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ee _MaFrxISN\0 _ ernest mandel QUARTA EDICAO INTRODUGAO AO MARXISMO. Ernest Mandel 6 conhecido, hoje, como um dos historiadores europeus mais intes @ com o instrumental adequado para uma andlise das estruturas sociais que definem o quadro social, politico, cultural e econdmico da atualidade. Este iiltimo trabalho, ora langado entre nés, visa mostrar os condicionamentos da infra e ‘superestrutura a que o homem esteve Sujeito, as lentas transformagées ocorridas na sua trajetoria historica, sem jamais, no entanto, fazer abstracdes das condigdes sociais do trabalho. tipo de abordagem que Ernest Mandel faz da desigualdade social e da luta de classes no decorrer da historia 6 limpida, transparente, sem complicagées ou teorizagdes desnecessérias. Fruto de uma longa experiéncia magisterial, a leitura do livro encanta porque tudo é dito com bom humor, iluminando e Interpretando os complexos caminhos da emancipagio humana, quando ‘mostra, entre outras coisas, o Estado Gomo instrumento da dominacao de lasses ou, ainda, quando analisa os ‘modos de produc em suas varias € diferentes etapas através dos tempos. fm sua andlise da economia capitalista, indando sobretudo a problemética Monopdlios e oligopolios atuais, e fh abordagem das perspectivas que se 0M) NO processo historic, Ernest 5 | protende tornar inteligivel #quilo que na aparéncia 6 to complexo # oadtion, O pote ‘consegue uma intoraglio da historia e da economia, ‘larificando, deste modo, uma série de ‘problemas tidos como naturais, eternos # Imutivels, aparentemente fora do wie do home, o verdadeiro i? Joante da historia, ‘8 de /ntrodugio a0 Marxismo int © loitor mais consciente e com ‘HOVAE Perspectivas sobre os problemas “4 O wtingem diarlamente. Mais que iilala de andlise marxista, este é i ue disoute, analisa e ilumina fundamentals da nossa OWA MOVIMENTO Fag WP. Agteiemcias souiais ¢ ue Me classes Pag 98 sushi fj cert porn ae Pevel4as pyres ™ Peg ®- A netessidnde dy unidade de todas as wrrentes opercrias Frincipio da nae exclcas. Pag WV- Deme crac, Operaria » gare tia do Estado operario demo eratico Pog 4h. Comlmy di age copikalista: iten b. INTRODUGAO AO MARXISMO . fag DF Exemplos Je movimentos yolitices reivinds enterios. Pag @2~ A Comuna de Paris. Page _ - ang o/s Kevelv cats Trglega, 1644 , conten iv poco sees Foo. 65 - Pregrama, tags Tretskista, da Opes gap de eequerde Coleco Dialética volume. 7 ERNEST MANDEL INTRODUGAO AO MARXISMO. Tradugdo de Mariano Soares QUARTA EDICAO dD EDITORA MOVIMENTO Capa Peter Pellens Revisio © Klimesch 1982 Direitos desta tradugao reservados Editora Movimento Repiblica, 130 — Fone 24 5178 Porto Alegre — RS — Brasil SUMARIO I — A DESIGUALDADE SOCIAL E AS LUTAS SOCIAIS ATRAVES DA HISTORIA 1. A desigualdade social na sociedade capitalista conteporanea 2. A desigualdade social nas sociedades anteriores 3. Desigualdade social e desigualdade de classe 4. A igualdade social na pré-histéria humana 5. A revolta contra a desigualdade social através da historia 6. As lutas de classe através da historia Il — AS ORIGENS ECONOMICAS DA DESIGUALDADE SOCIAL 1. As comunidades primitivas baseadas na pobreza 2. A revolugio neolitica 3, Produto necessario e sobre-produto social 4, Produgo e acumulagio 5. A causa do fracasso de todas as revolugbes igualitarias do passado III — O ESTADO, INSTRUMENTO DE DOMINAGAO DE CLASSE 1. A divisao social do trabalho e nascimento do Estado 2. O Estado a servico das classes dominantes 3. Coagio violenta e integragio ideolégica 4, Ideologia dominante e ideologias revolucionérias 5. Revolugées sociais, revolugdes politicas IV — DA PEQUENA PRODUGAO MERCANTIL AO MODO DE PRODUGAO CAPITALISTA 1. Produgdo para satisfacdo das necessidades e produgio para troca 2. A pequena produgao mercantil 3. A lei do valor 4. O aparecimento do capital 5. Do capital ao capitalismo 10 11 12 13 14 16 16 17 18 19 21 23 25 25 27 28 28 29 6. O que é a mais-valia? es de aparecimento do capitalismo moderno V — AECONOMIA CAPITALISTA 1. As particularidades da economia capitalista 2. O funcionamento da economia capitalista 3. A evolugao dos salérios 4. As leis de evolugao do capitalismo ~> 5. As contradigdes inerentes ao modo de produgao capitalista 6. As crises periédicas de sobre-producao VI — O CAPITALISMO DOS MONOPOLIOS 1. Da livre concorréncia aos acordos capitalistas 2. As concentragdes bancérias e o capital financeiro 3. Capitalismo dos monopélios e capitalismo de livre-concor- réncia 4, A exportacao de capitais 5, Paises imperialistas e paises dependentes 6. A era do capitalismo tardio VII — O SISTEMA IMPERIALISTA MUNDIAL ~ 1A industrializacao capitalista e a lei do desenvolvimento de- 0 JU sigual e combinado , 2. A exploracao dos paises coloniais e semicoloniais pelo capital imperialista 3. 0 “*bloco de classes” no poder nos pafses semicoloniais 4.0 movimento de libertagao nacional 5. O neocolonialismo VIII — AS ORIGENS DO MOVIMENTO OPERARIO MODERNO ~ LA luta de classe elementar do proletariado [U. % Acconscincia de clase elementar do proletariado y 3. O socialismo utdpico 4.0 nascimento da teoria marxista 5. A Primeira Internacional 6. As diferentes formas de organizagio do movimento operirio 7. A Comuna de Paris 1X — REFORMAS E REVOLUGAO L Evolugao e revolugdes da historia 2, Evolugao e revolugdes no capitalismo contemporaneo ¢ 3. A evolugao do movimento operdrio moderno 4.0 oportunismo reformista 5. A necessidade de um partido de vanguarda 6. Os revolucionérios e a luta pelas reformas X — DEMOCRACIA BURGUESA E DEMOCRACIA PROLETARIA 1, Liberdade econémica e liberdade politica 70 2.0 Estado burgués a servigo dos interesses de classe do ca- pital m1 3. Os limites das liberdades democraticas burguesas 72 4, Repressao e ditaduras burguesas 73 5, A democracia proletaria 5 XI — A PRIMEIRA GUERRA IMPERIALISTA E A REVOLUCAO RUSSA 1. O movimento operdrio internacional e a guerra imperialista 77 Jy 2 A guerra imperialista desemboca na crise revolucionéria 78 3. A revolugao de fevereiro de 1917 na Russia 79 4. A teoria da revolugdo permanente 80 5. A revolugio de Outubro de 1917 81 6. A destruicdo do capitalismo na Réssia 81 XII — O ESTALINISMO 1. O fracasso do ascenso revolucionario de 1918-23 na Europa h 2. O ascenso da burocracia soviética XY 3. Natureza da burocracia, natureza social da URSS. 4.O que € 0 estalinismo? 5. A crise do estalinismo 6. As reformas econdmicas 7.0 maoismo ‘XII — DAS LUTAS CORRENTES DE MASSAS A REVOLUCAO. SOCIALISTA MUNDIAL 1. As condigées de vitdria da revolugio socialista 2. A construgdo da IV Internacional 94 3. Reivindicagdes imediatas e reivindicagdes transitérias 96 4. Os trés setores da revolugio mundial de hoje 96 — 5. Democracia operdria, auto-organizagao das massas e revolu- 0 socialista 97 XIV — A CONQUISTA DAS MASSAS PELOS REVOLUCIONARIOS 1. A diferenciagao politica no seio do proletariado 100 (A frente nica operiria contra o inimigo de classe 102 7 3. Adinamica ofensiva da frente “classe contra classe” 104 4, Frente tinica operdria e frente popular 105 5. Independéncia politica de classe e organizacao unitiria de classe 106 6. Independéncia de classe e aliangas entre as classes 107 XV — O ADVENTO DA SOCIEDADE SEM CLASSES 1. O fim socialista a atingir 109 2. As condigdes econdmicas e sociais para atingir esse fim 110 3. As condigdes politicas, ideoldgicas e culturais para atingir esse fim 112 4. As etapas da sociedade sem classes XVI — O MATERIALISMO DIALETICO —~ 1. O movimento universal 115 2. A dialética, logica do movimento 116 3. Dialética e logica formal 117 4. O movimento, fungao da contradigao 118 5. Alguns problemas suplementares da dialética do conheci- mento 120 6. O movimento, fungao da totalidade - 0 abstratoe concreto. 122 7. Teoria e pratica I~ A DESIGUALDADE SOCIAL E AS LUTAS SOCIAIS ATRAVES DA HISTORIA 1. A desigualdade social na sociedade capitalista contempordnea Existe na Bélgica uma piramide da fortuna e do poder social. Na base desta piramide encontra-se um tergo dos nossos compatriotas, que nao pos- suem nada além daquilo que ganham e dispendem, ano apés ano; ndo tém possibilidade de fazer economias nem de adquirir bens. No vértice desta pira- mide encontram-se quatro por cento dos concidadaos que possuem metade da fortuna privada da nagio. Menos de um por cento dos belgas possuem mais de metade da fortuna mobilidria do pais. Dentre eles, duzentas familias controlam as grandes sociedades holdings* que dominam o conjunto da vida econdmica nacional. Nos Estados Unidos, um inquérito realizado em 1952 pelo Brookings Institute deu os seguintes resultados: 130 000 pessoas, ou seja, 0,1 % da po- pulagio americana, possui 56 % do valor da Bolsa de todas as agdes ¢ obriga- Bes emitidas por sociedades andnimas americanas. Dado que (8 parte algu- mas excecdes) toda a inddstria e finanga americanas se encontram organizadas na base de “sociedades anénimas”, podemos dizer que 99 % dos cidadaos a- mericanos tém um poder econémico inferior ao de 0,1 % da populagio. A desigualdade dos rendimentos e das fortunas nao é um fato unica- mente econdmico. Implica uma desigualdade ante as possibilidades de sobre- vivéncia, uma desigualdade ante a morte. Assim, na Gra-Bretanha, antes da guerra, a mortalidade infantil entre as familias de operdrios no qualificados foi de mais do dobro do que entre as familias burguesas. Uma estatistica ofi- cial indica que na Franga, no ano de 1951, a mortalidade infantil elevou-se de 19,1 dbitos por cada 1000 nascimentos entre as profissées liberais, a 23,9 d- bitos entre a burguesia patronal, 28,2 dbitos entre os empregados de comér- cio, 34,5 dbitos entre os comerciantes, 36,4 dbitos entre os artesos, 42,5 6- bitos entre os operdrios qualificados, 44,9 dbitos entre os camponeses e ope- ririos agricolas, 51,9 dbitos entre os operdrios semiqualificados e 61,7 dbitos entre os serventes! (*) holdings = sociedades andnimas cujo patriménio é constitu{do essencialmente por ages de virias empresas e cujo fim & a administragio dos tftulos em carteira, assegurando assim o controle efetivo das empresas em cujo capital o holding participa. (N. T.)- Na nossa época, nao basta apenas ter em conta as desigualdades sociais que existem no interior de cada pais. E importante considerar também a desi- gualdade entre um pequeno punhado de paises avangados do ponto de vista industrial e a maior parte da humanidade que vive nos paises ditos subdesen- volvidos (paises coloniais e semicoloniais). Assim, no mundo capitalista, os Estados Unidos realizam mais da meta- de da producio industrial e consomem mais da metade de um grande niimero de matérias-primas industriais. 550 milhdes de indianos dispoem de menos a- go € menos energia elétrica do que 9 milhées de belgas. O rendimento real, por habitante, nos paises mais pobres do mundo, é apenas de 8 % do rendi- mento por habitante dos paises mais ricos. A 67 % dos habitantes do globo nao cabe mais do que 15 % do rendimento mundial. Resultados: Um habitante da India ingere por dia apenas a metade das calorias que nés ingerimos nos paises avangados. A idade média, que ultrapas- sa no Ocidente os 65 anos, e chega aos 70 anos em certos paises, a custo atin- ge 30 anos na India. 2. A desigualdade social nas sociedades anteriores Encontramos uma desigualdade social comparavel 4 que existe no mun- do capitalista em todas as sociedades anteriores que se sucederam ao longo da histéria (ou seja, ao longo do periodo de existéncia da humanidade sobre a terra, do qual possuimos testemunhos escritos). Eis uma descrigao da miséria dos camponeses franceses cerca do fim do século XVII, descrigao tirada dos Caractéres de La Bruyére: “Espalhados pelos campos véem-se certos animais bravios, machos e fé- meas, negros, lividos e requeimados pelo sol, agarrados & terra que escavam e revolvem com uma obstinagio invencfvel; tém como que uma voz articulada, € quando se erguem sobre os pés, mostram uma face humana; e, com efeito, sio homens. Retiram-se 4 noite para as tocas, onde vivem de pio negro, de Agua e raizes...” Comparar este retrato dos camponeses da época com o das brilhantes festas dadas por Luis XIV na Corte de Versailles, com o luxo da nobreza e 0 esbanjamento do Rei, é tragar uma imagem flagrante da desigualdade social. Na sociedade da alta idade média, em que predominava a servidio, o nobre senhor dispunha com muita freqiiéncia de metade do trabalho ou de metade da colheita dos camponeses-servos. Eram numerosos os senhores que tinham nas suas terras centenas ou milhares de servos e cada um deles recebia portanto, em cada ano, tanto como centenas ou milhares de camponeses. O mesmo se passava nas diferentes sociedades do Oriente classico (Egi- to, Suméria, Babilénia, Pérsia, India, China, etc.), sociedades baseadas na a- gricultura, mas nas quais os propietdrios fundidrios eram os senhores, os tem- plos, ou os reis (representados por agentes do fisco real). ‘ 10 A “Satira das profisses", redigida no Egito dos Faraés, hd 3500 anos, deixou-nos uma imagem dos camponeses explorados por esses escribas re comparados a animais nocivos e a parasitas, pelos cultivadores atormentados. Quanto 2 antiguidade greco-romana, a sua organizagao social baseava-se na escravidao. Se a cultura pode atingir um nivel elevado, isso deveu-se em parte ao fato de os cidadios das cidades antigas terem podido consagrar uma larga parte do seu tempo a atividades politicas, culturais, artisticas e desporti- vas, sendo o trabalho manual abandonado exclusivamente aos escravos. 3. Desigualdade social e desigualdade de classe Nem todas as desigualdades sociais sio desigualdades de classe. A dife- renga de remuneragao entre um servente e um operario altamente qualificado nao transforma estes dois homens em membros de classes sociais diferentes. A desigualdade de classes é uma desigualdade que tem as suas raizes na estrutura e no desenvolvimento normal da vida econdmica, e que é manti- dae acentuada pelas primeiras instituigdes sociais e juridicas da época. Concretizemos esta definigdo com alguns exemplos: Na Bélgica, para se chegar a grande industrial, é necessirio reunir capi- tais avaliados em meio milhao por cada operdrio contratado. Uma pequena fibrica empregando 100 operérios exige, portanto, uma concentragao minima de capital de 50 milhdes. Ora, 0 salério liquido dum operario quase nunca ul trapassa 100 000 fr. por ano. Mesmo que durante 50 anos de trabalho nada dispenda para comer e viver, nao poderd reunir dinheiro bastante para se tor- nar capitalista. O salariato, que é uma das caracterfsticas da estrutura da eco- nomia capitalista, representa assim uma das raizes da divisio da sociedade ca- pitalista em duas classes fundamentalmente diferentes: a classe operéria, que através dos seus rendimentos nao pode nunca tornar-se proprietéria dos meios de produgio,e a classe dos proprietarios dos meios de produgao,os capitalistas E certo que ao lado dos capitalistas propriamente ditos alguns técnicos altamente dotados podem aceder aos postos de chefia das empresas. Mas a formagao técnica requerida é uma formagao universitaria. Ora, durante as al- mas décadas, unicamente 5 a 7 % dos estudantes na Bélgica so filhos de ope- rarios... As instituigdes sociais impedem pois aos operarios o acesso 4 proprieda- de capitalista, quer pelos rendimentos quer pelo modo de ensino superior. As sim mantém, conservam e perpetuam a divisio da sociedade em classes tal co- mo existe hoje. Até nos Estados Unidos, onde se comprazem em citar exemplos de “fi- Ihos de operdrios-merecedores, que se tornam miliondrios 4 custa do seu tra- balho”, um inquérito demonstrou que 90 % dos chefes de empresas impor- tantes safram da grande e média burguesia. Assim, ao longo da historia, deparamos sempre com uma desigualdade 11 social cristalizada em desigualdade de classe. Em cada uma destas sociedades podemos reencontrar uma classe de produtores que sustenta com o seu traba- Tho 0 conjunto da sociedade, e uma classe dominante que vive A custa do tra- balho alheio: camponeses ¢ sacerdotes, senhores ou funcionérios, nos impérios do O- riente; escravos e senhores de escravos, na Antiguidade greco-romana; servos e senhhores feudais, na alta idade média; operarios e capitalistas, na época burguesa. 4. A igualdade social na pré-historia humana Mas a histéria representa apenas um ramo menor da vida humana sobre © nosso planeta. Foi precedida pela pré-histéria, a época da existéncia da hu- manidade em que a escrita e a civilizagao eram ainda desconhecidas. Alguns povos primitivos permaneceram nas condigdes pré-histéricas até data recente ou mesmo até aos nossos dias. Ora, ao longo da maior parte da sua existéncia pré-histérica, a humanidade desconheceu a desigualdade de classe. Compreenderemos a diferenca fundamental entre uma tal comunidade primitiva e uma sociedade de classe, examinando algumas das instituigdes des- sas comunidades. Assim, varios antropélogos falam-nos dum habito que se encontra entre numerosos povos primitivos, habito que consiste em organizar festas da a- bundancia, apés as colheitas. A antropéloga Margaret Mead descreveu-nos es- tas festas entre o povo papua dos Arapech (Nova-Guiné). Todos os que te- nham feito uma colheita acima da média, convidam toda a sua familia e todos 0 seus vizinhos, e as festividades prosseguem até que a maior parte dese ex- cedente tenha desaparecido. Margaret Mead acrescenta: “Estas festas representam uma medida adequada para impedir que um individuo acumule riquezas...” O antropélogo Asch estudou os costumes e o sistema duma tribo exis- tente no sul dos Estados Unidos, a tribo dos Hospi, Nesta tribo,contrariamen- te 4 nossa sociedade, o principio da competigao individual é considerado co- mo condenivel do ponto de vista moral. Quando as criangas Hopi jogam ou praticam desportos, nao contam nunca os pontos e ignoram o “vencedor”, Quando as comunidades primitivas, que no se encontram ainda dividi das em classes, praticam a agricultura como atividade econémica principal ¢ ocupam um determinado terreno, ndo organizam a exploragao coletiva do so- lo. Cada familia recebe uma area em usufruto por um certo periodo. Mas es- tes campos sio redistribuidos freqiientemente, para evitar favorecer este ou a- quele membro da comunidade em detrimento dos outros. Os prados e os bos- ques sio explorados em comum. Este sistema de comunidade rural, baseado na auséncia de propriedade privada do solo, foi encontrado na origem da agri- 12 cultura entre quase todos os povos do mundo, e demonstra que, nessa poca, a sociedade nao estava ainda dividida em classes ao nivel da aldeia. Os lugares-comuns com que nos enchem os ouvidos, segundo os quais a desigualdade social teria as suas raizes na desigualdade de aptidao ou de capa- cidade dos individuos, que a divisio da sociedade em classes seria o produto do “egoismo inato dos homens” e, portanto, da “‘natureza humana”, nio pos- suem qualquer base cientifica. A opressio de uma classe social por outra nao € 0 produto da “natureza humana” mas sim o de determinada evolugao hist6- rica da sociedade. Essa divisio no existiu sempre, nem existiré sempre. Nao existiram sempre ricos e pobres, nem existirdo para sempre. 5. A revolta contra a desigualdade social através da historia A divisio da sociedade em classes, a propriedade privada do solo e dos meios de produgao, nao so pois de modo nenhum um produto da “natureza humana”. Sdo 0 produto duma evolugio da sociedade e das instituigdes eco- nOmicas e sociais. Veremos como nasceram e como virdo a desaparecer. De fato, desde que aparece a divisdo da sociedade em classes, o homem. manifesta a sua nostalgia da antiga vida comunitéria. Encontramos a expres- siio desta nostalgia no sonho da “idade de ouro” que teria existido nos pri- mordios da existéncia humana sobre a terra, sonho descrito quer pelos autores classicos chineses, quer pelos autores gregos e latinos. Virgilio diz alids clara- mente que na época dessa idade de ouro as colheitas eram partilhadas em co- mum, o que significa que nao existia entao a propriedade privada. Numerosos filésofos ¢ sébios célebres consideraram que a divisio da so- ciedade em classes constitui a fonte dos males sociais, e elaboraram projetos para a suprimir. Eis como o filésofo grego Plato caracteriza a origem das desgragas que se abatem sobre a sociedade: “Mesmo a mais pequena cidade se encontra divi dida em duas partes, uma cidade dos pobres e uma cidade dos ricos, que se opdem (como) em estado de guerra”. Para suprimir esta divisio, preconiza u- ma espécie de socialismo aristocratico, baseado na comunidade dos bens. As seitas judaicas que polulam no inicio da nossa era, e os primeiros pa- dres da Igreja crista que prosseguem essa tradi¢do, sio igualmente ferozes par- tiddrios dum retorno 4 comunidade dos bens. Sao Barnabé escreve: “Nao fala- rés nunca da tua propriedade, pois se desfrutas em comum dos bens espiri- tuais, mais necessario é desfrutar em comum dos bens materiais”. So Cipria- ho pregou numerosas vezes a favor da partilha igualitdria dos bens entre todos os homens. Sao Jodo Criséstomo foi o primeiro a exclamar: “A propriedade é © roubo”. Mesmo Santo Agostinho comegou por- denunciar na propriedade privada a origem de todas as lutas e de todas as violéncias sociais, para modif- car mais tarde o seu ponto de vista. Esta tradigéo continuou durante toda a Idade Média, nomeadamente 13 com Sao Francisco de Assis e com os precursores da Reforma: os Albigenses os Citaros, Wycliff, etc. Bis as palavras do pregador inglés John Ball, discipu- lo de Wyeliff, no século XIV: “E preciso abolir a servidio e tornar todos os homens iguais. Os que se intitulam nossos senhores consomem o que produzi- mos... Devem o seu luxo ao nosso trabalho”. Finalmente, na época moderna, vemos estes projetos de sociedade igua- litéria tornarem-se cada vez mais claros, nomeadamente na Utopia de Thomas More (inglés), em A Cidade do Sol de Campanella (italiano), no Testamento de Jean Meslier e no Codigo da Natureza de Morelly (francés). A par desta revolta do espirito contra a desigualdade social, houve iné- meras revoltas por atos, quer dizer, por insurreigdes das classes oprimidas contra os seus opressores. A histéria de todas as sociedades de classe é a histé ria das lutas de classe que as dilaceram. 6. As lutas de classe através da historia Estas lutas entre a classe exploradora e a classe explorada, ou entre di- versas classes exploradoras, tomam as formas mais variadas segundo a socieda- de que se considera eo preciso estado da sua evolucio. Assim, nas sociedades ditas “de modo de produgio asidtico” (Impérios do Oriente clissico), deram-se numerosas revoltas de camponeses contra a ex- ploracdo de que cram objeto. Estas revoltas de camponeses combinavam-se a- mide com movimentos de outras classes sociais (incluindo greves de artesios de companheiros de artesdos). Possuimos, aliés, um papiro que descreve a primeira revolugao sotial deliberadamente desencadeada na histéria, que se produziu ha 4000 anos, sob a 18a. dinastia dos faraés, no Egito. Na China, indmeros levantamentos de camponeses batizam a historia das sucessivas dinastias que reinaram no Império. O Japao conheceu igual- mente um grande niimero de insurreigdes camponesas, sobretudo no século XVIIL Na antiguidade grega e romana houve uma série ininterrupta de revoltas de escravos — das quais a mais conhecida foi a dirigida por Spartacus — que contribuiram largamente para a queda do Império romano. Entre os “cida - daos” livres propriamente ditos, houve uma luta virulenta entre uma classe de camponeses endividados e os mercadores-usuratios, entre ndo possuidores possuidores. Na Idade Média, sob o regime feudal, lutas de classes opuseram senho- res feudais e comunas livres fundadas sobre a pequena produgio mercantil, ar- tesios e mercadores no seio destas comunas, alguns artesios urbanos e campo- neses dos arredores das cidades. Houve sobretudo ferozes lutas de classe en- tre a nobreza feudal e o campesinato que procurou sacudir 0 jugo feudal, lu- tas que tomaram formas francamente revolucionérias, como as Jacqueries em Franga, a guerra de Wat Tyler na Inglaterra, a guerra dos Hussitas na Boémia, 14 ¢ a guerra dos camponeses na Alemanha, no século XVI. Os tempos modernos sao assinalados por lutas de classe entre a nobreza © a burguesia, entre mestres artesios e companheiros, entre ricos banqueiros € comerciantes por um lado, e os “‘mios vazias” das cidades por outro. Estas lu- tas anunciam as revolugdes burguesas, 0 capitalismo moderno, e a luta de classes do proletariado contra a burguesia. i- AS ORIGENS ECONOMICAS DA DESIGUALDADE SOCIAL 1. As comunidades primitivas baseadas na pobreza Durante a maior parte da sua existéncia pré-histérica, 0 homem viveu em condigSes de extcema pobreza. __ Os homens s6 podiam encontrar a alimentagdo necessivia & sua subsis: téncia pela caga, a pesca e a colheita de frutos, A humanidade viveu como parasita da natureza, visto que nfo aumenta- Va 0s recursos naturais que se encontravam na base da sua subsisténcia. Nao tinha qualquer controle sobre estes recursos. ; _As comunidades primitivas esto organizadas de forma a garantir a so- brevivéncia coletiva nestas condigdes de existéncia extremamente diffceis. Cada um participa obrigatoriamente no trabalho; o seu trabalho é necessirio para manter viva a comunidade. A producdo de viveres mal chega para ali mentar a coletividade. A existéncia de privilégios materiais condenaria 4 fome tama parte da tribo, privi-la-ia da possibilidade de trabalhar racionalmente ¢ saparia assim as condigdes de sobrevivéncia coletiva, Eis porque a organizacao social, nesta época do desenvolvimento das sociedades humanas, tende aman. ter um maximo de igualdade no interior das suas comunidades. ‘ Tendo examinado as instituigdes sociais de 425 tribos primitivas, os an- tropélogos ingleses Hobhouse, Wheeler e Ginsberg encontraram uma ausénci total de classes sociais entre todas as tribos que ignoram a agricultura. 2. A revolugao neolitica Esta situagio de pobreza fundamental s6 foi modificada de forma duré- vel pela formagio de técnicas de cultura do solo e de criagio de animais. A técnica da cultura do solo, a maior revolugio econdmica da existéncia huma- na, & devida as mulheres, tal como uma série de outras descobertas importan. tes da préchistoria (nomeadamente a técnica da olaria e da tecelagem), Fir mou-se a partir de, aproximadamente, 15 000 anos antes de Cristo, em varias partes do mundo, muito provavelmente com inicio na Asia Menor, na Meso- potimia, no Irio e no Turquestdo, estendendo-se progressivamente ao Egito, dia, & China, & Africa do Notte e & Europa mediterranica. E chamada a re. volugio neolitica, por se ter produzido numa época da idade da pedra, em que os principais instrumentos de trabalho do homem eram fabricados em pe- dra polida (a época mais recente da idade da pedra), i 16 A revolugao neolitica permitiu a0 proprio homem produzir os seus vt veres e portanto controlar — mais ou menos — a sua propria subsisténcia. Veio atenuar a dependéncia em relagdo as forgas da natureza em que se en- contrava © homem primitivo. Permitiu a constituigio de reservas de viveres, 0 que por seu turno tornou possivel que certos elementos da comunidade se li hertassem da necessidade de produzir a sua alimentagao. Assim se pode de- senvolver uma certa divisio econémica do trabalho, uma especializago dos oficios, que aumentou a produtividade do trabalho humano. Na sociedade primitiva, uma tal especializagio apenas pode esbogar-se, como disse um dos primeiros exploradores espanhdis a respeito dos indios no séc. XVI: “Eles (os primitivos) querem utilizar todo 0 seu tempo para reunir viveres, porque, de outro modo, seriam fustigados pela fome”. 3. Produto necessario e sobre-produto social © aparecimento de um largo excedente permanente de viveres trans- formou as condigdes da organizagio social. Enquanto este excedente foi re- lativamente pequeno ¢ disseminado pelas aldeias, nio modificou a estrutura igualitaria da comunidade aldea. Permite-Ihe apenas alimentar alguns artesios ¢ funcionarios, como os que se mantiveram durante milénios nas aldeias hin- dus. Mas quando estes excedentes sao concentrados em grandes espacos pe- los chefes militares ou religiosos, ou quando se tornam mais abundantes na aldeia gracas 4 melhoria dos métodos de cultura, podem entio criar as condi- ges para o aparecimento de uma desigualdade social. Podem ser utilizados para alimentar prisioneiros de guerra ou de expedigdes de pirataria (que ante- tiormente teriam sido mortos por falta de subsisténcia). Estes sio obrigados a trabalhar para os vencedores, em troca de alimento; assim aparece e escrava- tura no mundo grego. O mesmo excedente pode ser utilizado para alimentar toda uma popu- lago de sacerdotes, soldados, funciondrios, senhores ¢ reis: 6 0 aparecimento das classes dominantes nos Impérios do Oriente antigo (Egito, Babilénia, Ira India, China). Uma divisio social do trabalho completa a partir de entio a divisio e- condmica do trabalho. A produgio social deixa de servir, no seu conjunto, para ocorrer 3s necessidades dos produtores. Divide-se daf em diante em duas partes: — 0 produto necessitio, ou seja, a subsisténcia dos produtores sem cujo trabalho toda a sociedade se afundaria; — o sobre-produto social, ou seja, o excedente produzido pelos produ- tores e acambarcado pelas classes opressoras. Bis como o historiador Heichelheim descreve 0 aparecimento das pri- meiras cidades do mundo antigo: “A populagdo dos novos centros urbanos é composta... na sua maior parte duma camada superior vivendo das rendas (quer dizer, apropiando-se do sobre-produto do trabalho agricola — E.M.) composta por senhores, por nobres e por sacerdotes. Juntam-se-lhes os funcionarios, empregados,e servi- dores, indiretamente alimentados poe essa camada superior.” (© aparecimento das classes sociais — classes produtoras e classes domi- nantes — d4 assim origem ao Estado, que é a principal instituigdo destinada a manter as condigdes sociais dadas, ou seja, a desigualdade social. A divisio da sociedade em classes consolida-se pela apropriagao dos meios de produgio pe- las classes possessoras. 4, Produgao e acumulagiio A formagio das classes sociais, a apropiagao do sobre-produto social por uma parte da sociedade, é 0 resultado de uma luta social ¢ s6 pode man- ter-se gragas a uma luta social constante. Mas, ao mesmo tempo, representa uma etapa — inevitavel — do progres- so econdmico, pelo fato de permitir a separagdo das duas fungdes econdmi- cas fundamentais: a fungio de produgdo e a fungio de acumulacio. Na sociedade primitiva, o conjunto dos homens e das mulheres validos ocupamse principalmente da produgao de viveres. Nestas condigées, sb po- dem consagrar uma pequena parte do tempo A fabricago e & armazenagem de instrumentos de trabalho, a especializagio desta fabricagio, 4 busca siste- tematica de outros instrumentos de trabalho, a aprendizagem de técnicas complicadas de trabalho (como por exemplo o trabalho metaliirgico), 4 ob- servagao sistematica de fendmenos da natureza, etc. £ a produgio dum sobre-produto social que vai permitir a uma parte da humanidade dispor de suficiente tempo livre para que se possa consagrar a0 conjunto destas atividades, que facilitam 0 aumento da produtividade do tra- balho. Estes tempos livres esto assim na base da civilizago, do desenvolvi- mento das primeiras técnicas cientificas (astronomia, geometria, hidrografia, mineralogia, etc.) e da escrita. A separagao do trabalho intelectual ¢ do trabalho manual, produto des- ses tempos livres, acompanha a separagio da sociedade em classes. A divisio da sociedade em classes representa, portanto, uma condigdo de progresso histérico, por tanto tempo quanto a sociedade seja demasiado pobre para permitir que todos os seus membros se consagrem ao trabalho in- telectual (as fungdes de acumulagio). Mas 0 preco pago por este progresso é muito pesado. Até ao dealbar do capitalismo moderno, apenas as classes pos- sessoras usufruem dos beneficios do aumento da produtividade dotrabalho.A- pesar de todos os progressos da técnica e da ciéncia durante os 4000 anos que separam os principios da civilizag3o antiga do séc. XVI, a situagao dum cam- 18 ponés indiano, chinés, egipcio, ou mesmo grego ou eslavo, no mudou de for- ma sensivel. 5. A causa do fracasso de todas as revolugdes igualitdrias do passado Quando o excedente produzido pela sociedade humana, quando o so- bre-produto social nao basta para libertar toda a humanidade dum trabalho penoso constante, qualquer revolugo social que procure restabelecer a i- gualdade primitiva entre os homens esta antecipadamente votada ao fracasso. S6 pode encontrar duas saidas para a antiga desigualdade social: a) ou destruir deliberadamente todo o sobre-produto social, e regressar 4 extrema pobreza primitiva. E entio o reaparecimento do progresso técnico provocard rapidamente as mesmas desigualdades sociais que se pretendera su- primirs b) ou desapossar a antiga classe possessora, em proveito de uma nova classe possessora. Foi o que se passou com a insurreigao dos escravos romanos sob Spar- tacus, com as primeiras seitas cristas e os mosteiros, as diversas insurreigdes camponesas, que se sucederam no Império chinés, a revolugo dos Taborites, na Boémia, no séc. XV, as colénias comunistas estabelecidas pelos imigrantes na América, etc. Sem pretender que a revolugao russa tenha levado 4 mesma situagao, 0 reaparecimento duma desigualdade social acentuada na U.R.S.S. de hoje, ex- plica-se fundamentalmente pela pobreza da Riissia logo apés a revolugao, pe- la insuficiéncia do nivel de desenvolvimento das forcas produtivas, pelo i- solamento da revolugao num pais atrasado, efeito do revés da revolugao na Europa central durante o perfodo de 1918-23. Uma sociedade igualitaria baseada na abundancia e nio na pobreza — tal é 0 fim do socialismo — s6 se pode desenvolver na base duma economia a- vangada, na qual o sobre-produto social seja tio _elevado que permita que to- dos os produtores se libertem dum trabalho embrutecedor e que conceda su- ficientes tempos livres a toda a comunidade, para que esta possa desempe- nhar coletivamente as fungoes dirigentes na vida econémica e social (fungao de acumulagio). Qual o motivo por que foram necessarios 15 000 anos de sobre-produto social, antes que a economia humana alcangasse o desenvolvimento necessa- rio para se entrever uma solugio socialista da desigualdade social? Por tanto tempo quanto as classes possidentes se apropiaram do sobre-produto social sob a forma de produtos (de valores de uso), o seu proprio consumo (consu- mo improdutivo) representa o limite de crescimento da produgio que dese- jam realizar. Os templos e reis do Oriente antigo; os senhores de escravos da Antigui- dade greco-romana; os senhores nobres ¢ mercadores chineses, indianos, ja~ 19 poneses, bizantinos, arabes; os nobres feudais da Idade Média, nao tinham qualquer interesse em aumentar a produgio desde o momento em que tives- sem acumulado nos seus castelos e palcios suficientes viveres, vestes de luxo, objetos de arte. Existe um limite para 0 consumo e para o luxo que é impos- sivel ultrapassar (um exemplo cémico: na sociedade feudal das ilhas Hawaf, © sobre-produto social toma a forma exclusiva de alimentos, ¢, por isso, 0 prestigio social depende... do peso de cada um). E unicamente quando o sobre-produto social toma a forma de dinheiro — de mais valia — e que pode servir j4 nfo s6 para a aquisicao de bens de con- sumo, mas de bens de equipamento (de produgao), que @ nova classe domi- nante —a burguesia— adquire interesse num crescimento ilimitado da pro- dugao. Assim se criam as condigdes sociais necessarias a uma aplicagao a pro- ducao de todas as descobertas cientificas, ou seja, as condigdes necessérias a0 aparecimento do capitalismo industrial moderno. 20 Tll— © ESTADO, INSTRUMENTO DE DOMINAGAO DE CLASSE 1. A divisiio social do trabalho e 0 nascimento do Estado Na sociedade primitiva sem classes, as fungdes administrativas eram e- xecutadas pelo conjunto dos cidadaos. Cada um usava as suas armas e parti- cipava nas assembléias que tomavam decisdes respeitantes a vida coletiva e as Sleoser da comunidade com o mundo exterior. Os conflitos internos eram igualmente resolvidos pelos membros da coletividade. Claro est4 que nao existe qualquer razdo para idealizar a situagao exis- tente no seio destas comunidades primitivas, que viviam sob o comunismo do cla ou da tribo. A sociedade era extremamente pobre. O homem era domina- do pelas forgas da natureza. Os habitos, os costumes, as regras de arbitragem dos conflitos internos e externos, se bem que aplicados coletivamente, carac- terizavam-se pela ignorancia, pelo medo, pelas crengas mégicas. Em compen- sagio, o que é necessério sublinhar, é que a sociedade se governava a si pro- pia, nos limites dos seus conhecimentos e das suas possibilidades. Nio & pois verdade que as nogSes de “sociedade”, de “‘coletividade hu- mana” e de “Estado” sejam praticamente idénticas e se justaponham mutua- mente ao longo dos tempos. Bem pelo contrario: a humanidade viveudurante milénios e milénios em coletividades que ignoravam a existéncia de um Esta- © Estado nasce quando certas fungdes, primitivamente executadas pe- lo conjunto dos membros da coletividade, se tornam apandgio dum grupo separado de homens: — um exército distinto da massa dos cidadios armados; — juizes distintos da massa dos cidadaos, julgando os seus semelhantes; ~chefes hereditirios, reis, nobres, em vez de representantes ou de diri- gentes de tal atividade, designados temporariamente e sempre revogaveis; ~— “produtores de ideologia” (padres, clérigos, professores, fildsofos,es- cribas, mandarins), separados do resto da coletividade. O nascimento do Estado é pois o produto duma dupla transformagio: 0 aparecimento dum sobre-produto social permanente, que permite libertar u- ma parte da sociedade da obrigacdo de efetuar trabalho para assegurar a sua subsisténcia — parte essa que cria assim as condigdes materiais da sua especia- lizagdo nas fungdes de acumulagao e de administragdo —, uma transformagdo social e politica que permite exchuir os restantes membros da coletividade do 21 exercicio das fungdes politicas que eram outrora comuns a todos. 2. O Estado ao servigo das classes dominantes O fato de as fungdes que eram primitivamente executadas por todos os membros duma coletividade se tornarem, a partir dum certo momento, apa- nagio de um grupo separado de homens, indica ja por si mesmo que existem pessoas que fém interesse em praticar essa exclusio. Sao as classes dominan- tes que se organizam para excluir os membros das classes exploradas e produ- tivas do exercicio de funges que lhes permitiriam abolir a exploragdo que lhes é imposta. O exemplo do exército ¢ do armamento constitui disso a prova. mais e- vidente. O aparecimento das classes dominantes efetua-se através da apropria- so do sobre—produto social por uma fragio da sociedade. Em numerosas tribos ¢ aldeias africanas assistiu-se, ao longo dos dltimos séculos, & reprodu- 40 de uma evolugio que se encontra na origem do nascimento do Estado nos mais antigos Impérios do Oriente (Egito, Mesopotamia, Ira, China, India, etc,): as didivas, as ofertas, os servigos sob forma de entreajudada, que eram primitivamente concedidas amigavelmente a todos os casais, tornam-se pro- gressivamente obrigatérios, transformando-se em rendas, impostos e corveias. Mas é ainda necessdrio assegurar essa prestacao obrigatéria, 0 que tem lugar, em particular, pela forga das armas. Grupos de homens armados — pou- co importa que se chamem soldados, policias, piratas ou bandidos — obrigam os cultivadores e os criadores de animais, mais tarde os artesios e os comer- ciantes, a abandonar uma parte da sua producio em beneficio das classes do- minantes. Com este fim usam armas e devem impedir que os produtores se en- contrem igualmente armados. Na Antiguidade greco-romana, era estritamente proibido aos escravos Possuir armas. O mesmo se passava com os servos da Idade Média. Os primei- Tos escravos, os primeiros camponeses, sio muitas vezes, alids, prisioneiros de guerra ou camponeses de regides conquistadas; portanto, as vitimas de um Proceso em que uns sio desarmados para que outros possuam o monopélio das armas. Neste sentido, Frederic Engels tem razio ao resumir a definigao do Es- tado segundo a formula: um grupo de homens armados. Sem divida que 0 Estado desempenha outras fungées além da de armar a classe possessora e de desarmar a classe produtiva. Mas, em dltima andlise, a sua fungao é ade exer- cer a sujeigdo de uma parte da sociedade a outra. Nada, ao longo da hist6ria permite justificar a tese liberal-burguesa segundo a qual o Estado teria nasci- do de um “contrato”, de uma “convengi0” livremente aceite por todos os membros de uma coletividade.Pelo contririo, tudo confirma que € 0 produto de uma opressio, da violéncia exercida por alguns contra outros. Se o aparecimento de um Estado permite as classes dominantes con- 22 servarem a apropriagio do sobre-produto social, esta apropriagdo do sobre- produto social permite, por sua vez, pagar aos membros do aparelho de Esta do. Quanto mais importante é este sobre-produto social, mais o Estado se po- de estruturar através de um numero crescentemente elevado de soldados,de funcionarios e de idedlogos. O desenvolvimento do Estado na Idade Media feudal torna estas rela- ®es particularmente transparentes. Quando o feudalismo atinge o seu apo- geu, cada nobre feudal é, no seu dominio, chefe do exército, coletor de im- postos, competente para cunhar moeda, administrador em chefe e gerente da economia. Mas i medida que certos dominios se estendem, que se restabelece uma hierarquia entre os nobres, que os duques e condes emergem com um poder sobre extensdes de terra considerdveis, torna-se impossivel exercer to- das estas fungdes a titulo pessoal, O que é ainda mais verdadeiro para os reis ¢ imperadores. Assim emergem personagens que encarnam a divisio destas fungdes: se- nescais ¢ marechais, ministros ¢ secretarios, etc. Mas a etimologia ensina-nos que todas estas personagens cram, na sua origem, escravos ou servos do se- nhor, o que significa que se encontravam em estado de dependéncia total da classe dominante. 3. Coagio violenta e integragio ideolbgica Se o Estado é, em iltima anilise, um grupo de homens armados, e se 0 poder duma classe dominante é fundado em tiltima instancia no constrangi- mento violento, nao pode no entanto limitar-se exclusivamente a este cons- trangimento. Napoledo Bonaparte disse que tudo se pode fazer com baione- tas, menos sentar-se sobre elas. Uma sociedade de classe que subsistisse uni- camente pela violéncia armada encontrar-se-ia em estado de guerra civil per- manente, ou seja, em estado de crise extrema. Para consolidar a dominagao de uma classe sobre outra, é portanto ab- solutamente indispensvel que os produtores, membros da classe explorada, sejam levados a aceitar como inevitavel, permanente e justa a apropriagdo por uma minoria do sobre-produto social. Eis porque o Estado nao desempenha apenas uma fungio de repressio, mas também uma fungao de integracao ide- oldgica. Cabe aos “produtores de ideologias” assegurarem esta fungio. ‘A humanidade tem de particular que s6 pode assegurar a sua subsistén- cia por um trabalho social, que implica a existéncia de lagos, de relacdes so- ciais entre os homens. Estes lagos indispensiveis implicam a necessidade de uma comunicagio, duma linguagem entre os homens, o que permite desen- volver a consciéncia, a reflexao, a “produgao de idéias” (de conceitos).As- sim, todas as agdes importantes na vida humana sdo acompanhadas de refle- xdes sobre essas agdes que se efetuam na cabeca dos homens. Mas estas reflexdes nao se produzem de forma absolutamente esponta- 23 nea. Correntemente, cada individuo nao inventa idéias novas. A maioria dos individuos raciocina com base nas idéias aprendidas na escola ou na igreja, e, na nossa época, também com base em idéias colhidas na TV ou na radio, na publicidade ou nos jornais. A produgio de idéias e de sistemas de idéias, cha- madas ideologias, encontra-se assim fortemente limitada. Aparece também como atributo duma pequena minoria da sociedade. Em cada sociedade de classe, a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. Isto, sobretudo porque os produtores de ideologia se en- encontram na dependéncia material dos proprietarios do sobre-produto social. Na alta Idade Média, poetas, pintores, fildsofos, sdo literalmente mantidos pelos senhores e pela Igreja (grande propietaria fundisria feudal, ao lado da nobreza). Quando a situagao social e econdmica muda, os mercadores e ban- queiros ricos surgem igualmente como financiadores de obras literdrias, filo- s6ficas ou artisticas. A dependéncia material nao é aqui menos pronunciada. S6 com advento do capitalismo aparecem produtores de ideologias traba- Thando nio ja diretamente sob a dependéncia da classe dominante, mas para im “mercado anénimo”. Por outro lado, cada sociedade particular segrega maneiras de pensar, “formas predominantes de produgao ideoldgica”, que sd 0 resultado ¢ o re- flexo de sua maneira de organizar a produgio material, Assiin, numa sociedade primitiva que vive sob a tirania extrema das for- gas da natureza, poucos individuos séo levados a pér em causa as religides que divinizam essas forgas, ou a magia que as tenta conciliar. Na sociedade feudal, a dependéncia material extrema em que se encontravam os servos em telagdo 4 nobreza, a estreiteza do dominio feudal, a atrofia do grande comé: cio ¢ da economia monetaria, refletem-se normalmente na enorme influéncia da religiio sobre os espiritos. Os explorados véem como fnica consolagio a esperanca numa vida melhor no além. Numa sociedade em que a produgao mercantil atinge grande expansio, em que cada individuo aparece como um propietario, livre vendedor e com- prador de mercadorias num mercado anénimo, o individualismo e o raciona- lismo podem se expandir muito mais livremente. As estruturas imutaveis da religido sio postas em causa. A luta pelo direito de cada individuo interpreta a Biblia segundo a sua consciéncia, pode desenvolver-se. A Reforma, 0 atefs- mo, o materialismo filoséfico, anunciam-se. Seja como for, a fungao da ideologia dominante é incontestavelmente uma fungao estabilizadora da sociedade tal como existe, ou seja, da domina- gio de classe. O direito protege e justifica a forma predominante da proprie- dade. A familia desempenha mesmo papel. A religido ensina os exploredos a aceitar a sua sorte. As idéias politicas e morais predominantes procuram jus- tificar o reino da classe dominante por meio de sofismas ou de meias-verdades (conforme a tese de Goethe, formulada durante e contra a revolugao francesa, segundo a qual a desordem provocada pela luta contra a injustiga seria pior do 24 que a propria injustiga. Moralidade: ndo mudar a ordem estabelecida). 4, Ideologia dominante e ideologias revoluciondrias Mas se a ideologia dominante de cada época é a ideologia da classe do- tminante, isso de nenhum modo significa que as tinicas idiasexistentes numa dada sociedade de classe sejam as da classe dominante. Em geral — e simplifi- cando — cada sociedade de classe conhece pelo menos trés grandes categorias idéias que nela circulam: ers ate que refletem os interesses da classe dominante da época, e que pre- aue das antigas classes dominantes, que foram jé batidas e afartades do poder, mas que continuam a exercerinfluéncia sobre os homens. Este fato é devido & forca de inércia da consciéncia, sempre em atraso em relagao d reali: dace material. A transmissio e difusio das idéas € em parte auténoma do que se passa na esfera da produgao material. Podem pois permanecer influencia- das por forgassocais, que nio sioji.asforcas predominantes; ~ as idéias duma nova clase revolucionaria em ascensio, que ¢ ainda domins da, mas que encetou jé o combate pela sua emancipagio, e que teré de se Tk bertar, pelo menos parcialmente, das idéias dos seus opressores, antes de p jor terra a opressio. j a oan ae Franga dot scenloy KING € eaten tipico a este respeito. A classe dominante & a burguesia. Tem os seus pensadores, os seus jurists, os seus ideblogos, 0s seus fil6sofos, os seus moralstas, os seus esritores, bem seus, desde o inicio até ao fim do século. A nobreza semifeudal foi afasta- da enquanto classe dominante, pela Grande Revolucio Francesa. A re ¢fo dos Bourbons, em 1815, nao a trard de novo ao poder. Mas a sua ideolo- gia, e nomeadamente o clericalismo ultramoderno, continuaré a exercer uma profunda influéncia durante decénios, nfo somente sobre os restos de nobre- za, mas também sobre partes da burguesia, sobre camadas da pequena burgue- sia (camponesa) e, mesmo, da classe operdria. F i ate No entanto, ao lado da ideologia burguesa ¢ da ideologia semifeudal, desenvolvese jé a ideologia proletiria, desde logo a dos babouvistas ¢ dos blanquistas, depois a dos coletivistas que desembocam no marxismo e na Co- muna de Paris. 5. Revolugées sociais, revoluges politicas Quanto mais estavel é uma sociedade de classes, menos é conten a dominagdo da classe dominante, ¢ mais a luta de classe é diluida em conflitos limitados que ndo pdem em causa a estrutura dessa sociedade, aquilo a que os marxistas chamam as rlagBes de produgdo ou o modo de produsio, Ao con- trdrio, quanto mais abalada estiver a estabilidade econémica e social dum de- 25 terminado modo de produgdo, mais a dominagio da classe reinante serd con- testada e mais a luta de classes se desenvolveré, a ponto de pér a questdo do derrube dessa dominagao, a questio duma revolugao social, Uma revolugao social estala quando as classes exploradas edominadas nao aceitam jé essa explorago como inevitével, permanente ¢ justa, quando nao se deixam jé intimidar ou reprimir pela sujeicao violenta dos governantes, recusando a ideologia justificativa desse predom{nio, quando retinem as for. gas materiais ¢ morais necessérias ao derrube da classe dominante. Tais condigdes resultam de transformacdes econdmicas profundas. A organizagao social existente, o modo de produgio dado, que permitiram du. ante um certo perfodo desenvolver as forgas produtivas, a riqueza material da sociedade, tornam-se um entrave ao seu desenvolvimento ulterior. A ex- Pansio da produgdo entra em colisdo com a sua organizagao social, com as re- lagoes sociais da produgao: esta é a origem diltima de tod ciais da historia. Uma revolugio social substitui o reinado duma classe pelo de outra classe. Pressupée a eliminagio da antiga classe dominante do poder de Esta- do. Qualquer revolugao social & portanto acompanhada duma revolugao polt tica. As revolugdes burguesas sao em geral caracterizadas pela eliminagio da monarquia absoluta e sua substituiggo por um poder politico nas mios de as- sembléias eleitas pela burguesia. Os Staten General suprimindo o poder de Filipe Il de Espanha, na revolucao dos Pafses Baixos. O Parlamento inglés des- tr6i 0 absolutismo de Carlos I na revolugao inglesa de 1649. O Congreso a- mericano destr6i a dominagao do rei George Ill sobre as 13 coldnian. As di. versas assembléias da Revolugio francesa de 1789 destruitam a monarquia dos Bourbons. Mas se toda a revolugio social é a0 mesmo tempo uma revolugio polt- tica, nem toda a revolugao politica é necessariamente uma revolugao social. U- ma revolugio que é apenas politica implica a substituigZo por via revolucion&. tia de uma forma de dominagao, de uma forma de Estado de uma classe, por outra forma de Estado da mesma classe. Assim, as revolugdes francesas de 1830, de 1848 e de 1870 foram revo- lugdes polfticas que instauraram sucessivamente a monarquia de Julho, a II Repiblica, o II Império e a III Repablica, todas formas politicas diversas do Boverno de uma mesma ¢ Gnica classe social: a burguesia. Em geral, as revolw. $6es politicas transformam a forma do Estado de uma mesma classe social, em fungao de interesses predominantes das diversas camadas ¢ fragdes dessa mesma classe, que se sucedem no poder. Mas o modo de produgio fundamen. tal nao é de forma nenhuma alterado Por essas revolucdes. as as revolugSes so- . IV — DA PEQUENA PRODUGAO MERCANTIL AO MODO DE PRODUGAO CAPITALISTA 1. ProdueGo para satisfacdo das necessidades e producdo para a troca Na sociedade primitiva e, depois, no seio da comunidade sie, a i las da tevolugio neolitica, a producao assentava essencialmente na eee i i so- i ivi dutivas. A troca era apenas acidental e necessidades das coletividades pro‘ f ee mente envolvia uma parte infima dos produtos de que dispunha a comunida es Tic tal! emia des OULGR A BGRGE aaa cepanie eta aedineraei trabalho. Por conseqiiéncia, o trabalho é at imediatamente social. Dizer el nizagao deliberada do trabalho nao significa necessariamente cog seto consciente (nem certamente cientifica), nem organizagao snes agai coisas podem ser deixadas ao acaso, precisamente porque & bs sorbet s mica nao preside qualquer tendéncia oe 5 oer oan Abi is, os usos, os ritos, a religiio, » pode jerminar a diecitscuss ¢ dias ta htiae poate tos semprecnenct almente destinadas 4 satisfagao de Leer imediatas das coletividades ¢ Jo a nriquecimento tornado um fim em si. sae seacleete organs da vidal ceoedile desunte powco a pow co uma forma de organizagao econémica diametralmente oposta. nent . tum processo de divisio do trabalho, da aparigdo de um eee potencial de trabalho da coletividade vai-se presence ee i unidades (grandes familias, familias patriarcais) que trabalham ieee a mente umas das outras. O caréter privado do trabalho e a propiedade pr 2 dos produtos do trabalho, e mesmo dos meios de produsio, interpema em tre os membros da comunidade. E impedem estes de estabelecer re eee némico-sociais deliberadas imediatamente entre si. Estas unidades ou ro duos deixam de se relacionar uns com os outros, na vida seta eee de uma associagao direta. ee uns com os outros por int dutos do seu trabalho. 4 a ik oes € um produto do trabalho social que aoe oe cado pelo seu produtor e no a ser consumido Eorslecs pe “ °o au ae que faz parte. Pressupde pois uma situacao spat fund amentalmente diferen- tes daquela em que a massa dos produtos é destinada ao consum imeino das coletividades que a produzem. Ha por certo casos transitérios (por = plo, na nossa época, as quintas chamadas de she toes ae eee re mercado pequenos excedentes). Mas para apreender bem a diferenga 27 mental entre uma situagio social na qual se produz essencialmente para 0 consumo direto dos produtores, ¢ a situagio na qual se produz para atroca, é preciso relembrar a resposta maliciosa do socialista alemio Ferdinand Lassa le a um economista liberal da sua época: “sem davida, o St. Dupont-Dupont, empresirio funerario, fabrica, & partida, urnas para seu propio usoe dos mem bros da sua casa, vendendo apenas o excedente que lhe resta..” 2. A pequena producao mercantil A producao de mercadorias surgiu h4 10 ou 12.000 anos no Médio Ori- ente, no quadro de uma primeira divisio do trabalho fundamental, entre ar- tesios profissionais e camponeses, quer dizer, por efeito da formagzo das pri- meiras cidades. Chamamos pequena producio mercantil a organiza¢o econd- mica na qual prevalece a produgio para a troca por parte de produtores que continuam senhores de suas condigdes de produgao. , _ Embora tenha havido miltiplas formas de pequena produgao mercan- til, na Antiguidade e no seio do modo de produgio asidtico, a pequena pro- dugdo mercantil teve o seu principal desenvolvimento entre 0 XIV ¢ o XVIsé- culos, na Itdlia do norte e do centro, bem como nos Paises Baixos do sul edo norte, devido ao deperecimento da servidao nessas regides e nessas épocas, e ao fato de que os proprietarios de mercadorias, que se reuniam no mercado, eram ai, em geral, livres e mais ou menos iguais em direitos. E precisamente esse cardter de liberdade e de igualdade relativas dos proprietarios de mercadorias, no interior de uma sociedade fundada sobre a Pequena producao mercantil, que permite aprender a propia fungio da tro- ca: permitir a continuidade de todas as atividades produtivas essenciais, ape- sar de uma jé avangada divisao do trabalho, e sem que essas atividades depen- dam de deliberadas decisdes da coletividade ou de seus dirigentes. A organizagio do trabalho fundada na repartigao deliberada e previa- mente prevista da mao-de-obra entre os diversos ramos de atividades essen- ciais para a satisfacdo das necessidades da sociedade, é agora substituida por uma divisdo do trabalho mais ou menos “andrquica” e “livre”, na qual apa- rentemente © acaso governa esta mesma reparti¢do dos recursos produtivos vivos e mortos (instrumentos de trabalho). A troca e o seu resultado substi- tuem agora a planificagao tradicional ou consciente para repartir esses recur- sos. Mas isso deve fazer-se de tal modo que a continuidade da vida econdmi- a seja assegurada (é certo que com muitos “acidentes de percurso”, de crise, de interrupgao da produgao) que, grosso modo, todas as atividades essenci. ais encontrem quem as exerga. 3. A lei do valor E a propria maneira como a troca é governada que assegura esse resul- tado, pelo menos a médio prazo. As mercadorias trocam-se segundo as quan- tidades necessarias de trabalho para as produzir. Os produtos de uma jornada de trabalho de um tecelao. Precisamente no alvor da pequena produgao mer- cantil, em que a diviséo do trabalho entre o artesio e o camponés nao passa de rudimentar, em que muitas atividades artesanais so exercidas ainda no centro rural, é evidente que a troca apenas em semelhante equivaléncia pode fundar-se. De contrario, uma ou outra atividade produtiva menos compensa- dora do que outras, depressa seria abandonada. Produzir-se-ia entdo uma pe- naria nesse dominio. Essa peniiria faria subir os pregos e, logo, a recompensa obtida por esses determinados produtos. Por este fato, as atividades produti- vas redistribuir-se-iam entre os diferentes setores de atividade, restabelecendo a regra de equivaléncia: para uma mesma quantidade de trabalho fornecido, mesma quantidade de valor obtida na troca. Chamamos “lei do valor” a lei que governa a troca das mercadorias e, por seu intermédio, a repartigao das forcas de trabalho e de todos os recursos produtivos, entre os diferentes ramos de atividade. Trata-se pois claramente de uma lei econémica que se funda essencialmente sobre uma forma de orga- nizagao do trabalho, sobre relacées estabelecidas entre os homens, distintas daquelas que presidem a organizagao de uma economia planificada segundo os costumes ou segundo as opgées conscientes de produtores associados, A lei do valor assegura o reconhecimento social do trabalho, tornado trabalho privado. Neste sentido, deve funcionar na base de critérios objetivos, iguais para todos. E pois inconcebfvel que um sapateiro preguigoso, tendo necessidade de dois dias de trabalho para produzir um par de sapatos que um sapateiro habil produziria num s6 dia de trabalho, produza afinal duas vezes mais de valor que este ultimo. Semelhante funcionamento do mercado, ao recompensar a preguica ou a indoléncia e a falta de qualificaco, conduziria uma sociedade, fundada na divisio do trabalho e no trabalho privado, 4 sua ripida regressio ou mesmo 4 sua extingao. E por isso que a equivaléncia das jornadas de trabalho, assegurada pela lei do valor, é uma equivaléncia de trabalho 4 media social de produtividade. Esta média, numa sociedade pré-capitalista, é geralmente estivel por todos conhecida, porque a técnica produtora nao evolui ou sé muito lentamente o faz. Dizemos pois que o valor das mercadorias é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessario para as produzir. 4. O aparecimento do capital Na pequena produgao mercantil, o pequeno agricultor e o pequeno ar- tesdo vao ao mercado com os produtos do seu trabalho. Vendem-nos a fim de comprar os produtos de que necessitam para o seu consumo corrente e que eles proprios no produzem. A sua atividade no mercado pode resumir-se na formula: vender para comprar. 29 Contudo, muito rapidamente a pequena producao mercantil exige a a- Parigio de um meio de troca universalmente aceita (chamado também “equi- valente geral”) para facilitar a troca. Este meio de troca, através do qual todas as mercadorias se trocam indiferentemente, é a moeda. Com o aparecimento da moeda, um outro personagem social, uma outra classe social,pode aparecer, Por efeito de um novo progresso da divisao social do trabalho: 0 proprietario de dinheiro, separado e oposto ao proprietirio de mercadorias simples. B o usurdrio ou o mercador especializado no comércio internacional. Este proprietario de dinheiro exerce no mercado uma atividade muito diferente da do pequeno agricultor ou artesio. Como surge no mercado com uma soma determinada de dinheiro, para ele ja no se trata de vender para comprar, mas, pelo contrério, de comprar para vender. © pequeno artesio ou camponés vende para comprar uma mercadoria diferente daquela que ele pré= prio produz; mas a finalidade dessa operacao permanece a satisfago de neces- sidades mais ou menos imediatas, Inversamente, o proprietario de dinheiro nao pode “comprar para vender” tendo somente em vista satisfazer as suas necessidades. Para o banqueiro ou o mercador, comprar para vender no tem sentido, se ndo vende por uma soma que exceda aquela com a qual se apre- sentou no mercado. O aumento do valor do seu dinheiro de uma mais valia, quer dizer, o enriquecimento como fim em si, eis o sentido da atividade do usuario e do mercador. © capital — porque é dele que se trata, sob a sua forma inicial e elemen- tar de capital-dinheiro — é pois todo o valor que procura apropriar-se de uma mais-valia, que é lancado na busca de uma mais-valia, Este definicio marxista do capital opde-se & definigao corrente dos manuais burgueses segundo a qual © capital seria simplesmente todo o instrumento de trabalho, ou até, de forma ainda mais vaga, “todo o bem durivel”’. Por esta definigao, 0 primeiro macaco que tivesse varejado uma bananeira com um pau para apanhar uma banana, teria sido o primeiro capitalista... Sublinhe-se uma vez mais: como todas as “categorias econdmicas”, a categoria “capital” nao pode ser entendida sem a considerar como fundada so- bre uma relacdo social entre os homens: a saber, uma relagao tal que permite a.um proprietirio de capital o apropriar-se de uma mais-valia. 5. Do capital ao capitatismo A existéncia do capital nao se identifica com 0 modo de produgao capi- talista. Pelo contrario, capitais existiram e circularam durante milénios antes da eclosio do modo de producao capitalista na Europa ocidental, nos séculos XV e XVI. O usuririo ¢ © mercador aparecem de inicio no seio de sociedades pré- capitalistas, escravagistas, feudais ou fundadas sobre 0 modo de produgio sidtico. Operam af fora da esfera da produgio. Asseguram af a introdugio do 30 dinheiro numa sociedade natural (dinheiro que em geral aflui dp ersaneei) introduzem produtos de luxo vindos de longe, asseguram um minimo deere dito as classes possuidoras desprovidas de fortunas mobilidrias, bem como ao: Gee hte le patter nlerted, ee protege contra a exagées, a rapina ¢ 0 confisco. Essa é de resto a sua sorte pe se inuue que esse capital protege ciosamente 0 seu tesouro, conden lo-0 nem oa parte, evitando cuidadosamente investi-lo na totalidade pelo receio de pro e car a sua confiscagio. Alguns dos grupos de proprietérios de ee el wultados dos primeiros séculos da Idade Média foram vitimas ite sonny ges: por exemplo, os Templarios, no século XIV em Franga. Os a 2 italianos, financiadores das guerras dos reis da Inglaterra eee sados pelo fato desses reis nada os terem reembolsado om suas divic an ae Foi s6 quando as relagdes de forga politicas mus ents pont eer confiscagdes diretas ou indiretas se tornarem cada vez mais dificeis, estes pital se pode acumular — crescer —, de maneira cada vez ee cont : mete partir desse momento, @ penetragdo do capital na esfera de pro ete ‘ort no se possivel e, com ela, o nascimento do modo de produgio capitalista, o n: ital moderno. BS , meer ts detentor de capitais nao é simplesmente rey cea ou mercador. E proprietario de meios de produgio, aluga eo ere nizador da produgio, fabricante, manufaturador ou industrial. A m era deixa de ser extraida da esfera da distribuigao. Passa a ser correntemente pi duzida no decurso do préprio: processo de produgao. 6. O que é.a mais-valia? Na sociedade pré-capitalista, os proprietérios de capitais, quando atuam essencialmente na esfera da circulagdo, nao podem apropriar-se de uma at valia senao explorando de forma parasitaria os rendimentos de outras ee da sociedade. A origem desta mais-valia parasitaria pode ser, ou uma pate excedente azririo (por exemplo, da renda feudal) de que a nabreza oo claro sao 0s proprietarios iniciais, ou uma parte dos magros re inate ei aes sdos e camponeses. Esta mais-valia é essencialmente © pro ne lo emt waa da rapina. A pirataria e a pilhagem, o comércio de escravos, eeneiaras um papel essencial na formagio das fortunasinicisis de mercadores éabes, italianos, franceses, flamengos, alemies e ingleses, na Idade Me eee 0 fato de comprar mercadorias em mercados longinguos abaixo beatae para os vender acima desse valor em mercados mediterrénicos ou da Europa do Oeste ou Europa central, desempenhou um papel similar. : E claro que uma tal maisvalia resulta apenas de atividades de taste réncia, A riqueza global da sociedade, tomada no seu conjunto, em re aumentada, Perdem uns o que outros ganham. Com efeito, durante milénios, af a riqueza mobilidria global da humanidade pouco aumentou. £ diferente o que sucede desde o advento do modo de producio capitalista. E isso porque, a partir desse momento, a mais-valia j4 ndo é simplesmente subtraida do pro- cesso de circulagao das mercadorias. E agora correntemente produzida e por- tanto correntemente também acrescida e ampliada, no decurso da propria produgao. J& vimos que em todas as sociedades de classe pré-capitalistas, os pro- dutores (escravos, servos, camponeses) eram obrigados a dividir a sua semana de trabalho, ou a sua produgao anual, entre uma parte que eles proprios po- diam consumir (produto necessdrio) e uma parte de que se apropriava a classe dominante (sobre-produto social). Na fabrica capitalista, manifesta-se o mes- mo fendmeno, embora velado pela aparéncia das relagdes mercantis, que si- mulam governar a “livre compra e a livre venda” da forca de trabalho, entre 0 capitalista e 0 operdrio. Quando o operdrio inicia 0 seu trabalho na fabrica, ao principio de sua jornada (ou da sua semana) de trabalho, incorpora um valor as matérias-pri- mas que labora. Ao fim de um certo numero de horas (ou de jornadas) de tra- balho, reproduziu um valor que é exatamente o equivalente do seu salério quotidiano (ou semanal), Se suspendesse 0 trabalho nesse preciso momento, © capitalista ndo obteria sequer um centavo de mais-valia. Mas, em tais condi- des, o capitalista nao teria evidentemente nenhum interesse em comprar es- ta forga de trabalho. Tal como 0 usuario ou o mercador da idade média, ele “compra para vender”. Compra a forga de trabalho para obter dela um produto mais elevado do que o que dispendeu para a comprar. Este “suplemento”, este “exceden- te”, é precisamente a sua mais-valia, o seu lucro. Entende-se pois que, se 0 o- perario produz 0 equivalente ao seu salério em 4 horas de trabalho, trabalha- 14 nao apenas 4 mas 6, 7, 8 ou 9 horas. Durante essas 2, 3, 4 ou 5 horas “‘su- plementares”, produz a mais-valia para o capitalista, em troca da qual nada recebe. A origem da mais-valia &, portanto, o sobre-trabalho ou o trabalho gra- tuito, de que o capitalista se apropia. “Mas isso é um roubo”, exclamar-se-4. A resposta deve ser: “sim e nao”. Sim, do ponto de vista do operério; nao, do ponto de vista do capitalista e das leis do mercado. Com efeito, o capitalista no comprou no mercado “o valor produzido ou a produzir pelo operério”. Nao comprou o seu “trabalho”, ou seja, o tra- balho que 0 operario vai efetuar (se 0 tivesse feito, teria efetivamente pratica- do um roubo puro e simples; teria pago 1000 escudos pelo que vale 2000 es- cudos). Comprou a forga de trabalho do operario. Esta forca de trabalho tem © seu valor. O valor da forga de trabalho é determinado pela quantidade de trabalho necessdrio para a reproduzir, ou seja, pela subsisténcia (no sentido lato do termo) do operdrio ¢ da sua casa. A mais valia tem origem no fato de se manifestar um distanciamento entre o valor produzido pelo operatio ¢ 0 32 valor das mercadorias necessérias para assegurar a sua subsisténcia. Este dis- tanciamento é devido ao aumento da produtividade de trabalho do operirio. O capitalista pode apropriar-se do incremento da produtividade do trabalho porque a forga do trabalho se tornou uma mercadoria, pois o operirio foi co- locado em condigées tais que so pode produzir para a sua propria subsisténcia. 7. As condigdes de aparecimento do capitalismo moderno O capitalismo moderno é o produto de trés transformagdes econdmi- cas e sociais: a) A separacio dos produtores dos seus meios de produgio e de subsis- téncia. Esta separagao efetuou-se designadamente na agricultura pela expul- so dos pequenos camponeses das terras senhoriais transformadas em prados; no artesanato pela destruigio das corporagdes medievais; pelo desenvolvimen- to da indastria domiciliar; pela apropriagao privada das reservas de terras vir- gens, etc. b) A formagio de uma classe social que monopoliza estes meios de pro- dugao: a burguesia moderna. O aparecimento desta classe supSe a prévia acu- mulagio de capitais sob a forma de dinheiro, seguida de uma transformagio dos meios de produgao que torna estes tio caros que somente os proprieté- rios de capital-dinheiro avultado podem adquiri-los. A revolugao industrial do século XVIII, baseando doravante a producao sobre o maquinismo, realiza es- ta transformagio de maneira definitiva. ¢) A transformagao da forga de trabalho em mercadoria. Esta transfor- magio resulta do aparecimento de uma classe que nada mais possui que a sua forga de trabalho, e que, para poder subsistir, é obrigada a vender essa forga de trabalho aos proprietarios dos meios de produgio. “Gentes pobres e laboriosas, muitas das quais suportando o fardo eo encargo de mulheres e filhos numerosos e que nada mais possuem além do que podem ganhar com o trabalho das suas maos”: eis uma excelente descri- gio do proletariado moderno, extrafda de uma petigao do fim do século XVI, redigida em Leyde (na Holanda). Porque esta massa de proletarios nao tem liberdade de escolha — a nio ser a escolha entre a venda da sua forga de trabalho e a fome permanente — é obrigada a aceitar como prego da sua forca de trabalho o preco ditado pelas condigdes capitalistas normais no mercado do trabalho, quer dizer, o mfnimo vital socialmente reconhecido. O proletariado ¢ a classe dos que so obriga dos, por esta coagZo econémica, a vender a sua forca de trabalho de maneira mais ou menos continua. VV — A ECONOMIA CAPITALISTA 1. As particularidades da economia capitalista if economia capitalista funciona segundo uma série de caracterfsticas que lhe sao préprias e dentre as quais mencionaremos: a) A produgao consiste essencialmente em produci i producto detinade a ser vdida so mien Ge oe ae Cadorias produsides, as frmas capitalists a classe burguesa no seu conjunto Se eee produzida pelos trabalhadores e contida no b) A produg&o efetua-se em condicées de ro pries it goria juridica mas sobretudo uma categoria econdmica. Significa que o poder de dispor das forcas produtivas (meios de produgio e forgas de trabalho) nao pertence a coletividade mas esti dividido por firmas sepatadas, controladas por grupos capitalistas distintos (proprietarios individuais, familias, socieds, des andnimas ou grupos financeiros). As decisdes de investimento, gue condi. cionam em larga medida aconjuntura econmica, so por igual tomadas sepa ee na base do interesse privado e separado de cada unidade ou grupo .¢) A producio efetua-se para um mercado andnimo, e rege-se pelos im- perativs i concorréncia, Uma vez que a produgio nao estélimitada pelo ‘ostume (como nas comunidades primitivas) ou pela regul: nas corporagies da Idade Média) pile Sa Enrica (de promeecie cada firma ou cada grupo capitalista) esforga-se por atingir 0 mais elevado vo. lume de negécios, por agambarcar a maior parte do mercado, sem se preocu- par com decisdes andlogas de outras firmas operando no mesmo ramo. 4) O fim da producao capitalista é realizar o Iucro maximo. As classes possuidoras pré-capitalistas viviam do sobreproduto social, que no seu con. Junto consumiam improdutivamente. Também a classe capitalista deve consu- mir improdutivamente uma parte do scbreproduto social dos lucros que rea, liza. Mas, para realizar estes lucros, deve poder vender as suas mereidoriae Isso implica que deve poder oferecé-las no mercado a um prego mais baixo que 0 dos concorrentes. Para o conseguir, deve poder baixar os custos de pro. ducio, E o meio mais eficaz para baixar os custos de produgio (os pregos de custo) consiste em alargar a base de produgao, em produzir mais utilizando miquinas cada vez mais aperfeigoadas, Mas isso requer capitais cada vez mais 34 elevados. E portanto sob o chicote da concorréncia que o capitalista se vé o- brigado a procurar 0 maximo possivel de lucro para poder desenvolver ao mé- ximo os investimentos produtivos. e) Assim, a producao capitalista revela-se como uma produgio visando nao s6 0 lucro mas a acumulagao do capital. Com efeito, a logica do capitalis- mo implica que uma parte vultosa da mais-valia seja acumulada produtiva- mente (transformada em capital suplementar sob forma de maquinas e de ma- térias-primassuplementares, e de mio-de-obra suplementar) endo consumida improdutivamente (consumo privado da burguesia e dos seus servidores). A produgio tendo por fim aacumulagao do capital conduz a resultados contraditérios. Por um lado, o desenvolvimento incessante do maquinismo implica uma expanséo das forcas produtivas e da produtividade do trabalho, que cria os fundamentos materiais de uma emancipagio da humanidade quan- to ao constrangimento de dever “ganhar o pio com o suor do seu rosto”. Es ta a fungao historicamente progressiva do capitalismo. Mas, por outro lado, o desenvolvimento do maquinismo sob o imperativo da procura do lucro maxi- mo e da acumulagao incessante do capital, implica uma subordinagio cada vez mais brutal do trabalhador 4 maquina, das massas laboriosas as “leis do mercado”, que lhe fazem perder periodicamente qualificagio e emprego. A expansio das forgas produtivas ¢,ao mesmo tempo, um desenvolvimento cada vez mais pronunciado da alienagdo dos trabalhadores (¢, indiretamente, de to- dos os cidados da sociedade burguesa) dos seus instrumentos de trabalho, dos produtos do seu trabalho, das suas condigées de trabalho, numa palavra, das suas condigées de vida (incluindo as suas condigées de consumo e de uti- lizagio dos “tempos livres”) ¢, ainda, das suas relagSes realmente humanas com os seus concidadaos. 2. O funcionamento da economia capitalista Para obter o lucto maximo e desenvolver o mais possivel a acumulagao de capital, ost gpitalistas sio obrigados a reduzir no maximo a parte do valor novo, produz\ ys pela forga de trabalho, que reveste para este sob a forma de salarios, Este valor novo, este “rendimento criado”, determina-se com efeito no proprio processo de produgio, independentemente de qualquer problema de repartigao. E mensuravel pela soma total das horas de trabe'ho fornecidas pelo conjunto dos produtores assalariados. Neste exato “bolo”, quanto maior for a parte dos salarios reais pagos, tanto menor ser4, forgosamente, a parte da mais-valia. Quanto mais os capitalistas procurarem fazer avultar a parte a- tribufda 4 mais-valia, mais sio obrigados a reduzir a parte atribuida aos salé- rios. Os dois meios essenciais pelos quais os capitalistas se esforgam por avo- lumar a sua parte, que o mesmo é dizer a mais-valia, sio: a) O prolongamento da jornada de trabalho (do século XVI a meados a5: do século XIX, no Ocidente; em numerosos paises semicoloniais e coloniais, até aos nossos dias), a redugdo dos salarios reais, o abaixamento do “‘minimo vital”. £ 0 que Marx denominou o crescimento da mais-valia absoluta. b) O aumento da intensidade e da produtividade do trabalho na esfera dos bens de consumo (que prevalece no Ocidente a partir da segunda medade do século XIX). De fato, se por efeito de um aumento da produtividade do trabalho nas indiistrias de bens de consumo e na agricultura, o operirio indus- trial médio reproduz ovalor de um conjunto determinado desses bens de con- sumo em trés horas de trabalho, em vez de dever trabalhar cinco horas para o produzir, entdo a mais-valia que ele fornece ao patrao pode passar do produto de trés horas ao de cinco horas de trabalho, matendo-se fixa a jornada de trabalho de oito horas. E isso que Marx denomina de crescimento da mais-va- lia relativa. Cada capitalista procura obter 0 lucro maximo. Mas, para o conseguir, procura também aumentar a0 maximo a produgGo, e baixar incessantemente © prego de custo e o prego de venda (expressos em unidades monetérias esté- veis). Por este modo, a concorréncia opera, a médio prazo, uma selegao entre as firmas capitalists. Apenas sobrevivem as mais produtivas e as mais “‘renté- veis”. Aquelas que vendem demasiado caro nfo s6 nao realizam o “lucro mé- ximo” como acabam por ver o seu lucro desaparecer completamente. Resta- Ihes a faléncia ou a absorcio pelas suas concorrentes. A concorréncia entre os capitalistas conduz assim a uma perequagio da taxa de lucro. A maior parte das firmas acabam por dever contentar-se com um lucro médio, determinado em iiltima anélise pela massa total do capital social investido ¢ a massa total da mais-valia proveniente do conjunto dos sa- Iirios produtivos. Apenas as firmas de produtividade muito avangada, ou nu- ma ou noutra situagio de monopélio, obtém sobre-lucros, quer dizer, lucros acima da média. Mas, em geral, a concorréncia capitalista pouco permite que 0 sobre-lucros ou os monopélios sobrevivam por tempo ilimitado. Sio os afastamentos em relaco a este lucro médio que regem em gran- de parte os investimentos no modo de producio capitalista. Os capitais aban- donam os setores em que o lucro se situe abaixo da média e afluem aos seto- res em que o lucro é superior A média (por exemplo, aflufam ao ramo auto- mével nos anos sessenta, e abandonaram este ramo, para afluir ao setor ener- gético, nos anos setenta do nosso século). Porém, ao afluir aos setores em que a taxa de lucro se situa acima da média, esses capitais provocam af um aumento de concorréncia, uma sobre- produco, uma baixa dos pregos de venda, uma baixa dos lucros, até que a ta- xa de lucro se estabelece mais ou menos ao mesmo nivel em todos os ramos. 3. A evolugao dos salérios Uma das caracterfsticas do capitalismo é que transforma a forga de tra- 36 balho humano em mercadoria. O valor da mercadoria-forga de trabalho é de- terminado pelos seus custos de reproducao (0 valor de todas as mercadorias cujo consumo é necessario para a reconstituigao da forca de trabalho). Trat- se aqui pois de uma grandeza objetiva, independentemente das apreciagdes subjetivas ou fortuitas de grupos de indiv duos, sejam operdrios ou patroes. Todavia, o valor da forga de trabalho possui uma caracteristica particu- lar em relagio 4 de qualquer outra mercadoria: comporta, além de um ele- mento estritamente mensurdvel, um elemento variavel. O elemento estivel é o valor das mercadorias que devem reconstituir a forga de trabalho do ponto de vista fisiolégico (que devem permitir ao operério recuperar calorias e vitami- nas, e a capacidade de dispender uma energia muscular e nervosa determinada, sem a qual seria incapaz de trabalhar ao ritmo “normal”, previsto pela organi- zagao capitalista do trabalho, em dado momento). O elemento variavel é 0 va- lor das mercadorias incorporadas no “‘minimo vital normal” numa época e num pais determinados, que nao fazem parte do minimo vital fisiolégico. Marx chama esta parte do valor da fora de trabalho, a sua fragao histérico- moral. Isso quer dizer que também nfo é fortuita. £ o resultado de uma evo- lugao histérica e de uma dada situacao das relagdes de forga entre o Capital e o Trabalho. Neste preciso ponto de andlise econémica marxista,a luta de classe, 0 seu passado e o seu presente, torna-se um fato co-determinante da economia capitalista. O salario é o prego de mercado da forga de trabalho. Como todos os precos do mercado, flutua a volta do valor da mercadoria em causa. As flutu- ages do salario sao particularmente determinadas pelas flutuagdes do exérci- to de reserva industrial, ou seja o desemprego, e isso em triplo sentido: a) Quando num pais capitalista ha desemprego permanente muito im- portante (quando é industrialmente subdesenvolvido), os saldrios correm o risco de estar, de modo constante, quer abaixo quer ao nivel do valor da for- ga de trabalho. Este valor arrisca-se a estar proximo do minimo vital fisio- logico. b) Quando o desemprego macigo permanente decresce a longo prazo, designadamente como resultado da industrializago em profundidade e da e- migtacgio em massa, os salarios podem subir, em periodo de alta conjuntura, acima do valor da forga de trabalho. A luta operdria pode provocar a longo ptazo a incorporagao neste valor do equivalente de novas mercadorias. O mi nimo vital socialmente reconhecido pode aumentat em termos reais, ou seja, incluir novas necessidades. c) Os altos e baixos do exército de reserva industrial no dependem so- mente dos movimentos demograficos (taxas de nascimento e de mortalidade) e dos movimentos de migragio internacional do proletariado. Dependem também e sobretudo da légica de acumulagio do capital, em si mesma. Com efeito, na luta para sobreviver face & concorréncia, os capitalists devem subs- tituir a mao-de-obra por maquinas (‘‘o trabalho morto”). Esta substituigao 37 arroja constantemente m4o-de-obra para fora da produgio. As crises desem- penham a mesma fungao. Em contra-partida, nos perfodos de alta conjuntura ¢ de “sobreaquecimento”, quando a acumulacao do capital progride a um rit- mo febril, o exército de reserva é reabsorvido. Nio existe, pois, nenhuma “lei de bronze” que governa a evolugio dos salérios. A luta de classe entre o Capital e o Trabalho, determina-a em parte. O capital esforga-se por fazer baixar os saldrios no sentido do minimo vital fi- siolégico. O Trabalho esforga-se por dilatar o elemento histérico e moral do salario, incorporando nele mais necessidades novas a satisfazer. O grau de co- esio, de organizagio, de solidariedade, de combatividade e de consciéncia de classe do proletariado, sio pois fatores que co-determinam a evolucao dos sa- larios. Mas a longo prazo, pode-se patentear uma tendéncia incontestavel pa- ra a pauperizacao relativa da classe operdria. A parte do valor novo criado pe- lo proletariado, que cabe aos trabalhadores, tende a baixar (o que pode, de resto, ir de passo com uma alta dos salirios reais). O afastamento entre, por um lado, as novas necessidades suscitadas pe- lo desenvolvimento das forgas produtivas e 0 impluso da propia producio ca- pitalista e, por outro cado, a capacidade de satisfazer as necessidades por meio dos salarios obtidos, tende a aumentar. um indice claro desta pauperizacao relativa o afastamento crescente entre 0 aumento da produtividade do trabalho a longo prazo e o aumento dos salérios reais. Do principio do século XX até ao principio dos anos 70, a produtividade do trabalho aumentou aproximadamente 5 a 6 vezes, na inddis- tria e na agricultura dos Estados Unidos e da Europa ocidental e central. Os salarios reais dos operarios no aumentaram mais que 2 a 3 vezes durante © mesmo perfodo. 4, As leis de evolugdo do capitalismo Por efeito das préprias caracteristicas do seu funcionamento, o modo de produgio capitalista evolui segundo certas leis de evolugio (leis de desen- volvimento) que so por isso parte integrante da sua propria naturez: a) A concentragao e a centralizagao do capital. — Pela concorréncia, os grandes peixes devoram os pequenos. As grandes empresas (firmas) batem as empresas (firmas) de dimensao inferior, que dispdem de menores meios, que ndo podem aproveitar das vantagens da produgio em grande escala, nem in- troduzir a técnica mais avancada e mais dispendiosa. Por isso, a dimensao das firmas de ponta cresce sem cessar (concentragao do capital). Hé um século, empresas com 500 assalariados eram excecio. Hoje, existem as que ja ocu- pam mais de 100 000 assalariados. Ao mesmo tempo, muitas empresas bati- das pela concorréncia sio absorvidas pelos concorrentes vencedores (centrali- zacao do capital). b) A proletarizago progressiva da populacao laboriosa. — A centraliza- 38 gio do capital implica que a quantidade de pequenos patrées trabalhando por sua prépria conta diminua sem cessar. A fraglo da populacao laboriosa o- brigada a vender a sua forga de trabalho, para poder subsistir, ctesce conti- nuamente. Eis os ninieros relativos a esta evolugao nos Estados Unidos, que confirmam de maneira impressionante aquela tendéncia: Evolugao da estrutura de classe nos Estados Unidos (em % de toda a popula- ¢do que exerce uma profissao) Empresirios e Anos Assalariados Independentes 1880 62 36,9 1890 65 33,8 1900 67,9 30,8 1910 71,9 26,3 1920 73,9 23.5 1930 76,8 20,3 1939 78,2 18,8 1950 79,8 17,1 1960 84,2 14 1970 89,9 89 Ao contrario da legenda largamente propalada, esta massa proletaria, se bem que fortemente estratificada, vé o seu grau de homogeneidade aumen- tar muito, e no decrescer. Entre um operario manual, um empregado bancé- rio € um pequeno funcionério piblico, a distancia é menor hoje do que e- ra hd meio século ou um século, tanto no que respeita ao nivel de vida, como no que se refere A tendéncia para se sindicalizar e entrar em greve, como ain- da no que concerne ao acesso potencial 4 consciéncia anti-capitalista, Esta proletarizagio progressiva da populagao em regime capitalista de- riva particularmente da reprodugdo automitica das relagdes de produgio ca- pitalistas, por efeito da repartigao burguesa dos rendimentos, reprodugo esta j& antes referida. Que os salrios sejam baixos ou altos, no servem para mais nada que nao seja satisfazer as necessidades de consumo, imediatas ou diferi- das, dos proletarios. Estes estdo incapacitados de acumular fortunas. Por ou- tro lado, a concentrago do capital obriga a despesas de instalagao cada vez mais elevadas, que impedem 0 acesso 4 propriedade das grandes empresas in- dustriais e comerciais ndo apenas a totalidade da classe operaria mas também 4 imensa maioria da pequena burguesia. ©) O aumento da composigéo orgénica do capital — O capital de cada ca- 39 pitalista e por conseguinte o capital de todos os capitalistas, pode ser dividido em duas partes. A primeira, serve para a compra de mAquinas, de edificios de matérias-primas. O seu valor mantém-se constante no decurso da produgao; conserva-se simplesmente pela forga de trabalho, que daquela transmite uma parte para a dos produtos que fabrica, Marx denomina-a capital constante. A segunda, serve a compra da forga de trabalho, ao pagamento dos salirios. Marx chama-a capital varidvel. E s6 ela que produz a mais-valia. A relagao en- tre o capital constante ¢ o capital varidvel é, a um tempo, uma relagao técnica — por utilizar de maneira rentavel tal ou tal conjunto de maquinas, por ser ne- cessirio darthe umas tantas toneladas de matérias-primas a devorar, por ser necessario para isso por em agao uns tantos operdrios — e uma relacao em va- Jor: tanto de salarios dispendidos para comprar X trabalhadores a fim de fazer funcionar w maquinas, custando y escudos e transformando por Z escudos as matérias-primas. Marx designa esta dupla relagao do capital constante e do ca- pital variavel, por composicao orginica do capital. Com o desenvolvimento do capital industrial esta relagio tende a crescer. Uma massa crescente de maté- rias-primas e uma quantidade crescente (¢ cada vez mais complexa) de miqui- nas, serio postas em movimento por 1 (10, 100, 1000) trabalhadores. A uma mesma massa salarial corresponderd, tendencialmente, um valor cada vez mais elevado dispendido na compra de matérias-primas, de miquinas, de energia ¢ de inatalagies. d) A baixa tendencial da taxa média de lucro. — Esta lei decorre logica- mente da precedente. Se a composi¢ao orginica do capital aumenta, o lucro tenderé a baixar em relagio ao capital total, visto que somente o capital varid- vel produz a mais-valia, produz o lucro. Fala-se, a este propésito, de uma lei tendencial e nao de uma lei que se impée de maneira tao “linear” como a da concentragao do capital ou a da proletarizagio da populacio ativa. De fato, existem diversos fatores que con- trariam esta tendéncia. Dentre eles, o mais importante é o aumento da taxa de exploracao dos assalariados, 0 aumento da taxa da mais-valia (a relagao en- tre a massa total da mais-valia e a massa total dos salérios). No entanto, é ne- cessétio constatar que a baixa tendencial da taxa média de lucro ndo pode ser neutralizada duravelmente pelo crescimento da taxa de mais-valia. Hé com e- feito um limite abaixo do qual nem o salério real nem mesmo o salirio relati- vo pode descer sem pdr em causa a produtividade social do trabalho, o rendi- mento da mao-de-obra, uma vez que nao ha nenhum limite ao crescimento da composigao organica do capital (que pode elevar-se até ao infinito nas empre- sas automatizadas). e) A socializago objetiva da produgio. — No inicio da produgio mer- cantil, cada empresa era uma célula independente de outra, apenas se estabe- lecendo relagdes passageiras com os fornecedores e os clientes. Quanto mais o regime capitalista evolui, mais se entretecem lacos de interdependéncia técni- ca e social duraveis, entre empresas e ramos de um niimero crescente de paises 40 e de continentes. Uma crise num setor repercute em todos os outros setores. Pela primeira vez, desde a origem do género humano, cria-se assim uma infra- estrutura econdmica comum a todos os homens, base da sua solidariedade no mundo marxista de amanha. 5. As contradigGes inerentes a9 modo de produg@o capitalista Na base destas leis de desenvolvimento do regime capitalista, uma série de contradigdes fundamentais do modo de produgao em questdo podem ser evidenciadas: a) A contradigao entre a organizagao cada vez mais e mais deliberada, e a anarquia cada vez mais pronunciada do conjunto da produgdo capitalista,re- sultante da sobrevivéncia da propriedade privada e da produgao mercantil ge- neralizada. is b) A contradigao entre a socializagdo objetiva da produgao e a manu- tengo da seb 0 privada dos produtos, do lucro e dos meios de produ- gao. E na altura em que a interdependéncia das empresas, dog ramos, dos pai- * ses e dos continentes se evidencia a mais avangada, que o fato de todo este sis- ( tema apenas funcionar segundo as ordens ¢ os célculos de lucro de um punha- | do de magnatas capitalista, revela plenamente o seu cariter,a um tempo,eco- nomicamente absurdo e socialmente odioso. c) A contradigéo entre a tendéncia do regime capitalista para desenvol- ver as orcas produtivas de maneira limitada, ¢ os limites estreitos que 0 mes- mo deve obrigatoriamente impor ao consumo individual e social da massa de trabalhadores, visto que o fim da produgao permanece sendo o maxim mais-valia, o que forgosamente implica limitagao dos salarios. “as d) A contradigao entre um impulso enorme da ciéncia e da técnica — com o seu potencial de emancipagdo do homem — e a sujei¢ao dessas forgas produtivas potenciais aos imperativos da venda de mercadorias e do enrique- cimento dos capitalistas, 0 que periodicamente transforma essas forcas produ- tivas em forgas de destruigao (especialmente quando das crises econémicas, das guerras, do advento dos regimes de ditadura fascista sangrenta,mas tam- bém pelas ameacas que pesam sobre o meio ambiente natural do homem) confrontando assim a humanidade com o dilema: socialismo ou barbarie. e) O desenvolvimento inevitavel da luta de classe entre o Capital e 0 Trabalho, que mina periodicamente as condigdes normais de reprodugao da sociedade burguesa. Esta problematica seré examinada de modo mais deta- Thado nos capitulos VIII, IX, XI e XIV. 6. As crises periddicas de sobre—produgao Todas as contradigdes inerentes ao modo de produso capitalista culmi- nam periodicamente em crises de sobre-produgao. A tendéncia para as crises 41 periddicas de sobre-produgio segue uma marcha cfclica da produsao, que a travessa sucessivamente as etapas de reanima¢ao econémica, de alta conjuntu- ra, de “sobre-aquecimento” (boom), de crise ¢ de depressio, todas inerentes a este modo de produgao e s6 a ele. A amplitude destas flutuagdes pode va- iar de época para época, mas a sua realidade é inevitavel em regime capitalis- ta. Houve crises econdmicas (no sentido de interrupgao da produgao nor- mal) em sociedades pré-capitalistas; existem também na sociedade p6s-capita- lista. Mas nem num caso nem no outro se trata de crises de sobre-produgao de mercadorias e de capitais, antes de crises de sub-produgao de valor de uso. O que caracteriza a crise de sobre-produgio capitalista é que os rendimentos baixam, o desemprego cresce, a miséria (e amitide a fome) instalam-se, nio porque a producio fisica baixe, mas, ao contrario, porque aumenta de manei- ra excessiva em relagdo ao poder de compra disponfvel. E porque os produtos so invenddveis que a atividade econdmica baixa e nao porque fisicamente es- casseiem. Na base das crises periddicas de sobre-produgao estado, ao mesmo tem- po, a baixa da taxa média de lucro, a anarquia da produgio capitalista e a ten- déncia a desenvolver a produgio sem ter em conta os limites que o modo de distribuigdo burgués impée ao consumo das massas laboriosas. Por efeito da baixa da taxa de lucro, uma parte crescente dos capitais j4 no pode obter um lucro suficiente. Os investimentos reduzem-se. O desemprego cresce. A falta de venda de um nimero crescente de mercadorias combina-se com este fator para precipitar a queda geral do emprego, dos rendimentos, do poder de com- pra e da atividade econdmica no seu conjunto. A crise de sobre-producao &, simultaneamente, 0 produto destes fatores 0 meio de que dispée o regime capitalista para lhe neutralizar parcialmente os efeitos. A crise provoca a baixa de valor das mercadorias e a faléncia de nu- merosas firmas. O capital total sofre pois uma redugao em valor. Isso permite uma recuperacao da taxa de lucro e da atividade acumulativa. O desemprego macigo permite aumentar a taxa de explorago da mao-de-obra, 0 que conduz ao mesmo resultado. A crise econdmica acentua as contradigdes sociais e pode desembocar numa crise social e politica explosiva. Assinala que o regime capitalista esta maduro para ser substituido por um regime mais eficaz e mais humano, que deixe de dissipar os recursos humanos e materiais. Mas a crise nao provoca au- tomaticamente a derrocada deste regime. Deve ser derrubado pela acao cons- ciente da classe revolucionaria que fez nascer: a classe operdria. 42 | VI — O CAPITALISMO DOS MONOPOLIOS © funcionamento do modo de produgao capitalista no permanece i- déntico desde as suas origens. Excluindo o capitalismo das manufaturas, que se estende do século XVI ao século XVIII, pode-se distinguir duas fases na histéria do capitalismo industrial, propriamente dito: —a fase do capitalismo de livre concorréncia, que vai da revolugo in- dustrial (+ 1760) até aos anos 80 do século pasado; —a fase do imperialismo, que se estende dos anos de 1880 até aos nos- sos dias. 1. Da livre concorréncia aos acordos capitalistas Durante toda a sua primeira fase de existéncia, o capitalismo industrial era caracterizado pela existéncia de um grande namero de empresas indepen- dentes, em cada ramo industrial. Nenhuma delas podia dominar o mercado. Cada uma procurava vender ao mais baixo prego, na esperanga de assim poder escoar a sua mercadoria. Esta situagao modificou-se desde que a concentragdo e a centralizac¢ao capitalistas apenas permitiram subsistir numa série de ramos de inddstrias um néimero reduzido de empresas, produzindo em conjunto 60, 70 ou 80 % da produgao. Estas empresas podiam desde entdo entender-se para tentar domi- nar 0 mercado, quer dizer, cessar de fazer baixar os precos de venda, repartin- do entre si os mercados, segundo as relagdes de forgas do momento. Semelhante declinio da livre concorréncia capitalista foi facilitado por uma importante revolugao tecnoldgica que se produziu na mesma altura: a substituicao pelo motor elétrico e de explosio, do motor a vapor, como prin- cipal fonte de energia na indistria e nos principais ramos de transportes. De- senvolveu-se toda uma série de indistrias novas — indistrias de eletricidade, inddstria de aparelhos elétricos, indistria petrolifera, industria automével, quimica de sintese — que exigiram investimentos iniciais muito mais impor- tantes do que nos antigos ramos industriais, o que reduziu 4 partida o nime- ro de concorrentes potenci As principais formas de acordos entre capitalistas sio: — 0 cartel e o sindicato, num mesmo ramo de indistria, em que cada firma participante no acordo conserva a sua independéncia; — 0 frust e a fusio de empresas, em que esta independéncia desaparece no seio duma tinica sociedade gigante; 43 —0 grupo financeiro e a sociedade Holding, em que um pequeno nime- ro de capitalistas controlam numerosas empresas de varios ramos industriais que se mantém juridicamente independentes umas das outras. 2. As concentrapbes bancirias e o capital financeiro © mesmo processo de concentragao e centralizagio do capital que se realiza no dominio da indiistria e dos transportes, produz-se igualmente no dominio dos bancos. No limite desta evolugao, um pequeno niimero de ban- cos gigantes domina toda a vida financeira dos paises capitalistas. O papel principal dos bancos em regime capitalista é conceder crédito as empresas. Desde que a concentracao bancéria atinge um estagio avangado, um pequeno nimero de banqueiros detém um monopélio de fato quanto & concessao de crédito. Isto leva-os a deixar de se comportarem como empresta- dores passivos, que se contentam em embolsar os juros sobre os capitais adian- tados enquanto aguardam 0 reembolso do crédito no vencimento fixado. Com efeito, os bancos que concedem créditos as empresas de atividades idénticas ou anexas, tém um interesse maximo em assegurar a rentabilidade e a solvabilidade de todas essas empresas. Tém interesse em evitar que os lucros descam a zero, em virtude duma concorréncia cortante. Intervém pois para a- celerar — e algumas vezes impor — a concentragao e centralizagao industriais. Desta forma, os bancos podem tomar iniciativas de formacao de gran- des trusts. Podem igualmente utilizar as suas posigdes monopolistas, no domé- nio do crédito, para obter, em troca dos créditos, participagdes no capital das grandes empresas. Assim se desenvolve o capital financeiro, que consiste na penetragao do capital bancério na industria tomando nesta uma posigao pre- dominante. No topo da piramide de poder da época do capitalismo dos monopélios, surgem os grupos financeiros que controlam, a um tempo, os bancos e outras instituigdes financeiras (como, por exemplo, as companhias de seguros), os grandes frusts da industria e dos transportes, os grandes armazéns, etc. Um punhado de grandes capitalistas, as famosas “sessenta familias” nos Estados Unidos e as “‘duzentas familias” em Franca, tem nas suas maos todas as ala- vancas do poder econémico dos paises imperialistas, Na Bélgica, uma dizia de grupos financeiros (o grupo da Société Génerale; o grupo de Launoit; 0 gru- po Solvay-Botl; o grupo Empain; o grupo Lambert; o grupo Petrofina; o gru- po Sofina; o grupo Almanij; 0 grupo Evence Coppée), controlam o essencial da economia, a par de alguns grandes grupos estrangeiros. Nos Estados Unidos, alguns grupos financeiros gigantes ( nomeadamen- te os grupos Morgan, Rockefeller, du Pont, Mellon, os chamados grupos de Chicago e de Cleveland, o grupo do Bank of America, etc.) exercem um domi- nio muito extenso sobre toda a economia. O mesmo se passa no Japao, onde os antigos zaibatsu trustes, aparentemente desmantelados apés a 2° guerra 44 mundial, facilmente se reconstrufram. Trata-se principalmente dos grupos Mitsubishi, Mitsui, Itoh e Sumitomo. 3. Capitalismo dos monopélios e capitalismo de livre-concorréncia O surto dos monopélios nio significa o desaparecimento da concorrén- cia capitalista. E ainda menos significa que cada ramo industrial seja domina- do definitivamente por uma sé firma. Significa, antes de mais, que nos seto- res monopolizados: a) A concorréncia deixa de se exercer normalmente pela baixa de pre- gos. b) Por este fato, os grandes trustes obtém sobre-lucros monopolisticos, quer dizer, uma taxa de lucro superior 4 das empresas de setores nio mono- polizados. Por outro lado, a concorréncia prossegue: a) No interior dos setores no monopolizados da economia, que conti- nuam a ser numerosos. b) Entre monopélios, de modo corrente, pelo uso de técnicas diferen- tes da baixa de precos de venda (pela via da redugao do prego de custo, pela publicidade, etc.) e, excepcionalmente, também por uma “guerra de pregos”, sobretudo quando as relagdes de forga entre os trustes se modificam e quando se trata de ajustar a partilha dos mercados a essas novas relagdes de forgas. ¢) Entre monopélios “nacionais" no mercado mundial, essencialmente pela via normal da “guerra de pregos”. Contudo, a concentragao do capital pode avangar até ao ponto de, no mesmo mercado mundial, subsistirem ape- nas algumas firmas num ramo industrial, o que pode conduzir a criagao de “cartéis internacionais” que entre si partilham esses mercados. 4. A exportagio de capitais Os monopélios nao podem controlar 0s mercados monopolizados sem que nestes limitem o crescimento da produgao e, portanto, a acumulagao do capital. Mas, por outro lado, esses mesmos monopélios dispée a de capitais abundantes, gragas sobretudo aos sobre-lucros monopolisticos que realizam. A época imperialista do capitalismo caracteriza-se pois pelo fenémeno do ex- cedente de capitais, nas maos dos monopélios dos paises imperialistas, que buscam novos campos de investimento. A exportagao dos capitais torna-se assim trago essencial da era capitalista. Esses capitais so exportados para paises onde rendem lucro superior & média dos setores competitivos dos paises imperialistas, e vio estimular pro- dugSes complementares da indistria metropolitana. Sao utilizados, antes de 45 mais nada, no desenvolvimento da produgao de matérias-primas vegetais e mi- nerais nos pafses subdesenvolvidos (da Asia, Africa e América Latina). Enquanto 0 capitalismo operou no mercado mundial unicamente no sentido de ai vender as suas mercadorias e comprar matérias-primas e viveres, nao tinha interesse de maior em abrir caminho pela fora militar (conquanto esta fosse utilizada para abater barreiras opostas penetragdo das suas merca- dorias — caso das guerras do pio, desencadeadas pela Gri-Bretanha para o- brigar o Império chinés a levantar as interdigdes que afetavam a importagio do épio proviniente da India britanica). Mas esta situagao modificou-se desde que a exportagao de capitais comegou a tomar um lugar preponderante nas operagées internacionais do capital. ‘Ao passo que uma mercadoria vendida deve ser paga pelo maximo no espaco de alguns meses, os capitais investidos num pais s6 ao fim de longos a- nos so amortizados. Por isso, as poténcias imperialistas passam a ter um in- teresse maximo em estabelecer um controle permanente sobre os paises onde investiram os seus capitais. Este controle pode ser indireto — através de go- vernos a soldo do estrangeiro, no caso de Estados formalmente independen- tes, como os paises semicoloniais. Ou pode ser direto — através de uma ad- ministragio diretamente dependente da metropole, como nos paises colo- niais. A era imperialista assinala-se, pois, por uma tendéncia para a partilha do mundo em impérios coloniais e em zonas de influéncias das grandesipo- téncias imperialistas. Esta partilha realizou-se em dado perfodo (sobretudo o de 1880-1900), em fungio das relagdes de forga existentes nesse perfodo: hegemonia da Gra- Bretanha, forga importante dos imperialismos francés, holandés e belga; fra- queza relativa das “jovens” poténcias imperialistas: Alemanha, Estados Uni- dos, Italia e Japao. As guerras imperialistas em série vao ser 0 meio pelo qual as poténcias imperialistas “‘jovens” se esforgarao por utilizar a alteracao das relagdes de forca para modificar a partilha do mundo em seu favor: guerra russo-japone- sa, 14 guerra mundial, 2a guerra mundial. Sao guerras conduzidas com fins de rapina, visando reas de investi- mento de capitais, fontes de matérias-primas, mercados de escoamento privi- legiados, e nao guerras por um ideal politico (“a favor ou contra a democra- ia”, a favor ou contra as autocracias, a favor ou contra o fascismo). O mes- mo comentirio se aplica as guerras de conquista colonial que balizam a era imperialista (no século XX, sobretudo a guerra italo-turca, a guerra sino-japo- nesa, a guerra da Itdlia contra a Abissinia) ou as guerras colonialistas contra 0 movimento de libertagao dos povos (guerra da Argélia, guerra do Vietnam, etc.), nas quais uma das partes prossegue fins de rapina mas em que 0 povo semicolonial ou colonial defende uma justa causa, procurando escapar a es- cravatura imperialista. 46 5. Patses imperialistas paises dependentes Assim, a era imperialista ndo mostra apenas o estabelecimento do con- trole de um punhado de magnatas da finanga e da indistria sobre as nagdes metropolitanas. Caracteriza-se também pelo estabelecimento do controle da burguesia imperialista de um punhado de paises sobre os povos dos paises co- loniais. Os seus capitais investidos nesses paises obtém sobre-lucros coloniais, que sio repatriados para a metépole. A divisio mundial do trabalho, assente na troca de produtos manufaturados metropolitanos por matérias-primas pro- vindas das colénias, conduz a uma troca desigual, na qual os paises pobres trocam quantidades de trabalho mais reduzidas (porque mais intensivo) dos paises metropolitanos. A administragao colonial é paga por impostos arranca- dos aos povos colonizados, parte significativa dos quais é igualmente repatria- da. Todos estes recursos extra(dos dos paises dependentes fazem falta quando se pretende financiar 0 seu crescimento econdmico. O imperialismo & assim uma das principais causas do subdesenvolvimento do hemisfério meri- dional. 6. A era do capitalismo tardio ‘A era imperialista pode, por sua vez, ser subdividida em duas fases: a e- ra do imperialismo “classico”, que recobre o perfodo anterior 4 1a guerra mundial bem como o periodo de entre as duas guerras; ¢ a era do capitalismo tardio, que comeca com a 2a guerra mundial ou com o fim desta. Nesta era do capitalismo tardio, a concentragao e a centralizagao do ca- pital estende-se cada vez mais & escala internacional. Ao passo que o truste monopolistico nacional era a “célula de base” da era imperialista cléssica, a sociedade multinacional é a “célula de base” da era do capitalismo tardio. Mas, ao mesmo tempo, a era do capitalismo tardio caracteriza-se por uma a- celeragao da inovagio tecnolégica, pelo encurtamento dos perfodos de amor- tizagio do capital investido em méquinas, pela obrigaco, para as grandes fir- mas, de calcular e planificar de modo mais exato os seus custos e os seus in- vestimentos, ¢ pela tendéncia & programagao econédmica do Estado, como conseqiiéncia natural desta caracterizagao. A intervengao econémica do Estado avoluma-se também pela obrigago em que se encontra a burguesia, de reativar, com ajuda do Estado, os setores industriais tornados cronicamente deficitarios; de financiar pelo Estado os se- tores de ponta ainda nao rentiveis; de assegurar pelo Estado uma garantia dos lucros dos grandes monopélios, concedendo a estes encomendas do Estado (sobretudo, mas nao s6, encomendas militares) bem como subvengées, subsi- dios, etc. Esta internacionalizagao crescente da produgao, por um lado, e esta in- 47 tervengao crescente do Estado nacional na vida econémica, por outro lado, provocam uma série de novas contradigées na era do capitalismo tardio, de que a crise do sistema monetério mundial, alimentada pela inflagdo perma- nente, é uma das principais expressdes. A era do capitalismo tardio caracteriza-se também pela desintegracao ge- neralizada dos impérios coloniais, pela transformagio dos paises coloniais em semicoloniais, pela reorientacio das exportagdes de capitais, que passam agora primacialmente, de um a outro pais imperialista e nao dos paises metropolita- nos para os paises coloniais, e por um inicio de industrializagao (sobretudo lo- calizada na esfera dos bens de consumo), nos paises semicoloniais. Esta indus. trializagao é nao sé uma tentativa da burguesia para travar a revolta popular, mas também um resultado do fato que as exportagdes de maquinas e bens de equipamento constituem hoje a maior parte das exportagSes dos proprios paf- ses imperialistas. Nem as transformagées ocorridas no funcionamento da economia capi- talista, mesmo no interior dos paises imperialistas, nem as que respeitam 3 e- conomia dos paises semicoloniais, bem como 0 funcionamento de conjunto do sistema capitalista, permitem pois pdr em causa a conclusao a que Lenine chegou ha mais de meio século quanto ao significado historico do conjunto da época imperialista. Esta época é a de agudizagao de todas as contradigdes inerentes ao sistema: contradigdes entre o Capital eo Trabalho, entre os pai- ses imperialistas ¢ 0s paises colonizados, bem como contradigées inter-impe- rialistas. E uma época sob o signo de conflitos violentos de guerras imperia- listas, de guerras de libertagao nacional, de guerras civis. E a época das revolu- gdes e contra-revolugées cada vez mais explosivas, ¢ no a época de um tran- qiiilo e pacifico progresso da civilizagio. Com mais forte razio se deve recusar os mitos segundo os quais a atual economia ocidental jé ndo seria uma economia capitalista propriamente dita. A recessio generalizada da economia capitalista internacional em 1974-75 deu um golpe mortal na tese segundo a qual estarfamos vivendo numa preten- sa “economia mista”, em que a regulagao da vida econémica pelos poderes piblicos permitiria assegurar de maneira ininterrupta o crescimento econdmi- co, o pleno emprego e a extensio do bem-estar a todos. A realidade demons- tra uma vez mais que os imperativos do lucro privado continuam a reger esta economia, provocam periodicamente o desemprego macigo e a sobre-produ- ¢40, continuando pois sempre a tratar-se de uma economia capitalista. Do mesmo modo, a tese segundo a qual j4 nao seriam os grupos capita- listas mais poderosos, mas os gestores, os burocratas, ou mesmo os tecnocra- tas e os sbios quem dirigiria a sociedade ocidental, nao tem fundamento sem qualquer prova cientifica séria. Muitos destes “senhores” da sociedade viram- se atirados para a rua no decurso das duas recentes recesses. A delega- gio de poderes que o grande capital aceita e aperfeicoa no seio das sociedades gigantes que controla, é extensiva & maioria das suas prerrogativas, exceto 48 quanto ao essencial: as decisdes de iltima insténcia sobre as formas e orienta- Ges fundamentais de valorizagao do capital e de acumulacio do capital, ou seja, tudo 0 que toca ao “santo dos santos”: a prioridade do lucto dos mono- polios, & qual pode ser sacrificada a distribuigao de dividendos aos acionistas. ‘Aqueles que na referida tese julgaram ver uma prova de que a propriedade privada jé ndo conta quase nada, esquecem a tendéncia, predominante desde © inicio do capitalismo, a sacrificar a propriedade privada dos pequenos & de um punhado de grandes. 49 VII — O SISTEMA IMPERIALISTA MUNDIAL 1. A industrializagdo capitalista e a lei do desenvolvimento desigual e combinado O capitalismo industrial moderno nasceu na Gri-Bretanha. No decurso do século XIX estendeu-se progressivamente 4 maior parte dos pafses da Euro- pa ocidental e central, bem como aos Estados Unidos, e mais tarde ao Japio. A existéncia de alguns paises inicialmente industrializados nao parecia impe- dir a penetragao e a extensao do capitalismo industrial numa série sucessiva de paises em vias de industrializacao. Pelo contrario, a grande inddstria britdnica, belga, francesa destrufa im placavelmente naqueles iltimos as formas de produgio pré-industriais (artesa- nato e indistria domiciliar). Mas os capitais britanicos, belgas e franceses ti- nham ainda amplos campos de investimento que Ihes estavam abertos nos seus proprios paises. Assim, é geralmente uma industria moderna nacional que substitui progressivamente o artesanato, arruinado pela concorréncia das mer- cadorias estrangeiras baratas. Esse foi particularmente 0 caso ocorrido com a produgao de téxteis na Alemanha, na Itélia, em Espanha, na Austria, na Boé- mia, na Rassia tsarista (incluindo a Polénia), nos Paises Baixos, etc. Com o advento da era imperialista, do capitalismo dos monopélios, es- ta situagao modifica-se totalmente. A partir de entdo, o funcionamento do mercado mundial capitalista deixa de facilitar e, pelo contrario, entrava o de- senvolvimento capitalista “normal” e designadamente a industrializac3o em profundidade dos paises subdesenvolvidos, A formula de Marx, segundo a qual cada pais avangado mostra a um pais menos desenvolvido a imagem do seu proprio futuro, perde a validade que tinha conservado ao longo de toda a era do capitalismo de livre concorréncia, Trés fatores essenciais (e numerosos fatores suplementares que nao mencionaremos) determinam esta alteragio fundamental do funcionamen- to da economia capitalista internacional: a) A amplitude da produgao em série de numerosas mercadorias pelos paises imperialistas, que inunda o mercado mundial, que adquire um avango tal em produtividade e em prego de custo, em relagao a toda a produgao in- dustrial inicial nos paises subdesenvolvidos, que esta ltima ja ndo pode ar- rancar em grande escala, j4 nao pode seriamente sustentar a concorréncia contra a produgdo estrangeira, E pois cada vez mais a indastria oci- 50 dental ( ¢ mais tarde também a indiistria japonesa) que aproveitard doravante da rufna progressiva do artesanato, da indistria domiciliar, da manufatura nos paises da Europa oriental, da América Latina, da Asia e da Africa. b) O excedente de capitais, que aparece de maneira mais ou menos per- manente nos pafses capitalistas industrializados sob a influéncia progressiva dos monopélios, desencadeia um vasto movimento de exportagao de capitais para os paises subdesenvolvidos ¢ nelesdesenvolve ramos de produgio com- plementares e nao concorrenciais em relagao A indistria ocidental. Deste mo- do, os capitais estrangeiros que dominam a economia desses paises, especia- lizam-nos na produgao de matérias-primas minerais e vegetais, bem como na produgao de viveres. Por outro lado, decaindo progressivamente para o estatu- to de pafs semicolonial, ou colonial, o Estado, nesses paises, defende antes de tudo os interesses do capital estrangeiro, Nao toma sequer medidas, mesmo modestas, de protegao da indiistria nascente contra a concorréncia dos produ- tos importados. c) O dominio da economia dos paises dependentes pelos capitais estran- geiros cria uma situagZo econdmica e social na qual o Estado preserva ¢ con- solida os interesses das antigas classes dominantes, ligando-as aos interesses do tal imperialista, em vez de elimind-las mais ou menos radicalmente, como foi o caso durante o decurso das grandes revolugoes democratico-burguesas, na Europa ocidental e nos Estados Unidos. aqeengiey Cs arias we O conjunto desta nova evoliigao da economia capitalista internacional na era imperialista, pode resumir-se na lei do desenvolvimento desigual e com- binado. Nos paises atrasados — ou pelo menos numa série deles — a estrutura social ¢ econdmica, nos seus tracos fundamentais, no é nem a de uma soci dade tipicamente feudal, nem a de uma sociedade tipicamente capitalista. Sob © impacto do dominio do capital imperialista, combina, de maneira excepcio- nal, tragos feudais, semifeudais, semicapitalistas e capitalistas. A forca social dominante é a do capital, mas é em geral do capital estrangeiro que se trata. A burguesia indigena nao exerce pois o poder politico. A maioria da popula- go nao se compée de assalariados, e em geral também nio de servos, mas de camponeses submetidos,em graus diversos, is arbitrariedades dos_proprieté- rios fundiarios e dos cobradores de impostos. Mas esta grande massa, embora vivendo em parte afastada da produgao mercantil e mesmo da produgao mo- netéria, nem por isso sofreu menos os efeitos desastrosos das flutuagdes de pregos das matérias-primas no mercado mundial imperialista, através dos efei- tos globais que tais flutuagSes exercem sobre a economia nacional. 2. A exploragiio dos paises coloniais e semicoloniais pelo capital imperialista © afluxo dos capitais estrangeiros aos paises dependentes, coloniais e semicoloniais, provocou ao longo de decénios sucessivos uma pilhagem, uma exploragio e uma opressio sobre mais de um bilhao de seres humanos pelo 51 capital imperialista, que representa um dos principais crimes de que o sistema capitalista foi responsavel no decorrer da sua histéria. Se, como diz Marx, 0 capitalismo apareceu sobre a terra transpirando sangue e suor por todos os poros, em nenhum caso esta definigZo se justifica de maneira tio literal co- mo no dos paises dependentes. A era imperialista desenvolve-se antes de tudo sob o signo da conquista colonial. O colonialismo é, decerto, mais velho que o imperialismo. Os con- quistadores espanhdis ¢ portugueses tinham jé posto a ferro e fogo as Cand- ras eCabo Verde ea costa africana, bem como os paises da América Central e do sul, exterminando af quase por toda a parte a maioria, quando nio a tota- lidade, da populagao indigena. Os colonos brancos em nada se comportaram de maneira mais humana em relagio aos indios da América do Norte. A con- quista do Império da India pela Gra-Bretanha foi acompanhada de um corte jo de atrocidades, tal como a da Argélia pela Franca. Com o advento da era imperialista, essas atrocidades estendem-se a uma grande parte da Africa, da Asia e da Oceania, Massacres, deportacdes, expul- so dos camponeses das suas terras, introdugdo do trabalho forcado quando no da servidao de fato, sucederam-se em grande escala. O racismo justifica estas priticas desumanas afirmando a superioridade e o “destino histérico civilizador” da raga branca. Por forma ainda mais sutil, © mesmo racismo expropria os povos colonizados do seu proprio passado, da sua propria cultura, da sua propria altivez étnica, quando nao mesmo da sua lingua, ao mesmo tempo que lhes subtrai as riquezas naturais e uma boa parte dos frutos do seu trabalho. Se os escravos coloniais ousam rebelar-se contra o dominio colonialista, sao reprimidos com crueza inominavel. Mulheres e criancas indias massacradas nas guerras de indios nos Estados Unidos; amotinados hindus postos & frente de canhées que disparam; tribos do Médio Oriente bombardeadas implacavel- mente pela RAF; dezenas de milhar de argelinos civis massacrados como re- presdlia da insurreigao nacional de maio de 1945: tudo isso faz pressagiar, quando nao antecipa fielmente, as crueldades mais igndbeis do nazismo, in- cluindo 0 genocidio puro e simples. Se os burgueses da Europa e da América se indignaram tanto contra Hitler, foi porque ele cometeu esse crime de lesa- raga branca que consistiu em aplicar a povos da Europa, por conta do impe- rialismo alemao, aquilo que os povos da Asia, da America e da Africa tinham sofrido 4s maos do imperialismo mundial. Toda a economia dos paises dependentes est submetida aos interesses e ao “diktat”” do capital estrangeiro. Na maioria destes paises, as linhas fer- rovidrias ligam aos portos os centros de produgao que trabalham para a ex- portacio, mas nao os principais centros urbanos entre si. A infra-estrutura bé- sica é a que serve as atividades de importacdo e de exportacdo; as redes esco- lar, hospitalar e cultural, pelo contrario, sofrem de um subdesenvolvimento horroroso. A maior parte da populagZo estagna no analfabetismo, na igno- 52 rancia e na miséria. Sem davida que a penetragao do capital estrangeiro permite um certo desenvolvimento das forcas produtivas, faz nascer algumas grandes cidades in- dustriais, desenvolve um embrido mais ou menos importante do proletariado nos portos, nas minas, nas plantagdes, nos caminhos-de-ferro e na administra- io pitblica. Mas, sem exagero, pode-se dizer que ao longo dos trés quartos de século que separam o inicio da marcha para a colonizagao integral dos paises subdesenvolvidos, da vitéria da revolugao chinesa, o nfvel de vida da popula- gio média, da Asia, da Africa e da América (com excegao de alguns paises privilegiados), estagnou ou recuou. Nalguns importantes paises recuou mes- mo de maneira catastrofica. As fomes periédicas, s6 por si, ceifaram literal- mente dezenas de milhdes de indianos e de chineses. 3. O “bloco de classes” no poder nos paises semicoloniais Para compreender de maneira mais aprofundada a forma como o domi nio imperialista “gelou” os paises coloniais e semicoloniais quanto ao seu de- senvolvimento e neles impediu uma industrializagdo progressiva “normal” do tipo capitalista ocidental, é preciso discorrer um pouco mais sobre a natureza do “‘bloco de classes sociais” no poder nesses paises durante a era imperialista “classica” e sobre as conseqiiéncias desse “bloco” na evolugio econdmica e social, Quando o capital estrangeiro penetra em massa nos paises coloniais ¢ semicoloniais, a classe dominante local é em geral composta de proprietari- 0s (semifeudais e semicapitalistas, em proporcdes diversas segundo o pais con- siderado) em alianca com o capital mercantil e bancdrio ou usuério. Nos paf- ses mais atrasados, como os da Africa negra, se esté antes em presenga de so- ciedades tribais em decomposig’o sob o efeito prolongado do trifico de negros. O capital estrangeiro vai geralmente aliar-se a essas classes dominantes, traté-las como intermediérias para a exploracZo dos camponeses e dos traba- thadores indigenas e consolidar as suas relagdes exploradoras com os seus pro- prios povos. Algumas vezes, chega mesmo a estender amplamente o grau des- sa exploragao de forma pré-capitalista, combinando-a ao mesmo tempo com a introdugao de novas formas de exploracao capitalista. No Ben: ala, o capita- lismo britanico vai transformar os zamindars, que eram simples cobradores de impostos ao servigo dos imperadores mongéis, pura e simplesmente em proprietarios das terras nas quais cobravam impostos. Aparecem assim trés classes sociais hibridas na sociedade dos paises subdesenvolvidos, que marcam com o seu selo a blocagem do seu desenvolvi- mento econémico e social: — A classe da burguesia “compradora’; burguesia autéctone, a principio simples associados por mandato das casas estrangeiras de importagao-expor- 53 tagdo, que se enriquecem e se transformam progressivamente em empresirios independentes. As suas empresas circunscrevem-se essencialmente a esfera do comércio (e dos “servigos”). Os seus lucros so geralmente investidos no co- mércio, na usura, na compra de terras, na especulagao imobiliéria, etc. — A classe do semiproletariado rural (mais tarde alargado aos“marginais urbanos”). Os camponeses empobrécidos e expulsos das suas terras nio en- contram trabalho na indistria dado o subdesenvolvimento desta. Sao obriga- dos a permanecer no campo e a alugar os seus bragos aos grandes camponeses ow a alugar pedacos de terra para daf tirar uma subsisténcia miseravel em tro- ca de uma renda fundidria (ou, no sistema de “a meias”, de uma parte da co- Iheita), cada vez mais exorbitantes. Quanto mais funda é a sua miséria easua falta de emprego, mais alta é a renda que se dispdem a pagar para arrendar um terreno. Quanto mais elevada é a renda fundiaria, menos os detentores de capitais tém interesse em investé-los na indistria, empregando-os antes na compra da terra. Quanto maior é a miséria da massa camponesa, mais restrito € o mercado interior de bens de consumo, e mais se mantém o subdesenvol- vimento da indiistria, mais intenso permanece o sub-emprego. O subdesenvolvimento nao é pois o resultado da falta absoluta de capi- tais ou de recursos. Bem pelo contrério, o sobre-produto social representa, muitas vezes, uma fragao mais elevada do rendimento nacional nos paises a- trasados do que nos paises industrializados. O subdesenvolvimento é o resul- tado de uma estrutura social e econdmica derivada do dominio capitalista, que faz com que a acumulagao de capitais-dinheiro nao se oriente principal- mente para a indistria nem mesmo para o investimento produtivo, o que pro- voca um imenso sub-emprego (quantitativo e qualitativo) em relagao aos paf- ses imperialistas. 4. O movimento de libertag@o nacional Com o tempo, era inevitavel que centenas de milhGes de seres humanos nao iriam suportar passivamente um sistema de exploragao e de opressao im- postos por um punhado de grandes capitalistas dos paises imperialistas, bem como pelos aparelhos administrativos ¢ represivos ao seu servigo. Um mo- vimento de libertagao nacional vai progressivamente ganhando raizes entre a jovem intelligentsia dos pafses da América Latina, da Asia e da Africa, que a- dota as idéias democratico-burguesas ¢ mesmo semi-socialistas e socialistas do Ocidente, para contestar 0 dominio estrangeiro sobre o seu pais. O naciona- lismo dos paises dependentes, de orientagao anti-imperialista, articula-se com base nos interesses de trés forgas sociais: — Eadotado, acima de tudo, pela jovem burguesia nacional industrial, on- de esta possui ja uma base material prépria, que faz com que os seus interes- se entrem em concorréncia com os da poténcia imperialista predominante. O caso mais tipico é o do Partido Indiano do Congresso, dirigido por Gandi e 54 fortemente apoiado pelos grandes grupos industriais indianos. —Sobo impulso da revolugao russa, pode ser perfilhado pelo movimento operério nascente, que dele fara sobretudo um instrumento de mobilizacao das massas urbanas e aldeds, contra o poder estabelecido. O exemplo mais t¢ pico é o do Partido Comunista Chinés dos anos 20 ¢ o do Partido Comunista Indochinés nos decénios seguintes. — Pode promover explosdes de revolta da pequena burguesia urbana e do campesinato, tomando a forma politica do populismo nacionalista. E sobre- tudo a revolta mexicana de 1910 que serve de protétipo a esta forma de mo- vimento anti-imperialista. Em geral, a entrada em crise do sistema imperialista, assinalado por convulsées internas sucessivas — derrota da Rissia tsarista na guerra contra o Japio em 1904-5; revolucao russa de 1905; primeira guerra mundial; revolu- ¢ao russa de 1917; entrada em cena do movimento de massa na India e na China; crise econdmica de 1929-32; segunda guerra mundial; derrotas sofri- das pelo imperialismo ocidental as mads do imperialismo japonés em 1941- 42; derrota do imperialismo japonés em 1945 — estimulou fortemente o mo- vimento de libertagio nacional nos paises dependentes. Este movimento rece- beu o seu maior impulso da vitéria da revolucao chinesa de 1949. Os problemas taticos e estratégicos que, para o movimento operario in- ternacional (e indigena, nos paises dependentes) decorrem da aparigio do movimento de libertagéo nacional nos pafses semicoloniais e coloniais, sio tratados mais detalhadamente no capitulo XI, ponto 4 no capitulo XIII, ponto 4. Sublinhe-se aqui apenas particular dever do movimento operario dos paises imperialistas de apoiar incondicionalmente todo o movimento e toda a agao efetiva das massas dos paises coloniais e semicoloniais, contra a exploragao ¢ a opressdo que sofrem por parte das poténcias imperialistas. Es- se dever implica o de distinguir estritamente as guerras inter-imperialistas — guerras reaciondrias — das guerras de libertagdo nacional, que, independente- mente da forga politica que dirige o povo oprimido nesta ou naquela etapa da luta, so guerras justas, em relacdo as quais o proletariado mundial deve a- gir pela vitéria dos povos oprimidos. 5. O neocolonialismo / OQ impulso do movimento de libertagdo nacional a seguir 4 2* guerra mundial levou o imperialismo a modificar as suas formas de dominio nos pa- fses atrasados. Esse dominio, de direto, tornou-se progressivamente indireto. ‘| A quantidade de coldnias, propriamente falando, administradas diretamente \ pela poténcia colonial, derreteu-se como cera ao sol. No espaco de dois decé- ‘nios, passou de cerca de setenta a algumas apenas. Os impérios coloniais bri- tanicos, franceses, italianos, holandeses e, finalmente, portugueses ¢ espa- nhéis, desmoronaram-se totalmente. $5 Sem divida que o desparecimento destes Impérios coloniais nao se o- perou sem uma resisténcia sangrenta e contra-revolucionéria de setores im- portantes do capital imperialista. Disso so testemunho as sangrentas guerras coloniais conduzidas pelo imperialismo holandés na Indonésia, pelo impe- rialismo britanico na Malisia e no Quénia, pelo imperialismo francés na Indo- china a na Argélia, bem como pelas “expedigées” mais curtas mas no menos sangrentas, como a do Suez em 1956 contra o Egito. Mas, historicamente, es- tes sinistros emprendimentos aparecem como combates de retaguarda. O co- lonialismo direto estava claramente condenado. Contudo, o seu desaparecimento nao implica nada a desagregacio do sistema imperialista mundial. Este continua a existir, embora sob formas mo- < dificadas. A grande maioria dos paises semicoloniais continua a estar circuns- | crita 4 exportagdo de matérias-primas. Continua a sofrer todas as nefastas conseqiiéncias da exploradora troca desigual. A disténcia entre o seu grau de desenvolvimento e o dos paises imperialistas continua a aumentar € nao a re- duzir-se. A distancia entre o rendimento por cabega de habitante e o nivel de bem-estar na parte “norte” e na parte “sul” do globo, acentua-se ainda mais. “No entanto, a transformagao do dominio imperialista direto em dom nio imperialista indireto nos paises subdesenvolvidos, implica uma associagio mais estreita da burguesia industrial “nacional” a exploragdo das massas la- < boriosas desses paises, bem como uma certa aceleragao do processo de indus- trializagdo numa série de paises semicoloniais. Isso decorre, a um tempo, das relagdes de forca politicas modificadas (ou seja, representa uma concessio & \ nevitavel do sistema a pressio cada vez mais forte das massas) e de uma modi- ficagao dos interesses fundamentais dos principais grupos imperialistas. Com efeito, nos paises imperialistas, 0 contetido da exportagao conhe- ceu uma modificag3o importante. A categoria “maquinas, bens de equipa- mento e bens de transporte” ocupa ai agora o lugar preponderante, que antes era ocupado pelas categorias “bens de consumo e acos”. Ora, é impossivel que 0s trustes monopolisticos principais exportem cada vez mais maquinas para os paises dependentes sem que neles estimulem certas formas de industrializa- cio (em geral e sobretudo limitadas & indistria de bens de consumo). Por outro lado, no quadro da sua estratégia mundial, as sociedades mul- tinacionais tém interesse em implantar-se num certo ntimero de paises depen- dentes, a fim de neles ocupar de algum modo e & partida certo terreno, com vista 4 expansio futura das vendas, que prevéem. Assim se generaliza a priti- ca das empresas em comum (joint ventures) entre o capital imperialista, 0 ca- pital industrial “nacional”, 6 capital privado e o capital do Estado nesses pat ses, o que é caracteristico da estrutura neocolonial. Por este fato, o peso da classe operaria aumenta na sociedade. ¢ Esta estrutura mantém-se inserida num conjunto imperialista constran- gente e explorador. A industrializagio mantém-se limitada; o seu “mercado interior” em geral nao ultrapassa 20 % a 25 % da populacio: classes abastadas 56 + técnicos, quadros, etc. + campesinato rico. A miséria das massas continua a ter enorme. As contradigdes sociais aumentam em vez de diminuirem; dai permanecer intacto o potencial de explosses revolucionérias nesses paises. Uma nova camada social, nestas condigdes, ganha importincia: a buro- cracia de Estado, que “gere”” em geral um setor nacionalizado importante, que se erige em representante das preocupagdes nacionais face ao estrangeiro, mas que aproveita de fato do seu monopélio de gestao para efetuar a sua acumula- do privada em grande escala. VIII. AS ORIGENS DO MOVIMENTO OPERARIO MODERNO Desde que os assalariados existem, ou seja, bastante antes da formagio do capitalismo moderno, houve manifestagSes de luta de classe entre patroes ¢ operarios. Esta luta no resulta de atividades subversivas, mas, pelo contrario, @ doutrina da luta de classe é produto da pratica da luta de classe que a precede. 1. A luta de classe elementar do proletariado As manifestagdes elementares da luta de classe dos assalariados giraram sempre a volta de trés reivindicagoes: 1) O aumento dos salérios, meio imediato de modificar a repartigo do produto social entre patrdes e operirios, em favor destes. 2) A redugio das horas de trabalho sem redugao de salario foi outro meio direto de modificar esta repartigao em favor dos trabalhadores. 3) A liberdade de organizacao. Enquanto que o patrdo, proprietério do capital e dos meios de produgio, dispée por seu lado de todo o poderio eco- némico, os operdrios estio desarmados ao longo do tempo em que travam en- tre si uma luta de concorréncia para obter emprego. Nestas condigdes, as “re- gras do jogo” favorecem unilateralmente os capitalistas, que podem fixar sa- larios tao baixos quanto desejem, ao passo que os operarios sio obrigados a a- ceité-los pelo receio de perder o seu emprego e, conseqiientemente, a sua sub- sisténcia. E pela supressio dessa concorréncia que os divide, pela formagao de um bloco ante o patronato e a recusa em conjunto de trabalhar em condigées jul- gadas inaceitaveis, que os trabalhadores tém possibilidade de obter vantagens na luta que os opdem ao patronato. A experiéncia ensina-thes rapidamente que, sem liberdade de organizag4o, nao dispdem de armas para se oporem pressao capitalista. A luta de classe elementar dos proletarios tomou tradicionalmente a forma de recusa coletiva do trabalho, ou seja, a greve, Os cronistas relatam- hos casos de greve no antigo Egito e na antiga China. Existem também relatos detalhados de greves que ocorreram no Egito sob o Império romano, sobretu- do no primeiro século da nossa era. 58 2. A consciéncia de classe elementar do proletariado Ora, a organizago de uma greve implica sempre um certo grau de cons- cigncia de classe e um certo grau — elementar — de organizagao de classe. Im- plica, em especial, a nocao d éxito de cada assalariado depende de uma ago coletiva; é uma solugdo de solidariedade de classe, oposta a solu H vidual ( que procura aumentar o ganho individual sem atender aos rendimen- tos dos outros assalariados). Esta nogdo constitui a forma elementar da consciéncia de classe proleté- ria. Do mesmo modo, pela organizagio de um> greve, os assalariados apren- dem instintivamente a criar caixas de socorro. Estas caixas de socorro e de entreajuda visam também minorar de algum modo a inseguranga da existéncia operaria, permitir aos operdrios defenderem-se durante os perfodos de desem- prego, etc. Estas sdo as formas elementares de organizacio de classe. Mas estas formas elementares de consciéncia e de organizacao operaria nao implicam nem a consciéncia dos fins histéricos do movimento operario nem a compreensio da necessidade de uma aedo politica independente da classe operdria. Assim, as primeiras formas de agao politica operaria situam-se 4 extre- ma esquerda do radicalismo pequeno burgués. Durante a revolugio francesa, & extrema esquerda dos jacobinos aparece a Conspiracao dos Iguais, de Grac- ‘chus Babeuf, que representa 0 primeiro movimento politico moderno visan- doa Sa soos Na mesma Epoca, a Tagltera, alguns ‘opetirios constibsem!s' Londog Corresponding Society, que procura organizat um movimento de solidarieda- de com a revolugio francesa. Esta organizagao foi esmagada pela repressgo policial. Mas, logo apés o fim das guerras napolednicas, na extrema esquerda do partido radical (pequeno-burgués) cria-se, na regi: justrial dé Manches- ter-Liverpool. Ligue Du Suffrage Universel, essencialmente constituids poF operarios. Apés os sangrentos incidentes em Peterloo, em 1817, a separa- Et > um movimento operdrio independente do movimento pequeno-bur- gués acelerou-se, € assim pode surgir um pouco mais tarde o partido cartista, © primeito partido essencialmente operdrio que reclama o suftagio universal. 3. 0 socialismo utépico Todos estes movimentos elementares da classe operdria foram largamen- te dirigidos pelos prprios operérios, quer dizer, por autodidatas, formulando amitide ideias ingénuas sobre assuntos histéricos, econdmicos e sociais, que e- xigem estudos cientificos sdlidos para serem tratados a fundo. De certo modo, estes movimentos desenvolveram-se margem do progresso cientifico dos sé- culos XVII e XVIII. Contrariamente, é no quadro desse progresso cientifico que se situam os esforgos dos primeiros grandes autores ut6picos, como Tho- 59 mas More (chanceler de Inglaterra no século XVI), Campanella (autor italia- no do século XVII), Robert Owen, Charles Fourier cSaintStnon (autores dos séculos XVIII e XIX). Estes autores esforcaram-se por reunir todos os co- nhecimentos cientfficos da sua época, para formular: a) uma critica virulenta da desigualdade social, designadament caracteriza a sociedade burguesa (Owen, Fourier ¢ Saint-Simon); oe b) um plano de organizagio de uma sociedade igualitaria, baseada na sociedade coletiva; Por estes dois aspectos da sua obra, os grandes socialistas utdpicos so 08 verdadeiros precursores do socialismo moderno. Mas a fraqueza do seu sis- tema reside: ___,2) no fato que a sociedade ideal que imaginam (dai 0 termo: socialismo utépico) se apresenta como um ideal a construir, a atingir de uma s6 vez por um esforco de compreensio e de boa vontade dos homens, sem relag3o com a cae histérica, mais ou menos determinada, da propria sociedade capita- ta b) no fato que as explicagdes das condigdes do aparecimento da desi gualdade social, e daquelas em que pode desaparecer, sio cientificamente in suficientes por se basearem em fatos secundérios (violéncia, moral, dinheiro, Psicologia, ignorancia etc), ndo partindo dos problemas de estrutura econd- mica e social, da interagio entre as relagdes de produgao e o nivel de desen- volvimento das forgas produtivas, 4. O nascimento da teoria marxista E precisamente nestes dois dominios que a formacio da teoria marxista na Ideologia Alem (1845) e, sobretudo, no Manifesto Comunista (1847) de Karl Marx e Frederic Engels, representa um progresso decisivo. Com a teoria marxista, a consciéncia de classe operdria encarna-se numa teoria cientifica de nivel mais elevado, Marx ¢ Engels nao descobriram as nogées de classe social e de luta de classe. Tais nogées eram j4 conhecidas dos socialistas utépicos e de autores burgueses franceses, como Thierry e Guizot. Porém, explicaram de forma cientifica a origem das classes, as causas do desenvolvimento das classes, o fa- to que toda a historia humana pode ser explicada pela luta de classes e, sobre- tudo, as condigdes materiais ¢ morais sob as quais a divisdo da sociedade em classes pode dar lugar a uma sociedade socialista sem classes. ___ Por outro lado, explicaram como o préprio desenvolvimento do capita- lismo preparava inexoravelmente o advento duma sociedade socialista, prepa- tava as forgas materiais e morais que deviam assegurar o triunfo da sociedade nova. Esta, a partir de entdo, deixou de aparecer como simples produto dos sonhos e dos desejos dos homens, e antes como o produto lépi da historia humana. eee ee 60 O Manifesto Comunista representa, assim, uma forma superior da cons- ciéncia de classe proletéria. Vem ensinar 4 classe operdria que a sociedade so- cialista resultard da sua luta de classe contra a burguesia. Ensina-Ihe a neces- sidade de nao lutar simplesmente por aumentos de salarios, mas também pela aboligao do salariato. Ensina-lhe, sobretudo, a necessidade de constituir parti- dos operdrios independentes, de completar a agao de reivindicagdes econdmi- cas por uma agio politica no plano nacional e internacional. Portanto, 0 movimento operario moderno nasceu da fusio entre a luta de classe elementar da classe operiria e a consciéncia de classe proletéria ele- vada & sua mais alta expressio, corporizada na teoria marxista. S. A Primeira Internacional Esta fusio é a resultante de toda a evolugdo do movimento operario in- ternacional entre os anos 50 e os anos 80 do século passado. No decurso das revolugdes de 1848, que sacudiram a maior parte dos paises da Europa, em nenhum lugar a classe operéria apareceu como um parti- do politico no sentido moderno da palavra, com excegio da Alemanha (atra- vés da pequena Associacio dos Comunistas) dirigida por Marx. Por toda a par- te, segue na esteira do radicalismo pequeno-burgués. Na Franga, contudo, se- para-se deste iltimo durante as sangrentas jornadas de Junho de 1848, sem poder ainda constituir um partido politico independente (os grupos revolucio- nérios formados por Auguste Blanqui sio, de certo modo, o seu niicleo ). ‘Apés as reagdes dos anos seguintes a derrota da revolugao de 1848, sio as or- ganizagdes sindicais e mutualistas da classe operdria que acima de tudo se de- senyolvem na maioria dos paises, com excegao da Alemanha, onde a agitagao pelo sufragio universa’ permite a Lassalle constituir um partido politico ope- rario: a Associacao Geral dos Trabalhadores Alemaes. E pela fundagao da Primeira Internacional, em 1864, que Marx ¢ 0 pe- queno grupo dos seus adeptos efetuam a verdadeira fusio com 0 movimento operdrio elementar da época e que preparam a constituicao dos partidos so- cialistas na iaaioria dos paises da Europa. Por muito paradoxal que possa pa- recer, nao sio os partidos operdrios nacionais que se rednem para fundar a Primeira Internacional, mas é a constituigao desta que permite a reuniao na- cional dos grupos locais e sindicalistas, que aderem 4 Primeira Internacional. Quando a Internacional se desagrega, apés a derrota da Comuna de Pa- tis, os operdrios de vanguarda conservam a consciéncia da necessidade de um tal agrupamento no plano nacional. Durante os anos 70 e 80 e apés varias ten- tativas goradas, formam-se em definitivo partidos socialistas com base no mo- vimento operdrio elementar da época, com as dinicas excecSes importantes da Gra-Bretanha e dos Estados Unidos. Nestes paises, os partidos socialistas que se constituiram na mesma época ficaram & margem de um movimento sindical j& poderoso, Na Gra-Bretanha, é sé no século XX que é criado o Partido Tra- 61

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