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Psicandlise e psiquiatria “Psicandlise e a psiquiatria” € o titulo da conferéncia dessa noite; partirei de uma evidéncia: h4 antinomia entre a posigdo do psiquiatra ea do psicanalista. Por que dizer que h4 uma antinomia entre a posigao do psicanalista a do psiquiatra? Primeiramente, a demanda com a qual cada um se confronta nao tem absolutamente a mesma estrutura. A DEMANDA Quando feita ao psicanalista deve partir de uma exigéncia, de um ideal, da propria iniciativa do paciente, de seu proprio movimento. Mesmo deixando em suspenso como podemos pensar a idéia e 0 conceito de liberdade, totalmente absurdos, mas que nos interessam — nao estou me referindo & liberdade politica — a demanda ao psicanalista 6 o modo do paciente interpretar para si mesmo o préprio sintoma, a partir do que sabe e do que nao sabe e do desconforto de tipo especial que lhe causa. Lembrem-se de que o préprio Freud atribufa seu fracasso com a jovem homossexual, quando celebrizou 0 caso, ao fato de que a demanda havia partido da familia e nao da paciente, razao pela qual achou que 0 tratamento nao péde ser levado a termo. A demanda feita ao psiquiatra é diferente. E na maioria das vezes, uma demanda social. Em geral, nao € o paciente que escolhe o hospital e sim a familia, os vizinhos, o Poder Publico. Escolhem pelo paciente. “Em geral”, pois nem sempre é 0 caso. Hi pacientes que escolhem o hospital como um refigio para se colocarem ao abrigo da loucura. Todos nds conhecemos esses casos; até mesmo os que escolhem tao 121 122 Lacan elucidado bem esse refiigio, que o hospital psiquidtrico se torna a sua doenga, ¢ ai todo o esforgo deve consistir em manté-los fora. Nao é abusivo dizer que a seleg3o dos pacientes psiquidtricos & social € que, se o paciente est4 enfermo, é por dificuldade de adaptagao social. O que certamente é seu dilema, mas que nao deixa de ser o da sociedade, visto que esta tampouco se adapta a ele. Hoje em dia, os psiquiatras de toda a parte se confrontam continua- mente com a dimensao social e, eventualmente, politica de seu trabalho, procurando solugdes sociais e politicas para a doenga. Os loucos tinham outrora um lugar reservado na ordem social; nem imagindvamos curd-los. Isto sabemos desde os estudos que foram feitos, hd uns quinze anos por iniciativa de Michel Foucault. A preocupac3o terapéutica com os loucos demonstra intolerancia social & loucura. E um cfrculo, ¢ nele estamos presos. O!mais contestatério dos filésofos, quando se viu perseguido por uma erotomanjaca, recorreu & policia, ¢ cle préprio acabou indo parar num psiquiatra. Evoco isso para ser realista: a demanda psiquidtrica é essencialmente oposta a psicanaliti SINTOMA Também o sintoma no é 0 mesmo no campo psiquidtrico e no psicanalitico. O psiquidtrico € constituido pelo psiquiatra, que o ob- serva, 0 descreve, o Classifica ¢ Ihe di nome. Trata-se de uma clinica de observagiio. Qual é a referéncia dos grandes sintomas classicos, 0 mancirismo, a estercotipia, 0 negativismo, as bizarrias, o paradoxismo, as discor- dancias, os atipismos...? A referéncia Gltima & o sentimento do psi- quiatra que ¢ teorizado no ambito da psicologia c da teoria do psiquismo com seus fundamentos escolisticos. Voltando atras, encontramos estes fundamentos, que nos obrigam a cnumeragio, a descricio, aclassificagao, distinguindo sintoma primario ¢ secundario, com tendéncia a considerar primérias as perturbagdes que podem ser compreendidas do ponto de vista neurofisiolégico. O ideal seria a clinica ter um modelo. Este seria a paralisia geral, a que lamentamos que nem todas as doengas mentais obedecgam e que nao possamos encontrar ai um agente (do “agrad4vel” como o trepo- nema da sifilis, com deméncias infecciosas, quc podcriam constituir 0 modelo de uma boa clinica. Mas pouco importa a ordem da clinica Psicandilise e psiquiatria 123 psiquidtrica. A fineza, as nuances da clinica classica sio uma ligdo para todos nés, os psicanalistas ¢ os psiquiatras, que parecem ignorar, pelo menos na Franga, a hist6ria da psiquiatria e cabe a nés, na maioria das vezes, lembré-los dessa hist6ria, que nos interessa. Quanto ao sintoma psicanalitico sé existe se for falado pelo paciente, pois a clinica psicanalitica é feita pelo paciente, oriunda de seu proprio discurso. Osintoma freudiano sé existe a partir do discurso do paciente, dentro do dispositivo analitico. Logo, é um paradoxo, mas a base da clinica analitica é a autoclinica, e nao a heteroclinica psiquidtrica. Se o sintoma psicanalitico é constituido na experiéncia psicanalitica, no enderega- mento do discurso do paciente para 0 analista, este faz parte do sintoma, esté implicado em sua fungdo. Por este motivo Freud pode dizer que o primeiro momento da experiéncia analitica se traduz por uma reor- ganizacao do sintoma, a qual requer que o psicanalista tenha sc incluido nele para completi-lo. Isso torna a situagdo bastante dificil para o psicanalista, cuja relagdo quanto ao sintoma nao é de exterioridade. Ele nio pode manter-se 4 distancia, nem desconhecer o fato de af se achar implicado. Charcot, que ignorava estar incluido no sintoma, nos legou uma séric de quadros clinicos, espécie de zoolégico humano. Belos quadros, desenhos que pontilham suas ligGes ¢ que se parecem com fotos. Trata-se de uma zoologia. Nesse aspecto, o psiquiatra desconhece a parte que toma na produgao do objeto de scu estudo. Quanto ao psicanalista, estando implicado no quadro clinico, acha-se numa posigio menos cémoda, no podendo othé-lo A disténcia porque faz parte dele. Freud arriscou-se a escrever as cinco psicandlises, descrevendo apenas 0 caso Freud, que é a sexta psicanilise. Os psicanalistas jamais pararam de se apaixonar pela clinica dos casos de Freud; pelas cinco psicandlises, pela Interpretagdo dos sonhos, pela Psicopatologia da vida cotidiana e por tudo mais. A clinica de Freud, da qual cle € objeto, constitui a disciplina clinica inteira da psicandlise. As pessoas espantam-se por Lacan nao ter escrito casos clinicos: ndo queria que houvesse o caso Lacan, na clinica psicanalitica. Por outro lado, tal caso existe, pois ele resistiu a ser absorvido pela Associagao Internacional de Psicandlise. Tomando a definigdo de clinica que Lacan propés: “‘a clinica é 0 real como impossfvel de suportar”, esta nav tem, na psiquiatria © na psicandlise, o mesmo ponto de aplicagio. 124 Lacan elucidado No caso da psicanilise, trata-se de um impossfvel de suportar para © sujeito; no caso da psiquiatra, trata-se do impossfvel de suportar para © corpo social. E claro que um é suscetfvel de recobrir 0 outro em Ccertos pontos e€, por isso os psicanalistas e os psiquiatras tém interesse em trabalhar juntos nos mesmos casos, conquanto suas responsabili- dades no sejam as mesmas, especialmente no hospital. Nao sou a favor da antipsiquiatria que enfatiza a dimenso social da psiquiatria. Alias, ela € um mal-entendido. E, na realidade, um movimento de psiquiatras que se conscientizaram, nao de que tranca- vam 08 loucos, mas de que, em assim fazendo, também se trancavam, Chamaram antipsiquiatria a0 movimento que tem por finalidade tird-los do confinamento, um movimento de liberagao dos psiquiatras. Isto os levou a supor que o respeito A loucura consistia em imitar os loucos: freqiientar sua escola e, até mesmo, se identificar com eles. Ha, inclusive, um certo nimero de vociferantes defensores ingleses da antipsiquiatria que adotou esse caminho. Identificar-se com os loucos nao é a orientagao de Lacan, motivo pelo qual ele foi mal visto pelos antipsiquiatras e pelos discipulos franceses da antipsiquiatria, como Maud Mannoni, que, a0 mesmo tempo, era membro de sua escola. Recriminavam-no por permanecer psiquiatra. Retomarei mais tarde este assunto. Lacan sempre se apre- sentou como tendo formacdo médica e psiquidtrica. E£ da geracio de Henri Ey, um dos maiores mestres dos estudos Ppsiquidtricos na Franga. Henri Ey e Lacan fizeram juntos a residéncia em psiquiatria e apesar das divergéncias — o organo-dinamismo da escola de Jackson e as disciplinas do significante, de Jakobson — conservaram sempre uma relagao de respeito e amizade. O préprio Lacan continuou sua apre- sentagdo semanal, e mais tarde quinzenal, de doentes no sanatério psiquidtrico de Sainte-Anne. Ali, diante de um grupo de discfpulos de residentes e de médicos apresentava um paciente psiquidtrico, cujo caso lhe tinha sido comunicado quinze minutos antes. Durante uma hora ou uma hora e meia fazia a demonstragao do caso: escutava o paciente e lhe fazia perguntas pertinentes e com efeito. Manteve tal prdtica durante todo o tempo de seu ensinamento psicanalitico. Isto serve apenas como nota, pois pretendo retom4-lo nessa dimensao mais adiante. Tento demonstrar que a psicandlise esquece a psiquiatria, com o Pretexto de que tanto a demanda como o sintoma sdo estruturalmente distintos nas duas dimensdes. Psicandlise e psiquiatria 125 Costuma-se imaginar que a psicandlise compreenderia o paciente em oposigao a psiquiatria, e esta manter-se-ia numa distancia objeti- vante quanto a ele. Imagina-se que 0 mérito essencial da psicandlise seria dissolver a fungao do diagnéstico. A partir do momento em que as pessoas passam a se interessar pela psicandlise, a dimensdo particular da experiéncia psicanalitica sensibiliza-os e a psicandlise acaba por ter um efeito dissolvente sobre o diagnéstico psiquidtrico: leva os préprios psiquiatras a evitarem cada vez mais o diagnéstico, que passa a ser visto como uma responsabilidade muito pesada, um risco de objetiva- g%0, um colocador de etiquetas. Os trés pontos: esquecer a psiquiatria, compreender o paciente e nao fazer diagnéstico nado sao exatos, e traduzo aqui o ensinamento de Lacan tal qual o recebi em Sainte-Anne. Primeiramente, a clinica fundamental é psiquidtrica, inclusive para a psican4lise, uma heranga dela, talvez pesada, da qual devamos nos desfazer, mas que, por enquanto, est4 af. Em segundo lugar, compreender nio é psicanilise, Freud ndo é Jaspers. Em terceiro, € da psicandlise que esperamos a verdadeira disciplina do diagnéstico. A CLINICA PSIQUIATRICA A constituigao da clinica psiquiétrica estendeu-se no século XIX ¢ no inicio do século Xx. Foi a disciplina essencialmente francesa e alema que nos legou um quadro muito bem organizado, embora, as vezes, contraditério. Constatamos, porém, que esta clinica de observacao se encontra terminada desde 1920-30, pois a partir daf ndo se descobriu mais entidades clinicas de observagao, conquanto ainda se tente. Ha um fendémeno interessante que se desenvolveu paralelamente aos meios técnicos: por exemplo, a clinica de transexualismo, que nao existia anteriormente, responde bem 4 oferta, porque houve aprimora- mento cirirgico que suscita nova abordagem, com novas entidades. Do ponto de vista da psiquiatria, isto constitui os préprios limites, pois os pacientes se dirigem nao ao psiquiatra, mas ao cirurgido. E somente quando nao consegue obter a cirurgia ou quer fazé-la por si mesmo que acaba indo parar num hospital psiquiatrico. A clinica psiquidtrica, na esséncia, terminou em tomo de 1920-30. No plano teérico passou a ocupé-la o esforco de~apresentar grandes sistemas capazes de defrontar a questdo psicanalitica. O sistema de Henri Ey € um bom exemplo disso, pois os clinicos nao se preocupavam 126 Lacan elucidado com grandes sinteses filoséficas, mas com observagées finas, cheias de nuances. De nosso lado, estamos tentando reeditar os classicos da psiquiatria que, em sua maioria, ndo sao mais encontrados a nao ser em sebos ou em algumas reedicdes feitas nos Estados Unidos. Costumo dizer a meus alunos que os psiquiatras nao se preocupavam com a sistematizagio; foi necessério a psicandlise colocar a questo para que pudéssemos ver florescer esforgos de grandes sinteses sobre © psiquismo. A partir dos anos 20 observamos uma regressao evidente da clinica psiquidtrica. Para verificar isso de forma sistemitica, con- sultei leses apresentadas por residentes em psiquiatria na Franga. S50 todas clas da sociologia; na verdade torna-se cada vez mais rara uma lese clinica. A que se deve esse movimento? Ele é devido a incidéncia dos medicamentos, dos tratamentos quimicos que dissolveram a clinica. Nao interessa mais pensar os fendmenos clinicos, senao a partir dos efeitos que se pode obter com os medicamentos, que passaram a ser 0 principio organizador da clinica. Na maioria das vezes, basta um embrido clinico, basta uma clinica de tragos diferenciais extremamente limitados, que acaba por se sustentar numa leitura de bulas. Evidente- mente essa incidéncia de medicamentos tem um efeito dissolvente sobre 0 interesse clinico. Para aqueles que sabem francés devo aconselhar a leitura do livro de um jovem psiquiatra francés nao lacaniano, que dedicou seu trabalho a histéria da clinica. Foi quem constatou que a clinica estacionou no inicio do século ¢ que, quando falamos dela é a uma outra época que nos referimos. Chama-se Paul Berchcric ¢ seu livro, Les fondements de la clinique. Foi editado por mim, na revista Ornicar?, que & distribufda na Franga por Editions du Scuil. Lamento que nao esteja traduzido em portugués, mas espero que o seja em breve como o sera em espanhol, pois merece ser conhecido.” A relagao da psicandlise com a clinica psiquidtrica nao é de exte- rioridade, pois a descoberta de Freud est4 inscrita em categorias utiliziveis. A entidade polimorfa de esquizofrenia foi inventada por Bleuler, a partir de Freud, para responder a pressdo da descoberta freudiana. Lendo a correspondéncia entre Freud ¢ Jung, podemos seguir © pressionar da psicanlise. Bleuler conseguiu uma sintese magistral com seu conceito de esquizofrenia. Se pudéssemos olhar as coisas asil com o titulo Os fundamentos da clinica. Histéria e estrutura do saber psiquidtrico, por Jorge Zahar Editor. (N.E.) Psicandlise e psiquiatria 127 epistemologicamente verfamos ao mesmo tempo o que ele dissimula ¢ esconde nesse conccito-tampao. Como a psicandlise construiria a clinica sem ter outra além da psiquidtrica? E o que constitui 0 alicerce de suas referéncias ¢ tem um objetivo especifico: a classificagio dos sintomas. Quando apresentei um certo numero de casos no Hospital Italiano de Buenos Aires, no fiquei desconcertado, embora fosse a primeira vez que colocava meus pés ali. Os sintomas se parecem entre si, se dessemelham nas estruturas ¢ contrariamente As clucubragées de pes- soas que se acreditam contestatorias, hd um ndmero muito restrito de sintomas. £ uma idiotice imaginar que a loucura ou a neurose scria um caminho de criatividade. Pelo contrario, é bastante padronizado. 86 quem nunca pisou num hospital psiquidtrico poderia imaginar que a esquizofrenia ¢ a parandia seriam o dominio da grande criatividade equivalente 4 que se obtém com a sublimagdo de Freud. Os sintomas so padronizados, dando assim fundamento a clinica. A psicandlise tem vocagio para transformar a clinica. Transformou a clinica da histeria ¢ a propria histeria, Por sinal, € 0 que se manifesta na pergunta: por que os grandes sintomas histéricos desapareceram ou, pelo menos, diminuiram tanto. No reslante, cntretanto, nao se pode dizer que a psicandlise tenha feito scu trabalho, h4 ainda muito por fazer. Entendo que fez surgir a psiquiatria infantil, que nao tinha consisténcia antes da psicandlise ter se interessado pela crianga. Ai as relagdes so de involugdo da propria psicandlise na psiquiatria. O fato é que temos de constatar que a psicandlise nado pode desco- nhecer que sua clinica de referéncia é a psiquidtrica. NAO SE DEVE COMPREENDER © PACIENTE No que diz respeito a compreender o paciente, privilégio da psicandlise sobre a psiquiatria, trata-se do contrério. Aprendemos com a experién- cia psicanalitica que ndo se deve prejulgar o significado ligado a um significante. Ainda mais hoje em que o vocabulério psi se infiltrou no cotidiano. Quando o paciente nos diz ter depressdo, fazendo ele proprio 0 diagnéstico, que quer dizer? Nao devemos imaginar ter compreendido © que a “depressdo” quer dizer. Da mesma forma nao devemos nos contentar com o diagnéstico da histeria, quando o paciente diz ter alucinagées, pois 0 psicético nao diz isso, mas tem. 128 Lacan elucidado Pelocontrario, diz ser real. Este € um dos critérios que faz a diferenga entre 0 histérico € 0 psicético. Se h4 uma ligdo a tirar da experiéncia psicanalitica, € a de que no deve imaginar compreender o paciente; seria uma elucubracao. Na psiquiatria € de Jaspers, pois conhecemos seu trabalho sobre a compreensao. Quando Lacan fez 0 semindrio sobre a psicose, seu primeiro cuidado foi o de demolir a idéia das relagdes de compreensao, pois € a mais perigosa que se pode ter, por esséncia, devemos nos manter a uma certa distancia do outro. O humanitarismo que con: pura e simplesmente em dizer “tu és meu irmio” 6 a via mais opressiva, a via da dominagdo. O que nos importa é perceber 0 discurso do outro em sua particularidade, sem prejulgar a partir de um acordo de almas ou de consciéncias. O DIAGNOsTICO Se hé algo que a experiéncia psicanalitica pode ensinar é que existem estruturas e so sélidas, no se modificam e nao passam de uma para outra. Costumamos pensar que haveria flutuagdes de uma estrutura para outra. Assim as pessoas se entusiasmaram pelo chamado border- line, que se tornou um caso limite, particular da espécie. Freud diz haver estruturas, com Idgica c tipo de sintoma, por vezes, dificeis de ser revelados: a Iégica e 0 sintoma. Portanto a ligao da psicandlise opde-se a idéia habitual que despreza o conceito dos genéricos. No que tange A psicase ¢ 4 histeria, convém lembrar que isso se torna mais patente. H4 promotores da psicose histérica. Lacan, em suas apresentagdes de doentes, mostrava-se vigilante para distin- guir, em cada caso, se se tratava de psicose ou de histeria, o que muitas vezes € diffcil precisar. Apesar das dificuldades ele sempre soube se decidir por uma ou por outra. Por sinal o estilo da psicose e o da histeria nao tém nada em comum. Nao basta que o paciente lhes diga coisas estranhas ou que lhes paregam estranhas, contraditérias, abundantes em termos do imaginério, para que Ihe seja atribuido um diagnéstico de psicose. Vejam, por exemplo, em que estado de confusio e delirio o Homem dos Ratos chega a Freud, o que nao impede sua neurose obsessiva de ser paragigmitica. E totalmente insensato ver nesse caso © diagnéstico de psicose, baseado em fenémenos imagindrios no indicativos da cstrutura cm si. Da mesma forma, uma histérica que vi, ainda na semana passada em Buenos Aires, prodigalizava as mais Psicandlise e psiquiatria 129 loucas identificagdes entre 0 sono e o despertar. Tanto a psicandlise quanto Lacan acentuam que nao se deve recuar diante de um diagnéstico de estrutura. O que precisamos procurar no exame do psicético é o ponto de certeza. Nao devemos imaginar que termos como certeza ou saber sejam somente filos6ficos. O fato de serem termos hegelianos ou cartesianos nao deveria fazer com que os psiquiatras se opusessem ao conhecimento que nos trazem. Do que mais sofre 0 parandico sendo do saber do Outro? Foi em seu préprio texto que isso se fez perceptivel. Alids, demonstrei isso num dos casos que me foram apresentados na Argentina € que tive a oportunidade de retomar durante os coléquios clinicos em que estive a convite do dr. Forbes. Um belo caso, bem schreberiano. E preciso refazer a clinica, e os psiquiatras estdo tendo dificuldade nessa Area. Pelo menos na Franga, a psiquiatria se encontra em situa¢ao de grande mal-estar. De um lado, sua autonomia, seu dominio, comega aser tomado pela biologia molecular, que propde seu desaparecimento. Por outro, ha segmentos de interesse pela psicandlise que encurralam os psiquiatras entre duas forgas e no lhes deixa outra alternativa além da assisténcia social. HA, ainda, 0 poderio do medicamento, cujo progresso ndo esté em suas mos ¢ a tentativa dos bidlogos de atingir um alvo cada vez mais preciso, tornando impossivel o estabelecimento de relagdes estaveis com o paciente. Ha ainda um outro fator sério para deixar os profissionais da 4rea acabrunhados: eles podem se considerar terapeutas ou psicoterapeutas, mas os psicéticos nio os consideram assim. A partir dai fazemos uma pergunta a psicandlise: que pode cla fazer pelos psic6ticos? Que pode ela fazer por nds, terapeutas de psicdticos? Devemos reconhecer que ela. com freqiiéncia, nao pode fazer nada. que a li¢do do dr. Lacan, em suas apresentagdes de doentes, era apenas uma ligdo de humildade. Podemos tentar interpretar os sintomas para 0s psicéticos delirantes, mas eles o fazem bem melhor. Ao invés disso, podemos manter atividades de apoio com méritos sociais, mas que nao est4o no campo da psicandlise. Precisamos saber quando estamos dando apoio a alguém, no caso do psicético, pois, se nos dispusermos a ajudar uma histérica, afunda-la-emos, nao deixando chance alguma para que se safe. E por isso que o diagnéstico estrutural pode ter importancia. Nao & assisténcia social 0 que a psicandlise pode fornecer a psiquiatria, mas concurso para exame de casos e seu desenvolvimento. Fora isso, mesmo 130 Lacan elucidado sendo especialmente pessimista, Lacan elaborou a tese de que o psicanalista ndo deve jamais recuar diante da psicose. Isto significa que, sem duvida, ele pode e deve tentar. Foi pelo fato de todos esses problemas terem se tomado muito prementes na Franga, devido ao desenvolvimento do setor psi — intenso durante uns dez anos, dado o interesse pela psicandlise, e pelo ensino de Lacan — que ele criou a Segao Clinica no Departamento de Psicandlise de Paris Vill, com a finalidade de confrontar psicandlise e psiquiat Trata-se de uma 4rea, uma se¢io do Departamento, onde trabalham juntos psicanalistas ¢ psiquiatras. Temos ligagio com insti- tuigdes hospitalares, onde se dispensa ensino, fazem-se grupos de pesquisa e apresentagdes de doentes, sobretudo a partir dos dltimos trés anos. E um estudo de certa forma fronteirico que foi inicialmente acolhido pelo servigo do dr. Daumezon em Sainte-Anne. Atualmente, apés a morte do dr. Daumezon, estamos no Hospital Henri-Roussell, no servigo do professor dr. Bertrand. Disseram-me que no Brasil h4 uma certa barreira entre psiquiatras e psicanalistas. Nao é 0 que ocorre na Franga; pelo menos de nosso lado ha interesse permanente pela psiquiatria. Para a psicanilise a freqiéncia ao hospital psiquiatrico € importante somente num sentido: € necessdrio que os psicanalistas se defrontem com a loucura enclausurada, hospitalizada, porque se tranca cada vez menos, Nao € tanto pela clinica, mas pelo fato de os loucos demons- trarem a exterioridade do inconsciente. Esta ligao do automatismo mental, segundo a qual o inconsciente funciona fora, e daf domina o sujeito, como bem o diz o indivfduo vitima, 0 louco, que melhor do que ninguém nos dé a razao por que a experiéncia da psicose € 0 fio condutor do ensino de Lacan. LACAN PSIQUIATRA: O CASO AIMEE Quando era um jovem psiquiatra, Lacan esteve no servigo do dr. Claude, de quem foi aluno. O engragado é que em seus Ecrits, no € ao dr. Claude que ele fez referéncia, mas ao grande psiquiatra francés de quem ja Ihes falei, 0 mestre de Lacan, 0 Gnico que, como ele préprio diz, conhecera na psiquiatria, Clérambault. Era o psiquiatra da “ Enfermaria Especial do Depésito”, “ Infirmerie psychiatrique de ta Préfecture de Police de Paris”. Assistia a uma enorme quantidade de pacientes, porque todos os individuos recolhidos Psicandlise e psiquiatria 131 pela policia na Paris dos anos 20, iam parar em sua enfermaria, que os redistribufa pelos diferentes servigos. Foi no papel de distribuidor geral que ficou o dr. Daumezon durante muito tempo. Enquanto isso durou foi interessante, pois ao correr das horas, todos os pacientes recolhidos em Paris, 14 vinham se refugiar, 0 que era muito instrutivo, As sessdes de que participei, davam-nos uma boa formagiio e os médicos do hospital tinham oportunidade de examinar os pacientes mais interessantes, 0 que pareceu um abuso aos outros psiquiatras de Paris que fizeram com que o servico centralizado desaparecesse hd uns dois anos. Clérambault foi quem inventou o “automatismo mental”, categor ue no sei se & praticada aqui. Retomou este tema indefinidamente. escandaloso que hoje no se ache mais em Paris nenhuma de suas obras, estdo esgotadas. O automatismo mental é um conceito que permite agrupar tudo que provém de influéncia externa sobre 0 sujeito. E 0 que se costuma chamar de xenopatia ou sentimento de que as coisas nos vém de fora, as palavras ¢ 0 pensamento sio escutados. Antes de serem formulados, os pensamentos sdo comentados ou mesmo impostos e, sem mediagio, se fazem ouvir no interior do sujeito, que assim imagina a voz do Outro. Perguntamo-nos por que este conceito nao foi criado antes, j4 que é o da exterioridade do discurso na esfera mais intima. Se sua influéncia foi limitada, porém, é porque era mecanicista € organicista a teoria que Clérambault claborou do fendmeno que isolara. Lacan percebeu que o organicismo nada mais era que uma metdfora que tentava dar conta do cardter real para o sujeito dessa influéncia anterior e que sua obra é a descrigio estrutural que faz 0 discurso funcionar. Toda uma parte do ensino de Lacan que o conduziu a disting entre 0 outro semelhante ¢ 0 grande Outro, lugar da fala, esté apoiada na experiéncia do automatismo mental, posto que af, ele pds as claras a fungdo grande Outro do discurso, que fala no interior da propria identidade. Nao seria sem interesse observar por quais vias Lacan, vindo da psiquiatria, chegou a psicandlise no infcio dos anos 30. Sua tese sobre a psicose parandica, relacionada A personalidade, é a ultima grande tese da clinica francesa classica. No inicio, h4 uma parte histérica que nos remete a uma bibliografia enorme; a parte central € a monografia, “O caso Aimée”, titulo com o nome da paciente. Trata-se de um caso de delfrio passional, que tem como particularidade a passagem ao ato dirigido ao longo da existéncia, através de personagens diversos, 132 Lacan elucidado acabando por atingir pessoas com a passagem ao ato. Lacan diz que tinha trinta casos como aquele, mas fez a monografia, escolhendo trabalhar ndo com a generalidade, com o trago comum aos 30 casos, mas, pelo contrdrio, no particular, no mais preciso, considerando que € trabalhando na intensdo que se pode retirar ligdes gerais. A ligao perdeu-se completamente, pois mesmo quando se tenta fazer uma tese clinica, o que se faz é empilhar um certo néimero de casos para encontrar as idéias gerais, e isso é uma pena. Lacan publicou os escritos da paciente, nos quais esto expressos seus delirios. A tese de Lacan foi muitissimo apreciada no mi surrealista, como mostram os artigos da revista Le Minotaure. Foi da tese de Lacan que Salvador Dali tirou seu conceito de parandia critica. Desde entio se imaginou que Lacan tinha simpatia pelos surrealistas, © que € falso, eles € que simpatizavam com Lacan. Ele sempre considerou o surrealismo academicista, jamais tendo acreditado em suas virtudes contestatérias e considerando a psicandlise bem mais interessante. Retomando o caso, é espantoso e singular que a passagem ao ato tenha bastado para fazer-Ihe desaparecer 0 delirio. A opressdo contra as figuras de seu teatro conseguiu satisfazer alguma coisa. Lacan tenta saber o que, ¢ emite um principio engragado, um traco preciso do jovem Lacan psiquiatra: “a natureza do tratamento demonstra a natureza da doenga”. Trata-se, portanto, de um principio epistemolégico notdvel. Se pudermos saber 0 que fez desaparecer 0 delirio, saberemos de que sofria ela. Dos fatos que Lacan expe conclufmos: 0 que a curou nio est4 no ato cometido e sim no castigo imediato decorrente dele. Este, deveria ser, entao, 0 principio de sua doenga. Diz ele: “observo nela 0 desejo de autopunigio, Como o desejo de autopunigao a satisfez, ei-la curada.” Foi o que levou Lacan para a psicanilise. Encontrou na obra de Freud dos anos 20 0 conceito de supereu como instancia do mecanismo de autopunigSo. E considerou o caso de sua paciente como 0 prototipo de uma parandia de autopunicdo, o inverso da de reivindicagdo. Foi esta sua tiltima tentativa na psiquiatria. O importante é a referéncia ao conceito de supereu, que comporta, na prépria andlise, a énfase da divisio do sujeito: trabalha contra si préprio, nao sendo uma entidade homogénea. Falar de autopuni¢do € a maneira sumdria de captar a énfase deste aspecto: ndo hé razo alguma para que o sujeito queira seu proprio bem. Acreditar nisto € um preconceito filosdfico e psiquidtrico, que, muitas vezes, leva os psiquiatras a quererem o bem do doente em seu Psicandlise e psiquiatria 133 lugar. A esse respeito, é necessério manter distancia, considerar o motivo no desejo de “terapeutizar” pessoas que nao estio pedindo isso. E querer impor-Ihes nosso préprio sintoma. O preconceito psicoldégico relativo 4 questao é acreditar que, pelo fato de perceber, o sujeito é uma unidade quanto a suas diferentes fungdes e perceptos. No entanto, é mais I6gico pensar que ele sinta diferentemente seus diversos perceptos; 0 sujeito da audigao e o da visio nao se recobrem, nao podendo ser definidos do mesmo modo. De que nos serve chamar alucinagao a uma falsa percepgo, somente porque ndo sabemos de que se trata? No seria melhor lidarmos com © que o proprio paciente diz? Sabermos que pensa seu delirio como real, pois para ele o &? Quanto a isto, ndo h4 nada de mais instrutivo do que o fendmeno de vozes impostas ao psicdtico que sofre de automatismo mental. E preciso levar em conta que tal sugestio se apresenta para todas as pessoas através da voz do outro. Hé um efeito que opera quando ouvimos uma voz. E muito dificil escapar ¢ tomar consciéncia das relagdes do sujeito com a propria fala: ndo se pode falar sem ouvir — fato actistico — escutar sem se dividir. Assim, o que se manifesta no automatismo mental é apenas o acentuar-se do fendmeno fundamental da divisdo. Achamos que demos um grande passo ao perceber que na alucinagdo verbal dita motriz havia movimentos, reagdes que o sujeito esbogava. Isto, afinal ndo prova nada. © que nos prova é que esta divisio é consubstancial & propria comunicago ao ato da prépria fala, o que nos levaria a nos ocuparmos da estrutura do ato de ouvir e, ao invés de rejeitar como aberrante o automatismo mental, perceber em que sentido ele prolonga ¢ desnuda a prépria estrutura da comunicaco. Gostaria de tocar ainda no conceito de Lacan sobre a foraclusio, tradugdo que ele fez do termo Verwerfung, trazido de Freud, e que para nés lacanianos continua sendo o fio condutor na questdo da psicose, pelo menos na paranéia, deixando de lado o tema da esquizofrenia. A foraclusio do Nome-do-Pai vem de abordagem freudiana e con- tinua sendo o fundamento do conceito, o mais simples possfvel, que utilizamos como oposto ao recalque neurético, j4 que em ambos os casos temos de levar em conta o “no quero saber de nada disso”, justamente a esséncia do recalque. A diferenga, no entanto, entre neurose e psicose nos obriga a distinguir dois modos de negacao do saber. 134 Lacan elucidado Na neurose 0 recalcado, no sentido de Freud, volta no proprio discurso, no lapso, no ato falho e no sonho, pois o recalcado e seu retorno sao indissociaveis. O que caracteriza a psicose é que o recalcado nao retorma no elemento do discurso, mas para o sujeito no real se tomarmos a sério o que ele diz, Este tiltimo € a foraclusio. Para ser mais preciso: 0 que é recalcado do simbélico retorna no simbélico (lapsos, atos falhos, formagées do inconsciente), o aye € foracluido do simbélico, retorna no real. Por que se pode dizer que isto se refere ao significante que domina no Nome-do-Pai? Para dizé-lo, seria necess4ria uma segunda confe- réncia. Podemos, no entanto, deduzir da experiéncia analftica que a neurose e€ a constituigdo dita normal tém um significante distinto, referente ao Nome-do-Pai, na estrutura do esqueleto de nosso tempe- ramento. Falar em significante é dizer que nada na experiéncia é suficiente para estabelecé-lo. Ser pai é muito diferente de ser mae. HA jade na relagio materna; a paterna, como notou Freud, é essencialmente cultural. A funcao do pai pode ser atribuida a um outro que nio ao genitor biolégico. O Nome-do-Pai é fungo significante; indispensdvel e fun- dadora da ordem simbélica. A hipétese mais simples a partir da andlise é que a psicose resulta da foraclusio desse simbolo especial: 0 Nome-do-Pai fora da ordem simbélica. A interpretagdo analitica no pra de encontrar confirma- des, embora bastante perigosas. Isso levou o epistemélogo Popper a considerar que a psicandlise nao é uma ciéncia, no que tem toda razio, visto que s6 encontra provas a seu favor. Uma ciéncia caracteriza-se pela possi jade de ser falsificada produzindo um fato que iria contra a sua demonstragao. A psicanilise é irrefutével — isto divertiu muito Lacan — é justamente o que constitui sua fraqueza. Contudo, dé muito pano para manga. Lacan abordou o problema da psicose a partir da releitura do caso Schreber, que, longe de ser um caminho obscuro, € a via mais sélida, mais simples, que se pode tragar da questo. Fica porém, a questao de saber se € possfvel recuperar a foraclusao do Nome-do-Pai e enxerté-lo no paciente. Foi o que tentou Melanie Klein. Quanto a isso devemos ser pessimistas, pois 6 certo que no temos relatos de tratamentos de adultos psicéticos. O préprio Lacan, quando Psicandlise e psiquiatria 135, Ihe perguntaram por que nao havia ido mais além de seu escrito sobre a psicose de 1959, respondeu que no tinha experiéncia suficiente sobre © assunto. E como insistissem, acrescentou: “sim, consegui tratar alguns psicéticos, mas nao sei como o fiz”. Esta ligao de humildade deve concluir a conversa sobre psicandlise e psiquiatria. DEBATE P: Esta pergunta é a maneira de fazer com que se esclarega um ponto menos claro de sua exposi¢ao. E sobre a compreensio. Poderfamos pensar que compreender seria a tentativa de reconstituir 0 nticleo do paciente. Juntando esta concepgao 4 sua critica ao conceito de aluci- nago— percepgiio nio falsa, correspondendo a um real parao paciente. Nao estariamos aproximando as duas concepgées? J.-A.M.: Lacan af é muito claro. A relago de compreensio é revers{vel. Nao h4 compreensao, h4 o exemplo dos dois garotos: ao nao entender Perguntava-se ao outro e dependendo da resposta, punigdo ou carinho, chorava ou sorria. O sentido sempre vem do Outro, ao contrério da compreenstio Lacan postulava a dissimetria na experiéncia anal{tica. E da responsabilidade do analista ocupar o lugar do Outro, e o paciente busca o sentido do sintoma no Outro. No entanto o psicanalista nado sabe, coloca-se af uma questdo ética. Decidir o sentido do sintoma implica uma neutralidade, nao é o sentido mas a privacio dele que cura © sintoma. Gostaria de saber 0 que acontece no Bras P: Ao conhecer suas posigdes fiquei agradavelmente surpreso. Nao diria nada muito diferente da impressio j4 traduzida aqui. Foram expostas posigdes que, na abrangéncia geral, so de grande proximidade € se tivéssemos algo a discutir seriam pequenos pontos referentes a exames clinicos, valorizagdo dos sintomas, lida com o paciente..., OU seja, hébitos diferentes ¢ ndo antinomias. Chamou-me sobremancira a atengio a forma de valorizar algumas distingdes, como o histérico contar que tem alucinagées ¢ o psicético 136 Lacan elucidado nio. Nossos pontos de vista so, sob este aspecto, destoantes: freqiien- temente o histérico teria uma maneira toda propria de nos contar sobre suas alucinagdes, mas © psicdtico também nos contaria que tem aluci- Mages, apenas com outro modo de expor. Creio ser isso mais um pequeno detalhe, que nao deve ser transformado em diferenca radical. Eu nao me guiaria pelo exemplo. As divergéncias s0 pequenas e os pontos de referéncias, os esquemas globais parecem muito proximos. J.-A.M.: E um ponto essencial no diagnéstico diferencial. A distingo para Lacan recai na crenga, a histérica ndo cré nunca nas vozes. O Psicético tem uma certeza quanto a isso. Se houvesse tempo poderiamos discutir e trabalhar um caso a partir do material do discurso. O que 0 senhor chama de detalhe € uma questao fundamental. P: Tomo um detalhe do que foi falado. O senhor distinguiu a demanda para © psiquiatra e para o psicanalista. A dirigida ao psiquiatra seria social e a dirigida ao psicanalista seria demanda propriamente dita. Entendo e até concordo. Na medida, porém, que esse individuo traz em si, se constitui, que recebe sentido, poderia ser entendido como social? Percebo a diferenga, mas se o psiquiatra se tomnasse assistente social, qual seria a fungao social da psicandlise? J.-A.M.: HA o social na psicandlise, mas de forma particular. A experiéncia constitui um lago social particular, uma relagao inédita. A psiquiatria € um assunto de Estado, 0 paciente em seu vinculo social. Por exemplo, na Unido Soviética a psiquiatria nao foi interditada como a psicandlise o foi. A relagio com o poder do Estado nao é a mesma para as duas disciplinas. P: Gostaria de ouvir sua opinido sobre as inovagdes clinicas introdu- zidas pela esquizoandlise? J.-A.M.: E a teoria introduzida por Deleuze e Guattari, na Franga isso caiu no esquecimento. HA leitores desse livro, mas como pratica é totalmente desconhecida. Observagdo curiosa € que se ouvem mais declaragées edipianas entre os leitores do livro. P: O senhor disse que uma das diferengas entre psiquiatria e psicandlise consiste em que nos dois casos hé demandas diferentes, que a demanda psiquiatrica é social e que o paciente analitico é analisador, ele mesmo faz a clinica. Nao se trata de armadilha? Os dois sabem ¢ praticam 0 mesmo jogo? Nao se trataré de armadilha para dizer que a demanda psicanalftica nao é social, para negar que a psicandlise nao € uma Psicandlise e psiquiatria 137 instituigdo? Sua verdadeira fungao social e sua posi¢do frente ao desejo, especialmente os pacientes lacanianos? J.-A.M.: Nao se pede ao paciente para ser lacaniano. As vezes isso é pedido aos analistas, se for de bom grado. Uma vez Lacan encontrou no Sainte Anne um caso de psicose em que 0 sujeito sofria de “ palavras impostas”. O caso foi trabalhado sobre esse aspecto enfatizado pelo paciente © por isso 0 designou psicose lacaniana. O social na psicandlise é suigeneris. A associag3o de analistas Lacan intitulou Escola, com a énfase no ensino, porém, ele nunca sustentou um diploma universitério ou uma produtividade social imediata. Na Escola o ensino nao era obrigatério. Por outro lado os analistas tém interesses sociais, no s3o parasitas sociais. Promovem o avango da psican4lise para se abrigar dos efeitos devastadores do discurso da ciéncia, tentando responder 3s questes do discurso contemporaneo. O psicanalista ndo pode reclamar da extralerritorialidade. Sao Paulo 21.10.81

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