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Palavras-chave: autoligsor autobiografaIiteratura bra Sie Keywords: autofiction: av tobiography; Brazilian lit Mots-clés: autofction: auto biographie;liérature bes silienne 218 AUTOFICGAO BRASILEIRA! INFLUENCIAS FRANCESAS, INDEFINIGOES TEORICAS BRAZILIAN AUTOFICTION: FRENCH INFLUENCE, THEORY’S CONTROVERSY Luciana Hidalgo Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, RJ, Brasil Resumo Desde a invensio do neologismo “autofiction” pelo tebrico c escritor Serge Doubrovsky na quarta capa de seu romance Fils, em 197, 0 termo pro- voca discusses polémicas no universo da teoria literdria francesa, num longo ¢ inacabado processo de inscrigao da autofiesio como género. Na pratica, no entanto, o termo é cada vez mais popular, utilizado por auto- res contemporineos nas mais diversas literaturas. Nesse artigo, expéem- se algumas questées a respeito do assunto por parte de tebricos france- ses, revelando-se ainda como o neologismo contagia a literatura brasileira contemporanea, rendendo uma multiplicidade de formas de apropriagio do exercicio autoficcional, Abstract, Since the creation of the word “ autofiction” by French writer Serge Doubrovsky in order to define his novel entitled Fils, in 1977, there have been lots of controversies among French literature professors who study the subject and never achieve a consensus about its correct definition. Nevertheless, the word is even mote popular nowadays, as it is widely used by contemporary authors in many literatures. In this article, some of these controversial discussions are exposed, as well as some examples of autofictions in Brazilian literature. LucaNA oat | Auto basa Résumé Depuis linvention du néologisme autofiction» par le théoricien Serge Doubrovsky dans la quatriéme de couverture de son roman Fils, en 1977, le terme suscite des polé- miques dans l'univers de la théorie littéraire francaise, sur un long et inachevé processus d'inscription de Vautofiction en tant que genre. Et pourtant, le mot devient de plus en plus populaire et les auteurs contem- porains des diverses littératures sen servent. Dans cet article, quelques discussions qui agitent les théo- ticiens frangais sut ce théme sont avancées, en montrant comment la littérature brésilienne contempo- raine sest exposée au contact de ce néologisme, avec toute une multi- plicité de formes dans son appro- ptiation de exercice autofictionnel ‘Lt [Rie fei [vo 15 p.218231 jnjun 208 Desde a invencéo do neologismo “autofiction” pelo escritor e teérico francés Serge Doubrovsky em 1977, a ideia de unir autobio- grafia e ficgio em narrativas contemporaneas consolida-se. A pala- vra, sonora e eficaz, traduzida no Brasil como autoficedo, pouco a pouco quebra a rigidez da tradi¢ao— tanto que, em 2013, serd enfim incluida na nova edig4o do Dicionario Houaiss. Uma vez incorpo- rada, popularizada e divulgada na midia, passard & etapa seguinte: banalizada. O que nos anos 1970 comegou com o registro simples de um autor no esforco de definir seu proprio, hibrido romance (intitulado Fil), traduziu-se como uma espécie de nouvelle vague, um sopro a mais no contexto das neovanguardas. Passadas as décadas, 0 termo, no entanto, permanece teori- camente flow, ou scja, nebuloso ¢ controvertido. Estudos literérios na Franga avangam ¢ regridem no longo processo de inscrigao do ncologismo como género, sem uma definigio clara dos limites entre a autobiografia, tao precisamente citcunscrita pelo tebrico Philippe Lejeune, ea chamada autoficedo, Dai o paradoxo e uma questio pri- mordial: por que ler autores brasileitos sob a perspectiva da auto- ficséo, um neologismo importado, uma vez que sequer na Franca hé4 um consenso tedrico a respeito? Flutuante entre a pratica criativa dos autores ¢ 0 olhar cien- tifico dos teéricos, entre a leitura referencial ea leitura ficcional, 0 eu reale o eu ficticio,' a complexidade do neologismo nao permite uma unanimidade. O impasse levou 0 préprio Serge Doubrovsky 4 simples conclusio: “Era um neologismo necessério”.°* Ou, como enunciou Philippe Forest, trata-se de “um fendmeno”,* nao exata- mente de um movimento literdrio. Num contexto vazado por imprecisées, coube enfim ao te6- rico Jean-Louis Jeanelle uma observagio acurada sobre a inques- tiondvel poténcia do neologismo doubrovskiano: “ J agora o que conceito e menos importa é dar uma definigao estrita e estavel dess sim tentar entender por que ele exatamente, e nao outro, vem des- pertando paixées intelectuais antes suscitadas pelo romance auto- biogréfico”.* " Referéncia ao livro Le je réel/fe fctif- Au-dela d'une confusion postmoderne, de Arnaud Schmitt, Toulouse: Presse Universitaires du Mirail, 2010. 2H importance dizer que todos os trechos de livros extraidos de originais fran- ceses e citados a0 longo desse artigo foram traduzidas diretamente para 0 portu- gués a fim de faciliar a leitura. ‘08 [Rio de ania [v0.15 p.208231 |janjun 2013 WcANA HDALCD | Auoigobraea + (DOUBROVSKY, Serge «Crest fini: entrevista rea lizada por Isabelle Gres Je & Moi, a Nouvelle Re- ue Francaise, ong. de Pi Tippe Forest. Paris: Gall rmard,ncmero 598, outubro de 201125) * FOREST, Philippe. se & Mois avantproposs Je & Moi, La Nouvelle Revue Francaise, og de Philippe Forest, Paist Gallimard, rimero 598, outubro de 2ant: 12) * YEANELLE, Jean-Louis {sD'une géne persistant & Frégard de lavtotitions Je & Moi, La Nouvelle Re vue Francaise, orp. de Pi Tippe Forest. Pais: Gall de 2011253) 219 *{GASPARINI Philippe Au- tfction - Une aventre ds langage. Pris Seul, 2008) ‘S{SANTIAGO, Sivian. i terias mal contadas. io de aneto: Rocco, 2005) + Trecho da palestia pro frida por Silvina Santa 0 70 coldquio “A Meat ra desi mesmo, realizada fem novembra de 2007 no pago Sec + LEWY, Tatiana Salem. A chave di casa Rio de ane ro: Record, 2007) 220 No Brasil, a discussdo tedrica em torno da autoficgdo de alguma forma influencia a prépria produgao ¢ também a recepgao de tex- tos, em sequéncia ao semelhante proceso ocorrido na Franca — Philippe Gasparini historiciza toda essa evolugéo em Autofiction = Une aventure du langage.* Nesse contexto, em 2005, 0 escritor ¢ ensafsta Silviano Santiago foi um dos pionciros a apresentar seu livro de contos Historias mal contadas* como autoficsio. Segundo 0 autor, ele jé havia abordado, em obras anteriores, questées como experiéncia, memeria, sinceridade ¢ verdade poética, até 0 dia em que descobritto ncologismo de Doubrovsky. O termo, segundo cle, era conveniente para designar questées inscritas em seu projeto ficcio- nal desde Em liberdade: A fim de evitar mal entendidos, afirmo que em nenhum momento do pasado remoto usci a categoria autofiegdo para classificar os tex- tos hibridos por mim escritos e publicados. Quando pude, evitei a palavra romance. No caso de Em liberdade (1981), um diario intimo falso “de” Graciliano Ramos, classifiquei o livro de “uma ficgao de”, para o desagrado dos editores que preferem ramerréo do género. [...] Nao tive pejo em usar “memérias” para O falso mentiroso. ‘Memérias tém boa tradicio ficcional entre nés. [...] Finalmente, acrescento que fiquei alegremente surpreso quando deparei com a informagao de que Serge Doubrovsky, critico francés radicado nos Estados Unidos, tinha cunhado, em 1977, 0 neologismo autoficeao [...]. Em suma, passci a usar como minha a categoria posterior ¢ alheia de autoficgao.* En 2007, Tatiana Salem Levy igualmente apresentou seu pri- meiro romance, A chave da casa,* como autoficsio. Em foco, histé- rias pessoais entrelacadas: a relagéo com a mie & beira da morte; a busca de sua gencalogia na Turquia; instantaneos da relagao intensa com um homem que flerta com a violéncia. Nessa literatura-decal- que da vida, a autora assume a autoficcéo, apropriando-se de um termo que conheceu durante uma parte de seu doutorado (bolsa- sanduiche) realizada em Paris. Tatiana opta pela narragio em primeira pessoa, mas evita dar nome & protagonista. Silviano, por sua vez, em Historias mal con- tadas, fragmenta o ew em varios personagens que, nos diversos con- tos, os mais pessoas, sio andnimos. No conto “Vivo ou morto”, 0 autor apenas insinua sua identidade, numa espécie de private joke perceptivel ao leitor. A certa altura, o personage, perseguido pelo FBI, diz: “Meu corpo estava a leilao na praca norte-americana. Valia vinte mil délares. Quem da mais? Fagam seu jogo, senhores! Meu Lucan Hato | Auto basa ‘Lt [Rio facia [vo 15 p. 218231 jnjun 208 codinome estava a descoberto: Santiago”.* Mais adiante, nas dilti mas histérias do livro, 0 nome aparece de novo, na assinatura, por exemplo, de uma carta imagindria a Mario de Andrade Os dois autores em questo assumem suias historias pessoais — seja em entrevista, no press-release da editora ou no texto da orelha do livro— sem seguir a maxima de Doubrovsky: “[...] na autoficsao, © autor deve dar seu proprio nome ao protagonista, pagar 0 prego por isso [...] eno se legar a um personage ficticio”.* Nesses casos, portanto, trata-se mais da “autoficsao anominal ou nominalmente indcterminada’,* assim classificada c praticada pelo escritor francés Philippe Vilain em seus romances. Ou, numa alusio a Roland Bar- thes, trata-se simplesmente do en, esse “pronome do imagindrio” * Um ponto cm comum une os mais variados exercicios auto- ficcionais: a possibilidade de apagar, ao menos embaralhar, os limi- tes entre uma verdade de sie a ficgéo, mesmo se isto revoluciona a ideia de pacto autobiogrdfico definida por Philippe Lejeune, abrindo novas perspectivas de leitura a leitura simultaneamente referen- cial e ficcional de um mesmo texto. F justamente essa liberdade, a auséncia de fronteiras entre 0 autobiogréfico eo ficcional, que parece atrair cada vez mais auto- res nas diversas literaturas, af incluida a brasileira. E é justamente © que provocard as grandes discussdes e interdigées mais tarde no dominio da teoria, j4 que parte dos teéricos recusa a recepgao, diga- mos, ambigua do texto apresentado como autoficgéo. Para Philippe Lejeune, o leitor, diante da ideia de ler um texto simultaneamente como autobiografia ¢ ficg4o, nao consegue medir exatamente o que isso significa; e acaba o lendo como uma autobiografia classica.* Na mesma linha de raciocinio, o teérico Arnaud Schmitt enuncia: 0 cérebro é uma maquina seletiva que nao comporta uma recepsao paradoxal entre os registros ficcional e referencial. Daf a necessidade de inveng’o de outro termo, mais apropriado, onde a palavra ficgdo seja suprimida: é de Schmitt a sugestio do termo autonarragdo para dar conta do que muitos autores chamam de autoficgdo.* O novo termo designaria melhor, a seu ver, 0 texto autobiografico no qual o autor se utiliza de técnicas narrativas tipi- cas do romance. Ou seja: ‘ecusa autoficedo, justamente pelo que 0 ncologismo sugere de ficcional em sua composigao etimolégica. Em Autofiction & Autres mythomanies littéraires (2004), Vin- cent Colonna mostra como autoficpéo tornou-se um vocdbullo cata- lisador, capaz de reunir e dar sentido a narrativas meio autobio- ‘Ab [Rio de Jairo [vo 15 p.208251 |jnjun 2013, CNA MIDALCD | Asti *ISANTIAGO,Silviano His ‘sas mal contadas. Ro de Janeiro: Rocco, 2005: 110, + (DOLBROVSKY, Serge. Apuid VILAIN, Philippe. Désense de Narcisse, Pais Grasse, 2005: 205,) + (VILAIN, Philippe UAutoietion en tori, Pa rs: Les Editions de la Trans prrence, 208 “BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Paris: Seu, 1975: 62.) thes INF, Philippe Apud GASPARINI, Philippe. Av tofction ~ Une aventre do langage. Paris: Soul, 2008; 93 + (SCHMITT, Arnaud "La perspective de Vautanavation’, Postique, nnimero 149, fevereiro de 2007: 15-29.) 221 + (COLONNA, Vincent. Au tofievion & Autres ator ries trares Pai rst, 2004: 196, = (LEJEUNE, Philippe. Le pacieautobiographique Pa is: Seu, 1996: 42). 222 graficas meio ficcionais frequentemente mal-compreendidas na literatura. E como se 0 termo, uma vez criado, redimisse automa- ticamente, por seu efeito etimolégico, todo um arsenal de escritos difusos na histéria literdria. A seu ver, a invengio de Doubrovsky confunde-se com a de romance autobiogrifico nominal: [Doubrovsky] preenchia um verdadeiro vazio, pois, ao reinven- tar com outro rétulo o romance pessoal ou a autobiografia, permitia o retorno de uma nogio caida em desgraca na critica e negada como categoria literdria ha pelo menos trés geracées. O selo de qualidade € a pritica deste romanesco {ntimo (com ou sem nome préprio) haviam sido rechagados como defeitos na grande literatura, de Flaubert a Proust; ¢ desde o pés-guerra [...] seu uso é um tabu tanto na histéria da literatura como na critica.* Toda essa polémica tedrica, no entanto, néo impediu, nem impede, 0 sucesso do neologismo entre autores contemporineos de literaturas sortidas. O fenémeno cresce e se agiganta, Segundo Philippe Gasparini, a autoficeao surgiu no contexto pés-1968, pés-Freud, decorrente de uma liberagéo em varios sentidos, mas, sobretudo, da palavra e do comportamento. O corpo estaria mais presente na autoficsao do que na entio chamada autobiografia. No entanto, este mesmo corpo, tao sexualizado nos anos 1960/70, sur- giria, nas narrativas autoficcionais, cerceado por seus préprios limi- tes, defeitos e doengas. O tedrico refere-se basicamente a autores franceses, mas alguns romances brasileiros incluem-se nessa ideia, acomegar por O filho eterno (Record, 2007), de Cristévio Tezza, ¢, em retrospectiva, duas obras escritas nos estertores da experiéncia manicomial: Armadilha para Lamartine (Labor do Brasil, 1975), de Carlos & Carlos Sussekind, e Quatro-Olhos (Alfa-Omega, 1976), de Renato Pompeu. Para Philippe Gasparini, o conceito autoficedo nao configura exatamente um género, mas sim a forma contemporinea de um “arquigéncro”, o espaco autobiogndfico assim definido por Philippe Lejeune: Nio se trata de saber qual, entre a autobiografia ¢ 0 romance, seria ‘© mais verdadeiro. Nem um nem outro; & autobiografia faltariam a complexidade, a ambiguidade etc.; ao romance, a exatidao; seria entio: um mais outro? Mais do que isso: um em relagio a0 outro. O que se torna revelador é 0 espago em que se inserevem as duas categorias de textos, sem se reduzir a nenhuma delas, O efeito de destaque obtido por este procedimento gera a ctiagio, para o leitor, de um espaso autobiogréfico.” Lucan Hato | Auto basa ‘Lt [Rio facia [vo 15 p. 218231 jnjun 208 Nessa linha de raciocinio, Philippe Gasparini prefere desig- nar entao a nova categoria como autonarragdo, tomando empres- tado 0 termo criado por Arnaud Schmitt em 2005 e definindo-o da seguinte forma: ‘Texto autobiogrifico ¢ literdrio que apresenta varios tragos de oralidade, inovagio formal, complexidade narrativa, fragmenta- io, alteridade, falta de unidade e autocomentirios, que tende a problematizar a relagao entre escrita e experiéncia." + (CASPARINI, Philippe. Coube a Serge Doubrovsky, em sucessivas reflexées tedricas vars fe Soul sobre a sua propria pratica literdria ea de certos autores por ele con- siderados autoficcionais, defender 0 neologismo e teorizé-lo, dife- renciando-o da autobiografia de diversas formas: [A autoficsao) ¢ uma variante pés-moderna da autobiografia, na medida em que se desprende de uma verdade literal, de uma referencia indubitavel, de um discurso historicamente coerente, apresentando-se como uma reconstrugéo arbitréria ¢ literatia de fragmentos esparsos da meméria.* + (DOUBROVSKY, Sere Apud VILAIN, Pili. Grasset, 200512129 O inventor do neologismo tenta sustenté-lo teoricamente com base em sta experiéncia de ensaista e professor de literatura, além de escritor. A seu ver, 0 que conta é 0 desejo autobiogréfico, mas fragmentado, utilizado em prol do primado da narrativa, isto é, de uma grande preocupasio estética, sendo o resultado final, 0 livro, lido como um romance e néo como uma recapitulagio histérica. Sobre a possibilidade de uma linha concreta a separar autoficcéo e autobiografia, Serge Doubrovsky a apaga de ver: [..J toda autobiografia é uma forma de autoficgéo ¢ toda autofic- Gao uma variante da autobiografia. Nao hé separagao absoluta. A autoficgao ¢ a forma romanesca utilizada pelos escritores para se narrarem, desde meados do século XX até 0 inicio do século XI. Isto mudard provavelmente um dia, mas a autoficgio terd tido seu sucesso. Nio creio que seja eterna.* * iin: 241-212. O sucesso da palavra “autoficséo” é nitido nas mais diversas culturas, nao apenas na literatura, mas em outros dominios estéti- cos, como as artes vistiais. Na prética autoficcional, quando a fic- cio se adiciona a autobiografia, o efeito é, sem diivida, uma soma inexata, que paradoxalmente subtrai de cada elemento exatamente aquilo que o caracterizava. De inicio, a ficgéo pode parecer menos ctiativa porque a principio origina-se de uma histéria real, ¢ a auto- biografia menos real por contar com a liberdade da imaginacio. 223 ‘Ab [Rio de Jairo [vo 15 p.208251 |jnjun 2013, CNA MIDALCD | Asti + FERREZ. Capo Pecado. Rio de Janeito: Objetiva 2008. *ILAUB, Miche. Diseio da ‘queda. Sio Paulo: Compa shia das Letras, 2011) *IUEAO, Rodrigo de Sou 2a, Tacos os cachorros si0 ais, Rio de Janeira: 7Le *{ULAO, Rodrigo de Sou 2a, Todos os cachorros sio ‘azuis. Rio de Janeiro: 7Le ras, 2008 77) AVERBUCK, Clara, Ma quina de pinball. So Pa ' Conrado Bras, 2002.) = (AZEVEDO, Fal. Mindseu los assassinatose alguns co fo de lite, Ria de lant Rocco, 2008) 224 Entretanto, em vez de subtrair, para autores contemporaneos, essa conta parece inflacionar. Trata-se de auto + ficgdo, etimologia apa- rentemente simples. Escritores pensam, portanto, ganhar dos dois lados, sem nada a perder, com toda uma liberdade que, no domi- nio tedrico, suscita cada vez mais probleméticas. Pouco concernidos pelos bastidores da teoria, autores seguem seu percurso, Na literatura brasileira, conforme preceitos doubrovs- kianos, é possivel detectar tracos de autoficgdes em varios autores. Para citar alguns: Ferréz,* Michel Laub* e Rodrigo de Souza Leao. Em geral, trata-se de uma autoficedo anominal ou nominalmente inde- terminada, mas com brechas que sugerem um caminho em diresio A identidade onomédstica: no romance citado de Rodrigo de Souza Leo, por exemplo, o autor chega a deixar seu nome no persona- gem principal, embora o faca apenas na peniiltima pagina, muma espécie de autodidlogo: Dia D. Hora H. A bomba e seu cogumelo de endorfinas explodem em meu corpo baionetado ¢ com a quimica dos anjos. A ogiva E depois, Rodrigo? O que fez do depois? Aqui onde as nuvens se encontram, Jevo sempre um choque maior do que os que levei no hospicio.* No contexto heterogéneo de expressées autoficcionais, ha que se mencionar ainda o virtual universo dos blogs, onde alguns nomes se langaram e, a partir do alcance popular de seus posts, escreveram livros que deslizam, em maior ¢ menor grau, na direcéo da auto- ficg4o — Clara Averbuck* ¢ Fal Azevedo* sao dois exemplos. E 0 que dizer de Miguel Sanches Neto e seu Chove sobre minha infiin- cia (Record, 2000), uma narrativa autobiogréfica apresentada como ficgdo pelo autor? Se uma linhagem autoficcional pode ser um dia estabelecida com preciso na histéria da literatura brasileira contempornea, levando-se em conta a ideia central de Serge Doubrovsky —a iden- tidade onoméstica entre autor, narrador e protagonista -, hé que se destacar ainda a publicacao de O gosto do apfelstrudel (Rio de Janeiro: Escrita Fina, 2010), de Gustavo Bernardo. No romance, © escritor serve-se conscientemente do termo autoficedo para fic- cionalizar os tiltimos dias do pai em coma. O protagonista ndo leva o nome do autor e sim suas iniciais. E uma quase-identidade onoméstica, quase uma autoficc4o comme il faut, mas ainda abre- viada pelo pudor. LUaaNA DAL | Auto basa ‘Lt [Rio facia [vo 15 p.218231 jnjun 208 Entre os romances recém-langados que sugerem algum tipo de desdobramento do eu do autor, um dos mais sdlidos exemplos Record, 2010), de Jos¢ Castello. Embora 0 autor alegue nao té-lo escrito sob de autoficcao é, sem duivida, Ribamar (Rio de Janein © signo da autoficcdo, cle “paga o preso” sugerido por Serge Dou- brovsky e nomeia seu personage principal, ele proprio, José, do inicio ao fim, sem hesitagao. Em Autofiction — Une aventure du langage, Philippe Gaspa- rini lista diversos ctitérios estabelecidos por Serge Doubrovsky a0 longo de décadas na tentativa de citcunscrever os limites da auto- fiegdo © sua passagem de neologismo a pratica literdrio-teérica: a identidade onomastica entre autor, narrador e protagonista; a apre- sentagio do livro como romance; uma preocupasao formal origi- nal; uma urgéncia de verbalizagao imediata da situacéo vivida; a reconfiguragéo do tempo linear da narrativa; o emprego do “pre- sente” ¢ néo do passado, como nas autobiografias tradicionais; 0 engajamento do autor em relatar apenas “fatos estritamente reais”;! a pulsio do escritor de se revelar em sua verdade; ¢ os autocomen- tarios, ou metadiscurso.* Ribamar é um livro-luto. José, o filho, escreve em primeira pessoa uma espécie de carta-romance enderesada ao pai Ribamar, jé falecido. Ao fazer o luto por meio da escrita, ele se escreve, a si pré- prio. A certa altura, José vai até a pequena cidade de Parnaiba em busca do passado paterno. Lé encontra um tio, a quem diz escre- ver a biografia do pai. Mas ¢ uma mentira, ele sabe. José escreve sobre ele mesmo: Viajei a Parnaiba na esperanga de restaurar sua infincia. Tudo que encontro séo pedagos da minha. Torno-me, assim, o obstéculo que fecha meu caminho rumo a vocé. Volto a ser o filho inconveniente. Como me livrar de mim e me concentrar em vocé, pai?* Assombrado por Franz Kafka, José teme repetir 0 projeto do esctitor tcheco, que escreveu Carta ao pai* ao seu progenitor Her- mann, dando-a a sua mae para que nunca fosse lida, José sabe tam- bém que Ribamar nunca lerd seu livro, Preceitos doubrovskianos sio perceptiveis ao longo de toda a narrativa: José Castello empreende uma reconfiguracio do tempo linear, entrelagando referencias a Kafka, reflexées intimas no pre- > Referéncia ao texto da quarta capa do livro Fils, de Serge Doubrovsky (Paris: Galilée, 1977), que sera mencionado adiante. ‘08 [Rio de ania [v0.15 p.208231 |janjun 2013 WcANA HDALCD | Auoigobraea + {GASPARINI, Philippe. ‘Autofiction ~ Une aventu re du langage, Paris: Soul + (CASTELLO, José. Riba ‘mar RiodeJaneito: Record, 2010.99.) KAPKA, Franz. Carta 20 pl. Sio Paulo: Compan 225 + (DOUBROVSKY, Fils, Pais: Galle, 1977 + {CASTELLO, José, Riba ‘mar. Riode ante: Record, 2010:37,) * bide: 132.) *(VILAIN, Philippe. VAuto- fiction en théone Pars Les Eaiions de a Hansparence, 2009:21,) 226 sente ¢ reminiscéncias da infancia. Trata-se, sem duivida, de um romance, assim apresentado pelo autor, marcado por uma escrita que a0 mesmo tempo visa a uma verbalizacio imediata da relagio filho-pai e ostenta uma preocupasao formal que remete 4 aven- tura da linguagem mencionada por Doubrovsky na quarta capa de seu romance Fils, no instante da criagéo do neologismo auto- fiegéo. A saber: [...] Ficgdo, a partir de acontecimentos e fatos estritamente reais. Se assim preferirem, ‘autoficsio’, por se ter confiado a linguagem de umaaventura @ aventura da linguagem, sem respeito & chamada ‘boa forma’ nem 3 sintaxe do romance, seja cle tradicional ou inovador.* Em Ribamar destaca-se ainda a pulsao do autor de se revelar em sua verdade e outra caracteristica bastante valorizada por Phi- lippe Gasparini na autofic¢ao ou autonarragdo: 0 metadiscurso. O autor-personagem tece comentirios sobre o romance ao longo de todo o romance, afirmando mesmo a “superioridade da ficg4o”, 0 que lhe permite enunciar: “Aqui fago da verdade 0 que quero”.* Mais adiante, diz: “|...] nao escrevo versos. Nunca escrevi. As notas que tomo parao livro que escreverei formam uma prosa difusa, que nao é nem reflexdo, nem confissio, nem ficgao, ¢ é tudo isso um pouco. Poesia nao é”.* Acssa altura, uma questo fundamental postulada por Phili- ppe Vilain torna-se pertinente: “Deve-se (...] aplicar 0 rétulo auto- (ficgao a textos cujos autores nao os apresentam nem os assumem dessa forma?”* Tal questionamento revelou-se pertinente na teo- ria literdria francesa a partir do momento em que tedricos passa- ram a aplicar o rétulo autoficedo a obras de autores contemporaneos como Annie Ernaux (autora, entre outros, de Kerire la vie. Paris: Gallimard, 2011) ¢ ela 0 recusou. No sentido inverso, a escritora francesa Camille Laurens (autora, entre outros, de Dans ces bras-la. Paris: Pol, 2000) nao sé passou a utilizar o neologismo como 0 defende ¢ participa de coléquios sobre © tema, ajudando a refletir artistico-teoricamente sobre a sua pratica No Brasil, autores que utilizaram 0 neologismo, a exemplo de Silviano Santiago, Tatiana Salem Levy ¢ Gustavo Bernardo, sio grandes conhecedores da teoria da literatura, uma vez que, além de escritores, sio professores de literatura e ensaistas (Silviano e Gus- tayo) ou doutores em literatura (Tatiana) — assim como o préprio LUaaNA aoa. | Auto basa ‘Lt [Rio de fan [vo 15 p.218231 jnjun 208 Serge Doubrovsky, que reflete sobre sua obra com o olhar do tedrico ¢, provavelmente, escreve impregnado pelo conhecimento da teoria. A auséncia de consenso na teoria literdtia francesa em torno da autoficgéo certamente reflete na recepgao da literatura autofic- cional brasileira. Mas é preciso analisar 0 fendmeno com precausao, para que ndo se ceda & tentagao de aplicar levianamente um termo francés & literatura nacional. No Brasil, percebe-se mesmo um certo pudor na forma como alguns autores empregam o neologismo — um, cuidado, alids, a ser valorizado num pais periférico ¢ colonizado, que ao longo de sua histéria acumula cpisddios por vezes excessivos, cari- caturais, de cépias de modelos culturais estrangeiros (nesse sentido, a Belle Epoque no Brasil, espécie de simulacro da Belle Epoque na Franga, é um arquivo de memérias sobre o assunto).. Apesar de todaa fluidez do fenémeno, no entanto, nao ha mais como ignoré-lo, Aquela nouvelle vague dos anos 1970 ganhou forma ao longo das décadas, encorpando-se numa ‘sunami bem contem- poranea — um efeito da globalizacéo? — que terd sua importancia, deixard rastros, e mesmo alguns estragos, nas culturas mais diver- sificadas (hd registros de autoficgdes nas literaturas europeias, sul -americanas, africanas, rabes etc.) sem que, possivelmente, jamais se chegue a um consenso. A poténcia do neologismo, contudo, jé passou por sucessivas provagées. Apesar dos detratores, das indefinigées no campo teé- rico, 0 termo revela-se cada ver. mais necessdrio, fundamental, ea sua intrinseca sugestéo poética parece bastar a intimeros autores pelo mundo, cada qual decifrando-o & sua maneira muito parti- cular, cada ver mais interessados no “grande niimero de combina- ses possiveis [...] quase infinitas”, como atesta Philippe Lejeune. adesignagio de textos, de designacao varidvel Aseu ver, autoficgdo “nao é um conceito tedrico, e si empirica e histérica de uma sé conforme seus locutores”. Apesar disso, conclui: “[...] utilizemos, se quisermos, o termo autoficedo no senso mais amplo e vago, para designar este lugar intermedidrio onde se passam tantas coisas apai- xonantes e complicadas [...]”." Na pratica literdria, portanto, isso é exatamente 0 que acon- tece. Afinal, para boa parte dos escritores, a teoria nao tem a menor importncia no instante da criago. No caso da autoficgao, talvez 0 que realmente intetesse seja a carga de sugestéo ontolégica do neo- logismo; a pulséo do eu, da expressio do ew, tao urgente que o faz ultrapassar todos os limites. Isto é, 0 neologismo parece avalizar ‘00 [Rio de anciro [ vo. 15 p. 208231 |janjun 2013 LWCANA HIDALCD | Autigobasea + (LEIEUNE, Philippe {Georges Perec: autabiogr hie et fictions, Genése et autofietion. Belgique: Ace emia Bruylan, mero 6, 2007: 143-14 227 EZZA, Cristvio. O fe tho eterno, Rio de Janet Record, 2007: 10. 228 autores, mas 0 que os move, ¢ inspira, no fundo, em varios casos, é a urgéncia de sua situacao pessoal — e do registro desta, que em geral supera o puro depoimento. Na autoficcdo brasileira, néo por acaso algumas obras sio romances-luto — outra coincidéncia em relacdo & autoficgao fran- cesa, jd que, segundo Philippe Gasparini, temas como o luto ¢ as questées de filiacdo sio mais presentes do que a sexualidade, fazendo com que os “herdis” dos romances de autoficséo na Franca sejam, em sta maior parte, 0s pais ou os filhos dos escritores, Nesse sentido, no Brasil, aos exemplos ja citados — A chave da casa, de Tatiana Salem Levy, O gosto do apfelstrudel, de Gustavo Bernardo, © Ribamar, de José Castello — ha que se acrescentar ainda O filho eterno, de Cristévao Tezea Paradoxalmente, O filho eterno é um livro-luto otigindrio de um nascimento: 0 nascimento do filho do escritor, um menino diag- nosticado como portador da Sindrome de Down. Apesar do titulo- tema, o autor sé fala de si mesmo: a angiistia de pai, a vida profissio- nal sem saida, a doenga do filho a jogé-lo no inferno mais intimo. Cristévao Tezza assume a histéria pessoal, mas evita narré-la na primeira pessoa. Prefere adotar a terceira pessoa, numa prova- vel tentativa de distanciamento de si mesmo. Entretanto, ao longo da narrativa, por vezes 0 ew torna-se ele e vice-versa: ‘Mas eu também néo tenho nada ainda, ele diria, numa espécie me- tafisica de competi¢ao. Nem casa, nem emptego, nem paz. Bem, um filho — ¢, sempre brincando, viu-se barrigudo, severo, trabalhando: em alguma coisa enfim sélida, uma fotografia publicitaria da familia congelada na parede. Nao: ele esté em outra esfera da vida. Ele ¢ um predestinado a literatura ~ alguém necessariamente superior um ser para o qual as regras do jogo sao outras.” Hi frases iniciadas na primeira pessoa ¢ terminadas na ter- ceira. Todo um jogo pontuado por uma sutileza muito bem cons- trufda, que revela um didlogo intimo ao mesmo tempo licido ¢ quase esquizofrénico entre eu ¢ ele. Em entrevistas, Cristévao Tezza afirmou ter projetado esse livro como um ensaio, mas, ao escrever a primeira pagina, a fic¢do se impés —¢ o resultado é uma pulsio de sinceridade, de verdade, traduzida num estilo impecavel. Mais do que uma comogio, é2 histéria de uma raiva, do luto por um set vivo. Mais do que autocomentério, trata-se de autoironia. E possivel exumar, na histéria da literatura, todo um pionei- rismo autoficcional que, no caso do Brasil, teria como um dos génios LUaaNA aoa. | Auto basa ‘Lt [Rio de fan [vo 15 p.218231 jnjun 208 fandadores Lima Barreto. O autor nao somente escreveu romances marcadamente autobiogréficos (a exemplo de Recordagées do escri- vio Isa‘as Caminha) como quase inscreveu a identidade onomés- tica na literatura brasileira em 1919, ao langar Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sd. Em meio & correspondéncia trocada pelo autor com Anténio Noronha dos Santos, uma carta evidencia essa ques- tao: Lima Barreto 0 avisa do envio dos originais (de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sd) pata o amigo revisar ¢ textualmente escreve: “Vocé deve anotar onde esté ‘Afonso’ que cu quero cortar”.* Afonso (Henriques de Lima Barreto) escrevera os originais com seu pré- prio nome, tendo o cuidado de corté-lo na revisio, substituindo-o pelo do personagem. Nesse sentido, ¢ fundamental citar igualmente O cemitério dos vivos,* romance-desdobramento das anotagées de Lima Barreto (rcunidas editorialmente como Diario do hospicio) realizadas durante a segunda temporada do autor no Hospital Nacional dos Aliena- dos, no Rio de Janeiro, em 1919/20. Tragado pela situacao-limite, pela internagao no manicémio ocorrida & sua revelia, Lima Barreto recorte & escrita, No entanto, & saida do hospicio, essa literatura da urgéncia, essa narrativa-limite — composta por notas sobre 0 coti- diano de paciente psiquidtrico etc. — ndo parece mais suficiente, 0 que o leva a escrever um romance a partir de sua experiéncia. E 0 que passa a interessar é exatamente esse processo que leva o autor a converter a natrativa-limite em romance-limite. Toda essa ideia de literatura da urgéncia e narrativa-limite (af inclufda uma extensa andlise dos romances autobiograficos do autor) é desenvolvida no livro de minha autoria, intivulado Litera- tura da urgéncia— Lima Barreto no dominio da loucura,” e nao sera aqui repetidamente desenvolvida. O que importa destacar nessa reflexio € 0 carter hibrido da autoficcio avant-la-lettre empreen- dida pelo escritor: ao partir do eu, de suas questdes mais intimas, Lima Barreto denunciou quest6es sociais, raciais e politicas cole- tivas. Ao unit vida e obra, 0 autor quebrou os rigidos cédigos fic- cionais da literatura de sua época, sendo recusado pela critica, que no perdoou a viruléncia verbal com a qual ele expunha traumas e praticas histdricas nacionais — no seu caso, eram coincidentes. 0 eu na literatura Lima inaugurou uma via exclusiva de diz brasileira, indo além do egocentrismo e sugerindo uma possibili- dade mais ampl visivel em O que é isso, companheiro? (Sao Paul uma espécie de narcisismo util, que ¢ igualmente Companhia das ‘08 [Rio de ani [v0.15 p. 208231 |janjun 2013 LWCANA HIDALCD | Autoigobaea *BARRFTO, lima, Ui fon go sono de futuro, Rio de Janeiro: Graphia Editorial 1998: 235) *BARRETO, Lima, Diério do hospicio © O cemitério. dos vivo, Sia Paul: Cosae Naty, 2010, (HIDALGO, Luciana. te teratura da ergata Lima Barret no dominio da fous cura, Sio Paulo: Annablu 229 Letras, 1996), de Fernando Gabeira, langado em 1979. Ao contra- rio da tendéncia narcisista da autoficeo francesa, uma pecha que levou o esctitor Philippe Vilain a escrever 0 ensaio Défense de Nar- cisse (Defesa de Narciso), 0 ew de Gabeira manifesta-se menos nar- cisista, uma vez que engajado numa causa coletiva: a luta armada contra o regime militar instaurado no Brasil nos anos 1960-70. Apresentado pela (atual) editora como romance-depoimento (termo extraido do press-release que consta do site da Companhia das Letras), O que é isso, companheiro? se inicia com uma epigrafe assinada justamente por um dos maiores romancistas do Bra- sil, Guimaraes Rosa: “[ sistente, insinua a tendéncia autoficcional do relato de Fernando Gabeira, muito além de um simples testemunho jornalistico, obje- tivo, puramente informativo, Pelo contratio, a narrativa é vazada pela subjetividade do autor ¢ por alguns trechos mais literarios. Percebe-se como o ew fica cada vez mais presente ao longo da nar- rativa, especialmente apés a experiéncia da tortura do autor-nar- rador-protagonista. Diante da leitura de O cemitério dos vivos, de Lima Barreto, ¢ de O que ¢ isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, uma questio espreita: por que o autor que escreve a partir de uma situagao-li- mite — geralmente marcada pela violéncia, pelo esgarsamento da dialética vida-morte — recorre & ficgio ao voltar a vida “normal”? Por que, num dado momento, o puro depoimento nio basta? Tal- ver porque o carater extraordinario de uma experiencia radical apa- gue as fronteiras socialmente estabelecidas entre a ideia de verdade de ficgio, entre o ex racional e seu corpo aprisionado ou torturado. J narrar resistit”. A frase, curta © con- Resta ao ew sobrevivente o exercicio de narrar (resistir?) como seu corpo administra a situacéo-limite — uma vivencia que por veres adquire tragos quase ficcionais, dado o seu absurdo. Nesse contexto, torna-se importante citar Cidade de Deus (Sio Paulo: Companhia das Letras, 1997) e a fragmentagio do ex do autor, Paulo Lins, em intimeros personagens. Em entrevista a0 escritor Ferrez, no programa “Manos e minas”, exibido na TV Cul- tura em 1/08/2009, Paulo Lins diz o seguinte a respeito de Cidade de Deus. “E um dos primeiros livros a falar desse tema [a favela, a violéncia] com um olhar interno. Apesar disso, nao tem mérito nenhum para a arte. Mas, enquanto questio politica, é muito impor- tante.” Em outro momento, ele afirma: “E tudo ficgao.” 230 LucaNA oat | Auto basa ‘Lt [Rie fei [vo 15 p.218231 jnjun 208 O paradoxo esté no centro das duas respostas ¢ da obra em si. Por que recorter 3 ficséo, afirmé-la, valorizé-la, e a0 mesmo tempo reduzir 0 valor artistico do romance? Paulo Lins sempre teve 0 cui- dado de se desprender, ele, autor, morador da Cidade de Deus desde ainfancia, dos meninos personagens que compéem o romance. Para o autor, a Cidade de Deus é a protagonista. Tal ambiguidade valo- riza a ficgio e quebra a tendéncia narcisica. Por outro lado, dada a histéria pessoal do autor, que consta do seu perfil e jd foi bastante divulgada pela midia, a leitura do livro como autoficsao é para alguns leitores, inevitavel. Rezaa prudéncia que se avance lentamente na andlise da auto- ficséo brasileira a luz da pratica ¢ da teoria francesa, esse terreno movedico pontuado por contradigées, mas também por coincidén- cias, isto 6, tragos comuns entre autoficgdes produzidas na Franca © no Brasil. Se néo ha conclusées definitivas, 20 menos algumas questées podem iluminar novos caminhos de reflexio: talvez, para alguns autores, 0 termo “autoficsao”, por si sé, ajude a amalgamar ‘os mais diversos paradoxos contidos em narrativas que retinem fatos reais ¢ ficticios, desde que a literatura ¢ literatura; talvez seja pos- sivel pensar ainda numa espécie de autoficedo-limite como recurso extraordindrio do en submetido a condigées em que o humano esté em risco. Este ew, geralmente ameasado pelo social, pelo cole- tivo, ao purgar no centro de uma situacdo-limite, passa a ignorar cédigos da boa moral e do bom costume, colocando & prova a sua propria humanidade. Este ex, mais do que partido, fragmenta-se. Passa a se apresentar no plural: eus-ficpdes, aparentemente em busca da raiz ontolégica desse somatério ~e, no cerne dessa busca, dese excesso de si mesmo, em alguns casos, a autoficcéo de neologismo torna-se antidoto. Luciana Hidalgo ¢ doutora em literatura comparada (UERJ), com um pés-doutorado na Université Paris III - Sorbonne Nouvelle (Bolsista da CAPES - Proc. ntimero BEX 4083/10-5), ¢ autora do romance O passeador (Rocco, 2011), da biografia Arthur Bispo do Rosario O senhor do labirinto (Rocco, 1996, 2011) edo ensaio Literatura da urgéncia—Lima Barreto no dominio da loucura (Annablume, 2008) ~ por esses dois tiltimos livros, ganhou dois prémios Jabuti, nas categorias “Reportagem’ e “Teoria/Cri- tica literéria’, E-mail: Recebido em Aprovado em ania012 ‘At [Rio de nero [vo 15 p.218231 [janun 2013 LWCANA HIDALCD [Aug baea 231

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