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© Beatriz Senoi tlari (Org.) €m busea da mente musical Ens sor o ross copa e misc perp 3 podugio Coordenagao Editorial Marildes Rocio Artigas Santos Projeto grafico, capa € editoragio eletronica Eliane Ribeiro Campos Editoracao de textos corrigidos Rachel Cristina Pavim Revisio Patricia Domingues Ribas Revisio final Beatriz ari € Rodolfo Hari Série Pesquisa, 0. 112 Coordenagao de Processos Técnicos. Sistema de Biblioteca. UFPR, [Em busca da mente musical : ensalos sobre 05 processos cognitivos em musica - da percepgio a produgio / Beatriz Senoi Tlari (organizadora); colaboradores Beatriz Raposo de Medeiros... [et al. ~ Curitiba : Ed, da UFPR, 2006, 454p. ih rers.- (Pesquisa; n. 112) ISBN 8573351403 Inclui bibliografia e notas 1, Masica ~ Aspectos psicolégicos. 2. Percepgio musical. 3. Cognicao (Musica). 1. Tati, Beatriz Senoi. II, Medeiros, Beatriz Raposo de, cD 781.11 ISBN 85-7335-140-3 Ref, 422 Dircitos desta edicao reservados & Editora da UFPR Centro Politécnico — Jardim das Américas Tel./fax (41) 3361-3380 / 3361-3381 Caixa Postal 19.029 81531-980 - Curitiba - Parana — Brasil editora@ufpr.br www.editora.ufpr.br 2006 Fm busca da mente musical’ Daniel Levitin Enquanto caminhava por uma ruazinha desconhecida e nao muito distante do Carnegie Hall, ouvi a buzina de um taxi, som nada incomum em Manhattan. No entanto, a resposta que o seguiu me surpreendeu. O som da buzina nao parecia ter terminado quando ouvi uma voz de autoridade dizer em tom peremptério: "Mi bemol'". Assim que virei a cabega para saber de onde vinha aquela voz, avistei um jovem trajando um smoking e carregando embaixo do brago o que aparentava ser um estojo de violino. Sua companheira, uma mulher com um estojo menor, possivelmente de uma flauta, acrescentou: "(Mi bemol) mas um pouco alto!". Vi quando os dois entraram pela porta dos fundos de um prédio grande, sem me dar conta de que se tratava do "White Hall", a grande sala de concerto do Carnegie Hall. Andando apressadamente em diregao 4 sala de concerto, tive a sorte de conseguir um ingresso para assistir ao espetaculo daquela noite: a obra A Sagragao da Primavera. Eu ja havia tocado a parte do clarone dessa obra quando participei da orquestra de mi- nha escola, ainda durante o ensino médio, mas nunca tinha tido a oportunidade de ouvi-la de um lugar privilegiado, ou seja, de uma posigao onde eu pudesse distinguir algo mais do que a parte que eu préprio estava tocando misturada aos staccatos dos trombones, cujas campanas estavam sempre voltadas, ameagadoramente, para o fun- do do meu cranio. Astigo publicado previamente sob o titulo original de "In search of the musical mind" pelo periddico Cerebrum: The Dana Forum on Brain Science (ISSN 1524- 6205), 2 (4), 31-49, 2000. Publicado no Brasil sob permissao do "Dana Foundation" de Nova lorque, Estados Unidos. —33— Daniel Levitin Uma vez na sala de concerto, ouvi cuidadosamente as con- versas dos espectadores 2 minha volta. "Espero que eles nao to- quem depressa demais. Ouvi a orquestra de Cincinnati tocar esta pec¢a na wltima temporada, e eles exageraram nos tempi!" "Vocé acha que havera um intervalo? Eu nao consigo ver no programa — eles precisam de um intervalo, nao € mesmo?" "Eu amo o primeiro movimento, porque ele realmente me faz lembrar da primavera quando eu era crianga, e deitava entre as flores nos prados." O senhor sentado ao meu lado disse 4 mulher : "Esta nao € mais uma daquelas obras atonais, nao é mesmo?". Um casal de adolescentes coberto por piercings e tatuagens de hena comparava Stravinsky a Metallica, sua banda de rock preferida: "Ouve como ele usa os modos musicais — € muito Goth!". Uma jovem entusiasmada disse: "Eu adoro a parte dos timpanos", e seu companheiro respondeu, “Quais sao os timpanos mesmo?". Em seguida, ele sussurrou em seu ouvido, achando que ninguém estaria ouvindo: "Como vocé conse- gue ouvir um Unico instrumento quando ha muitos tocando ao mes- mo tempo: Sete espectadores e cada um ouviu algo diferente na mes- ma obra musical complexa. Nada surpreendente. Mas mesmo ou- vindo algumas notas musicais simples e isoladas, poucos de nds poderiamos igualar a precisao com que os dois misicos identifica- ram 0 som da buzina do taxi. Alguns anos atras, Roger Shepard, meu orientador no cur- so de graduagao, fez um estudo sobre percep¢ao auditiva nos labo- ratorios Bell em Murray Hill, Nova Jérsei. Roger tocou para seus colegas de trabalho um semitom - 0 menor intervalo encontrado na mttisica ocidental, equivalente a distancia entre duas teclas vizinhas num piano - e descobriu que metade das pessoas nao sabia dizer se ele havia tocado a mesma nota duas vezes, ou se tinha tocado duas notas diferentes. O semitom € o intervalo que inicia a conhecida pe¢a pianistica "Fiir Elise" de Beethoven, que é ouvida com muita freqiiéncia em recitais infantis no mundo ocidenta]. Suas cinco pri- meiras notas formam um padrao repetitivo de um semitom descen- dente que retorna 4 nota inicial. Se metade das pessoas que estaio ouvindo (e presumidamente apreciando) "Fir Elise" nao sao capa- zes de dizer que as cinco notas iniciais nado sao as mesmas, o que elas estao ouvindo? Esta € uma das muitas perguntas que estao sendo investigadas cientificamente nos nossos dias, no campo emergente da percepgao e cogni¢ao musical. Este campo € por natureza —y— Em busca da mente musical interdisciplinar, e conta com pesquisadores de dreas diversas, tais como psicologia cognitiva, neurociéncia, computa¢gao, musicologia e educagao. Eles estao perguntando, por exemplo, se poderemos saber algum dia se aquilo que eu escuto em miisica € a mesma coisa que vocé escuta. Se todos nés ouvimos as coisas da mesma maneira, fica dificil compreender por que a Madonna de uma pessoa € 0 Mozart da outra. Contudo, se cada um de nds ouve as coisas de maneira diferente, como explicar o porqué de certas pegas musicais serem populares para quase todas as pessoas? Por que é que algumas pessoas na nossa cultura sao movi- das pela mtisica e outras nao? Para algumas, um dia sem miisica é impensavel; a musica as acompanha quando acordam, tomam banho e€ comem, no carro a caminho do trabalho, e como uma espécie de fundo actistico enquanto trabalham. A musica também cria um clima para os encontros romanticos, e da energia aos exercicios fisicos. A miisica € usada em épocas de guerra para incentivar a solidariedade patridtica e para sincronizar a infantaria, nos momentos de tristeza como consola¢ao, desde solenes até os de jtibilo. O status tinico da miisica na vida do ser humano é marcado por sua onipresenca e antiguidade, como diz David Huron da Universidade Estadual de Ohio. Nao ha nenhuma cultura conhecida no mundo que nao tenha alguma forma de miisica, e alguns dos artefatos humanos mais anti- gos sao instrumentos musicais (por exemplo, tambores ¢ flautas feitas de ossos). De fato, o ato de fazer musica antecede a agricultu- ra nos registros arqueolégicos. Qual é a base evolutiva da musica e o que a ciéncia ja aprendeu sobre a mtisica e 0 cérebro? 0 que cuvimos em musica O meu trabalho visa a responder 4 primeira pergunta fun- damental que fiz no inicio: “O que é que pessoas diferentes ouvem quando ouvem uma mesma pega musical?”. As questOes tedricas que motivam esta pesquisa sio meus interesses na fidelidade da mem6ria sensorial e as relagdes entre os modos como percebemos, classificamos e lembramos aquilo que ouvimos. Ha cerca de uma década, os psicdlogos da Gestalt acreditavam que as experiéncias sensoriais deixam uma espécie de "residuo" no sistema de memoria do cérebro e que nesse residuo haveria informagdes sobre o esti- mulo original, mesmo depois de o estimulo ter desaparecido. Mes- —E— Dantel Levitin mo que isso nao seja literalmente verdadeiro, alguns elementos especificos dos eventos sensoriais podem ser registrados na mem6- tia de longo prazo. Uma maneira que utilizei para testar essa idéia € investigar o que € que as pessoas lembram sobre miisica que ouvi- ram e, especificamente, o que elas sao capazes de lembrar ou produzir da musica que conhecem bem e apreciam. Quando ouvimos musica, estamos, de fato, percebendo sete atributos ou "dimensées" diferentes: 1. A Altura é um construto puramente psicolégico, relacio- nado tanto 4 freqiiéncia fisica real de uma nota particular, quanto 4 sua posicao relativa numa escala musical. E a altura que permite respondermos a questao: "Qual é a nota?" ("E do sustenido"). 2. O Ritmo diz respeito 4s duragdes de uma série de notas. Por exemplo, na cantilena conhecida na América do Norte como "shave-and-a-haircut, two bits", o ritmo € longo-curto-curto-longo- longo-(pausa)-longo-longo. 3. O Andamento se refere 4 velocidade geral ou andamen- to da pega. 4. O Contorno descreve a forma geral de uma melodia, levando em conta apenas o padrao de "sobe" e "desce". 5. O Timbre € 0 que diferencia um instrumento de outro — digamos, um trompete de um piano — quando os dois estao tocando a mesma nota. Trata-se de um tipo de cor tonal que é produzido pelos harmGnicos das vibragGes de um instrumento. 6. O Volume é um outro construto puramente psicolégico que se relaciona (de maneira nao linear e de maneiras pouco com- preendidas) 4 amplitude fisica de uma nota. 7. A Localizagao especial é uma indicagaéo que interpreta- mos baseando-nos primordialmente no tempo e em diferengas espectrais naquilo que ouvimos. Estes atributos sao separaveis. Cada um pode ser variado sem alterar os demais, o que permite estudar um deles de cada vez, razao pela qual podemos pensar neles como dimensées. As melodias sao definidas pelo padrao ou relac4o de altu- ras sucessivas no tempo; a maioria das pessoas tem pouca dificulda- de de reconhecer uma melodia que é tocada num tom mais alto ou mais baixo do que o esperado. De fato, muitas melodias nao tém uma altura "correta" e flutuam livremente no espago, comecando em qualquer lugar. "Parabéns a vocé" é um exemplo disso. Uma maneira de pensar em uma melodia, entéo, é pens4-la como um prototipo abstrato, que é derivado de combinagées especificas de —p— Em busoa da mente masteal tom, tempo, instrumentag¢ao e assim por diante. Uma melodia é um "objeto" auditivo que mantém sua identidade sob certas transforma- ¢6es, assim como uma cadeira mantém sua identidade quando é movida para 0 canto oposto da sala, € virada de ponta cabega, ou & pintada de vermelho. Ent4o, por exemplo, se vocé ouvir uma can- ¢ao em um volume mais alto do que de costume, vocé ainda pode identificd-la. Se a ouvir em um andamento diferente, tocada por um instrumento diferente, ou vindo de uma outra localidade espacial, ainda sera a mesma melodia. E claro que mudancas extremas em qualquer uma dessas dimensdes podem torn4-la nao-identificavel; o andamento de uma batida por dia ou um volume de 200 decibéis pode ir além dos limites da identificagao. "Isto € um Do-sustenido”: Ouvido absoluto As pessoas portadoras de uma habilidade especial chama- da de "ouvido absoluto" podem nos dizer algo sobre a maneira como o cérebro humano processa melodias e alturas. Por definicao, os portadores do ouvido absoluto sao capazes de produzir ou iden- tificar notas musicais sem quaisquer referéncias aos padrdes exter- nos. Se ouvem a buzina de um automével, elas podem dizer: "Mi bemol". Em contrapartida, se vocé tocar uma nota ao piano e per- guntar as pessoas qual a nota que tocou, a maioria nao saberd res- ponder (a nao ser que tenham visto a sua mao no teclado). As pessoas com ouvido absoluto podem dizer com seguranga: "isto é um d6 sustenido", e outras podem fazer o inverso. Pe¢a a elas para produzir um d6 central (a tecla central do teclado de um piano), e elas cantar4o, sussurrarao ou assobiarao a nota para vocé. Os porta dores de ouvido absoluto tém meméria para as alturas exatas e n30 apenas para as relacGes entre as alturas das cang6es. De fato, a maioria dessas pessoas, quando ouve uma can¢ao em uma tonalida- de diferente (e, portanto com alturas diferentes), tende a achar que a can¢ao soa "errada". A habilidade de reconhecer e identificar alturas absolutas defronta o pesquisador com dois quebra-cabecas opostos. Primeiro, por que algumas pessoas sao capazes de fazer isso? Uma vez que as melodias sao definidas por alturas relativas, por que algumas pessoas tém a capacidade de rastrear alturas absolutas — informag4o que nao tem nenhum valor evidente? A compreensao da fala requer que, praticamente, ignoremos a informagao de alturas absolutas; nao fos- —3}— Dante! Levitin se assim, nao poderiamos compreender as criangas, que falam uma oitava ou duas acima dos adultos. Um quebra-cabeca oposto a esse surge quando considera- mos que o sistema auditivo, da céclea do ouvido ao cértex cerebral, contém neur6nios que respondem apenas a freqiiéncias especifi- cas. Nossos ouvidos e nossos cérebros estao de fato registrando informag6es de alturas absolutas a cada estagio. A segunda questao ent4o deixa de ser "Por que algumas pessoas tém ouvido absoluto?" para ser "Por que nao todas as pessoas?". Afinal de contas, como gostava de apontar o psicdlogo Dixon Ward, nds nao temos que recorrer 4 imagem de um arco-iris para demonstrar que a crista de um galo é vermelha, ou a uma garrafa de cAanfora para identificar- mos 0 cheiro de um gamba. Por que, entao, se alguém toca uma nota musical, a maioria de nés tem de correr para o piano a fim de descobrir qual é a nota? Um aspecto desagradavel da literatura cientifica € que nos paises de lingua inglesa, o termo ouvido perfeito (perfect pitch) € freqiientemente usado como sindnimo de ouvido absoluto (absolute pitch). E importante mantermos uma disting4o clara entre estas duas capacidades que — agora sabemos — so completamente indepen- dentes. Algumas pessoas conseguem distinguir pequenas diferen- ¢as de afinagao, ou "desafinagdes", quando comparam uma nota a outra — elas tém um “bom ouvido". Alguns chamam essa habilidade de ouvido perfeito (perfect pitch) porque essas pessoas conseguem dizer se as duas notas esto ou nao perfeitamente afinadas. As pessoas portadoras de ouvido absoluto nao sao necessariamente melhores do que as nao portadoras em fazer tais disting¢Ses, como demonstrou Ed Burns da Universidade de Washington e como con- firmei em meu laboratorio. Portanto, os portadores de ouvido abso- luto nao sao necessariamente precisos em tarefas de discriminagao tonal. Eles sao capazes de nomear as notas de maneira precisa Ao revisar a literatura, eu descobri que parte do mistério que cerca o ouvido absoluto gira em torno da sua raridade. Estima- se que 0 ouvido absoluto ocorra em apenas 1 entre 10.000 pessoas. Ao pensar nesta estatistica estranha, eu me dei conta de que ela nao indica que 1 entre 10.000 misicos tenham ouvido absoluto; nao é tao raro assim. Esta estimativa aparenta estar construida com base em quantas pessoas na populacao teriam ouvido absoluto quando alguém simplesmente contou 0 nimero de mtisicos que o tém, e depois considerou a proporcao de misicos na populacao total. Eu tinha lido 0 classico Como mentir com a estatistica de Darrell Huff, Em bused da mente musical e algo simplesmente parecia nao estar correto nesse tipo de mala- barismo estatistico Entao eu me dei conta de que, muito naturalmente talvez, os "cem anos de fiteratura" sobre ouvido absoluto estavam rechea- dos de estudos que testavam apenas uma parte da populacgao: misi- cas. Ha uma raz4o Obvia para isto. Se vocé pedir para a maioria dos nao-musicos para cantar um mi bemol ou um d6 sustenido, estes nem saberao a que vocé se refere, j4 que eles nao aprenderam este vocabulario especializado. Contudo, isto néo quer dizer que alguns destes ndo-misicos nao tenham ouvido absoluto ou algo parecido. O desafio, portanto, esta em conceber um teste que determine se os n&o-muisicos podem ter algumas capacidades referentes ao ouvido absoluto. Lembrar ¢ nomear A Criagdo do teste foi relativamente simples. Em primeiro lugar, levantei a hipétese que o ouvido absoluto requer memoria e nomeacao de alturas. Eu defini meméria de alturas como a capaci- dade de ouvir uma nota e lembrar que esta nota ja foi ouvida ante- riormente. Nomeagao de alturas é a habilidade de aplicar um rétulo ou nome para aquele conhecimento, tal como “C", "321 Hz" ou a silaba de solfejo "dé". Talvez a tinica coisa que separa os musicos portadores de ouvido absoluto de minha popula¢gao hipotética de nao-musicos portadores de ouvido absoluto é que este segundo grupo, nao tendo nunca aprendido o vocabuladrio para nomear altu- ras, n4o apresenta a capacidade de nomear alturas, enquanto ambos OS grupos tém uma capacidade equivalente de meméria de alturas. Para testar isso, eu pedi que 50 alunos de gradua¢g4o sim- plesmente cantassem sua peca de rock favorita de meméria, num esforgo para compreender 0 que é que os alunos estavam retendo e considerando da miisica e, em particular, para saber a qualidade de sua memoria de alturas. Limitei o estilo musical as pegas de rock porque elas tém algumas qualidades peculiares que as tornam ideais para experimentos como este, Para comegar, a maioria das cangdes de rock. existe no mundo em versdo Unica. Diferentemente de "Pa- rabéns a vocé" ou "Michael row your boat ashore", que sao cantadas em tonalidades diversas e nao tém uma tonalidade "oficial", as can- des de rock sao geralmente gravadas por um grupo em particular, e € essa a. versio que todo mundo conhece. Esta é realmente a 28 Daniel Levitin situagao sonhada por todo pesquisador experimental: as pessoas ouviram © estimulo centenas ou milhares de vezes em uma mesma tonalidade. Além disso, elas aprendem a can¢4o por conta propria, fora do laboratério de pesquisa, e com uma motivacdo muito forte (embrem-se, eles deveriam cantar suas can¢gées favoritas). Natural- mente, algumas cangdes de rock nao preenchem estes requisitos; "Yesterday" dos Beatles ou "You are the sunshine of my life" de Stevie Wonder, por exemplo, foram gravadas muitas vezes por ar- tistas diversos e em muitas tonalidades e estilos. CangSes como estas foram eliminadas do experimento. Os resultados foram notiveis. A maior parte dos estudan- tes foi capaz de produzir cangdes exatamente na altura original das cangdes ou numa altura muito proxima. Um quarto deles cantou sua can¢ao favorita de meméria, e com uma variagao de aproximada- mente um semitom em relagao a altura original, e dois tergos com uma varia¢ao de 2 semitons em rela¢do & altura original. Além disso, eles retiveram o andamento e varias nuances da cangdo, tais como afetagdes do vocalista e peculiaridades do fraseado. Isto constitui uma evidéncia forte de que muitos nao-misicos possuem uma me- m6ria exata de alturas, e algo muito semelhante ao ouvido absoluto. Embora desconhecessem os nomes formais das notas, os nao-miisi- cos demonstraram uma habilidade impressionante de usar nomes ad hoc, derivados das letras das cangdes. Em outras palavras, embora eles nao fossem capazes de responder ao pedido de cantar um 14 sustenido, esses foram capazes de usar, de maneira habilidosa, ou- tros termos informais, como dizer: "esta é a primeira nota da can¢ao Hotel California". O uso de uma definigaéo menos restrita de ouvido absoluto como esta aumentaria a incidéncia de portadores de ouvido absolu- to na populacao de 1 pessoa em 10,000 para 1 pessoa de cada 4. Mas este teste € demasiado conservador, uma vez que depende, de certa forma, das habilidades vocais de uma pessoa. Algumas pessoas que participaram da experiéncia, por nao serem cantores experien- tes, podem ter encontrado dificuldades em parear as notas em suas cabe¢as, € podem ter cometido erros por conta disto. Portanto, a estatistica de 1 em 4 subestima a incidéncia real da memoria de altura exata na populacao em geral. Este estudo também apresentou evidéncias que confirmam a teoria de que o ouvido absoluto tem dois componentes: meméria e nomea¢ao. Num outro estudo recente, Tonya Bergerson e Sandra Trehub da Universidade de Toronto peciram as m&es para cantarem — Em busea da menfe mustea) cang6es para os seus bebés em duas ocasiées distintas, em semanas diferentes. Aproximadamente metade das mes cantou no mesmo tom nas duas vezes, apresentando mais evidéncias da estabilidade da meméria auditiva. Adquirindo 0 ouvido absolato Muitos pesquisadores da area de cogni¢ao musical adotam agora esta teoria de dois componentes e pensam no ouvido absolu- to como nao sendo nada mais que uma capacidade particular de nomear 0 que a maioria das pessoas lembra. Robert Zatorre e seus colegas no Instituto Neurolégico de Montreal (MNI) conduziram uma investigagdo extraordinaria em neuroimagem que deveria resoiver quaisquer dtividas sobre 0 assunto. No estudo, sujeitos portadores e nao-portadores do ouvido absoluto tentavam identificar notas e in- tervalos. musicais enquanto 0 fluxo sangtiineo de seus cérebros era monitorado. Os portadores de ouvido absoluto (mas nao os na&o- portadores) exibiam maior atividade na parte do dorso lateral poste- rior esquerdo do cértex frontal, uma regiao do cérebro que € conhe- cida por estar envolvida no aprendizado associativo condicional — um termo técnico que os estudiosos da memoria geralmente usam para aplicar rétulos as coisas. Mas uma teoria satisfatéria de nomeagao de alturas precisa dar conta do fato de que algumas pessoas tém a habilidade enquan- to outras nao, Dado que a informaga4o sobre o ouvido absoluto é codificada ao longo do sistema auditivo em neurénios sensiveis as freqiiéncias, por que é que a maioria de nds nao associa rétulos as notas musicais? Eu acredito que seja em parte porque nés nunca aprendemos a fazé-lo, j4 que a altura da nota nao tem nenhuma importancia bioldgica ou ecolégica especial A cor é um exemplo do dominio perceptivo que tem uma importancia bioldgica clara. A cor de uma coisa pode revelar infor- maces importantes sobre ela: por exemplo, se € uma comida, e se esta fresca ou estragada, comestivel ou envenenada. Em termos gerais, pensa-se que a percep¢ao da cor é igual para todos os seres da nossa espécie e em todas as culturas. De acordo com as pesqui- sas de Brent Berlin, Paul Kay e Eleanor Rosch, os membros de culturas diferentes que tém maneiras diferentes de nomear as cores ainda assim concordam quando se trata de reconhecer os melhores exemplos para as principais categorias de cores. Por exemplo, a —3t— Dontel Levtém tribo Dani de Papua-Nova Guiné tem apenas dois termos para de- signar cor: mola e mili, que correspondem mais ou menos a "escu- ro" e "claro". Mas quando uma variedade de fichas de cores lhes é mostrada, os Dani concordam com os ocidentais a respeito do me- hor exemplar da cor vermelha, apesar de sua lingua maternal nao ter uma palavra especifica para a referida cor. Um novo estudo de Debi Roberson da Universidade de Londres, contudo, questionou essa compreensao inicial, sugerindo que as quest6es envolvidas na percepgao de cores sao mais complexas. Com a altura é completamente diferente. Uma vez que culturas diferentes usam escalas musicais diferentes, nao ha univer- sais musicais independentes de cultura, no que tange a altura. No mundo, a altura de um objeto sonoro tem uma relevancia ecolégica menor do que a cor, jé que geralmente nao revela propriedades importantes do objeto. Essa falta relativa de saliéncia da altura pode mesmo conspirar contra a sua aquisigao, que deixa de ser esponta- nea. Apesar de ter havido muita discussao para decidir se o ouvido absoluto € inato ou aprendido, o consenso geral emergente entre os psicdlogos € o de que a habilidade de lembrar e nomear alturas requer a ativagao e o treino durante um periodo critico do desenvolvimento infantil, analogo ao periodo critico referente a aqui- sigao de linguagem. Durante esse tempo, a crian¢a precisa apren- der a dar nomes as notas musicais. A evidéncia preliminar sugere que esse periodo critico vai, grosso modo, do nascimento aos 8 anos de idade. Quando uma crianga esté adquirindo a linguagem, os pais freqiientemente apontam para objetos e dizem coisas como: “Viu aquela maga? E vermelha”. Vocé alguma vez j4 viu um pai ensinar nomes das notas aos seus filhos, dizendo coisas como: “Ouviu a campainha? E um si bemol”. © ouvido absoluto € adquirido e desen- volvido por meio de um treinamento sistematico na infancia, embo- ta depois de adultos nao lembremos, necessariamente, o episédio exato em que aprendemos o nome de uma determinada nota musi- cal, ou aprendemos a chamar a maga de vermelha. O que nds ainda nao sabemos € se toda crian¢a que recebe um treinamento sistema- tico em nomeac¢ao de notas desenvolve o ouvide absoluto. Em busca da mente musical 0 ouvido absoluto € genético? Embora a maioria dos psicdlogos e tedricos da muisica con- corde com a hipétese de que o ouvido absoluto é adquirido, surgiu um debate com geneticistas e outros que argumentam que ha uma base genética para o ouvido absoluto. A versao extrema do argu- mento dos geneticistas é o de que algumas pessoas simplesmente nascem sabendo nomear alturas. Os seguidores desta posigao tam- bém acreditam que um dote genético cria criangas prodigio que sao pianistas, capazes de tocar sonatas de Mozart apés olhar apenas uma vez para a partitura, ou de compor suas préprias obras musi- cais na primeira vez que sentam-se diante de um piano. A maior parte dos cientistas acredita que esta posi¢ao é insustentavel; como € que alguém poderia explicar a existéncia de uma crian¢a que, ao nascer, ja sabe ler a notacao musical ou entende as relag6es entre as teclas do piano e os sons que estas produzem? No que diz respeito ao ouvido absoluto, os bebés nao saem do ttero falando linguas, e seria pouco provavel que produzissem, como num passe de magi- ca, nomes de alturas nos primeiros dias ou semanas de vida. Uma forma menos radical deste argumento € a que uma combinagao de fatores, incluindo-se os genes, simplesmente cria uma predisposigao para as capacidades de ter ouvido absoluto. Os seguidores dessa visdo, incluindo geneticistas de uma equipe da Universidade da Califérnia em San Francisco, liderados por Siamak Baharloo e Nelson Freimer, est@0 procurando o gene do ouvido absoluto. Uma dificuldade encontrada nesta perspectiva € saber o que, exatamente, este gene controlaria. Seria ele especifico para a nomeagao de alturas, ou seria para a atribuicao de rétulos aos esti- mulos sensoriais em geral? Como nés ja vimos, 0 ouvido absoluto nao € uma diferenca de percep¢ao, mas sim uma diferenga na nomeag¢ao ou talvez na codificagao. A questao de o ouvido absoluto ser ou nao genético tem sido central nas discussdes dos tiltimos cem anos, em parte porque alguns portadores famosos do ouvido absoluto (por exemplo, Berlioz, Scriabin e Toscanini) o consideravam um grande recurso musical. Eu acredito que tanto a biologia quanto a aprendizagem esta4o envolvi- das; a dificuldade esta justamente em separarmos as contribuigdes relativas do que é inato ou adquirido. Por exemplo, as pessoas com uma predisposicao genética para o ouvido absoluto podem adquiri- lo com maior facilidade mas, na minha visao, ainda precisam de algum tipo de treino. —33— Dantel Levitin Baharloo e seus colegas estudaram a historia genética de familias portadoras e nao-portadoras para fazer inferéncias sobre as bases genéticas do ouvido absoluto. Eles admitem duas teses que muitos de nds na comunidade das ciéncias cognitivas julgamos se- rem erradas. Primeiro, eles afirmam que o ouvido absoluto repre- senta uma habilidade fora do comum na percepgao de alturas, ao contrario dos cientistas cognitivos que tendem a acreditar que o ouvido absoluto é mais uma habilidade de nomeagao de alturas, uma forma de classificagao e de memoria de longo prazo. Eles também pressupdem que o ouvido absoluto é desenvolvido por meio da educag’o musical, embora isso também nao pareca ser verdade. Nao é a educacao musical em geral, mas sim um treino deliberado em nomeagao de alturas, que desenvolve o ouvido absoluto. O objetivo por tras da maioria das formas de educagao musical é, de fato, contrario ao treino do ouvido absoluto, porque elas ensinam as criangas a prestar atengao nos elementos relativos e nao absolutos da mtisica. De fato, Dixon Ward popularizou a teoria do ouvido absoluto clamando que todos os musicos comegam com ouvido absoluto, mas que o "desaprendem". Assim que um indivi- duo se torna um mtisico mais proficiente, fica treinado a abstrair padrées melédicos em detrimento das alturas absolutas. O treino em muisica classica ¢ jazz enfatiza, especialmente, a execugao de esca- las, progressOes de acordes e melodias ou temas em diversas tona- lidades. A equipe de Baharloo sugeri. que uma crianga portadora de ouvido absoluto tera uma maior probabilidade de ter um irmao ou irma portador(a) de ouvido absoluto do que uma crianga nao- portadora. Eles véem nisso uma forte evidéncia a favor da base genética do ouvido absoluto. Mas o simples fato de que uma habili- dade é "de familia" nao garante que ela seja genética; apenas os estudos conduzidos com gémeos idénticos podem proporcionar uma tesposta definitiva a essa questao. Poderiamos dizer que falar fran- cés também é "de familia", mas muitos sao relutantes ao propor uma base genética para algo que os pais ensinam aos seus filhos. Da mesma maneira, as familias nas quais um dos pais tem ouvido abso- luto provavelmente proporcionarao um tipo de ambiente no qual a crianga poderia desenvolver 0 ouvido absoluto. Lloyd Jeffress é o maior e mais articulado porta-voz dessa opiniao, como expressou em uma carta datada de 1962 ao editor da Revista da Sociedade Norte-Americana de Actistica (Journal of the Acoustical Society of America): —3— £m busca da mente musteat As circunstancias especificas que levam as pessoas a acreditar que o traco € herdado geneticamente sao as mesmas que poderiam fazer com que ele seja “gravado”. Os filhos de portadores de ouvido ab- soluto serao certamente observados desde cedo para determinar a existéncia do trago e seus primeiros passos desajeitados serao recompensados. Em uma casa onde os pais nao conseguem dife- renciar um “d6” de um cesto de carvao, nao haverd ambiente propicio para o desenvolvimento do traco... apenas na casa de pais musicais poderia ser desenvolvido o ouvido absoluto; onde os pais tem ouvido absoluto, € quase certo que isto acontega. Identificando as notas da escala Os portadores do ouvido absoluto sao freqiientemente ci- tados como exemplos no 4mbito maior do estudo do processamento de informagao humana porque se entende que eles violam a cha- mada "lei do sete mais ou menos", estabelecida por George Miller em 1956. Ha apenas algumas leis ou regras efetivas, na psicologia, entao quando uma delas parece ser violada, isso da noticia quente. Miller disse que, na maioria das circunst4ncias, ha limites para o processamento de informagao humana; nés n’o conseguimos colo- car, de maneira coerente, itens em mais de 5 a 9 categorias, sem excedermos essa capacidade. As pessoas que tém ouvido absoluto aparentam violar esse principio porque conseguem classificar mais de 60 estimulos (5 oitavas de 12 notas cada). No teclado padrao de um piano ha 88 teclas, e as pessoas com ouvido absoluto podem, geralmente, dar nomes a quase todas, com a possivel exce¢do das notas que se encontram.nas extremidades do teclado. Na verdade, as pessoas que tém ouvido absoluto cometem erros na identificagao da oitava 4 qual pertence uma determinada nota musical. Por exemplo, elas identificam facilmente o dé, mas freqiientemente confundem o dé central (a tecla central do teclado de um piano) com o dé acima ou abaixo deste. Com todos esses erros de oitava — para nao falar de erros de semitom e do fato de que a identificagao é mais rapida e exata para as notas das teclas brancas do que para as notas das teclas pretas — nao é justo afirmar que os portadores de ouvido absoluto classificam algo ao redor de 60 estimulos sem cometer erros. Os erros de oitava reduzem a habilidade 4 identificagdo das 12 notas da escala cromatica, e os 3 Danie) Levitin outros erros fazem com que os portadores de ouvido absoluto pos- sam enquadrar-se na lei de Miller. Na estrada, em busca da verdadeira masica O que tudo isso tem a ver com a verdadeira mtisica? Eu acredito que a questaéo do ouvido absoluto nos oferece uma janela para o cérebro, e para o modo como a musica € armazenada e representada nele. A altura é uma das pecas que entram na constru- ¢ao da musica e, como vimos, muitas pessoas séo capazes de lem- brar de alturas, ainda que nao tenham aprendido a nomeé-las. Os instrumentos cientificos que utilizamos para estudar a altura sao Uteis para também olharmos para outros aspectos da mu- sica; grandes progressos foram obtidos nos tiltimos anos na com- preensao de questOes gerais que cercam a cognig¢do musical, a ca- pacidade musical, e os fundamentos evolutivos e neurais da musica. A descoberta de que ha tantas pessoas com uma memoria precisa para as alturas revela muito sobre os processos internos da memoria € os cédigos mentais utilizados na representagao de eventos perceptivos. Tudo isso nos deixa mais perto de entender as liga- gdes entre o cérebro € o comportamento, entre o mundo fisico e nossas representacdes mentais dele. Pistas para 0 cérebro musical Nosso conhecimento sobre os fundamentos neuroanatémicos da misica origina-se, principalmente, em duas fontes: 0 escanea- mento do fluxo sanguineo cerebral e 0 estudo das lesdes, ambos conduzidos por neurologistas clinicos e neurocientistas cognitivos. Até recentemente, os cientistas aprendiam principalmente a partir do estudo de pacientes com lesdes cerebrais, As vezes a propria natureza faz experimentos cruéis, e tumores, derrames, doencgas ou desordens de desenvolvimento produzem lesdes em partes especi- ficas do cérebro. Comparando o funcionamento cerebral do pacien- te antes e depois da les4o, ou comparando um paciente com um sujeito controle que nao apresenta nenhuma lesao, podemos fazer inferéncias sobre o papel que a regiao cerebral lesada exerce na cogni¢ao normal. Outras vezes, nao é a natureza que conduz o experimento, mas sim seres humanos. Tristemente, muitos dos gran- des avangos na neuropsicologia se devem ao estudo de soldados 36 Em busoa da mente masical feridos por balas que lesaram uma parte especifica de seus cére- bros, em tempos de guerra. Um problema cientifico que os estudos de lesao apresen- tam € que as lesGes nunca sao idénticas entre si (a natureza rara- mente conduz experimentos controlados), 0 que nos coloca na posi- ¢4o cientifica fraca de ter de generalizar a partir de casos particulares. Para tornar as inferéncias ainda mais complicadas, é importante sa- lientar que dois cérebros nao sao exatamente iguais, para come¢o de conversa; eles diferem em tamanho, forma e até mesmo organi- zacao. Além disso, as lesdes, sejam ou nao naturais, raramente res- peitam os limites anat6micos das regides cerebrais. Isto é, uma lesdo tipicamente nao afetara uma drea bem definida do cérebro sem também afetar algumas das areas em seu redor, ou deixando intactas partes da area bem definida. Os pacientes que passam por cirurgias de remogao de tecido cerebral para controlar a epilepsia proporcionam uma outra fonte de informagao. O problema com a inferéncia cientifica nestes casos € que muitas partes do cérebro podem estar danificadas por conseqiiéncia da epilepsia, tornando dificil a distingao entre esse dano e os causados pela lesao. A neuropsicologia clinica € muito como um trabalho de detetives; as pistas estao sempre escondidas. Desde que Hans-Lukas Teuber, um dos meus professores, descreveu a abordagem em 1950, as propostas mais convincentes em neuropsicologia foram feitas a partir da existéncia das assim chamadas dissociagdes duplas. Uma dissociagao dupla ocorre quando dois pacientes (ou grupos de pa- cientes) exibem déficits totalmente complementares. Para tomarmos um exemplo concreto, nds sabemos que a localizagao visual dos objetos e alguns de seus elementos, tais como a cor, sao processa- dos em regides diferentes do cérebro porque (1) os pacientes com lesdes em uma parte do cérebro (ao redor do trato dorsal do sistema visual) podem perceber bem as cores, mas n&’o conseguem perce- ber localizagao e movimento e (2) os pacientes com les6es em outras partes do cérebro (ao redor do trato ventral do sistema visual) tém as percepgdes de localizagao € movimento intactas, mas nao conseguem perceber as cores. Foi possivel mostrar que as duas capacidades cognitivas em questao sao dissociadas ou separadas, apelando para o fato de que uma delas é poupada enquanto a outra for lesada. No campo da mtisica, Isabelle Peretz e colegas da Univer- sidade de Montreal utilizaram essas dissociagées duplas para argu- —a1— Deaniel Levitin mentar que os sons da fala e os sons estranhos 4 fala (simples como uma campainha ou complexos como a mitisica) sao funcionalmente independentes no cérebro humano. Eles também acreditam que a musica € os sons ambientais sAo servidos por centros neuroanatémicos diferentes. Muitos neurocientistas cognitivos acreditam que a mtsi- ca é, de fato, um sistema neurocognitivo independente ou modular. Em linhas gerais, a independéncia da funcao musical de outras fun- ¢6es no cérebro tem sido observada de maneira clara, mas nés ainda nao conhecemos a localizacao neuroanatémica para o processamento de varios componentes da mtisica. Os pesquisado- res conseguiram demonstrar que h4 disttirbios diferentes afetando a melodia, o ritmo, o compasso, a tonalidade e 0 timbre, e isso sugere que cada uma dessas coisas € um subcomponente independente do sistema de reconhecimento musical. Algumas possiveis localizagées especificas para o processamento musical estao comecando a ser identificadas. Robert Zatorre e seus colegas descobriram que as lesSes no lobo temporal direito tendem a afetar a percepgao de melodias mais do que as lesdes no lobo temporal esquerdo. Eles também observaram que a percepcao de padrées de altura aparenta envolver a ativagao da regiao temporal direita em voluntarios normais. A.R. Luria descobriu que, quando a lesao ocorria nas 4reas das associagdes auditivas secundarias esquerdas, os pacientes apresentavam diversos déficits de percep¢4o e reproducao de padrSes temporais (arritmia), mas que tanto 0 processamento melédico quanto o timbristico sao pre- servados. Brenda Milner encontrou déficits na percepgao de notas musicais e timbre apés a realizagao de lobotomia temporal direita, com a preserva¢ao relativa do ritmo. Peretz também descobriu que o hemisfério direito do cé- rebro contém um dispositivo responsavel pelos contornos que, quan- do em acao, desenha 0 contorno de uma melodia e o analisa ativa- mente para fins de reconhecimento posterior. Por meio de seu estudo de um paciente neurologico (conhecido na literatura pelas iniciais CN), ela descobriu um caso de agnosia musical pura Cincapacidade de reconhecer miisica); uma paciente com lesées bilaterais no lobo temporal, que n4o conseguia mais reconhecer cangdes anteriormen- te familiares em tarefas de memGria explicita, mas ainda assim man- tinha a memoria implicita para cancdes bem conhecidas. Embora a Paciente dissesse nao reconhecer as cangées familiares antigas e conhecidas, quando forgada a adivinhar qual das duas cangées lhe —39—— £m busca da mente musical era familiar, ela “adivinhava" com maior exatidao do que o acaso poderia permitir. Aprendendo a linguagem da mdsica John Sloboda da Universidade de Keele, na Inglaterra, € uma das figuras mais importantes em matéria de percep¢ao e cogni¢ao musical. Um vocalista completo e um psicélogo por formagao, ele tem se dedicado a estudar como as pessoas adquirem competéncia musical. Suas pesquisas demonstraram que os bebés tém uma apti- dao extraordinaria para escolher entre seqiiéncias musicais bem for- madas e mal formadas na miisica de suas culturas, e que esta "com- preensao da gramiatica, da sintaxe e da semAntica musicais é paralela a habilidade da crian¢a de discernir entre as regularidades estrutu- rais da lingua falada". Aqueles que seguem as idéias de Noam Chomsky em lin- guistica e psicologia sustentam que nascemos com uma capacidade inata de aprender uma lingua, e que esta Capacidade est4 incorpora- da num "médulo de linguagem" no cérebro. Os bebés vém ao mun- do equipados com um molde cerebral dotado de conexdes que permitem adaptaé-lo para aprender qualquer lingua — até mesmo uma lingua nao-verbal, como demonstrou Ursula Bellugi do Instituto Salk, com a linguagem de sinais. Isto é, nés nao nascemos predis- postos para falar uma lingua particular; através da exposi¢ao conti- nuada, nossos cérebros se moldam 4s estruturas da lingua especifica que ouvimos. Sloboda sugere que pode existir um médulo musical semelhante que vem pré-equipado para discernir a estrutura e a gramatica musical da cultura do bebé, desde que a exposi¢4o conti- nuada 4 musica ocorra durante 0 periodo critico. A nocao de “periodos criticos" pode também levar longe na explicagao da competéncia musical. Quase todos os mtisicos "de primeira" do mundo comegaram sua formagao musical quando eram bem pequenos. E improvavel que a razao de seu sucesso resida simplesmente no fato de que tiveram mais horas de pratica; 0 que é mais provavel é que existam periodos criticos de desenvolvimento em que 0 cérebro esta em rapido crescimento e receptivo a fazer as novas conexGes necessdrias para incorporar 0 pensamento musical na natureza do pensamento propriamente dito — um processo que transforma © pensamento musical em automatico, como o andar ou o falar. —39— Daniel Levitin Os misicos que aprendem tarde, freqiientemente tocam "com sotaque". Eu sei disso por experiéncia propria. Embora eu tenha tocado violao profissionalmente por muitos anos, eu s6 aprendi a tocar o instrumento aos 16 anos. Amigos que sao violonistas pro- fissionais me dizem que 0 meu jeito de tocar nao é "natural", embo- ra aqueles que nado tocam viol4o praticamente nao notem a diferenga. Sloboda também acredita que um componente critico do desenvolvimento da mente musical é a habilidade de captar a estru- tura interna da miisica, analoga 4 maneira como os grandes enxa- dristas tém uma compreensao estrutural profunda das jogadas de xadrez e das inter-relagdes das pecas no tabuleiro. A base evoluciondria da masica Embora nem todos sejam musicos, praticamente todo mun- do tem miisica em sua vida. Isso sugere que, na nossa evolucao, a base para a musica € antiga, e pode mesmo ter precedido a lingua- gem falada. Entao, qual é o seu objetivo? Num debate recente, Steven Pinker do Instituto Tecnolégico de Massachussetts (MIT) su- geriu que a musica nao passa de uma "c6pia auditiva insinuante" (auditory cheesecake); um acidente evolutivo que se apdia na lin- guagem falada. Ja Ian Cross da Universidade de Cambridge, Sandra Trehub de Toronto e outros argumentam que os comportamentos musicais tem uma fungao adaptativa na evolucao. David Huron se fecha com Cross e Trehub neste debate e argumenta que a musica promove a integracao social entre os mem- bros de uma cultura e cita meu programa de pesquisa sobre porta- dores de sindrome de Williams (conduzido com Ursula Bellugi). Bellugi e eu descobrimos que os individuos portadores dessa desor- dem genética do neurodesenvolvimento so extraordinariamente socidveis; apesar de seus grandes déficits na maior parte das fun- ¢6es cognitivas, elas tém habilidades musicais relativamente nor- mais. As pessoas portadoras de outras desordens tais como autismo de Asperger, sao geralmente associais e amusicais, apresentando uma dissociacgao dupla de habilidades musicais e sociais que causa perplexidade com a sindrome de Williams. Ambas as desordens tém base genética. Isto, argumenta Huron, € forte evidéncia da existéncia de um componente genético que influencia tanto a musicalidade quanto a sociabilidade. Com 0 mapeamento do genoma humano, a resolugao dessa questo poder estar préxima. Os genes —— Em busoa da mente musical envolvidos na sindrome de Williams (no cromossomo 7) estao sen- do estudados de maneira aprofundada por membros da equipe de Bellugi, liderados pela geneticista Julie Korenberg, da Universidade da Califérnia em Los Angeles. Huron acredita que, embora as evidéncias em favor da idéia da mdsica como uma adaptac¢ao evolutiva nao sejam ainda sOlidas, a idéia é plausive]. Primeiro porque adapta¢Ges evolucionarias. complexas levam muitos milénios para acontecer. O fazer musical, sendo uma das atividades humanas mais antigas, satisfaz as condi- g6es. Em segundo lugar, a evolugao precisa se expressar por meio de genes, que, por sua vez, sao expressos no corpo por meio de proteinas. A experiéncia musical influencia e €é modificada por subs- tancias bioquimicas naturais do corpo, portanto a musica satisfaz uma das exigéncias bioquimicas basicas da teoria. E, finalmente, alguns comportamentos especializados que evoluiram sao tipica- mente associados a localizagdes neuroanatémicas especificas; vi- mos a partir das dissociagdes duplas que a musica aparenta ter tal base. As fungdes antigas da misica Eu perguntei mais acima por que a miisica move as pessoas, por que algumas pessoas passam tanto tempo e gastam tanto di- nheiro na busca de prazeres musicais. O prazer musical nao é mera- mente subjetivo Ga seria o bastante se fosse s6 isso); muitos estudos demonstraram mudangas bioquimicas e eletrofisioldgicas em res- posta 4 escuta musical. Alguns pesquisadores estao descobrindo que a escuta de musica conhecida ativa as estruturas neurais profun- das, localizadas nas regides primitivas do cérebro, o vermis cerebelar (cerebellar vermis). Para a mtisica afetar de maneira tao profunda este portal das emogoes, a musica precisa ter alguma fungao antiga e importante. Embora ninguém saiba ainda o que 6 isto, eu posso especular. Comunicagdao. Eu acredito que a musica nos move porque ela incita os chamados comunicativos primitivos de nossa espécie. Nao vem ao caso se Os nossos ancestrais hominideos falaram ou cantaram primeiro; a prosédia, o ritmo e 0 contorno musical podem excitar em nds um eco evoluciondrio de comunicagao primitiva. Expectativa e tempo. Por meio do ritmo, a musica estimula os mecanismos neurais primitivos de temporizagéo. A mtisica nos —— Daniel Levitin afeta porque a estrutura intrinseca de uma pega musical, que na misica ocidental é baseada na repeticao, cria expectativas no ou~ vinte. Os padrGes temporais que j4 ocorreram sugerem-nos novos padrées temporais que vao ocoerrer, e estes padrées também con- tém a melodia e a harmonia. A musica se desdobra no tempo. Praticamente nao se conhece nenhuma musica sem pulso, sem re- gularidade temporal e sem expectativas temporais. Nao € coinci- déncia entZo o fato de que o vermis cerebelar, a parte do cérebro que foi identificada como envolvida na percep¢ao musical, esta relacionada 4 percepc’o de tempo. Por que o tempo e a emog4o teriam por base a mesma parte do cérebro? Se retornarmos 4 evolugao, notaremos que, nas formas mais simples de vida, o tempo é a propriedade mais funda- mental que se aprende por meio de condicionamento e habituagao. Organismos compostos por uma tinica célula sao muitos sensiveis ao tempo. Por exemplo, eles rapidamente se habituam a serem cutucados se © cutucar for feito com uma regularidade ritmica. Os animais com cérebro mais complexo que inclui um cértex cerebral usam 0 tempo na aprendizagem por condicionamento e associacao. Os casos mais famosos vém da pesquisa com animais sobre evitar 0 sofrimento e eliciar alguns comportamentos recompensados por ali- mentos. Até mesmo os animais das categorias mais baixas conse- guem aprender hordrios precisos para ganhar recompensas ou evi- tar castigos. Algo que encontramos na literatura sobre condicionamento é que os animais sao extremamente sensiveis ao intervalo de tempo entre um evento sensorial e suas conseqtiéncias. Por exemplo, tanto as pombas quanto os ratinhos aprenderam a fazer escolhas diferen- tes quando o momento de apresentaga4o de um dado estimulo estava deslocado por apenas alguns milisegundos. A misica nos move porque, de todas as atividades huma- nas, € aquela que tem a maior regularidade temporal. Alguém po- deria argumentar que tanto 0 rock quanto o rap, que tém pulso constante (pouquissimas mudangas de tempo), duraram muitos anos, apesar das previsOes dos gurus que pensavam que esses estilos seriam efémeros, por causa das regularidades temporais do pulso. A miisica nos move porque ela é ritmica. Padroes. Uma das maiores necessidades humanas é a de encontrar padrées no ambiente. Se vocé j4 olhou fixamente para Pontos dispostos randomicamente num forro actistico ou para nu- vens no céu, vocé deve ter notado que padrdes de todo tipo pare- cem emergir quando, na realidade, nenhum existe. Nosso cérebro. Em busca da mente musical esté constantemente tentando pdr ordem na desordem, e a musica é um jogo de padrées fantastico para os nossos centros cognitivos superiores. Da nossa cultura, nds aprendemos (ainda que inconscien- temente) sobre as estruturas musicais, notas, e outras maneiras de entendermos a misica conforme ela se desdobra no tempo; e nos- sos cérebros sao exercitados quando extraimos padroes e agrupa~ mentos diferentes da performance musical. Os padrées emergem, se reagrupam, se repetem e se dobram sobre si mesmos de muitas maneiras interessantes. A "Sonata ao luar" de Beethoven nos move porque cada vez que a ouvimos, a ouvimos de maneira diferente, dependendo do executante, de nosso estado de espirito, das pessoas que estéo0 em nossa companhia. As notas da composi¢ao formam um primeiro plano, os espa¢gos entre elas um segundo plano, ¢€ nossas mentes trabalham ativamente para estabelecer conexGes en- tre esses planos, para agrupar a muisica em frases, para prever oO que vira a seguir. O cérebro sempre-alerta fica excitado quando encontramos violagdes, ainda que sutis, de nossas expectativas. Voltando a terra firme Ha midsica na vida cotidiana, até mesmo em lugares onde nao é explicita. Ha mtisica nas ondas que se quebram na praia, nas gaivotas que gritam por cima do estrondo. O oxigénio alimenta as nossas céfulas por meio do sangue bombeado pelo nosso préprio relégio cardiaco que marca nossos ritmos como um metrénomo. O vento conduz, ao soprar, um conjunto de percussao formado por folhas, 4rvores balangando e galhos quebrando. As estrelas tragam padrdes no céu noturno, de forma t20 complexa e interdependente quanto as harmonias da quinta sinfonia de Mahler. Embora eu tenha especulado sobre o porqué de a miisica nos mover, a verdade € que nao sabemos muito a respeito de suas origens. Até mesmo dizer que a mtisica € uma invengdo exclusiva- mente humana é um tanto controverso, embora o peso das evidén- cias sugira que seja essa a verdade. De acordo com os documentos arqueoldégicos, a musica tem estado com a nossa espécie por muito tempo — tanto tempo quanto qualquer outra coisa para a qual temos alguma evidéncia. Sua ubiqitidade e antiguidade demonstram sua importancia para nés. Maes em todas as culturas conhecidas cantam cantigas para seus bebés, tornando a musica uma das primeiras experiéncias do recém-nascido. Daniel Levitin Eu acredito que o estudo da mtisica tem uma importancia central para a ciéncia cognitiva porque a miisica esta entre as ativi- dades humanas mais complexas, envolvendo percepcao, mem6ria, tempo, agrupamento de objetos, aten¢ao e (no caso da performance) pericia e uma coordenagao complexa da atividade motora. Conse- quentemente, o estudo cientifico da mtisica € potencialmente apto a responder algumas questdes fundamentais sobre a natureza do pen- samento humano e as relagdes entre experiéncia, mente, cérebro e genes. Perto do final de Moby Dick, Ahab observa atentamente sua propria sombra no oceano, vendo-a perder forma nas profundezas do mar. Talvez nds estejamos como © capitao Ahab e o Sr. Starbuck, em busca de um grande mistério que nao podera nunca ser explica- do de maneira completa, uma criagao dinamica, bela e poderosa que nao pode ser compreendida enquanto em movimento, e que todavia nao pode nunca ser capturada. Nossos colegas que estudam texto e viséo procuram por componentes basicos, os fonemas e as formas primitivas, para melhor compreenderem a dinamica dos sis- temas de linguagem e visual. A musica é, evidentemente, mais do que apenas alturas e freqiiéncias, e, de fato, nossa experiéncia com ela é, sem sombra de diivida, mais do que uma soma de altura, freqiiéncia, tempo, ritmo, compasso e timbre, entre outros. Ao estu- dar qualquer uma dessas propriedades isoladas, nés podemos — como 0 fildsofo Alan Watts gostava de dizer — estar tentando estudar um rio a partir da observagao de um balde contendo a 4gua que tiramos dele. Este € o mesmo desafio encontrado por pesquisadores na fisica e em outras disciplinas: como conduzir experimentos me- tédicos e rigorosos num sistema complexo e dinamico. Por meio dos esfor¢gos interdisciplinares de colegas em todos os niveis de investigacao, desde a fungao celular até a psicologia cognitiva, os anos vindouros prometem nos fazer chegar mais perto do que nun- ca, nao apenas de esclarecer a natureza da mente musical, mas também, talvez, de entendermos qual é a forca que nos leva a fazé-lo.

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