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JOAN FONTCUBERTA PREFACIO DE JUAN ESTEVES Esta obra fot pub! Leada com ume subvengo da Diregdo Geral do Livro, rea THTWLO-ORIOHNALE La cémara do Pandora Publicado por Editorial Gustavo Gilt, St ‘on 2010. aAoUpKO: Marsa Alzira Brum Igo: Flavio Coddou PREPARAGAG!DE-TEXTO: Andreia Moroni REVISHO: Patricia Sotello © Marcos Visnadi DDESTON GRAFICO DO" LIMRO E DA-CAPA: Pau Aguilar LUSTRAGKO DA'CAPAS AUtorretrato, ‘Joan Fontcuberta Qualquer forma do reproduclo, distribuigio, comunicagae poblica ou transformacdo desta obra 86 pode ser realizada com a autorizagio titulares, salvo excesto Caso seja necessirio expressa de provista pela lei. reproduzir algum trecho desta obra, se por meio de Fotocépia, digitalizapae ou transorigto, entrar em contato com a Editorial. A Editorial Gustavo Gili nto se pronuncia, expressa ou implicitanente, a respeito da contidas neste Livro bilidade lege acuidade dae informacss © nao assume qualquer respon: ‘om caso de erres ov onissi © do prefacio: Juan Este © da traducdo: Maria Alzira Brum © do texto: Joan Fontcuberta, 2610, 2011, © Editorial Gustavo Gili, SL, Barcolona, 2012 Printed in Spain — Impreseo.no Esponha Arquivos @ Biblioteca de cultura da Espanha as do Ministério Dados Internacionais de Catalogagto na Publicacte (ip) (Chmara Brasileira do Livro, SP, Beast {fotografia /Joan Fontcuberta [waduco Maria Alzira Brum]. -- S40 Paulo Editora G. Gili, 202. Titulo original: La cémara de Pandora SBN 978-85-65985-08-2 4. Estética 2, Fotografia Titulo 12512096 600-70 Indices para catalogo 1. Fotografia 770 INDICE 08 11 19 027 035 049 053 eer 269 aot 105 113 127 165 155 161 174 185 192 PREFACIO INTRODUGAG FOTOGRAFO, LOGO EXISTO © OLHO DE DEUS A IMAGEM INVISEVEL (NEM POR ISTO INEXISTENTE: © GENTO DA CAMERA MARAVILHOSA © CEGO PERFEITO EU CONHECI AS SPICE GIRLS EUGENICOS SEM FRONTEIRAS IDENTIDADES FUGITIVAS FICCOES DOCUMENTAIS ODE A UM RET SEM PERNAS 0 MISTERIO DO MAMILO DESAPARECIDO A DISTANCIA JUSTA PALIMPSESTOS COSMICOS ARQUEOLOGIAS DO FUTURO Rufbos DE ARQUIVO POR QUE CHAMAMOS DE AMOR QUANDO QUERENOS DIZER SEXO? REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS taza com anscanet PREFACIO Juan Esteves Joan Fontcuberta propée um novo entendimento ao analisar certos paradigmas 4o para as novas plataformas, sig- relacionados a imagem tradicional em transi nificativamente alterados pela tecnologia digital e pelos novos parametros ima- géticos que estdo se estabelecendo. Traz, sem formular regras, provocacées quanto ao abandono da preservacao da nossa memoria e uma obsessiva postura contemporanea com relacao ao pre- sente imediato que se opée visivelmente a uma busca ontolégica. Discute, com lucidez propria, a impossibilidade de reunir, de maneira coerente, os diferentes fragmentos dessa mesma memoria. Para o autor, a tecnologia fornece uma nova percepgao da imagem, embora nossa compreensao permaneca distante e utopica. Cuidamos apenas do pre- sente, e este se revela de maneira vertiginosa, sem a devida meditacao, vitima de uma velocidade que nao permite sua assimilagdo mais profunda. No fomento desses novos paradigmas, Fontcuberta identifica algumas eta- Pas, como a relacionada com a criagao dos pixels e uma outra, a partir do surgi- mento da internet e da criagao das redes sociais, mas principalmente questiona Guais serdo os novos compartimentos que iréo abrigar uma memoria que esta Prestes a contar com 200 anos de producao fotografica. A producao da imagem digital se tornou incessante e maltipla, traduzida em inGmeras vertentes: a lddica, a de carater comunicacional, a de sentido antro- pol6gico ea que reflete um mundo extremamente narcisista ~ a vasta produgao de autorretratos, por exemplo, bem como de uma infinita gama de terminologias que tentam explicaro que éa fotografia hoje, cujas definig¢des estao longe de ser claras e compreensiveis, digital, porque, paradoxalmente, nos custa distanciarmo-nos da memoria exis- tente. Aimagem nos acompanha nessa espécie de pés-meméria, e no entanto, para Fontcuberta, nem deveriamos estar chamando isso de fotografia, quando 6 apenas aparéncia e virtualidade, IDENTIDADES FUGITIVas ‘Acham a falta de sinceridade uma coisa tao terrivet? Pois 6 simplesmente um método que nos permite multiplicar nossas identidades” OSCAR WILDE, 0 retrato de Dorian Grey, 1891 Quando em 1974 Norman Mailer prefaciou o livro Watching My Name Go by ("Vendo meu nome passar ”], 0 grafite ainda era considerado uma expressao grafica popular e semiclandestina. Keith Haring nao era mais que uma promessa latente com que 0s marchands nao haviam nem sonhado, e ninguém falava em aids ainda. Os jovens do Bronx e outras areas suburbanas de Nova York (ou de qualquer outra grande urbe) competiam pintando seus apelidos nos vagoes das ferrovias metropolitanas. Diferentemente dos grafites politicos europeus, dos quais os agudos slogans tatua- dos nos muros da Sorbonne durante maio de 1968 constituiriam a manifestacao mais inconfundivel, os grafites americanos se destacavam por sua plasticidade bar- roca e caligrafia extraordinariamente gestual, em concomitancia com a estética dos quadrinhos underground, assim como por uma exuberancia cromatica apoiada em “novos” materiais: o spray e a pintura fluorescente. Para o poder estabelecido e suas mentes bem pensantes, o grafite excedia a contestagao para ser simples ato delitivo que era preciso reprimir. Consulto uma enciclopédia e leio: “(o grafite] Consiste frequentemente em um nome ou uma frase escrita por alguém como lem- branca de uma visita ou como simples entretenimento que costuma esconder um exibicionismo reprimido. Contemporaneamente, o costume de sujar as esos certos lugares piblicos com grafite, Beater de tons grosseiros e ordinarios, ientes incultos.” Se Sees arose rant pichacdes equivalia a risco: escapulir pelos taneis ae ates depOsitos ferroviarios, driblar a vigilancia policial e os sistemas a ue ‘Aagao se transformava em um rito de passagem, uma demonstracao jes - JENTIDADES FUGITIVAS 4 92 > A CAWERA DE PANDORA > TO! frente ao grupo pertencente, uma prova de dignidade; de valor wine Que fosse, Além disso, o resultado -os vestigios do “exibicionismo reprimido"~ servia parg marcar territorio e demarcar éreas de influéncia. Para os cidadaos comuns, atheiog aestes cédigos, a passagem dos vagées repletos de signos multicoloridos Mostrava, simplesmente a ocupacdo simbdlica da cidade, a certificacao da presenca de uma outridade social procedente das regides selvagens. Mas, lido em chave psicologica, estes nomes em transito sao afirmagdes de identidade que podem ser traduzidos por “aqui estou, essa é minha assinatura, nao podem me ignorar” Imagino que quando verios passar estes nomes, como espectadores alheios que somos, sem nos sentir implicados e muito menos ameagados, chegamos a apreciar a poética dessas identidades fragmentadas e em movimento, pedacos de ego que emergem daqueles ambientes tao “incultos” para passear pelo Rockefeller Center e sulcar o coracao da Wall Street. Acho fascinante a imagem dessas identidades viajantes que, como as aguas de um rio, fluem sem permanecer. Conscientes ou nao desse precedente, intimeros artistas adotaram a suges- tao da identidade definida por sua mobilidade como tema recorrente. Paraa fot6- grafa Isabelle Eshraghi, a esquizofrenia de sua hist6ria pessoal fica ilustrada na transformacao que experimenta durante o trajeto entre Paris e Teera. Filha de pai iraniano e mae francesa, sua educacao e sua cultura sao regidas por concepcdes divergentes da vida. Em um de seus projetos mais divulgados propés refletir com sua cémera sobre a condicao da mulher no Ira atual, o que significava, por extra- polagao, projetar sua propria condigao caso tivesse crescido no seio da Revolucéo islamica. Ja a bordo do aviéo que a mudava de continente, a maquiagem “oci- dental” desaparecia atras do xador, os jeans eram substituidos pela tunica pret, enquanto a memoria se concentrava em relembrar um vocabulario e em recuperat uma fonética resguardada no fundo da tembranca... Mas, sobretudo, era necessi- ‘lose esforcar para adotar outras maneiras e obedecer outras normas de condute: & partir daquele momento, Eshraghi se convertia em uma mulher respeitosa @° Preceitos coranicos, Gnica forma de poder atacar seu projeto sem travas naquele Sua Segunda patria. A mais de quatro mil quilometros de distancia, a intrépid® reporter se transformou em uma sombra discreta e submissa. A MASCARA E O ESPELHO Pode-se argumentar que a vida ‘ i . ; Cotidiana ja nos empurra a uma multiplicidaé® Papéis sobrepostos e frequen: reas itemente enfrentados: nossas diferentes * soeneRArDE°PANDORA’ > TOENTIDADES FUGITIVAS o geatividade, @ familia, 0 trabalho, o lazer, a sexualidade, a politica, o esporte etc. imputsionam em cada um de nds comportamentos especificos. Até que ponto uma combinatoria dessas atitudes conforma uma identidade diferenciada? Essa \inha discursiva polariza frequentemente o trabalho de artistas mulheres, certa- mente porque em meados e fins dos anos 1990 as mesmas se mostraram muito mais sensiveis as questoes de género. A alema Sinje Dillenkofer nos fala em sua série Reservate do abismo que separa a esfera do piblico da do privado. Dillenkofer retratou uma série de mulheres, todas altas executivas e com responsabilidades diretivas em grandes multinacionais de setores bancario, de seguros, informatico, aletrodomésticos ou automobilistico. Em uma primeira instancia, a fot6grafa soli- citou que posassem para um retrato formal tal como iam diariamente ao escritério trabalhar. A calculada austeridade do traje elegante, a expressao de seguranca pelo poder conquistado e um othar de distante autossuficiéncia foram registrados com otipico estilo corporativo (“a executiva do més") em perspectiva frontal, fundo liso e filme em preto e branco. Um sorriso seco guardava certa dimensao humana naquilo que, acima de tudo, eram esfinges de poder, cones do triunfo social: as maos dessas mulheres dirigem transagdes milionérias, e de suas decisdes depende o futuro trabalhista de milhares de trabalhadores. S4o mulheres, sim, compoem uma minoria em uma selva eminentemente masculina, mas acima de tudo engros- cam a elite dirigente do capitalismo globalizado que se rege implacavel pela leido maximo beneficio. Mas, no amparo da intimidade, no calor privado do lar, mais além de sua presenga na imprensa marrom milimetricamente calculada por assess" rias de comunicagao, o que essas mulheres fazem? 0 que pensam? 0 que sentem? O que sonham? Afinal, o que compartitham com o resto dos mortais? Para isso, Dillenkopfer animou essas modelos ocasionais para que, em seus domi- cilios particulares, sem empregados a vista, sem pablico, sem “claque’, representas- sem com toda liberdade alguma fantasia secreta, por mais esquisita que parecesse. Uma das executivas se vestiu de forma extravagante e subi em uma mesa, desfa- zendo-se da rigidez de formas com que habitualmente era obrigada a comparecer diante de seus subordinados. Outra se disfargou de mulher fatal, recuperando uma sensualidade vetada no mundo da empresa. Outra se imaginou protagonista de uma amalucada sessdo de fotografia de moda como uma atriz madura assediada pelas luzes do flash. Qutra retornou a infancia rodeando-se de brinquedos edesenhos infantis. Outra, enfim, reviveu humoristicamente uma etapa real ou imaginaria de can- didata politica em plena campanha eleitoral, com bandeirolas e adesivos com slogan. DORA’ > TOENTIDADES: FUGITIVAS a! 4-9/8 CAMERA™DE PAN! Todas tinham sua pequena historia com a qual recuperavam espacos de jventuge beleza, liberdade, mas, principalmente, inconformismo; por alguns instantes adiavam, 1a responsabilidade e do sucesso, e se abandonavam a08 seus fantasmas 16? Dispostos em forma de dipticos, a dualidage nha duas facetas do mesmo personagem, o peso di ocultos. Onde eram mais elas mesma‘ dos retratos de cada mulher contrapul ta a pablica (séria e formal) e a privada (amalucada e desinibida). Em alguns casos agi. tancia entre uma e outra era tamanha que o personagem se tornava irreconhecive, sua identidade parecia sujeita a uma excéntrica metamorfose regida pelos protocoios das hierarquias sociais. Mas se tratava de dois reflexos de uma mesma identidader Assistiamos a dialética entre a mascara e 0 espelho. Muitos outros artistas recorreram a essa mesma dialética. Talvez por sua sin- gularidade valha a pena referir o projeto The Transformation Salon [0 Salao das Transformagées}, de Annie Sprinkle. Sprinkle chega a criagao artistica com créditos bem originais: depois de ter se dedicado a prostituicao e 4 pornografia. Mas, desde que, em 1985, fez parte do grupo de performance Deep Inside Porno Stars, Sprinkle abandonou sua ocupagao como estrela porné para se concentrar na producao foto- grafica. Autodefinida como uma “Post Porn Modernist”, Sprinkle se propés a des- mitificar tabus femininos e com seu trabalho celebra 0 goz0 do sexo e oferece uma leitura positiva da prostituicao como liberagao. Suas performances e sua fotografia se inscrevem dentro de uma corrente ps-feminista que se define em oposicao ao feminismo duro dos anos 1960 e 1970. As feministas hist6ricas repudiavam a instrumentalizagao do corpo da mulher como objeto do desejo masculino e, em consequéncia, estigmatizavam a industria do sexo. As irrupcdes midiaticas quel: mando sutias publicamente ficaram gravadas na historia como rituais que simbol zavam desprender-se dos artefatos de tortura e submissao impostos pela ideologia Patriarcal. 0 pos-feminismo de Sprinkle, em compensacao, propoe uma reviravolt na l6gica feminista na guerra dos sexos: preconiza agora vencer o varao atacando onde ele 6 mais vulnerdvel, ou seja, no seu desejo. JA nao se trata de renunciar Sexualidade na sua dimensao mais carnal, mas exatamente de aproveita-la com? een Potldeeraetniasn abt non peasants uma Sprinkle avant-la-lettre. a Ten Me eae nada de queimar sutias, justamente 0 ee que esses desejos Pe Pn Prover-se dos objetos mais prone de uma explicagao um tanto ae Bratis para os homens. Sem divida s¢ ral, mas grafica, nana adc ORA > IDENTIDADES FUGITIVAS Sinje Dillenkofer, “Norma I. Foerderer, Assistant to the president, The Trump Organization, New York”, 1990. Da_ série Resenvte. eram em um salao de beleza, The e, em uma oposigao antes/depois. cursos de striptease amador; aS ias até alcancar a grande final, cebeu do comité organizador o catalogo oficial do evento: sional, podia tirar proveito as continuidades signift- ra Polaroid quando che- antaneas com as fotos Ao evocar as transformagées que se op Transformation Salon se apoia, como Reservat Nos Estados Unidos 6 comum a realizagao de con bailarinas se submetem a uma série de eliminator Seize Nova York. Acontece que Sprinkle re era je fazer oretrato das participantes paral ere ne alem de curenti com a tarefa pret ae Stine ideia muito simples, mas de frutifer uses ee ce tailerines com uma simples eam! sence io e depois compararia as fotos inst ane . com as garotas tal como aparecem no paleo. As Polarolss abatidos pela uz d0 flash es infeliz, .dio eram $ roupas Tadame ie mostram primeiros planos de rostos defini tra, Mais re xpressdo 8s Ver retratos de estl tidas com su gage com roupa de rua, com uma e cate al distancia infinita do glamour. Mas 0S Sexies, com t tas apareciam prontas para agradar, ves atiovinene ee: insinuando seus atrib . €m poses desinibidas, com 0 othar lascivo “Jeanne Sue Dalton (esposa de granjeiro e me de quatro filhos)_6 Sheena Storm”, 1988, Da série The Transformation. Salon. Cortesia de Annie Sprinkle. camera. Os retratos de Sprinkle mostravam duas realidades, a da cotidianidate das mulheres e a do mundo do desejo que se pode pagar. A justaposigao dos dois retratos fazia pensar no transito da lagarta a borboleta: uma muther comum se transformando em uma deusa do sexo. E como pé de foto, Sprinkle se limitava a oferecer secamente o nome da moga, sua ocupacao e seu apelido artistico. “Cathy Worob, estendgrafa de tribunal, 6 Baby Doe” (uma garota que esconde seu acanha- mento atras de uns grandes éculos e com um bebé nos bracos passa a sorri mall: ciosamente para nés enquanto desabotoa a tanga para descobrir o pubis), ‘Tony Somkopolus, enfermeira, 6 Peaches Delight” (ea moca comportada que poderiaser nossa irma molha os labios com a lingua, 0 corpo contorcido e as coxas separadas Para deixar bem visivel a entreperna). “Jeanne Sue Dalton, esposa de granjeiroemae de quatro fithos, ¢ Sheena Storm” (uma mulher rechonchuda e afavel de repentes? Solta sobre um lencol de cetim, acariciando uns seios tirgidos e generosos). Aide” tidade desliza de Cathy Worob a Baby Doe, de Tony Somkopolus a Peaches Delish de Jeanne Sue Dalton a Sheena Storm, submergindo nas areias movedicas 40 §*" do querer ser, do poder ser... Ortega escreveu que “do querer ser a0 acreditar a Jase 6 se passa do tragico ao cémico”, e de fato assistimos aos embates ent'® «jo ea realidade, compondo uma es des que sprink assim, talvez as fantasias © as mascaras digam maig ¢ le nos ‘tratificagao de Je ajuda a explorar. © identidades muttiface nua epiderme tao ajustada ao nosso corpo, Especialmente quand, Mesmos do que g 0 a8 fantasy Mascaras cobrem outras Fantasias © outras mascaras, A mascane e tavi-Strauss, “nega tanto quanto afirma’.E corrobora Chesterton:e, nn ase se antasias ndo disfarcam, mas revelam. Cada um se fantasia aqua uns homens tro” No Carnaval encontro um menino fantasiado de Batman eo eg 6 por de -0l4, Batman. imenitns Ele responde: _Nao sou o Batman, sou o Superman disfarcado de Batman, _Entendo, vooé esté inc6gnito, guardarei seu segredo. 0s LADROES DE ROSTOS O que aconteceria se nos disfargassemos de nds mesmos no Carnaval? Em seu projeto Living Together [“Vivendo juntos”), a norueguesa Vibeke Tandberg mostra uma série de fotos instantaneas que parecem inocentes fotos de familia. Duas jovens, presumivelmente irmas dada sua semelhanea, protagonizam uma série de situages corriqueiras: tomando café da manh, vestindo-se, num retrato coletivo com 0s pais eo cachorro, visitando um museu, tomando sorvete etc. Ao examina-las mais atentamente, aparece um detalhe surpreendente, se nao suspeito: as garo- tas so idénticas. Muito idénticas. Talvez gémeas univitelinas? Se em suas fisiono- mias nao conseguimos distinguir nenhum detalhe que as diferencie, as atitudes, os gestos e as expressdes falam, em compensacaio, com eloquéncia de personalidades duais em uma espécie de “jogo das duas metades”: uma parece ativa, extrovertida © expansiva, enquanto que a outra é passiva, timida e retra(da. Tandberg atua ao mesmo tempo como modelo e como fotdgrafa. Valendo-se de uma combinacao de fotografia convencional e retoque digital, construiu oalbum de tembrangas de uma familia que nao existe. Mas obviamente 0 8? Pies! Nos oferecem @ ao mesmo tempo um jogo ain eas spate que se expressa no comportamento das Ee nine tno at Be SPee aprofunda no debate sobre a nacucerae ee een Hydernay ae um de nés esta preso nessa dupla face ae hos doppelg@geh Os falace am um, mas (pelo menos) dois. Na mesma via da isbo ed8 86meos de Tandberg funcionam como uma meton DENTIDADES FUGITIVAS 4 98-9 A-CAMERA™ DE PANDORA > T réplica, do mesmo modo que Tweedledee e Tweedledum na legendéria fantag, ia de Lewis Carroll. As fotografias, em qualquer caso, tampouco resolvem a daviga sobre quem 6 o modelo real e quem o duplo, Pelo contrario, acrescentam otemor difuso de que talvez ja nao saibamos discernir entre as aparéncias, ou entre a realidade e 0 simulacro, ou entre o original e sua reprodugao. Em qualquer caso, o padrao do desdobramento de identidade pode ser pouco a luz de avangos cientificos e tecnologicos recentes que correspondem tanto 8 biologia quanto a comunicagao. No decorrer de 1997, por exemplo, coincidiram dois acontecimentos cruciais para o nosso futuro como humanos. Primeiro, 0 potente supercomputador Deep Blue conseguiu vencer pela primeira vez 0 campedo mundial de xadrez Gari Kasparov: a inteligéncia artificial comegava a alcancar 0 cérebro humano. Segundo, o Instituto Roslin de Edimburgo divulgava os primeiros resultados satisfatorios da clonagem de mamiferos superiores: a famosa ovelha transgénica Dolly esteve nas capas de todos os jornais. A engenharia genética, outrora antecipada nos romances de fic¢ao cientifica, adquiria cores de realidade diante dos olhos escandalizados de boa parte da opiniao publica. Se a angustia da clonagem e da desagregacao em identidades multiplas alarmava a sociedade, sua migracao para a cena artistica ndo se faria esperar. Nao somos um, mas muitos. Paul M, Smith entrou como voluntario no exército britanico, mas depois de pou- cos anos mudou de ideia, pediu baixa e se matriculou no Royal College of Art. * Paul Smith, da série Artist Rifles, 1997. ortesia de Paul Smith. cs ee mena DE PANDORA > TOENTIOADES FUGTTIVAS ya cAMel serie Artists Rifle (nome a @ um regimento composto por artistas) foi realizada justamente para obter seu diploma de graduacao(e, exposta em Londres em junho daquele anes foi integralmente adquirida para a colecdo Saatchi, homologadora ofi- siosa do New British Art). Nela se retine uma sucesso de cenas caracteristicas da fotografia bélica: soldados escondidos nas trincheiras, pelotdes avancgando, luta rorpo a corpo, captura e interrogatorio de prisioneiros, execugdes, celebragao de vitéria etc. Trata-se de padrdes de imagem que, assinados por algum fotojornalista, cerepetiram em todas as guerras e conformam seu estere6tipo. Mas, se observa- mmosatentamente, percebemos que nesse exército nao ha mais que um soldado, que 40 proprio Paul M. Smith, clonado em um sem-namero de combatentes. Sua expe- rigncia de primeira mao no exército e seu conhecimento da historia da fotografia de guerra he permitiram alinhavar um bom punhado de cenas perfeitamente plausiveis nas quais somente a presenca reiterada destes rostos clonados, nao obtidos pela biotecnologia, mas mediante “cirurgia digital”, revela a mistificacao. 0 exército conforma uma instituigao que tende a homogeneidade e unifor- mizagao de seus membros. Nao sao toleradas particularidades nem diferen- cas. Os soldados cortam o cabelo de forma similar, vestem 0 mesmo uniforme, executam gestos idénticos, sincronizam seus movimentos. Procura-se mitigar aindividualidade e dessa maneira reforgar a coesao do corpo, como requisito para garantir disciplina e eficacia. Smith evoca ironicamente um exército ideal: formado por um unico homem, mas repetido até nao poder mais, um exército em que todos os membros submeteram sua identidade a um Gnico molde. Um regimento, enfim, constituido exclusivamente por replicantes guerreiros. OS Pesadelos estao cada vez mais perto. Deve parecer sintomatico que a criagao contemporanea se obceq dade com as propostas da multiplicagao do eu e da clonagem. Algun britanic ; rtdnica Wendy McMurdo ou da americana nascida em Cingapura Sze Lin Pang seF- rum deum rosto conduz ao da literatura e do cinema ue até a sacie~ is trabalhos da Vem emc aa \gualmente como demonstracao. A repeticao ad infinite enn j °sto cuja presenca pode ser rastreada no imaginario her também os monstruosos '8 foto, ois 08 grotescos nao rostos de Anthony Aziz e Sammy Ove! nes Shvalvem esp | eer aay -TOENTEDADES: FUGETIVAS ages >A CAMERATDE PANDORA A CARTE TDENTIDADES A U adeira, nao por frivolidade, mas em nome de uma des. am isso na brinc a. Nietzsche, que pode ser tachado de muitas coisas mas esse conselho: “Temos que considerar perdido qualquer dancado. Temos que chamar de falsa toda verdade que uma vez.” A artista Dalia Chauveau, de Montreal, fun- Outros lev dramatizagao higiénic jamais de frivolo, deixou dia em que nao tenhamos nao nos faga rir pelo menos dou em 1999 uma agéncia d Virtuais la carte, oferecend explica Chauveau, “nao posse p fe clonagem (www.cloningagency. com) que faz clones 1o “um servico confidencial garantido”. “Como artista’, ermanecer indiferente a reas da ciéncia que trans- tornam nossa vida e nossa relagao com o real, Por exemplo, a inteligéncia artificial, acibernética ou a genética. A estetizagao ea instrumentalizacao da vida humana me preocupam. Meu trabalho evoca a ideia de desmaterializacao do corpo. Tento por diferentes meios plasticos devolver materialidade a esse corpo invisivel’. Com seu projeto interativo de net-art fotografico Chauveau demonstra como a dinamica de decisdes biopoliticas se articula segundo regras propiciadas por um sistema econdmico impermedvel a qualquer critica e vazio de pautas éticas. Sua proposta nao apenas satiriza a genética a servigo do beneficio, como também todo marketing do sistema capitalista que rentabiliza os avangos cientificos. Por outro lado, vasculha nos fantasmas da identidade que todos carregamos: se estivesse om nossas maos, como gostariamos que fosse nosso clone? Para nos provocar, Chauveat coloca a nossa disposicao um extenso mostruario, e os clones so feitos por enco- menda de “clientes” dos quais se exige preencher uma panéplia de questionarios burocraticos. Estes clientes devem selecionar seu modelo entre varias categorias que lembram os catélogos comerciais: “clones de alto nivel’, “clones-padrao’, “clones 0° segunda mao’ “clones hibridos” ete.; inclusive cabe dar uma olhada na seoao de “cl nes em promogio” e “clones em liquidagao de estoque" para ver se encontram algum™= ree Em seguida os clientes devem proporcionar seu proprio retrato fotos’ aa rie eevee ree ee depois de alguns dias e consist lgicamente feréncias manifestados nos anne Ble eta cau ee 4 = sofrerio os efeitos da cirurgi digital ie Preenchidos. Para isto os retratos pe a toques de tragos fisiondmicos “emprest: iced au muclonaneirame iN Coa nia ds careaan sbeeect ares ‘ados" de estrelas cinematograficas ga teudmatiene ceca tbe pre tem razao, se ele nao ficar ee cionar clones com um design de eee a agencia ase osmerar om ade. le homologado no setor de belezae sat - , Dee) —————————_ ae sexx 0F- PANDORA: 9-IDENTIDADES:FUSETE cm we AQOES POR SORTEIO = im texto de Stanislaw Lem, esse admirado Swift moderno, que peo dedo a8 de forma profética. Em Diarios de las estrellas,’ Lem relata as vi 3 bonsai Ijon Tichy, que, como um Gulliver sulcando o espago, det reconditas civlizacdes muitos dos tiques que afligem nossa sociedade atual. Na decima terceira viagem que deveria leva-lo A longinqua Constelacao de Cancer. Pink ceperdee entra em Panta, um planeta habitado por estranhos seres que se carac- terizam por ostentar um Gnico e mesmo rosto. Poderia parecer que os pantiancs escondem sua personalidade atrés de uma mesma mascara idéntica: mas o que ‘ocorre é mais engenhosoe sutil. Intruso em um mundo ao qual nao foi convidado, Tichy € acusado de “crime de diferenciacao pessoal” (isso significa que é acusado de ser distinto), levado 2 jul- gamento e finalmente sentenciado a “pena de identificacao perpétua” (isso sig- rifica afasté-lo da felicidade que a homogeneidade implica). Durante o proceso, seu advogado de defesa nao economiza explicacdes: “Voce deve saber, estrangeiro recém-chegado a esse planeta, que alcancamos o mais alto conhecimento das. fontes de todos os sofrimentos, preocupagdes e desgracas que padecem os seres unidos em sociedade. Essa fonte estriba no individuo, na sua personalidade parti- cular. A sociedade, a coletividade, € eterna e regida por leis constantes iméveis, ‘guais as que regem o poderio de sis e estrelas. O individuo se caracteriza por sua instabilidade, pela falta de decisdo, pelo acidental de suas agées e, sobretudo, por Sua transitoriedade. Nos suprimimos totalmente o individualismo a favor da socie- dade. Em nosso planeta 6 existe a coletividade: nele no hé individuos” Tichy fica Perplexo, mas imagina que se trata de um simile, de uma representacdo retérica. No entanto, nao é assim: “Sempre, em todo momento, existe na sociedade uma Seen de funcdes ou, como dizemos aqui, de papéis. Sao papéis profis- see 08 de monarcas, jardineiros, técnicos, médicos, ou familiares, como * deans mae TemBs:etes Aqui em Panta, cada pantiano Soigoni mcs papel Aaa fame ia. A meia-noite se efetua no nosso pais um movimento, como se igre ie dessem um passo a frente ao mesmo tempo: é a rotacae de Stoieluen ll @ra jardineiro se torna hoje engenheiro, o construtor de ontem las.cadaan aieeey Professor de escola etc. 0 mesmo acontece com as fami- M8 austen que sees parentes, pai, mae, filhos. on tne ee Mudaneas 6 cotet ‘esempenham mudam todo dia. Assim, a nica que n8o ividade, entende?” agens ar ———————— DE PANDORA > IDENTIDADES. FUGITIVAS Esse modelo de socialismo organico radical mantém constantes os papéis sociais, elimina a natureza efémera da existéncia indivi sem sentido a ideia de morte porque nao ha individuos. Em Panta og Conflit, foram suprimidos, posto que ninguém empreende agdes com a ideia de cothe, frutos mais tarde, jé que no dia seguinte cada um ocuparé um cargo distinto ques imprevisivel e que se ignora. A felicidade geral esta, portanto, garantida “Quarts aos sentimentos, saciamos duas fomes que aparentemente néo podem eosven, arraigadas em todos os seres racionais: a da continuidade eada mudanga. 0 carinho, Simutéveig dual e deixg o respeito ou o amor eram turvados antes por uma inquietagao incessante, pi, medo de perder a pessoa amada. Nés vencemos esse medo. De fato, quaisque, que sejam os fracassos, doengas ou cataclismos em nossas vidas, todos nig sempre temos nosso pai, nossa mae, nosso marido e nossos filhos. E tem mais O imutavel comeca a cansar depois de um tempo, tanto 0 bom quanto o rim, Ao mesmo tempo em que queremos proteger nossa sorte frente as. adversidades etragédias, desejamos a continuidade ea certeza. Queremos existir e ndottranstar, nos transformar, mas permanecer, possuir tudo sem arriscar nada. Estas contradi- 90es, aparentemente irreconcilidveis, podem se realizar aqui.” 0 castigo maxima @ que se pode expor um pantiano é a exclusiio do sorteio universal, que implica como consequéncia uma solitaria existéncia individual. A identificagao nao é mais que um ato de destruicao do ser sobre cujos ombros se coloca perpetuamente o peso desumano do individualism, Reticente aos atributos desse regime, Tichy decide entao renunciar a sua defesa e exige que o condenem, diante da incompreensao de seu advogado: “E uma imprudéncia, Lembre-se de que ndo viveré como um indi- viduo entre outros individuos, mas sim cercado pelo vazio maior.” Tichy é de fato Sentenciado a identificagao perpétua e expulso do planeta. Quando recomeca sua viagem, reflete sobre as utopias da identidade e do isolamento e a marginalizaga0 que nos proporcionaré o futuro, TRAVESTISMOS DA TELA Os projetos artisticos Que invoquei como exemplos revoam por estas utopias: As tecnologias que por um lado provocam @ por outro veiculam a expres ideias dos artistas citados, A fotografia digital deve » da nova ordem propiciado pelos meios eletrdnicos cujo, onto das vista como um dominio efeito de “desrealizagho" nao se reduz a representacao do real aplicada a imagem, mas corresponde a todas as nossas maneiras abstratas de construir a realidade. Na medida em que afeta as concepgdes que temos do mundo, muda também nossa relagao com ‘ele. A dissolugao do principio de realidade arrasta consigo nossas formulagdes de espace e tempo, identidade e meméria. A cultura eletrénica obriga a repensar toda a arquitetura cultural e politica do nosso sistema de valores, nos induz a questionar seus restos e a nos examinar no seu contexto. A partir de uma pers- pectiva psicanalitica, por exemplo, a pesquisadora Sherry Turkle sustenta no ‘ensaio La vida en la pantalla. Lo construcci6n de la identidad en la era de Internet” que 0s computadores nao apenas afetam nossas vidas como também nos trans- formam. Os “avatares”, 0s chats, os MUD (Multi-User Dungeons) e outras moda- lidades de realidade virtual e comunicagao multipessoal na internet, ao estilo do bem-sucedido portal Second Life, no qual participam mithdes de usuarios criando um mundo ilus6rio paralelo, derivam em situagdes em que as ideias tra- dicionais sobre identidade ligadas a uma nogao de autenti manifestamente por estas experiéncias virtuais. 0 mundo da simulagao transforma o computador em um laboratorio para a cons- trugdo e ensaio de identidades miltiplas, mas integradas, cuja flexibilidade, rever- sibilidade e satisfacdo se apolam em ter acesso a vontade a muitas personalidades diferentes. Os sistemas operativos dos nossos computadores contribuem para a visualizagao dessa nova estruturacao da identidade. “O sistema Windows" se tornou uma poderosa metafora para conceber a identidade como um sistema miltiplo e disseminado. Um nico eu ja nao representa diferentes papéis em diferentes cir- cunstancias, em diferentes momentos. A vida pratica do Windows implica que um eu descentralizado deve existir em muitos mundos ao mesmo tempo, represen- ‘tando muitos ao mesmo tempo. Talvez a vida real seja apenas mais uma ‘janela’” Da mesma forma que o telescépio nos abriu o universo e 0 microscépio nos revelou © microcosmo, agora os computadores entram na simulagao e na virtualidade. As previsdes especulativas da ficgao cientifica de uma identidade que abandona © corpo e se funde para penetrar nos circuitos de um sistema informatico e assim. circular pela rede cada vez parecem menos fantasiosas e mais criveis. Hoje a tela eletrénica permite travestir nossa identidade a vontade. idade sao subvertidas 2 Turkle, Sherry. A vido noord A identidade no era da internet. Lisboa, Regio dAgua, 1997. [ers8o ‘ginal: Life on the Screen: Identity in the Age of the Internet; Nova York, Simon & Schuster, 1995.) a sri ‘@ Microsoft imitou a inovadora interface grafica de usuario dos computadores Apple accor urid8 am 1984, que, além de introduzi o uso do mouse, subettula 0 padrto da épo- doe MA arte interface por tinha de comandos, Na estrutura l6gca do sistema operacional cae O98 diretorios se organizavam com icones de pastas que podiam conter outras. A apari- sistema Windows popularizou esse tipo de interface até imp6-lo completamente.

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