1940 (N.T.). 2 anne Marie Fraisse-Faure estudou as figuras femininas em uma tese, La statuaire commémorative & Paris sous la Troisi¢me République, U. P. d Architecture de la Villete. 0. 89/se4.89 Ppoliciais, juizes ou padres, contadores da ordem publica — deixam bem poucos registros que digam respeito as mulheres, categoria indistinta, destinada ao siléncio. Quando eles 0 fazem nas ocasides em que notam a presenga de mulheres em uma manifestag4o ou reunido, recorrem aos esteredtipos mais batidos: mulheres vociferantes, megeras a partir do momento em que abrem a boca, histéricas do momento em que gesticulam. A visio que se tem das mulheres funciona como um indicador: elas sao consideradas raramente por si mesmas, mas com freqiiéncia como sintoma de febre ou de abatimento, O SILENCIO DOS ARQUIVOS Os procedimentos de registro, dos quais a histéria € tributéria, sao fruto de uma selecdo que privilegia o ptiblico, tinico dominio direto da intervengao do poder ¢ campo dos verdadeiros valores. O século XIX claramente distingiiu as esferas, publica ¢ privada, cuja disposigo condiciona o equilibrio geral. Muito provavelmente essas esferas no recobrem exatamente a divisdo dos sexos, mas, grosso modo, 0 mundo piublico, sobretudo econémico e politico, é reservado aos homens, e é este que conta. Essa definicao, clara ¢ voluntarista, dos papéis se traduziu na retirada das mulheres de determinados lugares: a Bolsa, os bancos, os grandes mercados de negécios, o Parlamento, os clubes, os circulos de discuss4o ¢ cafés, locais privilegiados da sociabilidade masculina; e mesmo as bibliotecas piblicas: Simone de Beauvoir, mais tarde, na Bibliothéque Nationale, é uma figura de transgress&o intelectual. A cidade do século XIX € um espaco sexuado. Nela as mulheres se inserem'como ornamentos, estritamente discisplinadas pela moda, que codifica suas aparéncias, roupas ¢ atitudes, principalmente no caso das mulheres burguesas cujo lazer ostentatério tem como fungao mostrar a fortuna e a condi¢ao do marido. Atrizes no verdadeiro sentido do termo, elas desfilam nos sales, no teatro ou no passeio piblico ¢ a forma com que se vestem que interessa aos cronistas (vide as Lettres Forisipanes [Cartas Parisienses], do Visconde de Lannay, alids, Delphine de Girardin) Quanto as mulheres do povo, sé se fala delas quando seus murmiirios inquietam no caso do p4o caro, quando provocam algazarras contra os comerciantes ou contra os proprietérios, quando ameagam subverter com sua violéncia um cortejo de grevistas. Em suma, a observag¢ao das mulheres em outros tempos obedece a 3Madame de Girardin, Lettres parisiennes du Viconte de Lannay (1837-1848), apresentadas ¢ anotadas por Anne Martin-Fugier, Paris: Mercure de France, 2 vol., 1986. 10 critérios de ordem e de papel. Ela diz respeito mais aos discursos que as praticas. Ela se detém pouco sobre as mulheres singulares, desprovidas de existéncia, ¢ mais sobre “a mulher”, entidade coletiva ¢ abstrata A qual se atribuem as caracteristicas habituais. Sobre elas nao h4 uma verdadcira pesquisa, apenas a constatac’o de seu eventual deslocamento para fora dos territ6rios que Ihes foram reservados. Um tiltimo exemplo dard uma idéia dessa deficiéncia documental e da complexidade de sua significado. Os arquivos criminais, to ricos para 0 conhecimento da vida privada, pouco dizem sobre as mulheres, justamente na medida em que o peso destas na criminalidade € pequeno e decrescente (de cerca de um tergo no inicio do século XIX, cai para menos de 20% no final daquele século), no em virtude da natureza doce, pacifica ¢ matemal, como pretende Lombroso*, mas devido a uma série de préticas que as excluem do campo da vinganca ou do confronto. A honra viril quando atingida se vinga através da morte. O banditismo de estrada ou 0 roubo com arrombamento, 0 assalto A mAo armada ou 0 atentado eram, até uma data recente, negécios de homens. Assim, os arquivos puiblicos, olhar de homens sobre homens, calavam as mulheres. “Seria necessdrio, entretanto, ndo esquecer as mulheres em meio a todos esses homens que, sozinhos, vociferando, clamavam o que tinham feito ou o que sonhavam fazer. Fala-se muito delas. Mas 0 que sabemos sobre elas?”, escreve Georges Duby na conclusao do livro que consagrou ao casamento na Franca feudal, Le Chevalier, la Femme et le Prétre [O Cavaleiro, a Mulher e o Padre] (Paris: Hachette, 1981). Eis portanto toda a questo. OS SEGREDOS DOS SOTAOS Os atquivos privados, outro sétdo da histéria, fornecem outras informagées? Sim, certamente, na medida em que as mulheres neles se exprimiam de forma bem mais abundante, e, até mesmo, foram as produtoras desses arquivos, nos casos em que fizeram as vezes de secretarias da famflia. Livres de raison [livros de raz3o]° nos quais elas preservam os anais do lar, correspondéncias familiares cujos escribas habituais so elas, didrios intimos cujo emprego € recomendado as jovens soltciras pelos confessores e, mais tarde, pelos pedagogos, como uma forma de controle sobre si, constituem um refigio de escritos de mulheres, dominio cuja 4C. Lombroso ¢ G. Ferrero, La femme criminelle et la prostituée, trad. fr., Paris: Alcan, 1896. STipo de livro de anoiagdes que acaba funcionando como “atas” da vida familiar, (N.T.). i imensidao tudo atesta. Porém esses arquivos sofrem constante destrui¢do c, somente seus escombros — hoje preservados gragas ao fato de seu interesse ter sido finalmente reconhecido — nos sugerem sua riqueza! Essas destrui¢des provém dos acasos das sucessdes e das mudangas, do gosto pelo segredo que cimenta a intriga familiar, mas também da indiferenga dos descendentes constrangidos pelos legados incémodos de seus antecessores; indiferenca agravada pelo carater subalterno atribuido a esses escritos de mulheres. As cartas das filhas de Karl Marx foram conservadas de forma imperfeita ¢ publicadas tardiamente; por desvendarem as manias ou as fraquezas do pai ou do homem privado, constituem para alguns uma inconveniéncia®, Outro exemplo: a correspondéncia de Tocqueville com seu amigo Gustave de Beaumont foi preciosamente conservada como um testemunho tnico de seus empreendimentos intelectuais e politicos; j4 a que, paralelamente, foi trocada por suas esposas, desapareceu sem deixar tracos de seu contetido. Muitas mulheres, de resto, pressentindo a indiferenga, se antecipavam a ela “colocando suas coisas em ordem”, isto é, destruindo seus cadernos intimos, temendo a incompreensio ou a ironia de seus herdeiros. Deixar para tr4s cartas de amor nao € introduzir um terceiro numa relacfo a dois, cuja bela imagem ja tinha sido alterada pelo tempo? Isso também diz respeito & amizade. Eis o caso de duas amigas, Héléne ¢ Berthe, que durante quarenta anos trocaram uma intensa correspondéncia. Restam 625 cartas de Héléne; de Berthe, nada: ela pediu a Héléne que destruisse tudo, nao desejando nenhum testemunho de sua amizade. Héléne resiste, mas finalmente, magoada, queima as missivas queridas.! Como a leitura®, a escrita é freqtientemente um fruto proibido para as mulheres. Para retomar 0 mesmo exemplo, o pai de Héléne se irrita ao vé-la passar tantas horas com sua correspondéncia. Para poder continuar com aquilo que, aos olhos do pai, é infantilidade e perda de tempo, ela tem que se defender e se econder. Uma certa culpabilidade decorre dessa transgressao de um dominio sagrado. Dessa parte secreta dela mesma, desse pecado que foi gozo, n&o serio deixados vestfgios. Desse modo, as mulheres, freqiiente- mente, apagam delas mesmas as marcas que adquiriram dos passos que deram no mundo, como que se deix4-las transparecer fosse uma ofensa A ordem. Esse ato de autodestruicaio é também uma forma de adesio ao siléncio que a sociedade impde as mulheres, feita, como escreve Jules Simon, “para ocultar suas vidas”; um consentimento da negag4o de si que est4 no 4mago SLettres des filles de Karl Marx, prefécio de M. Perrot, Paris: Albin Michel, 1979. Tanne Martin-Fugier, “Les lettres célibataires”, artigo no prelo. Sanne Marie Thiesse, Le Roman du quotidien. Lecteurs et lectures populaires a la Belle Epoque, Paris: Le Chemin Vert, 1984. 12 das educagdes femininas, sejam elas religiosas ou laicas, ¢ que a escrita — assim como a leitura — contradiziam. Queimar seus papéis uma purificagao pelo fogo dessa aten¢o consigo prépria no limiar do sacrilégio. Esse gigantesco auto-de-fé foi o destino que se deu & maioria dos escritos privados de mulheres, ao mesmo tempo que aos arquivos familiares preservados pela longevidade dessas mulheres. A morte siibita, os armarios esquecidos das grandes casas provinciais s4o os tinicos empecilhos desse incéndio. A imagem das mulheres ateando fogo aos seus cadernos intimos ou a suas cartas de amor no final de suas vidas sugere a dificuldade feminina de existir de outro modo que no instante fugaz da palavra e, por conseqiiéncia, a dificuldade de recuperar uma meméria que nao deixou rastros. A PAIXAO DAS COISAS Mais que a escrita proibida é ao mundo mudo e permitido das coisas que as mulheres confiam sua meméria. Nao aos prestigiosos objetos de colec4o, coisa de homens ansiosos por conquistar pela acumulacao de quadros ou de livros a legitimidade do gosto. No século XIX, a colegao, mais ainda a bibliofilia, so atividades masculinas. As mulheres se dedicam & matéria mais humilde: a roupa e aos objetos, bugigangas, presentes recebidos por ocasiao de um aniversdrio ou de uma festa, bibel6s trazidos de uma viagem ou de uma excursdo, “mil nadas” povoam as cristaleiras, pequenos muscus da lembranca feminina. ‘As mulheres tém paixdo pelos Pporta-jdias, caixas e medalhdes onde encerram seus tesouros; mechas de cabelo, jéias de familia, miniaturas que, antes da fotografia, permitem aprisionar 0 rosto amado. Mais tarde, fotografias individuais ou de familia, em porta-retratos ou em dlbuns, esses herbdrios da lembranga, alimentam uma nostalgia indefinidamente declinada. Albuns de desenhos ou de cartdes- postais memorizam as viagens. De resto, as mulheres s3o convidadas a constituir tais colegdes pela cagenhosidade da inddstria da papelaria em plena expansio. Agendas, keepsakes? vindos ‘ia Inglaterra incitam a transcricao dos acontecimentos privados. “Sob a Monarquia de Julho!®, toda jovem de boa familia tem seu Album que ela apresenta aos amigos da casa. Lamartine € quem inaugura o de Léopoldine Hugo”, escreve Alain Corbin. No final do século XIX, o editor Paul Ollendorf langa 0 Recueil Victor Hugo (Coletanea Victor Hugo), transposigio dos birthday books [livros de aniversdrio] britinicos; a pagina da esquerda € ocupada por trechos de obras do Mestre, a Em inglés no original, tipo de livro-dlbum, geralmente ilustrado, que costumava ser oferecido como presente no século XIX. (N.T.) 1Reinado de Luis Felipe d'Orléans de 1830 a 1848. (N.T.) 13 da direita menciona apenas a data do dia; é utilizado como uma coletanea de poemas, de pensamentos, uma agenda ou um didrio, pouco intimo porque aberto aos préximos. Essas prdticas implicam na idéia da capitalizagdo do tempo, cujos instantes privilegiados podem ser revividos pela rememoragdo, reencenados como uma pega reapresentada sem cessar. Elas se inscrevem num século XIX que faz do privado um lugar da felicidade imével, cujo palco é a casa, 0s atores, os membros da familia, ¢ as mulheres, as testemunhas ¢ as cronistas. Mas essa missdo de memorialista deve respeitar limites implicitos. O pessoal ¢ 0 muito intimo s4o banidos como indecentes . Se a jovem se obstina até 0 ponto de se apropriar, timidamente, do didrio intimo, a mulher casada deve renunciar a ele. Nao ha lugar para tal forma de escrita no quarto conjugal. A mem6ria feminina, assim como a escrita feminina, é uma meméria familiar, semi-oficial. A roupa de cama, mesa e banho, o vestudrio constituem uma outra forma de acumulacao. O enxoval, cuidadosamente preparado nos meios populares, sobretudo rurais, € “uma longa histéria entre mae e filha”.!! A. confecg4o do enxoval é um legado de saberes e de segredos, do corpo e do coragaio, longamente destilados. O armario de roupa é ao mesmo tempo 0 cofre e o relic4rio. A espessura dos lengdis, a delicadeza das toalhas de mesa, Os monogramas nos guardanapos, a qualidade dos panos de limpeza ganham. sentido numa cadeia de gestos repetidos e engrinaldados. A roupa de cama, mesa e banho pertence a esfera intima, o vestudrio & esfera ptiblica. Este ultimo est4 ligado a essas aparéncias que cabe as mulheres, sobretudo burguesas, preservar. A moda, nova forma de civilidade, € um cédigo ao qual convém submeter-se sob risco de decair, E uma tirania exercida sobre o corpo das mulheres a qualquer hora do dia, todos os meses de uma estacao. Déveria mostrou isso ao detalhar os trajes que uma mulher elegante deve vestir, hora a hora. Mas este dever, do qual algumas desfrutam prazer, outras um tédio profundo, educa a meméria. Uma mulher inscreve as circunstancias de sua vida nos vestidos que ela usa, seus amores na cor de uma echarpe ou na forma de um chapéu. Uma luva, um lengo s&o para ela reliquias das quais s6 ela sabe o prego. A monotonia dos anos se diferencia pela toalete que fixa também a representag4o dos acontecimentos que fazem bater o cora- do: “Naquele dia eu usava...” ela diria. A memoria das mulheres 6 trajada. A vestimenta é a sua segunda pele, a tinica da qual se ousa falar, ou ao menos sonhar. A importancia das aparéncias faz com que as mulheres sejam mais atentas ao seu léxico. O m4ximo que elas podem se permitir é 0 rosto 1 Agnés Fine, “Le trousseau”, in: Une Histoire des femmes est-elle possible? (M. Perrot, organizadora), Marselha: Rivages, 1984, 14 do outro. Pelos olhos elas pensam atingir a alma. E € por isso que elas se recordam de suas cores, as quais os homens s4o normalmente indiferentes. UMA MEMORIA DO PRIVADO Assim, os modos de registro das mulheres estéo ligados a sua condic&o, ao seu lugar na famflia e na sociedade. O mesmo ocorre com seu modo de rememoragdo, da montagem propriamente dita do teatro da meméria. Pela forga das circunstancias pelo menos para as mulheres de antigamente, e pelo que resta de antigamente nas mulheres de hoje (0 que nao € pouco), € uma mem6ria do privado, voltada para a familia e o intimo, 0s quais elas foram de alguma forma delegadas por convengao e posigao. As mulheres cabe conservar os rastros das infancias por elas governadas. As mulheres cabe a transmissAo das histérias de familia, feita freqtientemente de mae para filha, ao folhear dlbuns de fotografias, aos quais, juntas, acrescentam um nome, uma data, destinados a fixar identidades j4 em via de se apagarem. As mulheres, 0 culto aos mortos € 0 cuidado dos timulos, pois é de sua incumbéncia 0 cuidado das sepulturas. Florir os timulos dos seus no dia de Finados, costume instaurado a partir da metade do século XIX, se tora uma obrigac3o das filhas ¢ das vitivas. O que fixa as vezes a tiltima morada é a proximidade do cemitério, como se fosse uma dependéncia da casa. Esta situagSo foi ainda acentuada pelas guerras, sobretudo pela I Guerra Mundial, devoradora de homens, cujos nomes espalham-se sobre os monumentos aos mortos nas pracas dos vilarejos. Mas delas, enlutadas chorosas, ninguém se lembrar4. A meméria das mulheres é verbo. Ela est4 ligada 4 oralidade das sociedades tradicionais que lhes confiava a misso de narradoras da comunidade alded. No povoado da Creuse de Martin Nadaud, a velha Fouénouse conta na vigilia invernal a gesta do lugar, Mas quando se instauram as migrag6es que, no limiar do inverno, trazem da cidade operarios da construgao civil, cheios de presentes e de boatos da capital, Fouénouse se Tetrai no seu canto e, pouco a pouco, se cala. Durante a vigilia, doravante, “a palavra serd sempre do pedreiro, é ele que vira a cabega das meninas, é a ele que os pais dao mais facilmente a mao de suas filhas”.!2 Cena significativa; muito provavelmente ocorreu no século XIX um certo refluxo da palavra feminina, desqualificada pelas formas de comunica¢do modemas, os sucessos retumbantes da escrita: correspondéncia, cartées-postais, didrios. E, ao mesmo tempo, perda insidiosa de uma fungao tradicional e ruptura de certas formas da mem6ria. I alain Corbin, Archaismne et Modernité en Limousin, Patis: Rivitre, 1975, I, p. 224. 15 AS RECITANTES E por isso que o desenvolvimento recente da hist6ria dita “oral” é-de certo modo uma revanche das mulheres. Sabe-se 0 quanto essa forma nove de coleta de materiais para a histdria deve as experiéncias norte-americanas (notadamente no Quebec) e polonesas e, sobretudo, a obra pioneira de Oscar Lewis, The Children of Sanchez [Os Filhos de Sanchez]. Dar a palavra aos deserdados, aos povos sem histéria, aplicar 4s populagdes urbana contemporaneas os métodos empregados pelos etndlogos para os pseudo “primitivos”: estes foram no inicio os pressupostos dessa demarche. Na Franga, ela se desenvolveu em diversas diregdes desde os anos 1970; da “public history” (hist6ria publica] dos grandes atores sociais, individuais ov coletivos, & humilde “hist6ria de vida” extraida da “gente comum”. Um certo populismo herdado de 1968, mas também 0 desejo de conservar a meméria dos mundos em desmoronamento ~ tal como a regido da Lorena metalurgica ¢ sinistrada — conduziram nessa direc&o.'3 A historia de vida deve mais & etnologia que & sociologia, por seu cardter nao diretivo (ou semidiretivo), sua exigéncia de participagao de parte do observador, forgosamente mais envolvido que num question4rio banal. As mulheres foram em larga escala participantes dessa aventura, tanto entre as pesquisadoras como entre as pesquisadas, ¢ € isto que nos ret¢m sobre este ponto. Muitas razGes contribuem para isso. Inicialmente, a longevidade claramente maior das mulheres (na Franca, atualmente, a diferenga entre a esperan¢a de vida dos homens ¢ das mulheres é de oito pontos)!4 que hes confere um papel efetivo de testemunhas, sobreviventes das épocas passadas. Trata-se de reconstituir a hist6ria, factual ou cotidiana, de uma familia ou de um bairro, de apreender o “vivido” de um grande acontecimento ptblico? Para o perfodo entre guerras, ¢ mais ainda, evidentemente, para 0 inicio do século XX, so as mulheres que resistem. A maioria dos pesquisadores que operam com este método péde comprova-lo. Necessariamente, eles se defrontam com uma amostragem sexualmente desigual. Segunda razdo: o mutismo dos homens, em um casal, ao tratar-se das recordagdes da infancia ou da vida privada, contrasta com a loquacidade muito maior das mulheres; ou o trabalho e¢ a atragdo exterior terdo atrofiado a meméria masculina sobre estas quest6es, ou ainda que falar de si mesmo seja contrario & honra viril que considera essas coisas negligencidveis, abandonando as esposas 0 lugar junto ao bergo e as questdes relativas a casa. 13Para uma andlise sugestiva desse fenémeno, cf. Pierre Jeudy, Mémoires du Social, Paris: PUF, 1986. 14M.L. Lévy, "Modemité, Montalité”, Populations et Sociétés, n° 192, junho 1985. 16 Essa concepgo de uma indecéncia do privado é particularmente forte na classe operdria, toda voltada para a realizacao do homem de mérmore da consciéncia de classe. Falar de sua vida € expor-se, entregar-se ao olhar dos seus inimigos, esta burguesia sempre pronta ao desprezo. Esta era a opiniao de Proudhon, que sempre se recusou a escrever sua autobiografia por temer desempenhar o papel de malabarista na praga publica. “Os fatos da minha vida s40 menos que nada”, dizia ele. “Nao € bom para a liberdade e a honra de um povo que os cidadaos coloquem num palco a intimidade de suas vidas, tratando-se uns aos outros como os servigais de comédia e os saltimbancos”.!5 Os militantes operdrios, notadamente aqueles que sio ligados 4 CGT e ao PC, tém horror de falar de suas existéncias pessoais e limitam-se as suas vidas militante ¢ sindical. Sobre a familia ¢ 0 cotidiano, que se pergunte as mulheres! Esse aspecto das coisas lhes cabe. Mesmo em um casal de tradic&o autogestionéria (anarco-sindicalista) como aquele entrevistado por J. Carroux-Destray, a partilha da memoria obedece a uma definigéo muito rigida dos papéis sexuais. Amédée fala do trabalho, greves, ago reivindicativa; Marcelle, de moradia, vida material ¢ historia familiar!®, Na rememoragdo, as mulheres sfio em suma os porta-vozes da vida privada. Enfim, 0 feminismo desenvolveu uma imensa interrogagdo sobre a vida das mulheres obscuras. Tornar visivel, acumular dados, instituir lugares da memoria (arquivos de mulheres, diciondrios...) foi uma das preocupagdes de uma histéria das mulheres em plena expans&o nos tiltimos quinze anos. E na falta de testemunhos escritos, buscou-se fazer surgir 0 testemunho oral. Nos interrogamos sobre 0 papel das mulheres nos acontecimentos piiblicos, por exemplo, a Resisténcia ou a agdo das mulheres dissimulada na trama do cotidiano ~ uma sacola de compras, uma xicara de cha - era freqiientemente considerdvel, do mesmo modo que sobre sua existéncia particular na vida social. De inicio as mulheres manifestavam reticéncias, seu pudor se abrigava sob o pretexto de sua insignificAncia. Dizer “eu” nao é facil para as mulheres a quem toda uma educag3o inculcou o decoro do esquecimento de si, a tal ponto que para contar sua vida, certa operdria - Lise Vanderwielen — prefere se abrigar sob a ficcao de um pseudo-romance!7, Finalmente tudo depende da natureza da relagao com a pesquisadora; uma certa familiaridade pode vencer as resisténcias e liberar um desejo recalcado de falar de si, com o prazer de ser levada a sério e ser, enfim, 15p.3, Proudhon, Mémoires de ma vie, textos autobiogréficos diversos reunidos por B. Voyenne, Paris: Maspéro, 1983. 167, Carroux-Destray, Un couple ouvrier traditionnel. La vieille garde autogestionnaire, Paris: Anthropos, 1974. I Lise Vanderwielen, Lise du Plat Pays, roman, Little: PUL, 1983. Posfécio de Francoise Cribier. sujeito da hist6ria, As mulheres se acostumaram com 0 gravador, sentindo até um certo orgulho no uso dele. Os asilos femininos tomaram-se campo de pesquisa, com alegrias diversas, ligadas & qualidade das interlocutoras. Essas experiéncias permitirdo talvez um dia analisar mais precisamente © funcionamento da meméria das mulheres. Existe, no fundo, uma especificidade? Nao, sem diivida, se se trata de ancor4-la numa inencontravel natureza ¢ no biolégico. Sim, provavelmente, na medida em que as praticas s6cio-culturais presentes na tripla operagfo que constitui a meméria — acumulagao primitiva, rememoracdo, ordenamento da narrativa ~ esté imbricada nas relacdes masculinas/femininas reais e, como elas, é produto de uma hist6ria, Forma de relacdo com o tempo e com 0 espaco, a meméria, como a existéncia da qual ela é o prolongamento, é profundamente sexuada.

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