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CRITICA AO MODELO DA NOVA SOCIEDADE CIVIL ADRIAN GURZA LAVALLE* Numa bela lig&io de sabedoria cinica, o arguto Didgenes andou pelas ruas, lanterna na mao, em pleno dia e sob uma luz rutilante, em busca de um homem honesto — segundo diz a antiga est6ria a ele atribufda, na qual mostra-se de forma elogiiente a critica do filésofo 4 vangléria € ao egoismo humano. No extremo oposto desse “pessimismo”, 0 pensamento que gravita na 6rbita das esquerdas vive a encontrar agentes e sujeitos de moral elevada, portadores de interesses universais que encarnam a espe- ranga de um mundo justo — arquitetado ora mediante transformag®es radi- cais, ora mediante vagarosas tendéncias de ampliagdo da democracia. Ante a lanterna “otimista” desse pensamento, mais um “homem honesto” teria se sedimentado no decorrer das tltimas décadas: a nova sociedade civil. Porém, nem quanto ao sentido e as carateristicas de seu agir e sequer quanto a suas consegiiéncias é possivel afirmar a existéncia de uma unidade ébvia no universo de préticas de aco coletiva que soem ser abar- cadas na nova sociedade civil. Por isso, é digno de espanto se deparar com amplo consenso no que diz respeito aos atributos que a definem: diversa, plu- ral, ubiqua e representante do interesse geral — a cuja incessante atividade é inerente um {mpeto democratizador. Na América Latina e particularmente no Brasil a leitura de matriz sociolégica dos tltimos lustros tem sido realizada a partir de tal consenso, isto é, através da mira analitica — ou pressupostos légicos — das teorizagées mais influentes sobre a sociedade civil. De fato, 0 * Agradego as acertadas sugestées ¢ a diligente corregao de estilo do amigo Joaci Pereira Furtado. 122 LUA NOVA N° 47 ~ 99 extraordinario sucesso dos modelos teéricos responsdveis pela redescoberta da sociedade civil extravasou 0 mundo académico ¢ conquistou um lugar privilegiado na linguagem da midia, fazendo com que 0 termo “sociedade civil” se aproxime mais de um lugar comum do que de um problema que pre- cisa ser tematizado empirica e teoricamente. Nesse sentido, o intuit do pre- sente artigo é retornar aos fundamentos, cuja precéria solidez no caso do modelo da nova sociedade civil tem sido escamoteada indiretamente tanto pelas boas intengdes do otimismo, avesso a deixar a esperanga sem corpo — quer dizer, sem sujeito ou sem agente coletivo —, quanto pelos efeitos do sucesso, sempre atraente ¢ influente sobre aqueles que tm de optar entre diferentes estratégias analiticas. Para tanto, na primeira parte serd trazida tona a inveterada tradigiio de argumentos sobre a sociedade civil, mostrando, na segunda parte, as infelizes conseqiiéncias da ruptura que o modelo da nova sociedade civil introduz com respeito a essa tradigao. HERALDICA DA SOCIEDADE COM ESTADO LEGITIMO O estado robusto e dindmico de uma sociedade civil, que alastra seus efeitos salutares sobre 0 conjunto da sociedade, nao é um fenémeno isento de controvérsia sequer nos Estados Unidos — pafs de uma lendéria tradigao de consociagao cujo vigor causara espanto a Tocqueville. Segundo © conceituado diagnéstico de Robert D. Putnam, exposto com efeitos de estardalhago no seu artigo “Bowling Alone”, esse espirito plurissecular de comunidade cfvica teria sido fortemente abalado desde a década de 60 e ap6s quarenta anos pareceria apresentar uma franca erosdio. De forma para- doxal, enquanto Putnam alegoriza a faléncia da cultura associativa civica norte-americana na figura de uma sociedade onde apenas € posstvel jogar boliche sozinho, a literatura dominante do modelo da nova sociedade civil € os especialistas na drea falam, para o mesmo perfodo, do auge do asso- ciativismo civil, do renascimento, ressurreigdo, reconstruc ou revival da sociedade civil e de suas conseqiiéncias democratizadoras.? ' Robert D. Putnam, “Bowling alone: America’s declining social capital”. Journal of Democracy, pp.65-T8. 2Cf. v. gr. Jean Cohen e Andrew Arato, Civil society and political theory. pp. 29-82; e, para caso do Brasil, Leonardo Avritzet, “Um desenho institucional para 0 novo associativismo”. Lua ‘Nova, 39, 1997, pp. 149-174, particularmente pp. 161-168; ¢ Sergio Costa, “Contexto da cons- ai it”. Novos Estudos, 47, 1997, pp. 179-182, particularmente pp. CRITICA AO MODELO DA NOVA SOCIEDADE CIVIL 123 Na verdade, existe uma longa tradicdo de conceituagées ¢ inter- pretagdes j4 consagradas sobre a sociedade civil, cuja hist6ria perpassa a obra de autores da envergadura de Hobbes, Locke, Ferguson, Paine, Kant, Hegel, Montesquieu, Rousseau, Tocqueville e Marx.3 A leitura da nova vitalidade da sociedade civil, todavia, no se insere propriamente como continuagdo da perspectiva analitica de qualquer um desses grandes pen- sadores, e embora seu pertencimento de origem remeta ao marxismo, trata- se de uma nova reformulacao francamente distanciada de seus predeces- sores. Alguns dos tragos gerais que definem esse distanciamento, isto é, alguns dos elementos constitutivos do modelo, deveriam resultar polémi- cos — para dizer o mfnimo — e, no entanto, as teses da nova sociedade civil tem recebido surpreendente aceitaco nos meios académico, politico e até na midias As formulagées conceituais sobre a sociedade civil foram, por via de regra, um ponto obrigatério no itinerdrio das teorias orientadas a elaborar a relagdo entre o Estado e a sociedad’ — mais especificamente, dentro daqueles corpora teéricos que preservavam um lugar privilegiado para refletir a especificidade dessa relagdo a partir dos efeitos que, em ambos os pélos, introduzia tanto a dindmica auténoma dos interesses pri- vados desenvolvidos no bojo da prépria sociedade quanto a possibilidade de sua consociago harménica ou conflitante. Com efeito, em funcao do papel e dos alcances reservados nesses corpora & consociagao civil, no que diz respeito a seu vinculo com o Estado, configura-se mais de uma “familia de argumentos da sociedade civil” — nas quais ela aparece definida ora 3.0 estudo mais abrangente sobre as transformagbes da idéia de sociedade civil encontra-se no instigante trabalho de Jean Cohen e Andrew Arato, cf. op. cit., particularmente pp. 83-176; cf. também Norberto Bobbio, Esiado, gobierno y sociedad - Por una teorfa general de la politica. Pp. 39-67. As causas disso serio analisadas mais adiante 5 Nao é fortuito que as formulagdes tedricas da sociedade civil tenham se desenvolvido de forma paralela A problemstica radicalmente moderna dos fundamentos legitimos do poder, isto é, das teorias da legitimidade, Hegel, em sua Filosofia do Direito, refere-se ao caréter especificamente moderno da legitimidade da seguinte forma: “Aquilo que tem de valer agora rio vale mais pela mediagio do poder, vale pouco pela mediagao do habito e dos costumes, mas sobretudo pela mediagao da inteligéncia e do fundamento” (..) “O princfpio do mundo modemno exige que tudo aquito que tem de ser reconhecido por todo homem Ihe aparega como algo legitimo”, Citado por Jrgen Habermas, Historia y erftica de la opinién publica - La transformacién estructural de la vida piiblica. p. 150. (Neste caso € a0 longo do artigo a tradugdo dos textos do castelhano ou do inglés para o portugues € nossa). 6 & expressio “famifias de argumentos da sociedade civil” provem de Michael W. Foley € Bob Edwards, “La paradoja de la sociedad civil”. Este Pats, pp. 2-10. No artigo trabalha-se com 124 LUA NOVA N°47 ~ 99 como identidade, ora como momento, ora como coadjuvante ou como esséncia do Estado. Nesses termos, a influente literatura que alimenta as andlises sobre o renascimento da sociedade civil atribuir-se-ia pujanca sufi- ciente para constituir uma nova familia de argumentos, afirmada a partir do antagonismo dualista entre a sociedade e o Estado. ‘A primeira familia de argumentos corresponde a antiga e sur- preendentemente vital linhagem do jusnaturalismo?. Nela, a sociedade civil 6 introduzida, por oposigao ao estado de natureza, como hipétese inter- mediéria na reconstrugdo légica das razées legitimas do surgimento do Estado. Mais: a sociedade civil é propriamente o Estado, ou seja, 0 Gnico caminho passivel de ser trilhado para resolver os dilemas inerentes ao esta- do de natureza. Por exemplo — para lembrar o discorrer cléssico do Leviatan (1651) —, © promissor direito natural a todas as coisas como eqiiivalente mediato da guerra de todos contra todos. Em Hobbes existem razSes e medos de peso para alguém ajuizado o suficiente ndo renunciar a seu direito natural, “Porém, num Estado civil onde existe um poder apto para constranger a quem — de outra forma — violaria sua palavra, tal temor nao € mais razoavel e, por essa razo, aquele que em virtude do pacto vé-se obrigado a cumprir primeiro, tem o dever de assim fazé-lo"8. Embora a partir de uma construgao “civilizada” do estado de natureza, também Locke, no seu Segundo tratado sobre 0 governo (1690), reafirma a relagéo jusnaturalista de identidade entre a lei e a sociedade civil ao definir a tiltima como uma sociedade com Estado: “Os que esto unidos em um corpo, tendo lei comum estabelecida e judicatura— para a qual apelar —com autoridade para decidir controvérsias e punir os ofensores, esto em sociedade civil uns com os outros; mas os que nao tém essa apel em comum, quero dizer, sobre a terra, ainda se encontram no estado de duas vers6es amplas do argumento da sociedade Tocqueville e herdeira de seus tragos princi poder-se- sociedade ci de arguments. 7 Os amplos consensos atuais em torno & problemética dos direitos humanos sdo tributérios, sem diivida, do arcabougo de argumentos jusnaturalistas. Seja dito de passagem, resulta sur- preendente a escassa atengio que Jean Cohen ¢ Andrew Arato (op. cit. pp. 87-89) dedicam a essa tradi¢do no seu extenso trabalho - ¢ claro que isso decorte de eles considerarem o jus- naturalismo como uma vertente nio moderna de pensamento da sociedade civil 8'Thomas Hobbes, Leviaran o la materia, forma y poder de una reptiblica eclesidstica y civil. p. 112 (grifo nosso). I: a primeira, cristalizada na obra de s, € a segunda, organizada em torno aquilo que ‘chamar de argumento da nova sociedade civil; entretanto, 0 campo das teorias da dificilmente resulta passivel de organizagio a partir de duas grandes familias CRITICA AO MODELO DA NOVA SOCIEDADE CIVIL 125 natureza, sendo cada um, onde nao hé outro, juiz para si e executor, o que constitui, conforme mostrei anteriormente, 0 estado perfeito de natureza"9. A segunda familia de argumentos também equaciona a sociedade civil em termos do Estado, porém, de forma mediata, como um importante patamar de universalizagio de relagdes sociais cujas insufi- ciéncias precisam e pressupdem uma instancia superior de racionalizagao. Ha indmeras divergéncias em torno do sentido e as implicagdes da sub- ungdo da sociedade civil ao Estado, e até sobre o fato de existir propria- mente uma subsungdo ou apenas subordinacdo legitima ou pura domi- naga; entretanto, € claro que, direta ou indiretamente, os diversos argu- mentos beberaram na mesma fonte: Hegel e sua Filosofia do direito (1821). Na elaboragao da que fora a primeira teoria moderna da sociedade civil,!° 0 fildsofo alemao introduziu um deslocamento duplo em face da tradigdo jusnaturalista — que na Alemanha contara com adeptos da enver- gadura de Kant. Em primeiro lugar, Hegel estava preocupado com a rudi- mentar analogia mercantil que, ao fazer do contrato o expediente para sair do estado de natureza e o garante da vida social, condenava a socicdade civil A lamentével condigaio da pura contingéncia. Enquanto 0 contrato per- manece subordinado aos caprichos do arbjtrio e da moralidade de cada um, a realizagao da sociedade civil, cuja “natureza € totalmente distinta e mais elevada”'!, independe das vicissitudes individuais e se insere plenamente no mundo das instituigdes sociais — quer dizer, da eticidade (§§ 182-256). Além de elevar o estatuto da sociedade civil quanto a con- tingéncia do arbitrio individual e aos limitas da vida familiar, fez-se necess4rio, em segundo lugar, diferencid-la do Estado. Na redefinigao, a sociedade civil interage dirigida por fins egoisticos — sistema de necessi- dades (§§ 189-208) — condicionados pela dependéncia multilateral em um sistema de instituigdes administrativas e direitos — policy e corporagdes (§§ 230-256), e Judicidrio (§§ 209-229) —, definindo uma forma de uni- 9 John Locke, Segundo tratado sobre o governo ~ Ensaio relativo a verdadeira origem, exten- ‘sdo ¢ objetivo do governo civil. p. 67 (grifo nosso). 10.Cf. Jean Cohen e Andrew Arato, op. cit. p. 91. 11 (...) em época recente, os direitos do principe ¢ do Estado tém sido considerados como ‘objetos de contrato e sobre ele fundados, como coisa simplesmente comum da vontade € como algo decorrente do arbitrio dos associados em um Estado. Se, de um lado, hd perspec- tivas diferentes, de outro, tém em comum 0 fato de terem deslocado as determinagoes da pro- priedade privada para uma esfera que devido a sua natureza € totalmente distinta ¢ mais ele- vada”. G. W. F. Hegel, Filosofia del derecho. § 75, p. 92 126 LUA NOVA N47 — 99 versalizacao ainda insuficiente, um Estado chamado por Hegel de externo, sem capacidade de impor custos ao conjunto da sociedade.!? Assim, 0 Estado politico ou Estado interno aparece como tinica e tiltima instancia de harmonizacio e universalizagao — que inclui imposigo — de interesses, superando e contendo dentro de si a sociedade civil. Eis 0 resultado do duplo deslocamenio: uma teoria triddica da sociedade civil, na qual existe uma nitida diferenga entre o mundo privado, familiar e de particulares iso- lados, © mundo institucional econdmico e estatal da sociedade civil e 0 magno mundo politico nacional e internacional do Estado. A terceira familia de argumentos da sociedade civil introduz mudanga de substanciais conseqiiéncias ao diferenciar definitivamente aque- la do Estado, Isto implica ndo apenas diluir qualquer possibilidade de iden- tidade entre a sociedade civil e 0 Estado — preocupagao j4 presente em Hegel mediante seu duplo deslocamento —, mas em cancelar a relagdo de interioridade que fazia do Estado 0 Ambito da plena superagao das divergén- cias de interesses prdprias das instituigdes da vida social. Do lado do “patriménio reduzido” da sociedade civil permanecem, entéio, apenas as redes e habitos de associagio, cuja atividade participativa resulta fundamen- tal tanto para a vitalidade de um regime democrdtico quanto para 0 desem- penho do bom governo. Assim, nessa familia de argumentos confere-se espe- cial énfase “na capacidade da vida associativa, em geral, e nos hibitos de associagao, em particular, para fomentar modelos de civilidade nas agdes dos cidadaos numa organizagio politica democrética”!3. Com efeito, para um herdeiro dessa tradigdo como Robert D. Putnam, a virtude principal da sociedade civil “reside em sua capacidade de socializar os participantes sob “normas de reciprocidade’ e ‘confianga’ que so components essenciais do ‘capital social’ necessério para a cooperagio efetiva’ 4. Subjaz na origem dessa familia de argumentos a experiéncia historica de uma sociedade na qual a génese do Estado ¢ a organizagao da i itéria foram processos paralelos — embora nao por isso neces- 120 fim egofsta na sua realizagao, condicionado assim pela universalidade, estabelece um sistema de conexio universal pela qual a subsisténcia © 0 bem-estar do individuo e sua existéncia jurfdica, imbricada com a subsisténcia, o bem-estar € 0 direito de todos, cimentam- se sobre eles e apenas nessa dependéncia sio reais e tém seguranga. Esse sistema pode ser considerado como Estado externo, como estado da necessidade e do entendimento” Ibid. § 183, p. 194 (grifo nosso). 13 Michael W. Foley € Bob Edwards, op. cit. p. 2 14 Ibid. p. 3 CRITICA AO MODELO DA NOVA SOCIEDADE CIVIL, 127 sariamente harménicos. E claro que a leitura classica dessa experiéncia cristalizara-se mediante as intimeras penadas de Alexis de Tocqueville: fora seu olhar sagaz, a colher observagdes cé e 14, que Ihe permitira interpretar as ligdes projetadas por A democracia na América (1835) para o futuro politico da humanidade. Sdo bem conhecidos seus teceios perante a ameaga de uma forma inédita de escravidao, propria dos séculos democraticos, de um “despotismo benigno” decorrente da atomizagao individual, da extingao dos poderes secundarios ou intermedidtios e da expansio e concentragao do poder social no Estado.!5 Entretanto, diferentemente das nagdes européias, onde a desigualdade social impunha a presenga de um poder central particu- larmente forte,'6 a histéria da América do Norte continha uma espécie de antidoto contra os perigos do “despotismo democratico”, a saber, 0 uso irrestrito do direito de associacao.!7 Os interesses privados associados, ou seja, a sociedade civil, representam no apenas a tinica forma de resisténcia dos cidadaos ao poder central, mas, ¢ isto é fundamental, uma condicao do bom governo.!8 De forma aguda, o diagnéstico de Tocqueville mantém uma tensio — nio uma simples oposigo dicotémica — entre, de um lado, a necesséria concentragao do poder ¢ suas conseqiiéncias inerentemente per- versas e, do outro, a plausfvel e inevitdvel vida social igualitéria e livre, que permite o exercicio entusiasta do dircito de associaco, e suas conseqtiéncias também inerentemente perversas. Destarte, nessa familia de argumentos a sociedade civil — que no o Estado, nem um momento ou Estado inferior superado no Estado Nagao — transforma seu estatuto politico adquirindo 0 sentido de veicular a intervengio da sociedade no Estado ou, com maior pre- cisdo, de se opor ¢ participar mediante as associagGes civis, no que tange aos interesses da sociedade, nas diversas instancias governamentais. EXTERIORIDADE, SOCIEDADE CIVIL NORMATIVA E ESTADO. No decorrer do século XX ja foram escritas intimeras paginas que, assumindo a perspectiva analitica da sociedade civil, tém se debrugado na 1S Alexis de Tocqueville, La democracia en América. pp. 632-635. 16 “(...) 0 poder social deve ser sempre mais forte ¢ 0 individuo mais débil num povo democrético, que tem atingido a igualdade mediante um longo e penoso trabatho social, do que numa sociedade democrética, onde desde sua origem os cidaddos tém sido sempre iguais”. Ibid. p. 620 "7 Ibid. pp. 206-212. 128 LUA NOVA N°47—99 andlise do Estado e da democracia contemporaneos e das possibilidades de sua transformagao substantiva. O itinerdrio desse debate precisaria incluir, dentre outras, a obra de autores tio diversos como Gramsci, Arendt, Schmitt, Koselleck, Kolakowski, Bobbio, Lefort, Luhman, Habermas, Putnam, Cohen, Arato, Keane e Mouffe.!9 Contudo, a influéncia de suas obras no que diz respeito & reformulagao do conceito da sociedade civil tem sido muito diferen- ciada. De fato, malgrado a interlocugdo propria dos campos te6ricos, 0 uso mais difundido e quase consensual do conceito corresponde, hoje, ao modelo da nova sociedade civil, cuja paternidade resulta particularmente restrita, Trata- se do extenso trabalho de Cohen e Arato que, a partir dos avangos extrafdos mediante ampla revisdo dos principais desenvolvimentos te6ricos existentes € se apoiando no programa de pesquisa de Habermas — particularmente no 4mago do da teoria da ago comunicativa” —, redefiniu a sociedade civil de forma a sistematizar o crescente uso do termo nas dltima décadas, a repensar problemas hist6ricos particulares e a possibilitar a pesquisa empfrica. O modelo da nova sociedade civil e as andlises cabalmente por ele informadas no preservam qualquer parentesco préximo com as trés grandes familias de argumentos. Embora sua ascendéncia seja reconhecidamente marxista, hd um afastamento de tal filia¢do em virtude das fortes dissonfn- cias produzidas por alguns principios analiticos da obra de Marx, se com! nados com uma teoria da sociedade civil como uma forga democratizadora. Andrew Arato é explicito quando esclarece que “A recuperacao do conceito de sociedade civil, h4 cerca de vinte anos, foi obra dos neomarxistas que cri- ticavam o autoritarismo socialista e que, paralelamente, acabaram por der- rubar um dos pressupostos bésicos de Marx, razdo pela qual se tornaram “pés-marxistas’”2! Na verdade, 0 corpus tesrico do pensador alemao pode- 18 “Qs cidadios dos Estados Unidos ndo tém qualquer superioridade uns sobre outros, nem, se devem reciprocamente respeito ou obediéncia; eles administram unidos a justiga, governam ‘Estado e, em gral resinem-se todos para discutir os negécios que influem no destino comum (0. Ibid. p. 557. 19 & principal avaliagio comparativa de alguns desses autores é a conhecida obra de Jean Cohen e Andrew Arato, op. cit. pp. 117-254 ¢ 249-343. Para outras revis6es comparativas aprofundadas, embora de menor folego, ef. Nora Rabotnikof Maskivker, El espacio piblico: caracterizaciones y expectativas. pp. 73-267; ¢ Adrién Gurza Lavalle, Estado, sociedad y ‘medios - reivindicacién de lo piblico. pp. 75-214 20 Cf, Leonardo Avritzer, “Além da dicotomia Estado/Mercado - Habermas, Cohen ¢ Arato”. Novos Estudos, pp. 220-222; e Sérgio Costa, “Categoria analitica ou passe-partou! politico- normativo: notas biograficas sobre o conceito de sociedade civil”. BIB, 43, 1997, pp. 8-9. 21 Andrew Arato, “Ascensio, declinio ¢ reconstrugdo do conceito de sociedade civil - Orientagdes para novas pesquisas”. Revisia Brasileira de Ciéncias Sociais, 27, 1995, p. 18. CRITICA AO MODELO DA NOVA SOCIEDADE CIVIL 129 ria ser analisado como a fonte de uma quarta familia de argumentos, se néo dilufsse a sociedade civil na economia politica ao conceber a primeira como puro sistema de necessidades, como 0 universo infra-estrutural das relag6es econémicas — a partir de uma apropriacio incompleta do desenvolvimento do conceito de Hegel.2? Assim, “(...) nfo € o Estado que condiciona e regula a sociedade civil, mas é esta que condiciona e regula o Estado; (...) portanto, a politica e sua histéria devem explicar-se a partir das relagdes econémicas ¢ seu desenvolvimento e nao o inverso”.23 Além do mais, a categoria de sociedade civil, decantada em torno ao problemético fulcro moderno da racionalidade legitima do poder, dificilmente poderia ocupar qualquer posicao de alta hierarquia em um arcabougo teérico preocupado ndo com a l6gica universalizadora do Estado nem com seus fundamentos legitimos, mas com sua critica e aniquilacao revolucionérias. De fato, a elaboragao de uma teoria da sociedade civil para além dos puros vinculos egoisticos do mercado pressuporia sua insergao no marco maior ou de uma racionalizacao justificadora da constituigéo do Estado ou de uma teoria da democracia e, € claro, ambos os objetivos resul- tam alheios & compreensao cabal do pensamento de Marx.24 Nao € fortuito que os desenvolvimentos tedricos da tradigdo marxista a constitufrem 0 niicleo sdlido do modelo da nova sociedade civil sejam fornecidos, pre- cisamente, por dois autores que reassentaram a questao da legitimidade: de forma fundamental e quase exclusiva, como jé foi dito, pelo programa de pesquisa de Habermas, cujos fundamentos exigiram a construgdo de um vinculo inerente entre a verdade ¢ a legitimidade,?5 e, de forma indireta e 22 Norberto Bobbio, op. cit. 45-56. 23 Friederich Engels, Contribuigdo a histéria da Liga dos Comunistas. Apud Karl Marx, La ideologia alemana. p.7; a frase de Engels refere-se de forma resumida & posigio de Marx em 1844, quando da redagdo dos Anais Franco-alemdes. Entretanto, a formulagao clissica no que diz respeito & sociedade civil ndo pertence aos Anais, mas a um texto posterior: “(..) as relagoes juridicas, assim como as formas de Estado, nao podem ser explicadas por si préprias, nem pela chamada evolugao geral do espirito humano, que se originam nas condigdes mate~ riais de existencia que Hegel, seguindo 0 exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVII, compreendia sob 0 nome de ‘sociedade civil"; porém, a anatomia da sociedade tem de ser procurada na economia politica”. Karl Marx, Prefacio a la contribucién a la critica de la economia politica. pp. 36-37 24 Para uma andlise das razdes pelas quais Marx abordou sistematicamente outros problemas que nao os da democracia ou do arcabougo institucional do govemo democritico, cf. a co- nhecida exposigao de Norberto Bobbio, Qual Socialismo? Discussdo de uma alternativa. pp. 21-35 © 37-54. 25 A questao da legitimidade foi assim equacionada pela primeira vez, com conseqiténcias muito relevantes para seu programa de pesquisa, em Jtirgen Habermas, A crise de legitimagao 130 LUA NOVA N°47 — 99 bastante mediada, pela obra de Gramsci e sua reflexo sobre a hegemonia como uma combinacao de coergao ¢ consenso — isto é, a legitimidade.26 Contudo, e a despeito do risco de delir a sociedade civil na economia, existe em Marx um argumento contundente sobre a especificidade da relagdo entre aquela ¢ o Estado: a aparente universalidade do Estado, como a instancia de superagdo das desavencas de interesses, € possivel apenas porque esse mundo da igualdade formal constitui-se como cisdo do mundo real, regido pelo particularismo e pela iniqiiidade. Ainda mais, o cardter irreconcilidvel e dilacerado da sociedade civil é a esséncia eo fundamento do Estado?” — o que bem pode ser traduzido como o conhecido primado estrutural do econémico sobre o politico. Assim, em Marx mantém-se entre 0 Estado e a sociedade uma relagdo de interioridade, embora ela permanega oculta e aparega sob a forma da independéncia ou da exterioridade. Até a aparigao do novo modelo, o campo das formulacées te6ri- cas sobre a sociedade civil, povoado por bastos argumentos, manteve sua unidade e sua continuidade alicergada numa premissa fundamental, a saber, 0 cardter absolutamente constitutivo do vinculo entre a sociedade e 0 Estado — equacionado com a introdugao da sociedade civil como con- ceito que cristaliza a mediagdo entre ambos. A sociedade civil foi por isso definida ora como o Estado ou, melhor dizendo, como a sociedade com leis de observancia universal; ora como a instancia prévia & plena realizagdo do Estado; ora como as associagées civis a limitarem o poder central e veicu- larem a intervengiio da sociedade no Estado; ora como a verdadeira matriz. da dinamica social e das feigdes politicas do Estado. Poder-se-ia dizer, de forma muito esquemitica e correndo os riscos de toda simplificago, que a sociedade civil apresentou-se, entdo, como 0 momento do Estado, no Estado ou anterior ao Estado — seja na forma de fase inferior, seja na forma de fundamento estrutural —, 0 que fez com que ela — a sociedade civil — nao pudesse ser concebida como um momento independente da constituigao do perfil politico do Estado. Nesses termos, 0 modelo da nova sociedade civil carateriza-se pelo abandono da premissa fundamental sobre o cardter internamente cons- titutivo do vinculo entre a sociedade e 0 Estado, restabelecendo apenas no capitalismo tardio (1973), pp. 121-140. Para os efeitos e posigao dessa mudanga conceitual no programa de pesquisa de Habermas cf. Adrin Gurza Lavalle, “A humildade do universal Habermas no espelho de Rawls”, Lua Nova 42, 1997, pp. 167-170. 26 Cf. Sérgio Costa, “Categoria analitica ou..." op. cit, pp. 8-9. 27 Cf. v. gr, Karl Marx Friederich Engels, La ideologia... op. cit. pp. 35-38. CRITICA AO MODELO DA NOVA SOCIEDADE CIVIL, 131 uma relagdo de oposico externa entre eles. Com efeito, a polémica novi- dade dessa nova sociedade civil reside na sua defini¢do como um momen- to oposto ao Estado, sem qualquer liame ou intercimbio conformativo que nao seja dado a posteriori, isto 6, apenas como decorréncia do seu con- fronto. Nessa relaco dicotomizada, 0 pélo axiolégico positive corres- ponde a sociedade civil, convertida em protagonista de um incessante con- flito com o Estado, que, por sua vez, ocupa a posi¢ao do antagonista € 0 pélo de valor negativo. Nao é gratuito que dois anos depois da publicagao de Social theory and civil society ¢ refletindo em torno aos problemas que permaneceram de pé, Arato tenha reavaliado, precisamente, algumas das dificuldades produzidas por essa dualizago: “(...) no plano da Sociologia geral, € sem diivida alguma questionavel que uma coisa inexistente (a sociedade civil num regime totalitério) possa, apesar disso, contribuir para sua propria libertagao” 28 Cabe salientar que em todos os argumentos examinados a sociedade civil encerrava interesses divergentes, quer fossem regulamenta- dos e estabilizados na sua contraposigao, quer fossem cabalmente harmo- nizados mediante sua ascensao & esfera universal do Estado ou defendidos na sua particularidade junto as instincias administrativas governamentais ou até ocultos quanto ao seu cardter irreconcilidvel pela existéncia de uma instncia iluséria de representagao do interesse geral —o Estado. J4 0 novo modelo ungiu a sociedade civil de universalidade, despindo-a de seus par- ticularismos e fazendo dela o espaco do interesse geral.29 A partir desses dois grandes tracos, sua contraposicao ao Estado e seu papel como porta- dora e transmissora do interesse geral, a sociedade civil adquire um perfil nebuloso no que diz respeito as feigdes daquilo que pode ou nio ser inclui- do nela— visto que para se enquadrar nesses pardmetros é preciso se tratar de associagdes ndo-estatais e néo-econdmicas, de base voluntéria e aparigo mais ou menos espontanea,% 0 que exclui sindicatos, partidos politicos, igrejas, cooperativas, universidades e um amplo leque de formas as mais variadas de organizagao. 28 Andrew Arato, “Ascensao, declinio..”. op. cit. p. 19. 29 “0 niicleo da sociedade civil € constitufdo por uma teia associativa que institucionaliza os discursos portadores de solugdes para os problemas tangentes ¢ questoes de interesse geral”. Jiirgen Habermas, Facticidad y Validez - Sobre el derecho y el Estado democritico de dere- cho en términos de teoria del discurso. P. 447. 30 CF. ibid. (32 LUA NOVA N°47 — 99 ‘A ambigilidade gerada pelo elenco de atributos esparsos de forma mais ou menos pura no imenso mundo das organizagées seria um obstculo praticamente inelutdvel, no fosse porque “(...) a primazia da coordenagdo da agiio comunicativa no interior de uma multiplicidade de instituigdes corresponde ao fundamento da unidade da categoria chamada sociedade civil”.3! O fundamental é, “Entretanto, [que] a unidade da sociedade civil s6 6 6bvia quando considerada de uma perspectiva norma- tiva’.32 No cerne dessa inversdo, que faz da sociedade civil um pélo antag6nico definido de forma normativa, jaz um complexo problema cuja elucidagdo constitui um passo obrigat6rio para a critica do modelo aqui examinado, Nao se trata do despropésito de colocar em xeque 0 pensa- mento normativo, pois seu concurso resulta indispensavel para se pensar criticamente. £ claro que sua maior ou menor pertinéncia depende tanto de sua qualidade quanto do nivel da reflexdo no qual ele é colocado, intro- duzindo suas exigéncias perante a realidade. Neste caso, a atribuigao de qualidades morais a sociedade civil, isto é, 4 teia auténoma de organiza- gGes que definem seu corpo, corre o risco de reentronizar exatamente aqui- lo que fora expulso do programa de pesquisa de Habermas,?3 a saber, os atores e, sujeitos fornecidos pela filosofia da consciéncia. Mas isso precisa de uma andlise mais detida. £ consenso que a teoria da nova sociedade civil estabeleceu uma ponte com a obra de Habermas a partir da qual modelou seu conceito. A sociedade civil corresponde, assim, ao marco institucional do mundo da vida habermasiano,3 ou seja, aquela parte mobilizada e ub{qua da sociedade que, atrelada nas suas rafzes & esfera privada, interage na esfera ptiblica defensiva ¢ ofensivamente na incerta salvaguarda do interesse geral. A despeito de cer- tas nuangas, também parece ser consenso que a esfera piiblica e a sociedade civil so conceitos analiticamente diferenciados,35 embora complementares, 3) Andrew Arato, “Ascensio, declinio 2 Ibid 33 Cf, Jiirgen Habermas, The philosophical discourse of modernity - Twelve lectures. pp. 294- op. cit, p. 21 Civil society and... op. cit. pp. 428, 440, 495; cf. Leonardo op. cit. pp. 220; ¢ Sérgio Costa, “Categoria analitica ou...” Avritzer, “Além da dicotomia. 9p. cit pp. 89. 35 Cf. Jiirgen Habermas, Facticidad y Validez... op. cit. pp. 440-460; Leonardo Avritzer, “Didlogo y reflexividad: acerca de la relacién entre esfera pablica y medios de comuni- cacién”. Metapolitica 9, 1999, pp. 79-85; € Andrew Arato ¢ Jean Cohen, “Estera Piblica y Sociedad Civil”. Metapolitica 9, 1999, pp. 37-40. CRITICA AO MODELO DA NOVA SOCIEDADE CIVIL, —o correspondendo, o primeiro, ao nivel espacial ou estrutural da “(...) integragdo legalmente regulada de grupos, associagdes ¢ movimentos (...)"36 perante 0 Estado e, 0 segundo, ao nivel dinamico da intervengao desses atores. Porém, parece pouco refletido 0 fato de os procedimentos analiticos préprios da esfera publica e, em geral, do programa de pesquisa de Habermas resultarem inadequados se incorporados e aplicados no modelo da nova sociedade civil. Aquilo que resulta plausfvel na universalidade olfmpica das teorizagées habermasianas dificilmente pode ser introduzido com sucesso no nivel de uma teoria de menor alcance. A esfera piblica pode desempenhar um papel normativo sem ser propriamente uma categoria normativa, porque, em Habermas, encontra-se alicercada em uma estrutura ontolégico-comunicativa que prescinde de qualquer contetido substantivo e de todo sujeito: “A sobera- nia totalmente dispersa sequer se encarna nas cabecas de membros associa- dos, mas — se de alguma forma ainda pode se falar em encarnagio — ape- nas naquelas formas de comunicagiio carentes de sujeito que regulam o fluxo da formagao discursiva de opiniao e vontade (.,.)”.37 Trata-se “(...) nao de uma. cidadania coletivamente capaz de agdo, mas da institucionalizag4o dos cor- respondentes procedimentos e pressupostos comunicativos (...)".38 Em conseqiiéncia, a formagdo de vontade sobre aquilo que, no processo da formagio de opiniao, foi determinado como interesse geral nao pressupde um sujeito definido normativamente, mas apenas o efeito de racionalizagdo do poder e da vida social derivado de um agir comunicati- vamente estruturado. O fato de o modelo da nova sociedade civil incorpo- rar os aportes habermasianos da teoria da ago comunicativa pareceria Ihe emprestar certos alcances normativos pois, afinal, haveria uma forte afinidade conceitual e 4 sociedade civil caberia o papel de “(...) manter intactas as estruturas comunicativas do espaco da opiniao piblica”3? ou esfera publica. Contudo, enquanto Habermas avalia o efeito racionalizador de estruturas de comunicagao socialmente estabilizadas, 0 novo modelo poe Jogicamente a unidade e o sentido de uma sociedade civil definida de 36 Ibid. p. 39; para Habermas mantém-se a metdfora espacial, no entanto, ele nao accita para aesfera piblica uma definigao em termos institucionais, mas como uma “..) rede para comu- nicago de contetdos ¢ tomada de posigdes (...)". Jurgen Habermas, Facticidad y Validez, op. cit. p. 440. $F ytrgen Habermas, “La soeraia popular como procedimiento- Un concepto normative de lo piblico”. In Maria Herrera (coord.), Jiirgen Habermas - Moralidad, ética y politica Propuestas crtticas.p. 53 38 Jurgen Habermas, Facticidad y Validez... op. cit. p. 374. 39 Tid. p. 450. 134 LUA NOVA N°47— 99 forma normativa, isto €, repde a antiga tradigdo do(s) ator(es) morais da transformacao social. Trata-se, acima de tudo, da sociedade civil como um projeto politico e, por isso, para Cohen e Arato, “O que é preciso é uma concepgao da sociedade civil que possa refletit na esséncia das novas iden- tidades coletivas e articular os termos dentro dos quais os projetos basea- dos em tais identidades podem contribuir para a emergéncia de sociedades mais livres e democraticas”.40 A grande e veloz influéncia do modelo da nova sociedade civil deriva-se, precisamente, da sua énfase no fornecimento de um eixo de orientagio para a aco politica: “O notavel éxito histérico da recuperagao do conceito, da qual tive [Arato] a felicidade de participar, deveu-se ao fato de que ele prenunciava um nova estratégia dualista, radical, reformista ou revoluciondria, de transformagao da ditadura, observada primeiramente no Leste Europeu e, logo depois, na América Latina, para a qual convergiu ¢ forneceu os elementos de uma compreensao intelectual”! A lanterna bem intencionada da teoria da nova sociedade civil teve uma eficécia politico- pratica excepcional e para tanto reconstruiu um modelo altamente simpli- ficado da oposico, normativamente reforgada, entre a sociedade ¢ o Estado. Assim, numa espécie de revezo salvifico, a sociedade civil como projeto politico apaziguou 0 incémodo ocasionado pelo decl{nio das promissoras elaboragées analiticas sobre os novos movimentos sociais#? que, outrora dominantes, tinham ocupado por sua vez 0 espago deixado pelo recuo das teorias sobre a luta de classes — de hegemonia inconteste até a década de 60.4% O modelo da nova sociedade civil foi particularmente bem suce- dido no fornecimento de uma via de reflexo para o retorno do ator moral da transformagao social, entretanto, as condigdes que fizeram possivel tal éxito esgotaram-se apés os processos de democratizagao. Hoje. pagando o custo de suas antigas virtudes simplificadoras, o modelo da nova sociedade civil nao apenas perdeu pertinéncia nas tarefas da apreensio analitica ou de orientacio pratica, mas se defronta com o carter problemético de trés de suas principais tendéneias: em primeiro lugar, tem resultado paradoxal- mente consoante com tendéncias conservadoras atuais como a retragéo do 40 Jean Cohen e Andrew Arato, Civil society and... op. cit. pp. 421. 41 Andrew Arato, “Ascensao, declinio...”. op. cit, p. 19. 42 Cr, v, gr. Eder Sader, Quando novos personagens entram em cena. Pp, 25-60. 43 Cf. Maria da Gléria Gohn, Teoria dos movimentos sociais - Paradigmas cldssicos e con- tempordneos. pp. 121-240, CRETICA AO MODELO DA NOVA SOCIEDADE CIVIL 135 Estado; em segundo lugar, e diante da desprotego social de amplas ‘camadas da populago, tem favorecido 0 desprezo pelas instituigdes do sis- tema politico; e por dltimo, tem se convertido no principal marco de re- feréncia da exponencial multiplicagao de ONG,‘ que parecem estar con- solidando um setor de servigos de intermediagio social afastado das intengdes normativa do modelo. ADRIAN GURZA LAVALLE é professor na Universidade Nacional Aut6noma ~ UNAM e na Universidad Iberoamericana, ambas no México, e doutorando em Ciéncia Politica na USP. Publicou em Lua Nova “A humildade do universal: Habermas no espelho de Rawls” (n° 42, 1997) 44 CF. Sergio Costa, “Esfera piblica, redescoberta da sociedade civil e movimentos sociais no Brasil - Uma abordagem tentativa”. Novos Estudos, 38, 1994; e James Petras ¢ Sonia Arellano- ‘Lopez, “A ambigua ajuda das ONGs na Bolivia". Cadernos do CEAS, n° 146, pp. 57-67. Cf. Ricardo Toledo Neder, “As ONGs na reconstrugiio da sociedade civil no Brasil Semindrio Internacional Sociedade, Reforma e Estado, pp. 4-8.; € Adrién Gurza Lavalle, “Dos paradojas de la sociedad civil mexicana”. Etcétera 44, 1995. 46 Cf, Maria da Gléria Gohn, Teoria dos Movimentos... op. cit. pp. 295-325; ¢ Ana Amélia da Silva, “Do privado para 0 piiblico - ONGs e os desafios da consolidacao democratica”, Cadernos do CEAS, n° 146 pp. 36-45. RESUMOS/ABSTRACTS 249 CRITICA AO MODELO DA NOVA SOCIEDADE CIVIL ADRIAN GURZA LAVALLE O modelo da “nova sociedade civil” é submetido a uma anélise critica mediante uma retomada dos fundamentos da idéia classica de sociedade civil e um exame das conseqiiéncias (infelizes) da ruptura com essa tradigo conceitual. THE MODEL OF THE NEW CIVIL SOCIETY: A CRITIQUE The model of the “new civil society” is subjected to a critical 250 LUA NOVA N° 47 —99 analysis through a resumption of the foundations of the classical idea of civil society and an examination of the (unhappy) consequences of the breach with that conceptual tradition.

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