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od Veélas DEDALUS - Acervo - FFLCH CONT 20900019550 ROLAND BARTHES O GRAU ZERO DA ESCRITA seguido de NOVOS ENSAIOS CRITICOS “Tadao | Mario Lana Martins Fontes SGo Paulo 2004 | Rolond Bette | lar de escrita como de sentimento pottico. A poesia moderna, em seu absoluto, em René Chas, por exemplo, esté além desse tom difuso, dessa ata preciosa que, esses sim, sio uma escrita, © a que se chama geralmente de sentimento poético. Nao hd ob- Jegio a que se fale de uma escrita poética a propésito dos clés- sicos ¢ de seus epigonos, ou ainda da prosa poética no gosto das Nourritures terrestres (Alimentos terrestre}, onde a Poesia é ver- dadeiramente cerca éica da linguagem. A escrita, neste como naquele caso, absorve o estilo, ¢ pode-se imagiziar que, para os homens do século XVII, néo era ficil estabelecer uma diferenca imediata, ¢ principalmente de ordem poética, entre Racine e Pradon, exatamente como néo ¢ fécil para um leitor moderno julgar esses poetas contemporéneos que utilizam a mesma es- rita poésica, uniforme e indecisa, porque para eles 2 Poesia é uum clima, isto é, essencialménte uma convengio de linguagem. Mas quando a poética questiona radicalmente a Natureza, sé pelo efeito de sua estrusura, sem recorrer a0 contetido do dis- curso ¢ sem se deter no patamar de uma ideologia, jd nao hé mais escrica, hé aperas estilos, através dos quais © homem se volta completamente ¢ enfrenta 0 mundo objetivo sem passar por nenhuma das figuras da Historia ou da sociabilidade. 6 | Segunda parte | TRIUNEO E RUPTURA DA ESCRITA BURGUESA Hi, na Literatura pré-classica, a aparéncia de uma plurali- dade das escritas; mas essa variedade parece bem menor se co- ocarmos os problemas de linguagem em cermos de estrutura ¢ no mais em termos de arte, Esteticamente, 0 século XVI ¢ 0 inicio do século XVII mostram uma superabundancia bastante livce de linguagens lirerdtias, porque os homens ainda estéo em- penhados num conhecimento da Natureza'e nfio numa expres- so da esséncia humana; sob esse aspecto, a escrita enciclopé- dica de Rabelais, ou a escrita preciosista de Corneille ~ para ci- tar apenas momentos tpicos ~ tém como forma comum uma Jinguagem em que 0 ornamento ainda no é um ritual, mas cons- titui em si um procedimento de investigago aplicado a toda a extensdo do mundo. f isso que dé a essa escrita pré-clissica 0 aspecto mesmo do matiz ¢ a euforia de uma liberdade. Para um a 1 Roland Barbe | leitor moderno, a mpressio de variedade € tanto mais forte quanto a lingua parece ainda ensaiar estruturas instaveis e néo ter ainda fixado definidvamente-o espirito de sua sintaxe e as leis de crescimento de seu vocabulério, Para retomar a distingao en- te “lingua” e “escrit”, pode-se dizer que, até por volta de 1650, a literatura francesa ainda nfo havia ultrapassado uma proble- mética da Iingua, e que por isso mesmo ela ainda ignorava a escrita. Com efeico, enquanto a lingua hesita sobre a sua propria estrucura, uma moral da linguagem fica imposs{vel; acscrita.sd aparece_no_momento.¢m que a lingua, constitufda nacional- ‘mente, se roma uma espécie de negatividadle, um horizonte que separa o que é permtido do que € proibido, sem mais se indagar ram os franceses de qualquer problema linglstico, ¢ ess gua depurada se toraou uma escrita; iso é, um valor de lingua gem, dada imediatamente, come universal em. victude mesmo das ~~ Gon juntas hisndricas. ‘A diversidade cos “géneros” eo movimento dos estilos:no interior do dogma cléssico so dados estéticos, nao de estrutura; nem um nem outro dever iludi: foi mesmo de uma escrita nica, a0 mesmo tempo instrumental e ormamental, que a so- ciedade francesa dispés durante todo 0 tempo em que a ideo- logia burguesa conquistou e triunfou. Escrta instrumental, pois que a forma era suposta a servigo do contetido, como uma equa> io algébrica esté a servigo de um ato operatério; ornamental, pois que esse instrumento vinhs decorado com acidentes exte- 8 1 Opa zee de arts | riores & sua fungio, buscados sem pejo na Tradigio, isto €, essa escrita burguesa, reromada por escritores diferentes, no pro- vocava jamais a repulsa de sua hereditariedade, no passando de um enfeite feliz sobre 0 qual se eievava 0 ato do pensamento, Sem divida também os escritores classicos conheceram uma problemitica da forma, mas o debate no visava absolucamen- te variedade ¢ aos sentidos das escritas, ainda menos a estru- cura da linguagem; apenas a retérica estava. em causa, isto & a ordém do discurso pensado segundo uma finalidade de persua- sio. A singularidade da escrica burguesa correspondia portan- to a pluralidadé das retéricas; inversamente, € no momento mesmo em que os tratados de retérica deixaram de interessar, em meados do século XIX, que a escrita cléssica deixou de ser uni- versal ¢ que nasceram as esctitas modernas. - Essa escrita clissica ¢ evidentemente uma escrita de clas- se. Nascida no século XVII, no grupo que se mantinha direta- mente em torno do poder, formada a golpes de decisées dogm- ticas, depurada rapidamente de todos os procedimentos gra- maticais que tinham podido ser eleborados pela subjetividade espontinea do homem popular, e erigida, ao contrétio, mim tra- balho de definiglo, a escrita burguess foi inicialmente dada, com eitos criunfos politicos, como a lingua de uma classe minoritéria e privilegiada; em 1647, Vau- gelas recomenda a escrita cléssica como um estado de fato, nao de 6 cinismo habitual dos p direito; a clareza ainda nao ¢ sendo um uso da corte. Em 1660, 20 contritio, na gramética de Port-Royal, por exemplo, a lingua clissica vem revestida das caracterfsticas do universal, a clareza “9 | Roland Barthes | se torna um valor. Na realidade, a clareza é um atributo pura- mente ret6rico, no é uma qualidade geral da linguagem, poss!- vel em todos os tempos ¢ lugares, mas apenas o apéndice ideal de determinado discurso, aquele mesmo que esté submetido a uma intenco permanente de persuasio. E, porque a pré-burgue- sia dos tempos monirquicos ¢ a burguesia dos tempos pés-reyo- lucionérios, utilizando uma mesma escrita, desenvolveram uma micologia essencial sta do homem, que a éscrita cléssica, una € universal, abandonou todo tremor em beneficio de um con- tinuo do qual cada parcela era uma excalha, quer dizer, eliminagao radical de qualquer possivel da linguagem. A autoridade poli- tica, o dogmatismo do Espirito e a unidade da linguagem cléssi- casio portanto as figuras de um mesmo movimiento histérico. “Tanto assim que nao deve causar espécie néo ter a Revolu- do mudado a Scrita burguesa, ¢ nao haver senfio uma diferenga ‘muito ténue entre aescrita de um Fénelonie a de um Mérimée. E quea ideologia burguesa perdurou, isenta de Assura, até 1848, sem 0 minimo de abalo, na passagem de uma revolugio que dava A burguesia o poder politico ¢ social; de modo algum o pader intelectual, que ela f detinha havia muito tempo. De Laclos a Stendhal, a escrita burguesa s6 teve de se retomar e se continuar por cima da curta vacincia das perturbagées. E a revolucéo ro- mantica, tio apegaca nominalmente a perturbar a forma; con- servou cordatamente a escrita de sua ideologia. Um pouco de lastro atirado fora misturando os géneros ¢ as palavras permi- tiu-lhe preservar o essencial da linguagem cléssica, a instrumen- talidade: sem divide um instrumento qué assume cada vez mais 50 | O gra sera decries | “presenga” (principalmente na obra de Chateaubriand), mas um instrumento afinal utilizado sem elevacéo e ignorando qual- quer solidéo da linguagem. S6 Hugo, tirando das dimensdes carnais de sua duragZo e de seu espaco uma temética verbal par- ticulas, que néo podia mais se ler na perspectiva de uma tradi- fo, mas somente por referéncia 20 avesso formidavel de sua propria existéncia, s6 Hugo, pelo peso de seu estilo, péde fazer pressio sobre a escrita cissica e levé-la as vésperas de um esfa- celamento. Assim o desprezo de Victor Hugo avaliza sempre a mesma mitologia formal, ao abrigo da qual fica sempre a mesma esctita oitocentista, testemunha dos fastos burgueses, que per- manece ainda como a norma do francés de bora quilate, essa Jinguagem bem fechada, separada da sociedade por toda aespes- sura do mito literdrio, espétie de escrita sagrada retomada in- diferentemente’pelos mais diversos escritores a titulo de uma lei austera ou de um prazer guloso, taberndculo desse mistério prestigioso: a Literatura francesa. (Ora, 0s anos situados em torno de 1850 trazem a conjun- so de trés grandes Fatos histbricos novos: a inversio da demo- grafla européia; a substituigéo da indiistria téxtil pela industria metaltirgica, quer dizer, 0 nascimento do capitalismo moder- nos a secesséo (consumada com as jornadas de junho de 48) da sociedade francesa em trés classes inimigas, isto é, a ruina de- finitiva das ilus6es do liberalismo. Bssas conjunturas lancam a burguesia numa sicuacfo histérica nova. Até entio, era a ideolo- gia burguesa que dava 2 medida do universal, preenchendo-o 31 1 Roland Barthes | sem contestaco; 0 escritor burgués, Gnico juiz da infelicidade dos outros homens. ndo tendo diance dele nenhum outrem para olbdclo, nao ficava repartido entre a sua condico social e a sua vocacio intelectual. Doravante, essa mesma ideologia vai mos- ‘arse apenas como uma ideologia entre outras possives 0 uni versal Ihe escapa, no pode ultrapassar-se a nfo ser se conde- Mando: c-escritorse-torna.a piesa de uma ambigilidade, visto que 2 sua consciéncia nio recobre mais exatamente a sua condiszo, Assim nasce um trigico da Liserarura, Eentéo que as escritas comegam a se multiplicar. Cada uma, de ora em diante, a trabalhada, a populista, a neutra, a fa- lada, reivindica para si.o ato inicial pelo qual o escritor assume ou detesta a sua condicgo burguesa. Cada uma ¢ uma tentativa de resposta 2 essa problemética orféica da Forma moderna: escri- tores sem literatura, H4 cem anos, Flaubert, Mallarmé, Rim- baud, os Goncourt, os surrealistas, Queneau, Sartre; Blanchot ou: Camus tragaram ~ wagam ainda ~ certas vias de integracéo, de esfacelamento oa de naturalizacao da linguagem literdria; ‘mas o que estd em jogo no ¢ tal aventura da forma, tal sucesso _do trabalho retérico ou tal audécia do vocabulério. Cada vee que 0 eseritor traga um complexo de palavras, €a prépri séncia da Liceratura que est sendo questionada; 0 que a decnidade dé a ler na pluralidade de su: <0 impe sua_prépria Histéria, 32 © ARTESANATO DO ESTILO “A forma custa caro”, dizia Valéry quando lhe perguntavam por que ele no publicava os seus cursos do Collége de France. No entanto, houve todo um periodo, o da escita burguesa triun- fante, em que a forma custava mais ou menos o prego do pen- samento; cuidava-se sem divida de sua economia, de sua eufe- mia, mas a forma custava menos na medida em que o escritor usava de um instrumento jé formado, cujos mecanismos se transmitiam intatos sem nenhuma obsessio de novidade; a forma no constituta o objeto de uma propriedade; a univer- salidade da linguagem clissica provinha de que a linguagem era um bem comunal, e de que s6 0 pensamento era cunhado de alteridade, Podertamos dizer que, durante todo esse tempo, afor- ma tinha um valor de uso. Ota, jé se viu que, por volta de 1850, comeca a se colocar paraa ceratura um problema de justificado: a escrita vai pro- 3 | Roland Berth | -curar dlibis para si; ¢ precisamente porque uma sombra de di- vida comega a se levantar sobre o seu iso, toda uma classe de escritores zelosos por assumir a fundo a responsabilidade da tra- dig vai substitu 0 valor-uso da esctita por um valor-trabalho. A esctita serd salva nfo em virtude de seu destino, mas gracas ao trabalho que terd custado. Comega entéo a elaborar-se uma imagistica do esctitor-arteséo que se encerra num lugar Iend4- tio, como um operdrio que trabalha em casa, ¢ desbasta, talha, dé polimento e incrusta a sua forma, exatamente como um la- pidério exerai a arte da matéria, passando nesse crabalho horas regulares de solidgo e de esforso: escritores como Gautier (mes- tre inipecavel das Belas-Letras), Flaubert (amaciando as suas frases em Croisset), Valéry (em seu quarto de madrugada), ow Gide (de pé diante de sua estante como diante de uma bancada), formam uma espécie de confraria de arteséios das Letras fran- cesas, onde o laver da forma constitui o’sinal e a propriedade de uma corporacao. Esse valor-trabalho substicui um pouco 0, valor-génio; coloca-se uma espécie de vaidade em dizer que se trabalha muito ¢ longamente a forma; cria-se até mesmo-s ver es um preciosism:o da’concisio (trabalhar uma matéria 6 em geral, cortar.patte dela), bem oposto ao grande preciosismo barroco (0 de Coracille, por éxemplo); um exprime um conhe- cimento da Natureza que acarreta um alargamento da lingua- ‘gem; 0 outro, buscando produzir um estilo literdrio aristocrd- tico, instala as condigdes de uma crise histérica, que se abriré no dia em que uma Finalidade eseética jé niio mais bastar para justificar a convengao dessa linguagem anacréniga, isto é; no 4 | O gr ara destin | dia ém que a Histéria tiver provocado uma disjungio evidente * entre a vocacio social do escritor€ inistrumento que lhe é trans- nitido pela Tradigao. Flaubert, como méximo de ordem, fundou essa escrita ar- tesanal, Antes dele o favo burgues era da ordem do pitoresco ou do exbrico; a ideologia burguesa dava a medida do universal ¢, pretendendo ter atingido a existéricia de um homem puro, po- dia considerar com euforia a burguesia como um espeticulo in- comensurével a si mesma. Para Flaubert, o estado burgués é um " mal-incuravel que adere pegajoso 20 escritor, ¢ que ele sé pode atar assumindo-o na lucidez ~ 0 que € proprio de um senti- ‘mento trdgico, Essa Nécessidade burguesa, que pertence a Fré- déric Moreau, a Emma Bovary, a Bouvard ¢ a Pécuchet, exige, a partir do momento em que é assumtida de frente, uma arte igualmente portadora de uma necéssidade, armada com uma Lei. Flaubert fundou uma escrita normativa que contém — parado- x0 — as regras téenicas de um feope um lado, conseréi a sua narrativa por sucessGes de esséittlas, nao segundo uma or- dem fenomenolégica (como fard Proust); fixa os tempos ver- bais num uso convencional, de modo que elés ajam como signos da Literatura, 2 exemplo de uma rte que avisasse de sua arti- ficialidade; elabora um ritmo escrito, criador de uma espécie de encantagio que, longe das normas da eloqiléncia falada, toca um sexto sentido, puramente literirio, interior aos produzores aos consumidores da Literatura, E, por outro lado, esse cédigo do trabalho literério, como essa soma de exercicios relatives 20 55 1 Rated Barth | lavor da escrita suscentam uma sabedoria, se assim se quiser, e também uma tristeza, uma franqueza, pois que a arte flauber- tiana avanga apontando a sua méscara com o dedo, Essa codi- ficagao gregoriana da linguagem literdria visava, sendo a recon- ciliar 0 escricor com uma condigéo universal, pelo menos a dar-lhe a responsabilidade de sua forma, a fazer da escrita que Ihe era entregue pela Histétia uma arte, sto 6, uma convensio clara, um pacto sincero que petmitisse ao homem assumir uma situaso familiar numa natureza ainda dispar. O escritor d4 3 sociedade uma arte declarada, vistvel para todos em suas nor- ‘mas, € em toca a soriedade pode actitar o escritor. Assim Baude- laire fazia questo de ligar a Gautier 0 admirével prosalsmo de sua poesia, como uma espécie de feitico da forma wabalhada, situada certamente fora do pragmatismo da atividade burgue- sa, € no encanto inserida numa ordem de traballios familiares, controlada por uma sociedade que reconhecia nela, néo os seus sonhos, mas os seus métodos. Jé que « Literatura nfo podia ser vencida a partir de si mesma, nAo seria preferivel aceité-la aber- tamente e, condenado a esse trabalho forcado literdtio, realizar rela “um bom trabalho”? Assim a faubertizagio da escrirat.o resgate geral dos escritores, seja que os menos exigentes se dei- xem evar sem problema, seja que os mais puros'a ela retornem como ao reconhecimento de uma condigao faral. 56 ESCRITA E REVOLUGAO O artesanato do estilo produriu uma subescrita, derivada de Flaubert, mas adaptada aos propésitos da escola naturalista Essa escriti de Maupassant, de Zola, de Daudet, a que se pode- ria chamar escrita realisca, ¢ um combinado dos sinais formais da Litecacura ("passé simple”, estilo indireto, ritmo escrito) ¢ dos sinais nfo menos formais do realismo (elementos trazidos da linguagem popular, palavras fortes, dialetais erc.), de manecira que nenhuma escrita é mais artificial do que essa que preten- deu pintar mais de perto a Natureza, Sem ditvida o insucesso no esté somente no nivel da forma, mas também da teoria: ha 1 estética naturalista uma convengio do real como hé uma fabri-* cagio da escrita. O paradoxo € que a humilhacdo dos sujeitos no acarrecou absolutamente um eacolhimento da forma. Aes: crita neutra é um fato tardio, s6 seré inventada bem depois do 7

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