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A REIFICAGAO E A CONSCIBNCIA DO PROLETARIADO Ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas, para ohomem, a raiz é 0 proprio homem. Manx, Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie [Critica da Filosofia do direito de Hegell. Nao 6 de modo algum casual que as duas grandes obras da maturidade de Marx, que expdem o conjunto da sociedade capitalista e revelam seu cardter funda- ‘mental, comecem com a anilise da mercadoria. Pois nao ha prodlema nessa etapa de desenvolvimento da hu- manidade que, em tiltima andlise, nao se reporte a essa questo e cuja solugéo nao tenha de ser buscada na so- lugdo Go enigma da estrutura da mercadoria. Certamen- te, esse universalidade do problema s6 pode ser alcan- cada quando a formulacao do problema atinge aquela amplitude e a profundidade que possui nas andlises do préprio Marx; quando o problema da mercadoria nio aparece apenas como um problema isolado, tampouco como problema central da economia enquanto ciéncia particular, mas como problema central ¢ estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestacdes vitais. Pois somente nesse caso pode-se descobrir na es- trutura da relacao mercantil o prototipo de todas as for- mas de objetividade e de todas as suas formas corres- pondentes de subjetividade na sociedade burguesa. 194 GEORG LUKACS I. O fendmeno da reificagio 1 A esséncia da estrutura da mercadoria j foi res- saltada varias vezes. Ela se baseia no fato de uma rela- ao entre pessoas tomar o caréter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma “objetividade fantasmagérica” que, em sua legalidade propria, rigorosa, aparentemente ra- cional ¢ inteiramente fechada, oculta todo traco de sua esséncia fundamental: a relagao entre os homens. Nao pertence ao ambito deste estudo analisar o quanto essa problemética tornou-se central para a propria econo- mia e quais conseqiiéncias o abandono desse ponto de partida metédico trouxe para as concep¢des econémi- cas do marxismo vulgar. Nosso objetivo 6 somente cha- mar a atengao ~ pressupondo as andlises econémicas de Marx — para aqueles problemas fundamentais que re- sultam do carater fetichista da mercadoria como forma de objetividade, de um lado, e do comportamento do sujeito submetido a ela, de outro. Apenas quando com- preendemos essa dualidade conseguimos ter uma vi- so clara dos problemas ideol6gicos do capitalismo e do seu dectinio. Contudo, antes que o problema propriamente dito possa ser examinado, temos de esclarecer que a questo do fetichismo da mercadoria € especffica da nossa épo- ca, do capitalismo modemo. Como se sabe, a troca de mer- cadorias e as relagdes mercantis subjetivas e objetivas correspondentes jé existiam em etapas muito primitivas do desenvolvimento da sociedade. Mas 0 que importa aqui é saber em que medida a troca de mercadorias e suas HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 195 conseqiiéncias estruturais sao capazes de influenciar toda a vida exterior e interior da sociedade. Portanto, a extensao da troca mercantil como forma dominante do metabolismo de uma sociedade nao pode ser tratada como uma simples questao quantitativa - conforme os habitos modernos de pensamento, j reificados sob a influéncia da forma mercantil dominante. A diferenca entre uma sociedade em que a forma mercantil é a do- minante que influencia decisivamente todas as mani- festacdes da vida e uma sociedade em que ela aparece apenas episodicamente é, antes, uma diferenca quali- tativa, Pois 0 conjunto dos fenémenos, subjetivos e ob- jetivos, das sociedades em questio adquire, de acordo com essa diferenca, formas de objetividade qualitativa- mente diferentes. Max enfatiza com muita precisao esse carter epis6dico da forma mercantil na sociedade pri- mitiva': “A troca direta, forma natural do processo de intercAmbio, representa muito mais a transformacao ini- cial dos valores de uso em mercadorias do que a trans- formagio das mercadorias em dinheiro. O valor de troca no tem uma forma independente, mas ainda esté liga- do diretamente ao valor de uso. Isso se mostra de duas maneitas. Em toda sua organizacio, a prépria produ- do esti voltada para o valor de uso, endo para o valor de troca; e 6 somente por exceder a quantidade neces- séria ao consumo que os valores de uso deixam de ser valores de uso e se tornam meios de troca, mercadorias. Por outro lado, eles s6 se tornam mercadorias dentro dos limites do valor de uso imediato, ainda que separa- 1. Zur Kite der poitischen Okonomie, MEW 13, pp. 35-6. 196 GEORG LuKAcS dos em pélos, de tal maneira que as mercadorias a serem trocadas devem ser valores de uso para 0s dois possui- dores, e cada uma valor de uso para quem nao a pos- sui. De fato, o proceso de troca de mercadorias nao aparece originalmente no seio das comunidades natu- rais, mas sim onde elas cessam de existir, em suas fron- teiras, nos poucos pontos em que entram em contato com outras comunidades. Aqui comega a troca que, em seguida, repercute no interior da comunidade, na qual ela atua de maneira desagregadora.” A constatagio da acdo desagregadora da troca de mercadorias voltada para o interior aponta claramente para a mudanca qua- litativa que nasce da dominacao da mercadoria. Con- tudo, essa ago exercida no interior da estrutura social também nao basta para fazer da forma mercantil a for- ma constitutiva de uma sociedade. Para tanto, ela tem de penetrar ~ como foi enfatizado acima ~ no conjunto das manifestagies vitais da sociedade e remodelar tais, manifestagoes 4 sua propria imagem, e nao simples- mente ligar-se exteriormente a processos voltados para a produgao de valores de uso e em si mesmos indepen- dentes dela. Mas a diferenca qualitativa entre a merca- doria como uma forma (entre muitas outras) do meta- ‘olismo social dos homens e a mercadoria como forma universal de conformacao da sociedade nao se mostra somente no fato de a relagéo mercantil como fendme- no isolado exercer no maximo uma influéncia negati- va sobre a estrutura e a articulagao da sociedade, mas no fato de essa diferenca reagir sobre o tipo e a valida- de da propria categoria. A forma mercantil como forma universal, mesmo quando considerada por si s6, exibe uma imagem diferente do que como fendmeno parti- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 197 cular, isolado endo dominante. Aqui as passagens tam- bém sio fluidas, mas isso ndo deve encobrir 0 cardter qualitativo da diferenga decisiva. Marx destaca da se- guinte maneira a situacéo em que a troca de mercado- rias nao é dominante?: “A relacdo quantitativa, segundo a qual os produtos sao trocados, é totalmente contin- gente de inicio. Eles assumem a forma de mercadorias a0 logo sejam passiveis de troca em geral, isto é, tao lo- {go sejam expresses de um terceiro elemento. O prosse- guimento da troca e a reproducio regular para a troca reduzem cada vez mais esse cardter contingente. Ini- cialmente, no para os produtores e consumidores, mas para o intermediério entre os dois, o comerciante que compara 0s precos monetérios e embolsa a diferenca. Com esse movimento, ele estabelece a equivaléncia. No inicio, o capital comercial é apenas o movimento de me- diacao entre extremos que néo domina e condigées que no cria.” E esse desenvolvimento da forma mercantil em forma de dominagio efetiva sobre 0 conjunto da sociedade surgiu somente com o capitalismo moderno. Por isso, nao é mais de admirar que o cardter pessoal das relagdes econdmicas tenha sido percebido ainda no inicio do desenvolvimento capitalista e, as vezes, de maneita relativamente clara; no entanto, quanto mais avangava 0 desenvolvimento, mais complicadas e in- termediadas surgiam as formas, cada vez mais raro e di- ficil tomava-se penetrar nesse invélucto reificado. Marx via a questéo da seguinte maneira’: “Nas formas de 2. Kapital I, 1, MEW 25, p. 342. 3. Kapital, Il, MEW 198 GEORG LUKAS sociedade primitiva, essa mistificacao econdmica inter- ‘vém sobretudo no que concerne ao dinheiro e ao capital lucrativo. Pela propria natureza das coisas, ela esté ex- clufda, em primeiro lugar, do sistema em que predomi- naa producao em vista do valor de uso e das necessida- des préprias e imediatas; em segundo, do sistema em que, como na Antiguidade e na Idade Média, a escravi- dao ea servidao constituem a larga base da producao social: a dominagio das condigdes de producio sobre os produtores ¢ ocultada aqui pelas relagdes de domina- Gio e de servidao, que aparecem e sao vistveis como mo- tores imediatos do processo de producéo.” Pois é somente como categoria universal de todo © ser social que a mercadoria pode ser compreendida om sua esséncia auténtica. Apenas nesse contexto a rei- ficagao surgida da relacéo mercantil adquire uma im- porlancia decisiva, tanto para o desenvolvimento obje- tivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu respeito, para a submissio de sua consciéncia as for- mas nas quais essa reificago se exprime, para as ten- tativas de compreender esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos destruidores, para se libertar da ser- vidao da “segunda natureza” que surge dese modo. Marx descreve o fenémeno fundamental da reificagio da seguinte maneira‘: “O caréter misterioso da forma mercantil consiste, portanto, simplesmente em revelar para os homens os caracteres sociais do seu proprio tra- 4, Kapital I, MEW 23, p.85. A respeito dessa oposicdo, cf. a distin- ‘glo puramente econdmica entrea troca das mercadorias por seu valor e 1 troca das mercadorias por seu prego de produgéo. Kapital, 11, I, MEW p. 186, HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 199 balho como caracteres objetives do produto do traba- Tho, como qualidades sociais naturais dessas coisas ¢, conseqiientemente, também a relacdo social dos produ- tores com 0 conjunto do trabalho como uma relacao so- cial de objetos que existe exteriormente a eles. Com esse qiiiproqu6, os produtos do trabalho se tornam mercado- rias, coisas que podem ser percebidas ou ndo pelos senti- dos ou serem coisas sociais |...] E apenas a relago social determinada dos proprios homens que assume para eles a forma fantasmagérica de uma relagio entre coisas.” Desse fato basico e estrutural é preciso reter sobre- tudo que, por meio dele, o homem é confrontado com sua propria atividade, com seu proprio trabalho como algo obetivo, independente dele e que o domina por leis proprias, que Ihes sao estranhas. E isso ocorre tanto sob 0 aspecto objetivo quanto sob o subjetivo. Objetiva- mente, quando surge um mundo de coisas acabadas e de relagSes entre coisas (0 mundo das mercadorias e de sua circulagao no mercado), cujas leis, embora se tor- nem gradualmente conhecidas pelos homens, mesmo nesse caso se Ihes opdem como poderes intransponi- veis, que se exercem a partir de si mesmos. O individuo pode, portanto, utilizar seu conhecimento sobre essas leis a seu favor, sem que Ihe seja dado exercer, mesmo nesse caso, uma influéncia transformadora sobre o pro- cesso real por meio de sua atividade. Subjetivamente, numa cconomia mercantil desenvolvida, quando a ati- vidade do homem se objetiva em relagio a ele, torna-se uma mercadoria que é submetida a objetividade estra- nha aos homens, de leis sociais naturais, e deve executar seus movimentos de maneira tao independente dos ho- ‘mens como qualquer bem destinado a satisfacdo de ne- 200 (GEORG LUKACS cessidades que se tornou artigo de consumo. “O que ca~ racteriza, portanto, a época capitalista”, diz Marx’, “6 que a forga de trabalho [...] assume para o proprio tra- balhador a forma de uma mercadoria que Ihe perten- ce. Por outro lado, é somente nesse momento que se ge- neraliza a forma mercantil dos produtos do trabalho.” A universalidade da forma mercantil condiciona, portanto, tanto sob o aspecto objetivo quanto sob o sub- jetivo, uma abstragio do trabalho humano que se obje- tiva nas mercadorias. (Por outro lado, sua possibilidade hist6rica é mais vez condicionada pela realizacdo real desse processo de abstragao.) Objetivamente, a forma mercantil s6 se torna possivel como forma da igualda- de, da permutabilidade de objetos qualitativamente di- ferentes pelo fato de esses objetos — nessa relacao que 6 a tinica a lhes conferir sua natureza de mercadorias — serem vistos como formalmente iguais. Desse modo, 0 principio de sua igualdade formal s6 pode ser funda- do em sua esséncia como produto do trabalho humano abstrato (portanto, formalmente igual). Subjetivamen- te, essa igualdade formal do trabalho humano abstrato nao é somente o denominador comum ao qual os dife- rentes objetos so reduzidos na relagao mercantil, mas torna-se também o princfpio real do processo efetivo de producéo de mercadorias. Nossa intengio aqui nao po- de ser, evidentemente, a de descrever, mesmo como es boco, esse processo, 0 nascimento do processo moder- no do trabalho, do trabalhador “livre” e isolado, da di- visio do trabalho etc. Trata-se somente de constatar que o trabalho abstrato, igual, compardvel, mensurdvel com 5, Kapital I, MEW 23, p. 184, nota 41 HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 201 uma precisio crescente em relagao ao tempo de traba- Iho socialmente necessario, o trabalho da diviséo capi- talista do trabalho, que existe ao mesmo tempo como produto e condigo da producao capitalista, surge ape- nas no curso do desenvolvimento desta e, portanto, $o- mente no curso dessa evolugao ele se torna uma cate- goria social que influencia de maneira decisiva a forma de objetivacdo tanto dos objetos como dos sujeitos da sociedade emergente, de sua relacao com a natureza, das relagées dos homens entre si que nela séo possi- veis*, Se perseguirmos 0 caminho percorrido pelo de- senvolvimento do processo de trabalho desde o arte- sanato, passando pela cooperagio e pela manufatura, até a inddistria mecanica, descobriremos uma racionali- zacio continuamente crescente, uma eliminacao cada vez maior das propriedades qualitativas, humanas ¢ in- dividuais do trabalhador. Por um lado, o processo de trabalho é fragmentado, numa proporcéo continuamen- te crescente, em operagées parciais abstratamente racio- nais, 0 que interrompe a relacéo do trabalhador com 0 produto acabado e reduz seu trabalho a uma fungio e: pecial que se repete mecanicamente. Por outro, a med da que a racionalizacdo e a mecanizacao se intensificam, 0 periodo de trabalho socialmente necessério, que for- maa base do célculo racional, deixa de ser considerado como tempo médio e empirico para figurar como uma quantidade de trabalho objetivamente calculavel, que se opée ao trabalhador sob a forma de uma objetivida- de prota e estabelecida. Com a moderna andlise “psi- colégica” do processo de trabalho (sistema de Taylor), 6. CE Kapital l, MEW 23, pp. 341-2ete, 202 GEORG LUKACS essa mecanizacdo racional penetra até na “alma” do tra- balhador: inclusive suas qualidades psicolégicas sao se- paradas do conjunto de sua personalidade e sao obje- tivadas em relagdo a esta tiltima, para poderem ser in- tegradas em sistemas especiais e racionais e recondu- zidas ao conceito calculador?. Para nés, o mais importante é o principio que assim se impée: 0 principio da racionalizacao baseada no cAlculo, na possibilidade do oflculo. As modificacoes deci- sivas que assim s4o operadas sobre o sujeito e 0 objeto do processo econémico sao as seguintes: em primeiro lugar, para poder calcular o proceso de trabalho, € pre- ciso romper com a unidade organica irracional, sempre qualitativamente condicionada, do proprio produto. S6 se pode alcancar a racionalizacao, no sentido de uma previsdo e de um célculo cada vez mais exatos de todos 0s resultados a atingir, pela andlise mais precisa de cada conjunto complexo em seus elementos, pelo estudo de leis parciais especificas de sua producao. Portanto, a ra- cionalizago deve, por um lado, romper com a unida- de organica de produtos acabados, baseados na ligagio tradicional de experiéncias concretas do trabalho: a racio- nalizacdo é impensével sem a especializacéo®. O produ- to que forma uma unidade, como objeto do processo de trabalho, desaparece, O processo torna-se a reunifo ob- 7, Todo esse processo esté exposto histbrica e sistematicamente no primeiro volume de O capital. Os proprios fatos — evidentemente sem relagio, na maioria das vezes, com o problema da reificagdo ~ encon- tram-se também na economia politica burguesa, em Biicher, Sombart, ‘A. Weber, Gottl etc. 8, Kepital I, MEW 23, pp. 497-8. HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 203 jetiva de sistemas parciais racionalizados, cuja unidade € determinada pelo puro célculo, que por sua vez de- vem aparecer arbitrariamente ligados uns aos outros. A anilise racional e por célculo do processo de trabalho aniquila a necessidade organica das operagGes parciais que se relacionam umas com as outtras e que se ligam ao produto formando uma unidade. A unidade do produ- to como mercadoria nao coincide mais com sua unida- de como valor de uso. A autonomizacio técnica das manipulagées parciais exprime-se também economica- mente na capitalizacao radical da sociedade, pelo aces- 0 A autonomia das operacées parciais, pela relativiza- cdo crescente do cardter mercantil de um produto nas diferentes etapas de sua producao’. Sendo assim, é pos- sivel separar a producao de um valor de uso no espaco € no tempo. Isso costuma ocorrer concomitantemente com a unido no tempo e no espaco das manipulagdes parciais que, por sua vez, encontram-se relacionadas a valores de uso inteiramente heterogéneos. Em segundo lugar, essa fragmentacao do objeto da producio implica necessariamente a fragmentacao do seu sujeito. Como conseqiiéncia do processo de raciona- lizacdo do trabalho, as propriedades e particularidades humanas do trabalhador aparecem cada vez mais como simples jontes do erro quando comparadas com o funcio- namento dessas leis parciais abstratas, calculado pre- viamente. O homem nao aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relagao ao proceso de trabalho, como o verdadeiro portador desse processo; em vez disso, ele é incorporado como parte mecanizada 9. Ibid, p. 376, nota 204 GEORG LUKAcS num sistema mecanico que jé encontra pronto e funcio- nando de modo totalmente independente dele, ea cujas leis ele deve se submeter"®, Como 0 proceso de trabalho é progressivamente ra- cionalizado e mecanizado, a falta de vontade é reforga- da pelo fato de a atividade do trabalhador perder cada vez mais seu cardter ativo para tornar-se uma atitude contemplativa'', A atitude contemplativa diante de um processo mecanicamente conforme as leis e que se de- senrola independentemente da consciéncia e sem a in- fluéncia possivel de uma atividade humana, ou seja, que se manifesta como um sistema acabado e fechado, transforma também as categorias fundamentais da ati- tude imediata dos homens em relagéo ao mundo: re- duzo espaco e o tempo a um mesmo denominador eo tempo ao nivel do espago. “Com a subordinagao do ho- mem a maquina”, diz Marx” a situacio chega ao ponto de que “os homens acabam sendo apagados pelo tra- balho, o péndulo do reldgio torna-se a medida exata da atividade relativa de dois operdrios, tal como a medida da velocidade de duas locomotivas. Sendo assim, nao se pode dizer que uma hora [de trabalho] de um homem vale a mesma hora de outro, mas que, durante uma ho- 10, Do ponto de vista da consciéncia individual, essa aparéncia ¢ intiramonte justficada. No que dir respito A class, & precisn molar aque essa submissio foto produto de uma longa futa que recomera — ‘hum nivel mais elevado ¢ com novas armas ~ com a organizagio do proletariado em classe 11, Kapital, MEW 23, pp. 94-5, 41-2, 483 et. Eevidente que essa “contemplagio” pode ser mais desgastante e enervante do que a “ativi- dade” artesanal. Mas isso est fora de nosss consideracbes. 12 Elend der Philosophie, MEW 4, p. 85 HISTORIA £ CONSCIENCIA DE CLASSE 205 ra, um homem vale tanto quanto outro. O tempo é tudo, o homem nao é mais nada; quando muito, é a personi- ficagao do tempo. A qualidade nao esté mais em ques- to. Somente a quantidade decide tudo: hora por hora, jornada por jomada”. O tempo perde, assim, o seu caré- ter qualitativo, mutavel e fluido: ele se fixa num conti- nuum delimitado com preciséo, quantitativamente men- suravel, pleno de “coisas” quantitativamente mensu- raveis (es “trabalhos realizados” pelo trabalhador, rei- ficados, mecanicamente objetivados, minuciosamen- te separados do conjunto da personalidade humana); torna-seum espaco!3. Nesse ambiente em que o tempo abstrato, minuciosamente mensurvel e transforma- do em espaco fisico, um ambiente que constitui, ao mes- mo tempo, a condiggo e a conseqiiéncia da produgéo especializada e fragmentada, no mbito cientifico e me- cAnico, do objeto de trabalho, os sujeitos do trabalho devem ser igualmente fragmentados de modo racio- nal. Por um lado, seu trabalho fragmentado e mecani- co, ou seja, a objetivacao de sua forga de trabalho em relagdo a0 conjunto de sua personalidade - que jé era realizada pela venda dessa forca de trabalho como mercadoria -, é transformado em realidade cotidiana durdvele intransponivel, de modo que, também nesse caso, a personalidade torna-se o espectador impotente de tudo o que ocorre com sua propria existéncia, par- cela isolada e integrada a um sistema estranho. Por ou- tro, a desintegracao mecanica do processo de producao também rompe os elos que, na producao “organica”, religavam a uma comunidade cada sujeito do trabalho. 13, Kapital I, MEW 23, pp. 365-6. 206 GEORG LuKAcs Também a esse respeito, a mecanizagio da producao faz deles dtomos isolados e abstratos, que a realizacao do seu trabalho nao retine mais de maneira imediata € organica e cuja coesao é, antes, numa medida conti- nuamente crescente, mediada exclusivamente pelas leis abstratas do mecanismo ao qual estdo integrados. Mas a forma interior de organizagéo da empresa industrial nao poderia ter semelhante efeito - mesmo no seio da empresa —, se nao se revelasse nela, de ma- neira concentrada, a estrutura de toda a sociedade capi- talista. Pois as sociedades pré-capitalistas conheceram igualmente a opressdo, a exploracao extrema que escar- nece de toda dignidade humana; conheceram até as em- presas de massa com um trabalho mecanicamente ho- mogeneizado, como a construcao de canais no Egito e to Oriente Médio, ou as minas de Roma etc."4. Todavia, em parte alguma o trabalho de massa poderia tornar- se um trabalho racionalmente mecanizado; as empresas de massa permaneceriam fendmenos isolados no seio de uma coletividade, produzindo de maneira diferen- te (“naturalmente”) e, portanto, vivendo de maneira di- ferente, Sendo assim, os escravos explorados dessa ma- neira estavam a margem do que era considerado como sociedade “humana”; seus contemporaneos e mesmo 0s maiores e mais nobres pensadores no eram capazes de julgar o destino desses homens como o destino da humanidade. Com a universalidade da categoria mer- cantil, essa relacao muda radical e qualitativamente. O destino do operdrio torna-se 0 destino geral de toda a 14. CE. a esse respeito Gottl, Wirtschaft und Technik. Grundriss der Sozialtkonomie Il, pp. 234 ss. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 207 sociedade, visto que a generalizacao desse destino é a condico necessaria para que o processo de trabalho nas empreses se modele segundo essa norma. Pois a meca- nizacdo racional do processo de trabalho s6 se torna possivel com 0 aparecimento do “trabalhador livre”, em condigées de vender livremente no mercado sua forca de trabalho como uma mercadoria “que lhe per- tence”, como uma coisa que “possui”. Enquanto esse processo ainda ¢ incipiente, os meios para extrair 0 ex- cedente de trabalho sao, por certo, ainda mais brutais e evidentes que nos estagios ulteriores e mais evolui- dos, mas 0 processo de reificacao do préprio trabalho e, portanto, também da consciéncia do operdrio sio muito menos adiantados. Desse modo, é absolutamen- te necessario que a sociedade aprenda a satisfazer to- das as suas necessidades sob a forma de troca de mer- cadorias. A separacao do produtor dos seus meios de producio, a dissolucdo e a desagregacao de todas as unidades originais de produgao etc,, todas as con ges econdmicas ¢ sociais do nascimento do capitalis- mo moderno agem nesse sentido: substituir por rela- Ges racionalmente reificadas as relacdes originais em que eram mais transparentes as relagdes humanas. “As relagées sociais das pessoas em seu trabalho”, diz Marx!5 a propésito das sociedades pré-capitalistas, “aparecem de todo modo como suas proprias relagées pessoais, e ndo disfarcadas em relacdes sociais entre coi- sas, entre produtos do trabalho.” Mas isso significa que 0 principio da mecanizacao racional e da calculabilida- de deve abarcar todos os aspectos da vida. Os objetos 15, Kapital I, MEW 23, pp. 91s. 208 GEORG LUKACS que satisfazem as necessidades nao aparecem mais como 05 produtos do processo organico da vida de uma co- munidade (por exemplo, numa comunidade aldea). Por um lado, sao vistos como exemplares abstratos da es- pécie, que por princfpio sio idénticos aos seus outros exemplares e, por outro, como objetos isolados, cuja pos- se ou auséncia dela depende de célculos racionais. So- mente quando toda a vida da sociedade é pulverizada dessa maneira em atos isolados de troca de mercado- rias, pode surgir 0 trabalhador “livre”; ao mesmo tem- Po, oseu destino deve tomar-se o destino tipico de toda a sociedade. No entanto, 0 isolamento ea atomizacao assim nas- centes so uma mera aparéncia. O movimento das mer- cadorias no mercado, o surgimento do seu valor, numa palavra, a margem real de todo célculo racional nao so- mente é submetida a leis rigorosas, mas pressupde, como fundamento do célculo, uma legalidade rigorosa de todo acontecimento. Essa atomizacao do individuo 6, portanto, apenas o reflexo na consciéncia de que as “leis naturais” da producao capitalista abarcaram 0 con- junto das manifestagdes vitais da sociedade, de que ~ pela primeira vez na hist6ria ~ toda a sociedade esta submetida, ou pelo menos tende, a um proceso eco- nOmico uniforme, e de que o destino de todos os mem- bros da sociedade ¢ movido por leis também uniformes, (Em contrapartida, as unidades organicas das socieda- des pré-capitalistas efetuaram o seu metabolismo com muita independéncia umas das outras.) Mas essa apa- réncia é necesséria enquanto aparéncia. Dito de outra maneira, a confrontacao imediata, tanto pratica quanto intelectual, do individuo com a sociedade, a producéo ea reproducao imediatas da vida - em que, para o in- HISTORIA £ CONSCIENCIA DE CLASSE 209 dividuo, a estrutura mercantil de todas as “coisas” ea conformidade de suas relagdes com “leis naturais” ja existe enquanto forma acabada, como algo que nao po- de ser suprimido -, s6 poderiam desenrolar-se sob essa forma de atos isolados e racionais de troca entre pro- prietarios isolados de mercadorias. Conforme enfatiza- do anteriormente, o trabalhador deve necessariamente apresentar-se como o “proprietario” de sua forca de tra- balho, como se esta fosse uma mercadoria. Sua posicéo specifica reside no fato de essa forca de trabalho ser a sua tinica propriedade. Em seu destino, € tipico da es- trutura de toda a sociedade que essa auto-objetivacao, esse tornar-se mercadoria de uma funcao do homem re- velem com vigor extremo o carter desumanizado e de- sumanizante da relacdo mercantil. 2 Essa objetivacio racional encobre sobretudo 0 ca- rater imediato, concreto, qualitativo e material de todas as coisas. Quando os valores de uso aparecem, sem ex- cegio, como mercadorias, eles adquirem uma nova ob- jetividade, uma nova substancialidade que nao tinham na época da troca meramente ocasional, em que sua substancialidade origindria e propria é destruida, de- saparece. “A propriedade privada”, diz Marx's, “alie- 16. Marx visa sobretudo a propriedade privada capitaista. Dewische deologie, Sankt Max, MEW 3, p.212. Na seqiéncia dessa observacio encon- tram-se as belas notas sobre a inclusio da estrutura da retificagio na lin- .guagem. Do ponto de vista do materialismo hist6rico, um estudo filos6fico «que partsse dessa premissa poderia conduzira resultados interessantes. 210 (GEORG LUKACS na ndo somente a individualidade dos homens, mas também a das coisas, O solo nao tem nada a ver com a renda fundidria, nem a maquina com o lucro. Para 0 proprietério fundidrio, o solo é sindnimo de renda; ele aluga suas terras e recebe a renda, uma qualidade que 0 solo pode perder sem perder nenhuma de suas pro- priedades inerentes, como uma parte de sua fertilida- de, por exemplo, que é uma qualidade cuja medida, ou seja, existéncia, depende de condicées sociais, que sA0 criadas e destruidas sem intervengao do proprietario fundiério individual. O mesmo ocorre com a maqui- na.” Se, portanto, o proprio objeto particular que o ho- mem enfrenta diretamente, enquanto produtor ou con- sumidor, 6 desfigurado em sua objetivagao por seu ca- rater de mercadoria, é evidente que esse proceso deve entio intensificar-se na proporgdo em que as relacdes que o homem estabelece com os objetos enquanto ob- jetos do processo vital em sua atividade social forem mediadas. Obviamente, é impossivel analisar aqui toda a estrutura econdmica do capitalismo. Temos de nos contentar com a constatagéo de que o desenvolvimen- to do capitalismo moderno nao somente transforma as relacdes de produgao conforme sua necessidade, mas também integra no conjunto do seu sistema as formas do capitalismo primitivo que, nas sociedades pré-ca- pitalistas, levavam uma existéncia isolada e separada da produgio, ¢ as converte em membros do processo doravante unificado de capitalizacdo radical de toda a sociedade (capital mercantil, fungao do dinheiro como tesouro ou como capital financeiro etc.). Embora essas formas do capital estejam objetivamente submetidas a0 processo vital proprio do capital, a extracao da mais- HISTORIAE CONSCIENCIA DE CLASSE 211 valia na propria produgio, elas s6 podem ser compreen- didas, portanto, a partir da esséncia do capitalismo in- dustrial, mas aparecem, na consciéncia do homem e da sociedade burguesa, como formas puras, verdadeiras e auténticas do capital. Para a consciéncia reificada, es- sas formas do capital se transformam necessariamente nos verdadeiros representantes da sua vida social, jus- tamente porque nelas se esfumam, a ponto de se torna- rem completamente imperceptiveis e irreconheciveis, as relacées dos homens entre si e com os objetos reais, destinados a satisfacdo real de suas necessidades. Tais, relagGes so ocultas na relacéo mercantil imediata. O caréter mercantil da mercadoria, 0 modo quantitativo e abstrato da calculabilidade aparecem aqui sob sua forma mais pura. Sendo assim, para a consciéncia rei- ficada, esta se torna, necessariamente, a forma de mai festacao do seu proprio imediatismo, que ela, enquanto consciéncia reificada, ndo tenta superar. Ao contrério, tal forma tenta estabelecer e eternizar esse imediatis- mo por meio de um “aprofundamento cientifico” dos sistemas de leis apreensiveis. Do mesmo modo que 0 sistema capitalista produz e reproduz a si mesmo eco- némica e incessantemente num nivel mais elevado, a estrutura da reificacao, no curso do desenvolvimento capitalista, penetra na consciéncia dos homens de ma- neira ceda vez mais profunda, fatal e definitiva. Marx descreve freqiientemente essa elevacio do poder da reificacio com argiicia. Contentemo-nos com um exem- plo”: “No capital portador de juro, esse fetiche automé- tico esti, portanto, em evidéncia em sua forma mais ‘V7. Kapital 11,1, MEW 25, p. 405. 212 GEORG LUKACS pura, valor que valoriza a si mesmo, dinheiro que gera filhos e nao traz mais, sob essa forma, nenhuma marca de nascenga. A relacdo social é completada como rela- ao de uma coisa, do dinheiro, consigo mesma. Em vez da transformacao real do dinheiro em capital, vemos aqui apenas sua forma desprovida de contetido (...] Sendo assim, criar valor, dar juros como a macieira da macs, tornou-se inteiramente uma propriedade do di- nheiro. E aquele que empresta seu dinheiro o vende como algo que traz rendimento. Isso ndo basta. O capi- tal efetivamente ativo, como vimos, apresenta-se de tal modo que faz render o juro nao como capital ativo, mas como capital em si, como capital financeiro. Isso tam- bém se inverte: enquanto o juro é apenas uma parte do lucro, isto €, da mais-valia que 0 capital ativo extrai do trabalhador, 0 juro aparece desta vez, inversamente, como 0 verdadeiro fruto do capital, como a realidade primitiva, eo lucro, transformado entao em forma de ga- nho do empresério, aparece como um simples acess6rio esuplemento que se adiciona no decorrer do processo de reprodugio. Nesse caso, a forma fetichista do capital e a representacao do fetiche do capital sao completadas. Na formula D-D?, temos a forma nao-conceitual do ca- pital, a inversao e a coisificacao das relagoes de produ- cao na mais alta poténcia: a forma portadora de juro, forma simples do capital que tem como condicéo de sua pr6pria reproducav a capacidade do dinheiro, ow seja, da mercadoria, de valorizar seu proprio valor, in- dependentemente da reprodugao — mistificacao do ca- pital sob sua forma mais gritante. Para a economia vul- gar, que quer representar o capital como fonte auto- noma e de criagdo do valor, essa forma é naturalmente HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 213 abencoada, pois nela a fonte do juro nao é mais reco- nhecida, nela o resultado do processo capitalista de pro- dugao - separado do préprio proceso ~ adquire uma existéncia auténoma.” E, do mesmo modo como a teoria econdmica do capitalismo se mantém nesse imediatismo que ela pro- pria criou, nela também se mantém as tentativas bur- guesas de tomar consciéncia do fenémeno ideolégico da reificacdo. Até mesmo os pensadores que nao que- rem negar ou camuflar o fenémeno e que, de certo mo- do, esto cientes de suas conseqiiéncias humanas de- sastrosas, permanecem na andlise do imediatismo da reificacao e nao fazem nenhuma tentativa para superar s formas objetivamente mais derivadas, mais distan- ciadas do proceso vital proprio do capitalismo, por- tanto, mais exteriorizadas e vazias, para penetrar no fenémeno originario da reificagao. Além do mais, des- tacam essas forcas de manifestacao vazias do seu terre- no natural capitalista, tornando-as autonomas e eternas, como um tipo intemporal de possibilidades humanas de relagies. (Essa tendéncia se manifesta mais clara- mente no livro de Simmel, A filosofia do dinheiro, um tra- balho muito perspicaz e interessante em seus detalhes.) Dao uma simples descricao desse “mundo enfeitica- do, invertido e as avessas, em que Monsieur le Capital e ‘Madame la Terre assombram como caracteres sociais e, ao mesmo tempo, como simples objetos”'8. Mas, des- se modo, nao vao além da simples descricdo, e seu “aprofundamento” do problema gira em torno de for- mas exteriores de manifestacdo da reificacao. 18, Ibid. IM, 1, MEW 25, p. 838. 24 GEORG LUKACS Essa separacdo entre os fendmenos da reificagéo ¢ © fundamento econémico de sua existéncia, a base que permite compreendé-los, ainda é facilitada pelo fato de que esse processo de transformacao deve necessa- riamente englobar o conjunto das formas de manifesta- do da vida social, para que sejam preenchidas as con- digdes de uma produgio capitalista com pleno rendi mento. Assim, 0 desenvolvimento capitalista criou um sistema de leis que atendesse suas necessidades e se adaptasse A sua estrutura, um Estado correspondente, entre outras coisas. A semelhanca estrutural é, de fato, lao grande que nenhum historiador realmente perspi- az do capitalismo moderno poderia deixar de consta- tala. Max Weber"? descreve o principio fundamental desse desenvolvimento da seguinte maneira: “Ambos sio, antes, bastante similares em sua esséncia funda- mental. O Estado moderno, de um ponto de vista socio- l6gico, é uma ‘empresa’ tal como uma fabrica; é justa- mente o que tem de especifico no ambito histérico. E as relagdes de dominacao na empresa também estao, nos dois casos, submetidas a condigdes da mesma espé- cie. Do mesmo modo como a relativa autonomia do ar- tesdo ou industrial domiciliar, do camponés proprieté- rio, do comandatério, do cavaleiro e do vassalo baseava- se no fato de que eram proprietérios dos instrumentos, das reservas, dos meios financeiros, das armas, com 0 19. Gesammelte politische Schriften, Miinchen, 1921, pp. 140-2. We- ber remete & evolucio do direito inglés, mas isso nao diz respeito ao ‘nosso problema, Sobre o estabelecimento gradual do principio do céleu: Jo econdmico, ef. também Alfred Weber, Standort der Industrie, especial- mente p. 216. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 215 auxilio dos quais realizavam sua fungao econdmica, po- litica e militar, e da qual viviam enquanto a cumpriam, a dependéncia hierarquica do operario, do balconista, do empregado técnico, do assistente de um instituto uni- versitario e do funciondrio do Estado e de um soldado tem o mesmo fundamento, a saber: os instrumentos, as reservas e os meios financeiros, indispensaveis tanto A empresa quanto a vida econdmica, estéo nas maos do empresério, num caso, e do chefe politico, no outro.” Max Weber também acrescenta a essa descrigéo, muito justamente, a razdo e o significado social desse fendme- no: “A empresa capitalista moderna baseia-se interna- mente sobretudo no cilculo, Para existir, ela precisa de uma justica e de uma administracao, cujo funcionamen- to também possa ser, pelo menos em principio, calcula- do racionalmente segundo regras gerais sélidas, tal como se calcula 0 trabalho previsivel efetuado por uma md- quina. Sua capacidade de tolerar ...] um julgamento mi- nistrado pelo juiz conforme seu senso de justica nos ca- 50s parliculares ou conforme outros meios e principios irracionais de criagao juridica [...] 6 tao fraca quanto a de suportar uma administragdo patriarcal que procede a seu bel-prazer e por misericérdia e, quanto ao resto, conforme uma tradigio inviolavelmente sagrada mas irracional [...]. Em oposicdo as formas muito antigas da aquisigio capitalista, é espectfico do capitalismo moder- no 0 falo de que organizagao estrilamente racional do trabalho, no ambito de uma técnica racional, nao surgiu nem poderia surgir em parte alguma no seio de siste- mas politicos construidos também de forma irracional. Pois essas formas modernas de empresa, com seu capi- tal fixo e seus cdlculos exatos, sao muito sensiveis as ir- 216 GEORG LUKACS racionalidades do direito e da administracao para que tornem possiveis. S6 poderiam surgir onde o juiz, .] como no Estado burocratico, com suas leis racio- nais, fosse mais ou menos distribuidor automatico de pardgrafos, nos quais os documentos com os custos € 08 honorérios fossem inseridos por cima, para que ele vomite por baixo a sentenca com consideragdes mais ‘ou menos sélidas, e cujo funcionamento, portanto, fos- se em geral calculdvel.” Desse modo, 0 processo que ocorre aqui é muito semelhante ao desenvolvimento econémico mencio- nado acima, tanto em seus motivos como em seus efe tos. Aqui se efetua igualmente uma ruptura com os mé- todos empiricos, irracionais, que se baseiam na tradigio ¢ sio talhados subjetivamente na medida do homem que atua, e objetivamente na medida da matéria con- creta, na jurisprudéncia, na administracéo etc. Surge uma sistematizagao racional de todas as regulamenta- 6es juridicas da vida, sistematizacao que representa, pelo menos em sua tendéncia, um sistema fechado e que pode se relacionar com todos os casos possiveis e imaginaveis. Resta saber se esse sistema se encadeia internamente segundo vias puramente légicas, de uma dogmética puramente juridica, de acordo com a inter- pretagio do direito, ou sea pratica do juiz est destina- da a preencher as “lacunas” das leis. Mas isso nao faz: nenhuma diferenga para © nosso esforgo, que ¢ o de re- conhecer essa estrutura da objetivacdo juridica moderna. Pois, nos dois casos, o sistema juridico é formalmente capaz de ser generalizado, bem como de se relacionar com todos os acontecimentos possiveis da vida e, nessa relacio, ser previsivel e calculével. Mesmo 0 direito ro- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 217 mano, enquanto desenvolvimento juridico que mais se assemelha a essa evolugao, mas que no sentido moderno é pré-capitalista, permaneceu, sob esse aspecto, ligado a0 empiico, ao concreto, ao tradicional. As categorias puramente sisteméticas, que eram necessdrias para que a regulamentacéo juridica pudesse ser aplicada univer- salmente ¢ sem disting4o, surgiu somente no desenvol- vimento moderno®. E é claro que essa necessidade de sistematizacao, de abandono do empirismo, da tradi- 40, da dependéncia material, foi uma necessidade do cAlculo exato?!. No entanto, essa mesma necessidade exige que o sistema juridico se oponha aos aconteci- mentos particulares da vida social como algo sempre acabado, estabelecido com precisao e, portanto, como sistema rigido. Certamente isso produz conflitos inin- terruptos entre a economia capitalista, que se desen- volve continuamente de modo revolucionario, e 0 sis- tema juridico rigido. Mas isso tem como conseqiiéncia apenas novas codificagées: 0 novo sistema tem, contu- do, de conservar em sua estrutura o carater acabado e rigido do antigo sistema. Surge, portanto, essa situa- do — aparentemente — paradoxal de que o “direito” das formas primitivas de sociedade, quase nao altera- do durante séculos e por vezes milénios, tem um caré- ter fluido, irracional, que sempre renasce nas decisbes juridicas, enquanto o direito moderno, subvertido de maneira tempestuosa e realmente constante, mostra uma esséncia rigida, estatica e acabada. Todavia, o pa radoxo demonstra ser aparente, quando consideramos 20. Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, p. 491. 21. bid, p.129, 218 GEORG LUKACS que resulta simplesmente do fato dea mesma situagio ser examinada uma vez. do ponto de vista do historiador (cujo ponto de vista situa-se sistematicamente “fora” do proprio desenvolvimento), ¢ outra do ponto de vis- ta do sujeito participante, do ponto de vista da influén- cia da ordem social em questao sobre sua consciéncia. Com esse discernimento, podemos ver claramente que a oposicao entre o artesanato tradicionalmente empirico ea fabrica cientificamente racional se repete em outro dominio: a técnica de produgio moderna em transfor- maco ininterrupta confronta-se, em cada etapa particu- lar de seu funcionamento, como sistema fixo e acabado, com cada produtor, enquanto a producfo artesanal tra- dicional, relativamente estével de um ponto de vista ob- jetivo, preserva na consciéncia de cada individuo que o exerce um carater fluido, continuamente renovador € produzido pelos produtores. Isso nos permite constatar com evidéncia o cardter contemplativo da atitude capita- lista do sujeito. Pois a esséncia do célculo racional se ba- seia, em tiltima andlise, no reconhecimento e na previ- so do curso inevitavel a ser tomado por determinados fendmenos de acordo com as leis ¢ independentemente do “arbitrio individual”. O comportamento do homem esgota-se, portanto, no célculo correto das oportunida- des desse curso (cujas “leis” ele ja encontra “prontas”), na habilidade de evitar os “acasos” perturbadores por meio da aplicagao de dispositivos de protecdo e medi- das defensivas (que se baseiam igualmente na conscién- cia e na aplicacao de “leis” semelhantes); muitas vezes, chega até mesmo a se deter no célculo das probabilida- des dos possiveis efeitos de tais “leis”, sem sequer ten- tar intervir no proprio processo pela aplicagao de outras HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 219 “Meis” (como nos esquemas de seguranga etc.). Quanto mais se considera essa situacao em profundidade e in- dependentemente das lendas burguesas sobre o cardter “criador” dos expoentes da época capitalista, tanto mais claramente aparece, em tal comportamento, a analogia estrutural com 0 comportamento do operério em rela- do a maquina que ele serve e observa, e cujo funciona- mento ele controla enquanto a contempla. O elemento “criador” 86 6 reconhecivel pelo grau de autonomia relativa ou de subserviéncia completa com que as “leis” sio aplicadas, isto é, até que ponto o comportamento puramente contemplativo é rejeitado. Mas a diferenca do trabalhador em relacao a cada maquina, do empre- sério em relacdo ao tipo dado de evolugéo mecanica, e do técnico em relagao ao nivel da ciéncia e da rentabi- lidade de suas aplicacdes técnicas, é uma variagéo pu- ramente quantitativa, e nao uma diferenca qualitativa na estrutura da consciéncia. Oproblema da burocracia moderna sé se torna ple- namente compreensfvel nesse contexto. A burocracia implica uma adaptacao do modo de vida e do trabalho e paralelamente também da consciéncia aos pressupos- tos socioecondmicos gerais da economia capitalista, tal como constatamos no caso do operario na empresa particular. A racionalizacao formal do direito, do Esta- do, da administracao etc. implica, objetiva e realmente, uma decomposicio semelhante de todas as fungdes so- ciais em seus elementos, uma pesquisa semelhante das leis racionais e formais que regem esses sistemas par- Giais, separados com exatidao uns dos outros, e subjeti- vamente implica, por conseguinte, repercussdes seme- Ihantes para a consciéncia, devidas a separagao entre 0 220 GEORG LUKACS trabalho e as capacidades e necessidades individuais daquele que o realiza; implica, portanto, uma divisto semelhante, racional e humana, do trabalho em relacao a técnica e ao mecanismo tal como encontramos na em- presa®. Trata-se nao somente do modo de trabalho in- teiramente mecanizado e “insensato” da burocracia subalterna, que se encontra extraordinariamente prd- xima do simples setvico da maquina e, muitas vezes, chegaa superé-la em vacuidade e uniformidade. De um lado, trata-se também da maneira cada vez mais for- mal e racionalista de lidar objetivamente com todas as questées de uma separagao continuamente crescente da esséncia qualitativa e material das “coisas” as quais se refere a atividade burocratica. Por outro, trata-se de uma intensificagdo ainda mais monstruosa da especia- lizagao unilateral na divisio do trabalho, que viola a esséncia humana do homem. A constatagéo de Marx acerca do trabalho na fabrica, segundo a qual “o pré- prio individuo é dividido, transformado em engrena- gem automitica de um trabalho fragmentado” e, des se modo, “atrofiado até se tornar uma anomalia”, veri- fica-se aqui de modo tanto mais evidente quanto mais elevados, avancados e “intelectuais” forem os resulta- dos exigidos por essa diviséo do trabalho. A separagéo da forca de trabalho e da personalidade do operério, sua metamorfose numa coisa, num objeto que o operd- 22, Se nesse contexto nto ressaltamos o cardter de classe do Esta do etc. i980 decorre de nossa intencio de conceber a reificago como fe- némeno fundamental, geal e estrutural de fada a sociedade burguesa. O ponto de vista de classe j interviera alifs no estudo da maquina. Cl ‘a esse respeito a terceira Sesto. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 221 rio verde no mercado, repete-se igualmente aqui. Po- rém, coma diferenca de que nem toda faculdade men- tal 6 suprimida pela mecanizacao; apenas uma facul- dade ou um complexo de faculdades destaca-se do con- junto da personalidade e se coloca em oposigio a ela, tornando-se uma coisa, uma mercadoria. Ainda que os meios da selegdo social de tais faculdades e seu valor de troca material e “moral” sejam fundamentalmente diferentes daqueles da forca de trabalho (nao se deve esquecer, alids, a grande série de elos intermediérios, de transigies insensiveis), 0 fendmeno fundamental per- manece o mesmo. O género especifico de “probidade” ¢ objetividade burocraticas, a submissao necesséria e total do burocrata individual a um sistema de relagdes entre coisas, a idéia de que sao precisamente a sua “hon- ra” e 0 seu “senso de responsabilidade” que exigem dele semelhante submissac%, tudo isso mostra que a divisio do trabalho penetrou na “ética” ~ tal como, no taylorismo, penetrou no "psiquico”. Isso nao é, todavia, um abrandamento, mas, ao contrério, um reforgo da estrutura reificada da consciéncia como categoria fun- damental para toda a sociedade. Pois, enquanto 0 des- tino daquele que trabalha aparece como um destino iso- lado (como o destino do escravo na Antiguidade), a vida das classes dominantes pode desenrolar-se sob formas totalmente distintas. Foi o capitalismo a produzir pela primeira vez, com uma estrutura econ6mica unificada para toda a sociedade, uma estrutura de consciéncia ~ formalmente - unitéria para 0 conjunto dessa socieda- de. E essa estrutura unitéria exprime-se justamente pelo 23, Cf. a esse respeito Max Weber, Politische Schriften, p. 154. 222 GEORG LuKACS fato de que os problemas de consciéncia relacionados ao trabalhador assalariado se repetem na classe domi- nante de forma refinada, espiritualizada, mas, por ou- tro lado, intensificada. E 0 “virtuose” especialista, 0 vendedor de suas faculdades espirituais objetivadas e coisificadas, ndo somente se torna um espectador do devir social (ndo 6 possivel indicar aqui, mesmo que alusivamente, 0 quanto a administracao e a jurispru- déncia modernas revestem, em oposicao ao artesanato, 08 caracteres ja evocados da fabrica), mas também as- sume uma atitude contemplativa em relacdo ao funcio- namento de suas préprias faculdades objetivadas e coi- sificadas. Essa estrutura mostra-se em seus tragos mais grotescos no jornalismo, em que justamente a propria subjetividade, o saber, o temperamento ea faculdade de expresso tornam-se um mecanismo abstrato, indepen- dente tanto da personalidade do “proprietério” como da esséncia material e concreta dos objetos em ques- tdo, e que é colocado em movimento segundo leis prd- prias. A “auséncia de conviccdo” dos jornalistas, a pros- tituigdo de suas experiéncias e convicgdes sé podem ser compreendidas como ponto culminante da reificacao capitalista®. A metamorfose da relagéo mercantil num objeto dotado de uma “objetivacao fantasmética” nao pode, portanto, limitar-se A transformacao em mercadoria de todos os objetos destinados a satisfagao das necessida- des. Fla imprime sua estrutura em toda a consciéncia do homem; as propriedades e as faculdades dessa cons- 24. Cl. a esse respeito o ensaio de A. Fogarasi, Kommunismus. Ano U, n° 25/26, HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 223 ciéncia néo se ligam mais somente a unidade organica da pessoa, mas aparecem como “coisas” que o homem pode “possuir” ou “vender”, assim como os diversos ob- jetos do mundo exterior. Endo hd nenhuma forma natu- ral de relacao humana, tampouco alguma possibilidade para o homem fazer valer suas “propriedades” fisicas e psicoldgicas que nao se submetam, numa proporcao crescente, a essa forma de objetivagao. Basta pensar no casamento: é desnecessério remeter sua evolucio a0 século XIX, visto que Kant, por exemplo, exprimiu com clareza essa situago com a franqueza ingenuamente ci- nica dos grandes pensadores. “A comunidade sexual”, diz2®, “6 0 uso reciproco que um ser humano faz dos Orgaos e das faculdades sexuais de outro ser humano [..]. O casamento [...] a unido de duas pessoas de se- x0s diferentes em vista da posse recfproca de suas pro- priedades sexuais durante toda sua vida.” No entanto, essa racionalizagao do mundo, apa- rentemente integral e penetrando até o ser fisico e psi- quico mais profundo do homem, encontra seu limite no carter formal de sua propria racionalidade. Isto é, embora a racionalizacéo dos elementos isolados da vida eo conjunto de leis formais dela resultante se adaptem facilmente ao que parece constituir um sistema unitério de “leis” gerais para o observador superficial, o despre- zo pelo elemento concreto na matéria das leis, desprezo em que se baseia seu cardter de lei, surge na incoerén- cia efetiva do sistema de lei, no carter contingente da relacdo dos sistemas parciais entre si e na autonomia relativamente grande que esses sistemas parciais pos- 25. Metaphysik der Sitten, Parte I, § 24. 224 GEORG LUKAS suem uns em relacdo aos outros. Essa incoeréncia ma- nifesta-se de maneira bastante flagrante nas épocas de crise, cuja esséncia — vista do Angulo de nossas presen- tes consideragdes — consiste justamente no fato de que a continuidade imediata da passagem de um sistema parcial a outro se rompe, e de que sua interdependén- cia e o cardter contingente de suas inter-relag6es se im- poem subitamente a consciéncia de todos os homens. Por isso, Engels pode definir as “leis naturais” da economia capitalista como leis da contingéncia. No entanto, considerada mais de perto, a estrutu- ra da crise aparece como uma simples intensificacao, quantitativa e qualitativa, da vida cotidiana da socieda- de burguesa. Se a coesao das “leis naturais” dessa vida = que, no imediatismo cotidiano, desprovido de pen- samento, parece solidamente fechada~ pode sofrer uma ruptura repentina, isso 56 é possivel porque, mesmo no caso do funcionamento mais normal, a relagao dos seus elementos e dos seus sistemas parciais entre si é algo de contingente. Do mesmo moda, a ilusdo segundo a qual toda a vida social estaria submetida a leis “eter- nas e inflexiveis”, que certamente se diferenciam em di- versas leis especiais nos dominios particulares, deve ne- cessariamente revelar-se como o que realmente é, ou seja, contingente. A verdadeira estrutura da sociedade aparece, antes, nas leis parciais, independentes, racio- nalizadas ¢ formais, que s6 formalmente esto associa- das (isto é, suas interdependéncias formais podem ser sistematizadas formalmente); porém, quando se trata de uma realidade concreta, s6 podem estabelecer cone- 26. Ursprung der Familie, MEW 21, pp. 169 ss. HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 225 x6es. Os fendmenos econdmicos jé mostram essa inter- dependéncia quando so examinados um pouco mais de perto. Marx, por exemplo, ressalta ~e 0s casos men- cionados aqui devem, evidentemente, servir apenas pa- ra esclarecer metodologicamente a situagao, e ndo para representar uma tentativa, mesmo que superficial, de tratar a questdo em seu contetido ~ que “as condides de exploracao imediata e as de sua realizagio nao séo idénticas. Diferem nao somente em relagao ao tempo ¢ a0 lugar, mas também conceitualmente”””. Desse mo- do, nao ha “nenhum elo necessario, mas somente con- tingente, entre a quantidade global de trabalho social, que é aplicada a um artigo social”, e “a amplitude em que a sociedade procura satisfazer a necessidade apla- cada por esse artigo determinado”™, Evidentemente, estes so apenas alguns exemplos tomados ao acaso. Pois € claro que toda a estrutura da produgio capita- lista repousa sobre essa interacao entre uma necessi dade submetida a leis estritas em todos os fenémenos isolados e uma irracionalidade relativa do proceso como um todo. “A divisao do trabalho, tal como existe na manufatura, implica a autoridade absoluta do capi- talista sobre homens que constituem simples membros de um mecanismo de conjunto que lhes pertence; a di- visio social do trabalho opée produtores independen- tes de mercadorias, que nao reconhecem outra autori- dade 2lém daquela da concorréncia, da coergio exercida pela pressio dos seus interesses muituos.’® Isso por- 22. Kapital IH, 1, MEW 25, p. 254. 28. Ibid, pp. 196-7. 29. Ibid, 1, 1V, MEW 23, p. 377. 226 GEORG LuKAcs que a racionalizacdo capitalista, que se baseia no cél- culo econdmico privado, reclama em toda manifestagéo da vida essa relacdo mtitua entre o pormenor submeti- doa leis ea totalidade contingente; cla pressupde uma sociedade assim estruturada; produz e reproduz essa estrutura na medida em que se apossa da sociedade. Isso tem seu fundamento jé na esséncia do célculo es- peculador, da pratica econdmica dos possuidores de mercadorias, no estégio em que a troca de mercadorias se tornou universal. A concorréncia entre os diversos proprietarios de mercadorias seria impossivel se 8 ra- cionalidade dos fenémenos isolados correspondesse também uma configuracao exata, racional e funcional das leis para toda a sociedade. Para que um célculo racional seja possfvel, os sistemas de leis que regulam todas as particularidades de sua produgéo devem ser dominados por completo pelo proprietério de merca- dorias. As oportunidades de exploracio, as leis do “mer- cado” devem ser igualmente racionais, no sentido de que elas devem ser calculaveis e avaliadas segundo suas possibilidades. No entanto, ndo podem ser dominadas por uma “lei” como o sdo os fendmenos isolados, nao podem de modo algum ser organizadas racionalmente por inteiro. Por si s6, isso nao exclui, evidentemente, 0 predominio de uma “lei” sobre a totalidade. Contudo, essa “lei” deveria ser, de um lado, o produto “incons- ciente” da atividade autonoma dos proprietarios de mercadorias, que atuam sem depender uns dos outros, ou seja, uma lei das “contingéncias” que reagisse umas sobre as outras e nao a de uma organizac’o realmente racional. De outro, esse sistema de leis deve nao somen- te se impor aos individuos, mas ainda jamais ser inteira- HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 227 mente e adequadamente cognosctvel. Pois 0 conhecimento comple:o da totalidade asseguraria 20 sujeito desse co- nhecimento tal monopélio, que acabaria suprimindo a economia politica. Essa irracionalidade, esse “sistema de leis” ~ extre- mamente problematico — que regula a totalidade, que por principio e qualitativamente é diferente daquele que regu- Ta.as partes, é mais do que um postulado, do que uma condicéo de funcionamento para a economia capitalis- ta nessa problematica; 6, ao mesmo tempo, um produto da divisao capitalista do trabalho. Jé se ressaltou que essa divisio do trabalho desloca todo proceso organi- camente unitdrio da vida e do trabalho, decompde-no em seus elementos, para fazer com que essas fungdes parciais e artificialmente isoladas sejam executadas por “especialistas” adaptados a elas psiquica e fisicamente. No entanto, essa racionalizagio e esse isolamento das fungées parciais tm como conseqiiéncia necessaria 0 fato de cada uma delas se tornar auténoma e tender a perseguir por conta propria seu desenvolvimento e se- gundo a logica de sua especialidade, independente- mente das outras fungdes parciais da sociedade (ou dessa parte A qual ela pertence). Naturalmente, essa tendércia aumenta com a divisdo crescente do traba- Tho, cada vez mais racionalizada. Pois, quanto mais ela se desenvolve, mais se intensificam os interesses pro- fissionais e de status dos “especialistas’, que se tor- nam os portadores de tais tendéncias. E esse movimen- to divergente nao se limita as partes de um setor deter- minado. E ainda mais claramente perceptivel quando consideramos os grandes setores produzidos pela di- 228 GEORG LUKACS viséo social do trabalho. Engels® descreve da seguinte maneira esse processo na relacdo entre o direito e a eco- nomia: “O mesmo se passa com o direit sidade da nova diviséo do trabalho, que cria juristas profissionais, abre-se um novo setor auténomo que, nao obstante toda sua dependéncia geral em relagio a pro- dugao e ao comércio, possui também uma capacidade particular de reagir nesses setores. Num Estado moder- no, 0 direito deve nao somente corresponder a situacéo econémica geral e ser sua expresso, mas também ser uma expressio coerente em si mesma, que nao se deixa abalar por contradicées internas. E, para consegui-lo, reflete de maneira cada vez mais infiel as condices econémicas [...].” Sem diivida, ndo é necessério dar aqui outros exemplos de cruzamentos ¢ rivalidades en- tre os diversos “departamentos” da administracao (que se pense apenas na autonomia dos aparatos militares em relacao a administracao civil), das faculdades etc. com a neces 3. Com a especializacao do trabalho, perdeu-se toda imagem da totalidade. E como a necessidade de apreen- der a totalidade — ao menos cognitivamente - nao pode desaparecer, tem-se a impressao (e formula-se essa re- provacdo) de que a ciéncia, que trabalha igualmente dessa maneira, isto €, que permanece igualmente nes- se imediatismo, teria despedacado a totalidade da rea- 30, Carta a Konrad Schmidt, 27/10/1890. MEW 37, p. 491 HISTORIA E CONSCIENCIA DE CLASSE 229 lidade, teria perdido o sentido da totalidade por forga da especializacao. Em resposta as afirmagies de que “os varios aspectos nao sao tratados em sua unidade”, Marx®* enfatiza com razao que essa critica é concebida “como se fossem os manuais a imprimir essa separa- cao na realidade, e ndo a realidade a imprimi-la nos manuais”. Embora essa censura mereca ser rejeitada em sua forma ingénua, ela se torna inteligivel quando, por um momento, consideramos a partir do exterior, nao do ponto de vista da consciéncia reificada, a ativi- dade da ciéncia moderna, cujo método é, tanto socio- l6gica quanto imanentemente, necessério e, portanto, “comp:eensivel”. Tal consideracao revelard, sem cons- tituir uma “critica”, que quanto mais uma ciéncia mo- derna for desenvolvida, quanto mais ela alcangar uma visdo met6dica ¢ clara de si mesma, tanto mais voltard as costas aos problemas ontolégicos de sua esfera e os eliminaré resolutamente do dominio de conceitualiza- Gao que forjou. ‘Quanto mais desenvolvida e cientifica ela for, maior 6 sua probabilidade de se tornar um sistema formal- mente fechado de leis parciais e especiais, para o qual o mundo que se encontra fora do seu dominio sobretu- do a matéria que ela tem por tarefa conhecer, ou seja, seu provrio substrato concreto de realidade, passa sistema- tica e fundamentalmente por inapreensivel. Marx’? for- mulow essa questo com acuidade para a economia, a0 explicer que “o valor de uso, enquanto valor de uso, es- td além da esfera de investigagao da economia politica”. 31. Zur Kritik der pottscken Okonomie, MEW 13, p. 621 32. [bid p16.

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