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Psicobiologia do ee Comportamento " Alimentar AEVOLUGAO DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR NA ESPECIE HUMANA Ferando Sérgio Zucoloto A espécie humana ~ Homo sapiens -, conforme indicam inumeras pesquisas, ori- ginou-se na Africa Oriental, na chamada regio subsaariana, onde encontram-se a EtiOpia, a Libia, 0 Quénia e a Tanzania, entre outros paises. Isso teria acontecido ha cerca de 200 mil anos. O H. sapiens teria sido originado do Homo erectus. Muitas pessoas entendem que os seres humanos nao seriam propriamente animais. Alias, uma das discuss6es mais férteis nesse tema esté relacionada com a comparacao entre a espécie humana e os outros animais. € comum ouvirmos ou lermos trechos que afirmam: "Os seres humanos, diferentemente dos anima “Os seres humanos, diferentemente dos outros ani- quando o correto seria dize mais. Cientificamente falando, os seres humanos sao animais, surgiram em decor- réncia do processo de evolugao das espécies, e acabam sofrendo as mesmas pres- des ambientais que os outros seres vivos. Embora seja uma espécie animal, o ser humano possui caracteristicas que o diferenciam das outras espécies. Uma delas € sua capacidade de produzir cultura. Embora saibamos que outras espécies animais podem ser capazes de criar, aprender e até fazer previsdes, hd uma diferenca qua- litativa muito grande entre essas espécies e os seres humanos. Segundo Tomaselo (2003), o diferencial fundamental dos seres humanos em relagdo aos outros animais é a linguagem e a capacidade de criar e acumular cultu- ra através dos tempos. A evolugao cultural acumulada permite que nossa espécie fabrique objetos e maquinas que servem para fabricar outros objetos e maquinas, © que apenas acontece com a espécie human: Do ponto de vista nutricional e do comportamento alimentar, quais compara- Ges podem ser feitas entre a espécie humana e os outros animais? Em relacdo aos aspectos nutricionais, a nossa espécie nao apresenta diferen- cas marcantes se comparada aos outros animais. Nossas necessidades nutricionais, 12 _PSICOBIOLOGIA 00 COMPORTAMENTO ALIMENTAR s40 semelhantes as dos outros animais. Os nu- trientes presentes nos seres vivos so, quanto ao aspecto qualitativo, sempre os mesmos, havendo somente variagéo de um ou outro componente Nutricional. Nao ha, portanto, possibilidade de alteracdes profundas nas necessidades nutricio- nais qualitativas entre os animais, incluindo os seres humanos, fato que vem demonstrar que o estabelecimento das necessidades nutricionais qualitativas aconteceu muito cedo no processo evolutivo.* A quantidade de nutrientes requerida é diferente entre os seres vivos, dependendo do tamanho do individuo, da temperatura e da ativi- dade fisica, entre outros fatores.$ 0s nutrientes sao as proteinas, os carboidra- tos, 05 lipidios, as vitaminas, os sais minerais € a gua. A seguir, apresentamos uma visdo resu- mida das principais funcées dos nutrientes, com base em Wiell (2001) Willet (2002)7 Sanders & Emery (2003)° e Zucoloto (2008) As proteinas ~ que sao constituidas de ami- noacidos ~ s40 nutrientes fundamentais para o nosso crescimento, pois trata-se de substancias que formam nossas células, juntamente com os lipidios. Dependendo da composi¢éo quimica, 0s lipidios podem ser denominados gorduras (quando sélidos) ou dleos (quando liquidos). As proteinas possuem outras fungdes importantes: atuam nos processos digest6rios, na forma de en- zimas, e, em determinadas situag6es, constituem fonte de eriergia. Os carboidratos tém como funcdo principal fornecer energia, ao passo que os lipidios, além da fungao ja mencionada de formarem as células, so nossa principal reserva energética. Saliente-se que 05 carboidratos (como 0 glicogénio muscular) fun- cionam também como reservas energéticas, mas em quantidades limitadas. Os lipidios também sao importantes para o aproveitamento de algumas vitaminas, denominadas lipossoldveis (A, D, Ee K). As vitaminas e os minerais, que tém inumeras funcées no nosso organismo, sao responsaveis pela participacao na liberagdo de energia, pelo funcionamento adequado do sistema nervoso, pela satide da pele e do sangue e pela formacao de ossos, entre outras. Mais especificamente poderiamos dizer que as vitaminas se classificam em hidrossoluveis (vitaminas do complexo B e vitamina C) e as lipos- soliveis (vitaminas A, D, Ee K). As hidrossoliveis 50. soliveis em gua, eas lipossoldveis, em lipidios, Por isso, 0s lipidios séo importantes para 0 aproveita- mento adequado das vitaminas A, D, Ee K. As vitaminas hidrossoluveis nao sao armaze- nadas no organismo, ao contrério das lipossoli- veis. As primeiras devem, entdo, ser repostas fre- quentemente por meio da alimentacao. As vitaminas do complexo B sao importantes Para o funcionamento adequado do metaboli mi mo e do sistema nervoso, ao passo que a na C é importante para o sistema imunolégico a manutencao dos tecidos. Ja a vitamina A é importante para o sistema visual e para a pele, ¢ a vitamina D, para o aproveitamento adequado de calcio e fésforo; portanto, é primordial para termos ossos saudaveis. A vitamina E parece ter importancia nos processos reprodutivos e atuar como antioxidante, ao passo que a vitamina K é primordial para a coagulacéo sanguinea. Entre os minerais, podemos destacar:0 calcio, que possui funcao estrutural como componente dos 03505; 0 cromo, importante para o funcio- namento adequado da insulina; o ferro, compo- nente da hemoglobina e, portanto, com fung3o primordial nos processos respiratorios; 0 fésforo, importante no armazenamento e na transferén- cia de energia e fungao estrutural dos ossos e da membrana celular; 0 iodo, componente do hor- ménio da tireoide, glandula reguladora do nosso metabolismo; 0 potdssio e 0 sédio, importantes para 0 equilibrio adequado do funcionamento celular; 0 selénio, que tem funcdo antioxidante juntamente com a vitamina E; e 0 zinco, que atua na estabilidade das proteinas, incluindo as enzi- mas, € no sistema nervoso. Para se avaliar a importéncia da agua, basta uma informacao: é responsavel por cerca de 70% da constituicéo do organismo humano. eS IRENE “ ‘AEVOLUGAO DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR NA ESPECIE HUMANA 13 Segundo opinido dos especialistas, uma ali- mentacao saudavel consiste no consumo de leite e seus derivados, ovos, carnes (de aves, bovinos, suinos, peixes), verduras, legumes, frutas, graos cereais integrals, castanhas, nozes. recomendada parciménia na ingestao de alimentos de origem animal, mas os alimentos de origem vegetal de- vem ser consumidos & vontade. Deve-se evitar a ingestao de doces, alimentos com excesso de gor- duras saturadas, sorvetes, bolos e refrigerantes. Essas orientacdes séo fundamentais, pois, quando postas em pratica, ingerem-se todos os nutrientes necessdrios para que nosso corpo funcione adequadamente. Com 0 consumo de uma variedade de gros e cereais integrais (soja, feijao, trigo, arroz, aveia etc.}, € possivel suprir a necessidade de proteinas. Dependendo dos habitos alimentares de cada individuo, as necessidades de proteinas também poderdo ser supridas com a ingestdo de leite e derivados, ovos, carnes, incluindo de aves, bovi- nos, suinos e peixes. Em relacdo as proteinas, os vegetarianos devem variar bastante a sua alimen- taco, pois as plantas sao mais pobres em ami- nodcidos do que os alimentos de origem animal. Desse modo, somente ingerindo uma boa varie- dade de graos e cereais integrais seria possivel a um vegetariano exclusivo suprir suas necessida- des proteicas. AAs frutas, os legumes e os graos e cereais in- tegrais garantem-nos uma quantidade ideal de carboidratos. Jé nos produtos de origem animal, bem como em gros e cereais integrais, casta- nhas e nozes, estao presentes 05 lipidios. As vitaminas e os minerais encontram-se na composicao de grdos integrals, legumes, frutas ¢ verduras. Se a alimentacao for bem variada nes- ses itens, seré possivel fornecer ao organismo toda a quantidade necessaria desses dois gru- pos de nutrientes. A Unica excecdo é a vitamina B, y que é encontrada somente nos produtos de origem animal. ___ Embora haja controvérsias, em geral os pes- quisadores da area de nutricdo humana afirmam que podem ser ingeridos diariamente cerca de 65% de carboidratos, 25% de lipidios e 15% de proteinas (ou, segundo muitos autores, 1g de proteina/kg de peso ao dia). A quantidade de dgua que se deve ingerir depende muito do ambiente em que se vive, da época do ano e prin- cipalmente da temperatura do ambiente. Além dos nutrientes, também chamados de substancias primérias, encontramos em mui- tos alimentos as substancias secundarias, que aparentemente nao participam dos processos metabélicos. S40 também conhecidas como ale- loquimicos e fitoquimicos (quando encontradas somente nos vegetais). Cerca de 85% das subs- tancias secundérias naturais encontram-se nos vegetais, nos quais funcionam como uma defesa contra predadores e ataques de microrganismos. Entretanto, nos ultimos anos os fitoquimicos estdo sendo bastante estudados, e varias fungdes importantes jé foram demonstradas nos seres humanos, principalmente na protecao do funcio- namento adequado do organismo! Uma das principais agdes dos fitoquimicos seria a de antioxidantes. Como subprodutos de reacées metabdlicas aparecem os compostos de oxigénio (0,), que, quando necessitam de elé- trons, passam a adquiri-los de proteinas, do DNA, entre outros, o que danifica as moléculas e impede que elas realizem adequadamente suas funcées. Com isso, doengas podem aparecer e, principal- mente, danificarem-se artérias e acelera-se o enve- Ihecimento. Muitos fitoquimicos doariam elétrons para esses compostos de oxigénio, protegendo as moléculas. Exemplos desses fitoquimicos s40 0 lico- peno, a luteina e as isoflavonas. Os alimentos ricos em fitoquimicos e que protegem nossa satide séo chamados atualmente de alimentos funcionais. Vale ressaltar a importancia das fibras, encon- tradas principalmente em gros integrais, frutos e legumes. Uma alimentacdo rica em fibras pro- porciona um aparelho digestério saudavel e traz beneficios, como a prevengao de doengas como hemortoidas, varizes e, segundo alguns autores, cancer de intestino. 14 _PSICOBIOLOGIA 00 COMPORTAMENTO ALIMENTAR Se as necessidades nutricionais da espécie humana e dos outros animais s4o semelhantes, 0 mesmo no se pode dizer em relagao ao compor- tamento e aos hébitos alimentares. HA grandes diferengas quanto a esses aspectos, ndo somen- te em relaco aos outros animais, mas também entre os préprios seres humanos. O comportamento e os habitos alimentares dos animais nao humanos dificilmente se alte- ram, a nao ser quando os alimentos preferidos nao so encontrados. Todavia, entre os seres humanos, hd grande influéncia cultural quanto a esses aspectos, influéncia que estd presente, por exemplo, na variedade de pratos tipicos das diferentes colénias de imigracdo (arabe, chinesa, japonesa, italiana, japonesa, judaica etc.) que se encontram no Brasil. Como a espécie humana sempre foi cosmo- polita, acabou por se estabelecer e se adaptar em praticamente todas as regides do mundo, o que a faz utilizar 0s alimentos disponiveis em cada tegido. Por tradico, mesmo que tenham migra- do para outras regides, as diferentes populacdes humanas levam consigo muitos dos seus habitos alimentares. Além disso, nossa espécie conseguiu estabelecer-se tanto em regides nas quais a ali- mentacao se baseia em itens animais - como o Alaska - quanto naquelas onde a alimentac3o baseia-se em itens vegetais, como 0s trépicos. FACAO CORRETA HUMANA? Essa pergunta tem desafiado cientistas hd bas- tante tempo. As discussdes e divergéncias sobre essa questo esto longe de terminar, pois, além dos aspectos cientificos, muitos outros fatores influenciam nossos habitos alimentares, como 0 aspectos religiosos, familiares, sociopoliticos, entre outros. Como se pode imaginar, ndo é facil respon- der a essa pergunta. Por um lado, o defensor de cada tendéncia de habitos alimentares tem seus argumentos, muitas vezes fundamentados em evidéncias cientificas; em muitos outros casos, a defesa nao apresenta fundamentacao alguma. Por outro lado, algumas “evidéncias" cientificas alteram-se com muita rapidez: logo apés a divul- gacao de que determinado alimento ou nutriente & benéfico, previne determinadas doencas, ja ha outra corrente cientifica que afirma justamente o contrario. Poderiamos citar varios exemplos: pes- quisas mostram que a vitamina A previne alguns tipos de cancer, enquanto outras as desmentem. Alguns pesquisadores afirmam que a vitamina C previne infeccdes; outros jé sdo contrarios a essa afirmacao. O mesmo vale para a soja em relacio a0 cancer de mama? Para entender melhor esas questées, é ne- cessario discutir como ocorreu a evolucao dos habitos e comportamentos alimentares da nos- 5a espécie; também € importante comparar a alimentacao humana nos dias atuais com a alimen- tacao utilizada na época em que nossa espécie emergiu. Esses pontos sero discutidos a seguir. AO DOS HABITOS E ENTOS ALIMENTARES ‘Quando uma espécie surge no mundo, obvia- mente as condigdes ambientais devem ser propi- cias para que sobreviva e prospere. Hé fortes indiciosde que os sereshumanos pri- mitivos eram onivoros e tinham grande tendén- cia para se alimentarem muito mais de vegetais do que de animais, segundo alguns autores; po- rém, de acordo com outros estudiosos, os itens animais eram mais consumidos do que os vege- tais ou, na pior das hipéteses, na mesma quanti- dade. A alimentacao de tribos que vivem ainda hoje como cacadores-coletores - portanto, em condigées semelhantes as do periodo paleolitico ~ varia de acordo com a regido que habitam; por exemplo, a dieta compée-se de 30% de produtos de origem animal e 70% de produtos vegetais em comunidades que vive nos trépicos (como os Kung), ou pode compor-se quase exclusivamente a “ A EVOLUGAO 00 COMPORTAMENTO ALIMENTAR NA ESPECIE HUMANA 15. de itens animais em comunidades que vivem em regides muito frias (como os Inuites), nas quais ha ‘escassez de alimentos vegetais.'° De qualquer maneira, a alimentacdo dos seres humanos primitivos ou de qualquer outra espécie animal deveria suprir suas necessidades de nutrientes essenciais. Outro ponto importante 6 que o comportamento e os habitos alimentares originais da nossa espécie tornam-na onivora, 0 que permitiu adaptacées tanto biolégicas como culturais em diferentes regides do planeta.'® Uma das discuss6es mais acirradas sobre os habitos alimentares das populagdes humanas primitivas diz respeito as proporcdes ingeridas de itens animais e vegetais. De um lado, autores defendem que os itens vegetais eram consumi- dos em maior proporcao,'3”” jé outros defendem © contrério.'® Vamos resumir a seguir os argu- mentos das duas linhas de pensamento. Comegamos com os argumentos dos auto- res que defendem a primeira hipétese. A espécie humana tem hébitos alimentares onivoros com tendéncia maior para a fitofagia. A savana, local de origem de nossos antepassados, é formada por terrenos 4ridos e secos, sendo 05 frutos es- tacionais e os bulbos as maiores fontes de ali: mentos vegetais, com pouca quantidade de ali- mentos de origem animal. Em época de seca, os bulbos seriam utilizados com maior intensidade em razo da caréncia de frutos. A espécie huma- na nao est adaptada para utilizar fontes alimen- tares animais (ricas em proteinas) em grandes quantidades para suprir suas necessidades ener- géticas, pois poderiam ocorrer sérios problemas renais e hepaticos devido ao elevado indice de neoglicogénese. Cabe aqui uma explicacdo. As proteinas sao formadas de aminodcidos que possuem em sua estrutura basica os elementos quimicos carbono, hidrogénio, oxigénio e nitrogénio, dos quais ape- nas © nitrogénio no compée os carboidratos € 05 lipidios (com algumas excecées, como a qui- tina dos insetos, que é um carboidrato e possui nitrogénio), Para liberar energia, os organismos utilizam carboidratos ¢ lipidios e, na sua falta, ‘os aminodcidos; para a utilizagéo de aminoaci- dos como fonte energética, 0 organismo precisa extrair 0 nitrogénio, proceso conhecido como desaminacao. Dessa forma, a molécula de ami- noacido sem o nitrogénio pode ser metabolizada ou transformada em glicose e depois metaboliza- da. Na espécie humana, esse proceso metabli- co (conhecido como neoglicogénese) ocorre no figado, e 0 excesso de nitrogénio deve ser excre- tado. Com isso, ha uma sobrecarga de trabalho tanto no figado como nos rins, que podem ser seriamente afetados.” Os defensores da dieta com tendéncia car- nivora afirmam que mais de 50% da energia utilizada pelos cagadores-coletores primitivos originavam-se da ingestao de cares. Os defensores da dieta com tendéncia a fito- fagia argumentam ainda que os seres humanos primitivos ingeriam a carne juntamente com as visceras dos animais, que os proviam de protei- nas, sais minerais e vitaminas; os itens vegetais (frutos, nozes, bulbos, mel, entre outros) seriam utilizados como fontes energéticas, necessdrias ‘em maior quantidade. A nossa espécie, segundo esses autores, nao é adaptada para ser carnivora preferencial, porque sintetiza vitamina A utili- zando como precursor 0 betacaroteno, além de possuir baixa capacidade de neoglicogénese. Os carnivoros preferenciais nao sintetizam vitamina Ae precisam ingeri-la de fontes animais, além de possuirem alta capacidade de neoglicogénese. Quanto a algumas tribos cagadoras-coletoras que se alimentam preferencialmente de carne (como (05 Inuites), a explicacdo esté em que o compor- tamento onivoro de nossa espécie permite que algumas populacdes se adaptem a condicdes extremas, suportando niveis mais altos de neogli- cogénese e metabolismo basal, e aproveitando a vitamina A presente nas visceras de suas presas.'® Outra discordancia entre os dois grupos diz respeito ao desenvolvimento do cérebro huma- no. Os defensores da dieta com tendéncia para a carnivoria afirmam que 0 aumento no consumo j eae PSICOBIOLOGIA DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR da carne permitiu a nossa espécie 0 desenvolvi- mento maior do cérebro em relaco aos outros primatas. O outro grupo argumenta que plantas nutricionalmente ricas, como nozes € castanhas, foram responsaveis pelo grande desenvolvimen- to cerebral, além de terem seu valor nutritivo incrementado pela utilizacao do fogo, como veremos adiante. ‘As mudancas dos habitos alimentares da nos- sa espécie com 0 advento da agricultura também sao motivo de discordancia entre os dois grupos. Aqueles que defendem a nossa tendéncia car- nivora argumentam que, com a agricultura, as populagdes humanas passaram a consumir mui- to mais itens vegetais do que animais e, conse- quentemente, muitas doencas degenerativas comegaram a ocorrer. O outro grupo contra- argumenta que foram os tipos de carboidratos e a utilizacao de alimentos refinados que propicia- ram 0 aparecimento de doencas, endo o advento da agricultura. Diversos estudos mostram que, do ponto de vista anatémico, os seres humanos modernos nada mudaram em relacdo aos seus antepassa- dos da era paleolitica, 0 que nos leva a pensar que, consequentemente, a nossa alimentacao deveria seguir os padrdes alimentares daquela €poca, pois foi assim que a nossa espécie se es- tabeleceu na Terra."* Embora as diferencas entre essas duas concepcées evolutivas nao afetem a presente’ discussdo, pesquisas recentes mostram que a teoria que defende a tendéncia a fitofagia parece mais préxima da realidade.s*'®21 As modificagées da alimentagao humana nos tempos primitivos ee OS A primeira revolucéo nos habitos alimentares aconteceu com a descoberta do fogo por ances- trais préximos (Homo erectus) da espécie huma- na22 A utilizagéo do fogo deve ter permitido a0 H. erectus e depois aos humanos modernos (Homo sapiens), melhor aproveitamento dos alimentos. O cozimento favorece a digestao, bem como elimina possiveis toxinas presentes nos alimentos. Provavelmente numerosos itens ali- mentares foram incorporados a dieta dos seres humanos primitivos com a descoberta do fogo. Alguns cientistas argumentam que, além dos aspectos alimentares, 0 fogo propiciou a socia- lizagéo ao reunir as pessoas a sua volta para a refeicdo. Os seres humanos primitivos também devem ter se servide do fogo para cercar suas presas durante a caga e afugentar predadores* A"descoberta’ do fogo pelo H. erectus, ances- tral direto do H. sapiens, nao é aceita por outros pesquisadores da drea, que entendem que o H. erectus era capaz de dominar e manter o fogo, mas nao crid-lo.¥ Entretanto, Wrangham (2009)?3- afirma que a nossa espécie possui dentes peque- Nos, sistema digest6rio comparativamente curto, @ tanto 0 H. erectus como 0 H. sapiens possuem o célon menor (cerca de 60%) do que o esperado Para seu tamanho. Essas adaptacées, segundo © autor, nao seriam convenientes para animais que ingerissem raizes duras e fibrosas, e, além do mais, 0 cozimento tornaria inécuas as subs- tancias venenosas eventualmente presentes nos alimentos. A espécie H. erectus é considerada a primeira a utilizar 0 fogo, pois possuia também o aparelho digest6rio relativamente pequeno para quem supostamente tivesse 0 habito de ingerir somente alimentos crus. Além disso, essa espé- cie nao subia em arvores e, portanto, dormia no chao; assim, 0 fogo serviria para afugentar preda- dores.® ‘A segunda revolucao nos habitos alimentares aconteceu hd mais ou menos 11 mil anos com © advento da agricultura, no sudoeste asiatico. Esse fato nao sO introduziu os gras na alimen- taco humana (aveia, cevada, centeio, trigo etc), também deu margem para que as populacées humanas pudessem estabelecer-se em deter- minados locais de forma definitiva. Quando os seres humanos eram ainda cacadores-coletores, as populacées permaneciam em determinado local até o momento em que fosse necessario migrar em busca de alimentos. Com o estabele- j i ‘ £ : 5 “sate A EVOLUGAO 00 COMPORTAMENTO ALINENTAR NA ESPECIE HUMANA 17. cimento da agricultura, os seres humanos néo mais precisavam ser némades, pois os alimentos poderiam ser cultivados em local préximo a seus abrigos. A criagéo de algumas espécies animais também facilitou a tarefa humana em sobreviver em locais fixos.* A onivoridade permitiu @ espécie humana estabelecer-se praticamente no mundo todo, como podemos verificar atualmente. Se os seres humanos fossem exclusivamente vegetarianos, dificilmente se estabeleceriam em regides com escassez de plantas, como no Alaska, por exem- plo. Se fossem exclusivamente carnivoros, teriam muitas dificuldades nos tempos primitivos, prin- cipalmente porque o sucesso durante a caca nao era garantido? Ao se defender que a alimentacao dos seres humanos cacadores-coletores na era paleolitica era mais adequada, surge sempre a questo: se 0 seres humanos se alimentam mal nos dias de hoje e se sua alimentacdo antes do advento da agricultura era melhor, por que nossa longevida- de é bem maior atualmente? Para tentar responder a essa questo, alguns pontos necessitam de explicacdes, conforme veremos. Do ponto de vista evolutivo, o importante & que os seres vivos atinjam a idade reprodutiva e deixem descendentes saudaveis. Os seres huma- nos, quando atingem 13 a 15 anos de idade, ja estdo prontos para reproduzir e deixar descen- dentes. Em geral, em razao de fatores nao biolé- gicos -, ou seja, aspectos sociais, culturais, finan- ceiros etc. -, isso ndo acontece nos dias de hoje. Entretanto, esses aspectos nao afetavam os seres humanos primitivos que, provavelmente, assim que atingiam a idade reprodutiva, reproduziam- se e deixavam descendentes.* Apartirde entao,afuncao biolégica dopaieda mae consistiria em cuidar da prole até que esta atingisse a fase adulta e, consequentemente, es- tivesse em condicdes de se reproduzir. Se somar- mos a idade necesséria para a reproducao com 0 tempo necessdrio para cuidar da prole, teremos algo em torno de 35 a 50 anos. Apés essa idade, 0s pais no teriam nenhuma funcdo importante a desempenhar. Do ponto de vista biolégico, para que viver mais do que isso? Ou seja, por que pes- soas com vida mais longa seriam selecionadas, se em nada contribuiriam para o aumento da popu- lao e, além disso, consumiriam mais recursos? Para que os seres humanos alcancem a fase reprodutiva e depois cuidem da prole, nao é ne- cesséria uma alimentacdo que prolongue sua vida até 70 a 80 anos de idade. Mesmo uma ali- mentacao nao muito saudavel é capaz de nos fazer chegar até 35 a 40 anos de idade, a nao ser que outros fatores intervenham nesse proceso, como doengas genéticas, uso abusivo de subs- tancias t6xicas, sobrepeso etc. Alguns cientistas discutem o papel dos avos no periodo paleolitico. Afirmam que provavel- mente tiveram papel muito importante nos cuidados dos netos; se pensarmos que a mae pre- cisava colher os alimentos 0 pai cuidava da caca, a teoria procede; mesmo assim, a expectativa de vida nao precisaria aumentar significativamente — em comparagao com os seres humanos atuais ~ considerando-se que, aos 40 anos de idade, os seres humanos primitivos ja podiam ser avés.>* O mais importante, entretanto, é que nao podemos comparar a longevidade dos cacado- res-coletores com as populacdes humanas de hoje. A comparacao deve ser feita com os agricul- tores da mesma época. Hoje devem-se compa- rar pessoas que possuem hébitos parecidos aos dos cacadores-coletores do periodo Paleolitico Inferior (alimentam-se de bastante verduras, frutas, legumes, carnes magras, peixes, graos in- tegrais e fazem bastante exercicios fisicos) com as que possuem habitos diferentes (alimentam-se de carnes gordas, carboidratos refinados, poucos alimentos vegetais e quase nao se exercitam). Vocé tem duividas sobre quem tem mais sauide e expectativa maior de vida? Na comparacao entre esses dois grupos, outros itens devem ser consi derados, como cuidados médicos e vacinas, por exemplo. 18 _PSICOBIOLOGIA DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR Além do que foi exposto, comparacées fei- tas entre populagdes de cacadores-coletores e agricultores do mesmo period por meio prin- cipalmente de exames de ossadas mostram que ©s primeiros possuiam uma longevidade maior e apresentavam muito menos doengas degenerati- vas e outras como: anemia, osteoporose e redugao no tamanho e na satide dos dentes. Essas doengas apareciam provavelmente em decorréncia da sim- plificagao da dieta dos agricultores, baseada em menos itens alimentares e, consequentemente, com potencial de causar deficiéncia nutricional.'*?” Pesquisas atuais que administraram uma die- ta adaptada semelhante & dos seres humanos no periodo paleolitico mostram sua superioridade para a satide, mesmo quando comparada com a dieta do Mediterraneo, considerada atualmente uma das mais saudaveis.**** Deve-se salientar que as doencas causadas por problemas alimentares aparecem com maior intensidade depois dos 40 anos de idade, quan- do a maioria dos casais ja possui filhos. Conclui- se entéo que as doencas causadas por habitos alimentares inadequados s4o oriundas de fatores ambientais € no genéticos. Entretanto, pesqui- sas recentes e sujeitas a confirmacao dao conta de que habitos alimentares inadequados podem causar problemas até nas futuras geracées.” Os criticos da dieta paleolitica argumentam também que os cacadores-coletores, por morre- rem mais jovens, ndo teriam tanta possibilidade de manifestar doencas degenerativas, que es- to sabidamente relacionadas com idade mais avangada. Porém, pesquisas feitas com jovens de sociedades industrializadas e de sociedades ca- sadoras-coletoras contemporéneas mostram que 05 primeiros apresentam altas taxas de obesida- de, pressao sanguinea elevada, problemas com © funcionamento da insulina (que pode levar 20 diabetes) e aterosclerose coronariana nao obs- trutiva, sintomas que raramente aparecem nos jovens das sociedades cagadoras-coletoras, que além disso apresentaram maior forga muscular e maior poder aerdbico."* Embora sociedades cacadoras-coletoras ha- bitem locais tao dispares como os trépicos ou 0 artico, as similaridades dos habitos alimentares s40 maiores do que as diferencas: caca de ani- mais selvagens (com pouca gordura saturada), vegetais livres de impurezas quimicas e bas- tante variedade nos alimentos, além de muito exercicio fisico. Quando se afirma que os cacadores-coletores no periodo Paleolitico viviam bem menos em comparacao aos seres humanos de hoje, alguns pontos nao sao levados em consideracao: © A fossilizagdo é influenciada por alguns fatores; portanto, o fato de nao haver ossos fossilizados de H. sapiens paleoliticos que in- dicassem idade mais avancada pode ser expli- cado pelo fato de que quanto mais velhos os (0550s, mais dificil a fossilizacao em virtude da reducao da densidade. Em ambientes com clima mais quente, como as savanas, a fossilizacao é mais dificil do que em climas mais frios. © A predagao de pessoas mais velhas seria muito mais facil?" & Pesquisas feitas com ossos fossilizados de dife- rentes espécies de hominideos indicaram que H. sapiens tem um potencial de longevidade de 82 a 86 anos. ‘As mortes naquela época aconteciam muito mais por traumatismo e acidentes do que por problemas alimentares. Hoje mesmo vivendo em condigées marginais, cagadores-coletores che- gam, em sua maioria, aos 60 a 70 anos de idade, sem cuidados médicos adequados.® Mesmo se considerarmos que hoje a longevidade ¢ bem maior do que na era paleolitica, 0 potencial ge- nético para tal deve ter se estabelecido naquela época. A explicacao seria a seguinte: se nessa era os seres humanos viviam somente até terminar a fase reprodutiva (cerca de 35 a 40 anos de idade), nunca houve presséo seletiva para se aumentar a : seyhaol a0 _— sc eammnnaSt ecm i ei aaa ees | os heebeieadna ‘AEVOLUGAO DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR NA ESPEGIE HUMANA 19 longevidade; ainda assim, a longevidade aumen- tou bastante nas Ultimas décadas. alimentagao atual E inegavel que a dieta de nossos ancestrais era melhor & que adotamos atualmente.#*5 Na realidade, quando tecemos comentarios sobre a dieta dos seres humanos atuais, nao é possivel generalizar, pois a alimentacéo em alguns pai- ses ou em algumas regides do planeta é bem melhor do que em outros. A tradicional comida japonesa ea chamada dieta do Mediterraneo sao exemplos a serem adotados, ao contrario das die- tas fast-food (refeicao répida) utilizadas hoje em quase todo o mundo. A tradicional dieta japonesa (conhecida co- mo dieta asiatica) e a denominada dieta do Medi- terrneo sao as que mais se aproximam daquela dos seres humanos pré-histéricos. Para se ter ideia, basta dizer que os japoneses © 05 franceses ingerem, em quantidade e quali- dade, muito mais vegetais do que os norte-ame- ricanos, por exemplo. A alimentacao destes ba- seia-se quase exclusivamente em quatro cereai arroz, batata, milho e trigo, caracterizando, por- tanto, alimentagdo pouco variada. Experiéncias ja demonstraram que, quanto mais variada for a alimentagao, mais beneficio traré para a sade, pois mais nutrientes essenciais e fitoquimicos se- rao ingeridos.7"33477 Conforme foi discutido, podemos concluir que nossa alimentacéo se modificou bastante com 0 tempo, mas nosso genoma permanece © mesmo em relacéo ao metabolismo, sendo que a tolerancia a lactose e ao gluten e algumas anemias sdo vistas como possiveis excegdes.” De acordo com alguns autores, certas doencas encontradas hoje em nossas populacées séo geradas pelo contraste entre um genoma sele- cionado para determinado estilo de vida e hé- bitos alimentares e as mudangas ocorridas ao longo de nossa histéria evolutiva."2"*"” A seguir, alguns desses aspectos. As alteracées alimentares e as doengas da modernidade Parece nao restar dtivida entre os pesquisadores de que a mudanca dos habitos alimentares com o passar do tempo influenciou o surgimento de do- engas nos seres humanos. A frequéncia € 0 tipo de doencas dependem dos habitos alimentares de cada regido habitada”’ Enquanto muitas pesquisas e opinides asso- ciam habitos alimentares erréneos com dife- rentes tipos de cancer, hipertenséo e acidente vascular encefélico, outras ndo as confirmam. Entretanto, o diabetes do tipo Il é unanimemente_ relacionado com mudanca de habitos alimenta- tes eo sedentarismo."* Esse tipo de diabetes, tam- bém conhecido como diabetes independente da insulina, parece ter relacdo muito forte com a obesidade. ‘A obesidade causaria baixa utilizacao da in- sulina, pois criaria resistencia nas células ao seu aproveitamento de maneira que a glicose nao é adequadamente aproveitada e surge o diabetes e suas consequéncias.*73* Embora a causa primaria da obesidade seja facilmente entendida, ou seja, aparece devido ao excesso de calorias ingeridas em relagio ao gas- to energético, as explicagdes quanto ao aspecto evolutivo tém causado controvérsias. Podemos iniciar essa discusséo mencionando © aparecimento da teoria do gene econémico no inicio da década de 1960. Como se sabe, nossos antepassados, antes do advento da agricultura, viviam da caca e da coleta no continente africano e, depois, em outras partes do mundo. Esse tipo de subsist&ncia ndo proporcionaria ao ser huma- no primitivo seguranga alimentar, de modo que ele atravessaria ciclos de fartura e fome. Em vir- tude disso, provavelmente em decorréncia da se- eco natural, os portadores do gene econdmico apresentaram maior probabilidade de sobrevi- 20 _PSICOBIOLOGIA DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR véncia; o gene econdmico induziria os seres hu- manos primitivos, em tempos de fartura, a ingerir mais alimento do que o necessario, e a sobra de calorias seria armazenada e utilizada em tempos. da escassez alimentar. Na época moderna, como nao hd escassez de alimentos mas nosso genoma pouco se alterou, o gene econémico continuaria ativo. Essa condicdo, associada a falta de exerci- ios fisicos e a0 excesso de ingestao de alimentos caléricos, geraria obesidade.” Entretanto, varias criticas foram feitas & teoria do gene econémico, principalmente tachando-a de muito simplista e propondo que seria mais logico considerarmos que varios genes atuam segundo a teoria lipostatica. De acordo com essa teoria, varios genes modulariam o apetite e seriam selecionados de modo diferente, depen- dendo da regido, da distribuicdo e da frequén- cia dos tipos de alimentos (mais fontes vegetais ou mais fontes animais). Sobre a teoria do gene econémico, os defensores da teoria lipostati- ca perguntam: como um ser humano acima do peso fugiria de predadores e, afinal, nao teria sua satide prejudicada?s? A teoria do gene econémico, atualmente apoiada por alguns autores, nunca deixou cla- To, nem mesmo por meio de hipsteses, quanto tempo duraria cada ciclo. Dispor de mecanismos metabélicos para reservar calorias possibilitaria & populacgo humana primitiva usé-las durante 0 dia enquanto se procurava caca ou se coleta- va. Seguindo essa linha surge uma questo: qual seria a quantidade calérica dessa reserva? E improvavel, no entanto, que as reservas caléricas fossem de grande monta a ponto de serem utilizadas por muito tempo (se houves- se mesmo a caréncia alimentar), devido a uma série de razdes: uma delas, jé apontada, diz res- peito ao sobrepeso, sabidamente prejudicial @ satide humana; outro fato ¢ que o nosso meta- bolismo nao € adaptado para metabolizar gor- dura por muito tempo, pois correriamos o risco de apresentar um quadro de cetose. Trata-se de um quadro metabélico em que os corpos ceté- nicos aumentam na corrente sanguinea, frutos do metabolismo de gorduras, e prejudicam o funcionamento dos glébulos vermelhos e, por consequéncia, a respiragdo. Dependendo do quadro, a cetose pode levar 4 morte.*** E importante ressaltar que 0 metabolismo do cérebro humano funciona basicamente com glicose; a falta desse acucar por muito tempo pode causar sérios problemas ao cérebro. Em condigdes de caréncia extrema de carboidratos, a sintese de glicose pode ser feita utilizando-se fontes lipidicas, mas essa situagdo pode prejudi- car a satide caso permaneca por certo tempo. Adaptacées metabdlicas na espécie humana podem indicar o que acabamos de afirmar: em caminhadas, 55% da energia gasta provém de 4cidos graxos (componentes dos lipidios), ¢ restante, de carboidratos; em corridas, somente 35% da energia gasta provém de acidos graxos.* Os humanos no periodo Paleolitico s6 corriam em situagées de estresse; no restante do tempo, caminhavam com maior ou menor intensida- de, dependendo da situagao, 0 que é indicio da seguinte adaptacdo: a glicose seria reservada para o cérebro e para situagdes de emergéncia; com a utilizaggo diferenciada de dcidos graxos e glicose, dependendo da situagao, nao se correria o risco da cetose e haveria reserva de glicose para as situaces de emergéncia, jé que o seu metabo- lismo € mais rpidos Sabe-se, inclusive, que quanto mais intenso © exercicio fisico (como em corridas), mais fome se sente depois, indicando que, com o exercicio fisico intenso, pode haver deplegdo de carboi- dratos no organismo, aumentando a sensacéo de fome. As explicacées proximais para esse qua- dro apontam para controles hormonais, mas as distais indicam que nosso organismo nao pode ficar sem reserva de carboidratos (dai a sensacéo de fome apés exercicios fisicos intensos), que & fundamental em situages de emergéncia e metabolismo cerebral. Devemos salientar que uma das caracteristi- as fisico-quimicas dos carboidratos, ao contrario “ _ : é s ' at AR ' 4 i > ‘AEVOLUGAO DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR NAESPECIE HUMANA 21 dos lipidios, é a forte atracdo pela agua, 0 que exigiria 0 seu consumo em grande quantidade, caso esses nutrientes fossem muito utilizados como reserva energética; além disso, cada grama de lipidio fornece nove calorias, enquanto a mes- ma quantidade de carboidrato fornece quatro calorias. Na pratica, a hipétese de que a espécie hu- mana, quando cacadora-coletora, estava & mercé de recursos imprevisiveis e sob constante amea- ¢a da fome, baseou-se em pesquisas feitas com populacées que viviam em dreas marginais no ini- cio do século XX. Essas areas nao eram abundantes em recursos alimentares durante todo 0 tempo, 0 que, no entanto, ndo acontecia com as primeiras populacdes humanas de cacadores-coletores, que viviam em areas onde os alimentos estavam disponiveis sempre em quantidade suficiente.'** A alimentaggo dos cacadores-coletores era cons- tante e variada nas savanas onde o H. sapiens se originou,® Epocas de fome apareceram somente depois da implementacgo da agricultura, pois 0 cacador-coletor dispunha de alimentos em abun- dancia; quando escasseavam, estavam em condi- ges de se mover e encontré-los com facilidade."*** ‘Além disso, se é provével a hipétese de que © fogo foi utilizado pela espécie humana desde o inicio de sua existéncia, a possibilidade de falta de alimentos para os seres humanos, mesmo que em periodos curtos, é altamente improvavel; 0 cozi- mento faria qualqueralimento disponiveltornar-se facilmente digerivel e livre de toxinas 2 Autores especialistas possuem outras teo- rias para explicar o aparecimento da obesida- de, tendo a evoluco como discussao de fundo, conforme veremos. A escassez de alimentos somente apareceu com o surgimento da agricultura. No perfodo em que a espécie humana primitiva vivia como cagadora-coletora ou nas sociedades cacadoras- coletoras atuais, néo houve nem hé, segundo esses autores, nenhuma evidéncia paleontolé- gica de escassez alimentar. Assim, 0 periodo em que os humanos pré-histéricos se alimentavam menos que onecessério era curto, de poucos dias, e muitas vezes nem chegava a tanto. A pergunta 6 muito clara: como uma espécie pode estabele- cer-se em um ambiente em que poder haver es- cassez de alimentos, sem que possua adaptacdes metabélicas para superé-la e tenha desenvolvido um cérebro tao eficiente e dependente de tanta energia diéria utilizando a glicose?5** Com o advento da agricultura, as populacées. humanas passaram a consumir poucos itens ali- mentares, a0 contrério das sociedades cacado- ras-coletoras; qualquer problema com um desses itens poderia significar escassez na alimentacéo. Soma-se a isso 0 aumento populacional decor- rente da agricultura, pois as populagées se torna- ram sedentarias e, embora com valor nutricional mais baixo, a producao de alimentos possibilitava sustentar maior nimero de pessoas." Embora a escassez crénica de alimentos, con- forme foi mencionado, pudesse aparecer devido aos problemas decorrentes do surgimento da agricultura, devemos ressaltar também o que pode ter acontecido quando populagées huma- nas comecaram a migrar da Africa para outras regides do planeta antes do surgimento da agri- cultura. Quando as populacées humanas comegaram a migrar da Africa para outros locais, a alimenta- 80 foi se afastando cada vez mais dos padrées ancestrais. Nos Inuites, por exemplo, manifestou- se osteoporose, causada pelo aumento da aci- dez em razdo das alteracées alimentares ocorri- das, em comparacao com os humanos cacadores- coletores do periodo Paleolitico.** Dependendo da regiao para onde migraram, as populacées humanas poderiam enfrentar maior escassez de alimentos, principalmente nas regides mais frias ou onde algum fator nao per- mitisse a estabilidade de fontes alimentares. Do ponto de vista evolutivo, nesse caso poderiam ocorrer duas situacdes:* & Haveria selecao genética favorecendo pessoas que tivessem mais condicées fisiolégicas para reservar calorias. _ 22 _PSICOBIOLOGIA 00 COMPORTAMENTO ALIMENTAR & Poderiam ocorrer alteracées fisiolégicas alte- rando o metabolismo, dependendo da maior ou menor disponibilidade alimentar; essas alterages poderiam ocorrer sem mudangas genéticas por meio de um processo denomi- nado plasticidade fenotipica, que consiste na adaptacao, sem alteragdo genética, dos orga- nismos a diferentes situaces ambientais. Nos dias atuais ¢ preciso levar em considera- Gao os efeitos da epigénese sobre os processos alimentares e metabdlicos.* A epigénese é defi- nida como 0 processo pelo qual genes podem ser ativados ou desativados em uma nova situacgdo ambiental, possibilitando ao organismo melho- rar a performance sem que haja modificago no genoma. J4 ha até provas de que esse processo pode passar para a geracdo seguinte, ou seja, 0 gene é ativado ou desativado em uma geracao e transmitido com essa modificacdo para a geracao seguinte 354548 Deve-se lembrar ainda que embora a espécie humana tenha surgido na Africa Oriental, popu- laces podem ter migrado para outras regides do proprio continente, alterando os itens alimenta- res de suas dietas.” As mais recentes pesquisas sobre comporta- mento alimentar humano e os mecanismos que regulam a fome e a saciedade apresentam um quadro cada vez mais complexo. Provavelmente esse quadro podera apresentar alguns meca- nismos comuns a todos, além de outros que poderdo ser diferentes dependendo da regiéo de ‘origem da pessoa, em fungdo da influéncia dos processos evolutivos. Algumas pesquisas e observacées clinicas indicam que essas hipéteses levantadas sao plau- siveis e que provavelmente ha fatores genéticos @ também mecanismos de plasticidade feno- tipica e epigénese envolvidos na regulacao da ingestdo de alimentos, da fome e da saciedade. Mencionaremos dois exemplos. Pesquisas feitas em laboratério mostram que quando os ratos séo alimentados com a mesma quantidade de calorias ~ advindas do mesmo tipo de rago - ao longo do dia, mas em inter- valos diferentes, os resultados também variam. Quando as refeicées sao fornecidas trés vezes ao dia a grandes intervalos, os animais acumulam gorduras em maior quantidade do que quan- do so fornecidas seis vezes ao dia a intervalos menores. Esse fato parece indicar que o organis- mo se adapta metabolicamente, dependendo da disponibilidade de alimentos. Tudo indica que es- ses resultados se aplicam a espécie humana. A.explicagao plausivel para o que foi afirmado no paragrafo anterior seria que, quando 0 orga- nismo recebe nutrientes em maior quantidade e a intervalos mais espacados, o metabolismo atua no sentido de armazenar a maior quantidade possivel de calorias; esas calorias seriam utiliza- das para a liberagdo energética nos periodos em que nao houvesse alimentos disponiveis. Em contraposigo ao que foi dito, quando o organismo recebe nutrientes em menor quanti- dade mas a intervalos mais curtos, o metabolis- mo atua no sentido de armazenar menos calorias. Com excecao de cacadas muito bem-sucedidas, & provavel que os cacadores-coletores da era Paleolitica se alimentavam dessa dltima maneira. Se essa teoria for verdadeira, deve haver um mecanismo controlando a velocidade metabsli- ca do organismo, que ora diminui, ora aumenta. Outros resultados mostram que o numero de adipécitos (células responsaveis pelo arma- zenamento de gorduras) é determinado geneti- camente; entretanto, se durante a fase de cresci- mento a pessoa ingerir mais alimentos do que o necessério, a ponto de esgotar a capacidade dos adipécitos presentes no organismo, esse numero pode aumentar proporcionalmente ao excesso de ingestao. Seria por esse motivo que uma pes- soa que atinge a idade adulta com sobrepeso (e, portanto, com excesso de adipécitos adquirido na fase de crescimento) apresenta mais dificulda- des para atingir seu peso normal do que a que adquira sobrepeso na fase adulta. O motivo seria que, 20 atingir a fase adulta com o peso normal, o amen MR Ch ANA “ORR INIRRRERIMMENR et eee oem ‘AEVOLUGAO 00 COMPORTAMENTO ALIMENTAR NA ESPECIE HUMANA 23 numero de adipécitos limitaria 0 excesso de calo- rias armazenadas.¢ —m suma, enquanto viveram nas savanas afticanas, os seres humanos mantiveram-se nos seus pesos normais gracas & disponibilidade constante de alimentos e bastante atividade fisi- ca. Obviamente, havia mecanismos metabdlicos que permitiam armazenar calorias, porém, pelos motivos mencionados, essas reservas ndo ul trapassariam os limites da normalidade. Como a evolucdo no prevé o futuro, 4 medida que as populagdes humanas foram ocupando outras re- gides do planeta e 0 modo de vida foi sendo mo- dificado, principalmente com a reducao de ati- vidades fisicas e a ingestéo de alimentos pouco saudavels, os problemas comecaram a aparecer. Conforme foi afirmado, pesquisas compa- rativas mostram que a satide das sociedades cacadoras-coletoras era muito melhor do que a dos primeiros agricultores. Talvez a causa mais importante dessa diferenga seja a reducéo da diversidade alimentar por parte das populacdes que passaram a viver da agricultura. Quanto menor a variedade do cardapio alimentar, maio- res as chances de manifestar deficiéncias nutricio- nais e, por conseguinte, contrair doencas. Outra causa para essa diferenca pode ser atribuida ao fato de que os agricultores primitivos baseavam sua alimentacao em gréos, sabidamente pobres em fitoquimicos. Alguns autores afirmam que as doencas te- fo porque os agricultores primitivos reduziram a ingestao de carne e aumentaram mui- to a ingestéo de graos, situaco a que nosso me- tabolismo ndo estaria preparado."* Entretanto, ou- tros autores discordam dessa afirmacao, pois con- sideram que as doencas teriam aparecido quando a ingestio de alimentos refinados aumentou em detrimento da ingestao de gros integrais."* Mudancas fundamentais aconteceram nos hébitos alimentares e também no estilo de vida da espécie humana com o passar do tempo. Fundamentalmente séo essas mudangas que fizeram surgir as chamadas doengas da civilizacéo. © nosso genoma foi “moldado” em um ambiente com alimentagéo bastante variada, muito exercicio fisico (estima-se que as pessoas andavam cerca de 12km ao dia) e populacées pequenas; os alimentos eram livres de venenos (agrotéxicos) e nao eram refinados. Atualmente, os alimentos vegetais sao cultivados com a utili- zac4o de venenos quimicos, as carnes possuem alta taxa de gorduras saturadas, grande parte da populacado nao pratica exercicios fisicos e 0 nu- mero de pessoas cresce sem nenhum controle. Portanto, nao ha sintonia entre o tipo de vida que grande parte da populagéo humana desfruta hoje eo estilo de vida pelo qual fomos seleciona- dos, principalmente do ponto de vista alimentar e metabélico! Por tudo o que foi apresentado e exposto até aqui e pelas pesquisas feitas nos ultimos anos, parece claro 0 caminho a seguir quando se fala em comportamento alimentar e ativida- des fis mo-nos dos nossos antepassados. Nao é neces- icas para uma vida saudadvel: aproximar- sdrio, como alguns ironicamente dizem, voltar a morar em cavernas e cagar ou coletar os pré- prios alimentos. Basta saber como nossa espécie foi “moldada’ no curso de sua evolucdo e fazer adaptacées para nossos dias, sem extremismo exagerado. Graos e cereais integrais, verduras, legumes, frutos, carnes magras (de aves e peixes, principal- mente) devem ser 0 sustentéculo para a alimen- tacao saudavel. Sempre que possivel, devem-se ingerir alimentos organicos, fazer exercicios fisicos e ingerir liquidos que promovam a sade, como agua e sucos frescos. As pesquisas mos- tram que a proporcdo entre os itens vegetais € animais a serem ingeridos diariamente deve ser, respectivamente, de 3:1.""7 A quantidade de ali- mentos ingeridos deve satisfazer nossas neces- sidades nutricionais basicas e estar diretamente relacionada com nossas atividades fisicas, para que nao haja falta nem excesso de calorias. Nesse sentido, € preciso salientar dois pontos:S 24 _PSICOBIOLOGIA DO COMPORTAMENTO ALINENTAR & Ocultivo de alimentos organicos deve ser rea- lizado por meio dos principios da agroecolo- gia, € nao em monoculturas; segundo esses principios, além de nao se aplicarem venenos e insumos quimicos, hd uma conexao entre fa- tores bisticos e abidticos, com diversidade de animais e plantas. a O argumento de que uma alimentacao saudé- vel é inacessivel as classes com menor renda deve ser rebatido com profundas reformas sociais; ou seja, a questo € politica, e nao cientifica, Para concluir essa revisdo, discutiremos, a luz da evolugéo, alguns alimentos que tém gerado muitas controvérsias em relagdo aos seus bene- ficios e maleficios. ‘ALIMENTOS CONTROVERSOS E A EVOLUGAO Alguns alimentos sao motivos de controvérsia. Discutiremos, a seguir, aqueles cujo consumo nao é consensual na literatura cientifica e que podem ser abordados sob a visdo evolutiva. A dis- cussdo baseia-se em Ritchie (1995), Counihan & Van Esterik (1997)* Diamond (2001); Larsen (2003)77 Ferndndez-Armesto (2004), Zucoloto (2008)’ e Aronne (2010). Leite s estudiosos que ndo recomendam a ingestao do leite utilizam como argumento principal o fato de os seres humanos serem os Unicos mamiferos a ingerir esse alimento na fase adulta. Nenhum outro mamifero o faz, a nao ser os animais do- mésticos (gatos, cachorros) nos casos em que o leite Ihes ¢ oferecido pelos donos. Argumentam ainda que, se a natureza “quisesse” que os seres humanos consumissem leite apés o desmame, a mae continuaria a produzi-lo. Segundo essa ten- déncia, os seres humanos s6 ingerem leite apés © desmame porque domesticaram animais que podem fornecé-lo, como a cabra e a vaca. Além disso, alegam também que o leite desses animais tem composicéo muito diferente da do leite humano. Os que defendem a utilizagao do leite pela espécie humana apés o desmame argumentam que se trata de alimento muito nutritivo, rico em célcio e proteinas, e que nos mais velhos, prin- cipalmente as mulheres, previne ou reduz os problemas causados pela osteoporose. A primeira questo a ser levantada é a se- guinte: os seres humanos comecaram a ingerir leite apés o desmame somente quando tiveram condigées de domesticar animais. Sendo assim, antes disso, como os seres humanos conseguiam fontes de célcio e proteinas, t4o presentes no lei- te? Pesquisadores calculam que os humanos pas- saram a beber leite apés o desmame a partir de 6 mil a 5,5 mil anos atrés. Aqui cabe uma resposta que servird para varias outras discuss6es sobre os habitos alimentares da espécie humana Estudos mostram que na alimentacao dos humanos primitives havia muito mais célcio do que na alimentacgo atual do norte-americano de classe média. As proteinas eram conseguidas com a ingestéo de carne de diferentes origens, ovos e castanhas, principalmente. O calcio pode- ria ser conseguido em cares, peixes e eventual- mente em fontes vegetais. As pesquisas revelam dois pontos importan- tes: no periodo Paleolitico, a alimentacao huma- na era muito mais variada e os alimentos eram mais ricos em determinados nutrientes. Com © advento da agricultura e nos perfodos que se seguiram até os dias de hoje, os seres humanos selecionaram os alimentos para utilizagao na ali- mentacio, privilegiando muito mais a producao do que 0 valor nutritivo. O que acabamos de expor conduz 8 seguin- te conclusdo: para os cacadores-coletores do periodo Paleolitico, a diversidade de alimentos era muito grande e, sendo assim, eles conse- guiam equilibrar sua dieta prescindindo o leite. Atualmente, com uma alimentacao muito menos “Seca MIMESWOMNFNEN = se: 3 ‘AEVOLUCAO DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR NA ESPECIE HUMANA — 25, variada devido a questées culturais e econé- micas, os seres humanos tém que consumir ali- mentos ou mesmo suplementos nutricionais em forma de pilulas para os quais nao esto evoluti- vamente “preparados’. Em suma, 0 leite ingerido depois do des- mame é prejudicial 4 satide? Os argumentos utilizados até agora informam-nos que os seres humanos nao necessitam de leite apés o desma- me. Entretanto, isso impediria, do ponto de vista da sade, tomar leite? Se a resposta for positiva, quais seriam as evidéncias? Cerca de 75% das pessoas adultas em todo o mundo nao conseguem digerir © acucar do leite, denominado lactose, Essas pessoas, na fase adulta, nao possuem uma substancia (na realidade, onome correto 6 enzima, pertencente ao grupo das protei- nas) conhecida como lactase (sempre presente em lactentes), necessaria para digerir a lactose. Ao in- gerirem o leite, apresentam célicas e muitas vezes disenteria. A maioria das pessoas que mantém essa enzima na fase adulta reside ou nasceu em regides muito frias e/ou nas quais a criacao de animais lei- teiros se manteve, como a Europa Setentrional. Provavelmente, como nessas regides os alimentos vegetais sempre foram escassos, a alimentacio & base de leite e came era a solugo, havendo, entao, uma selecdo genética que favorecia pessoas que possuiam lactase na fase adulta, Entre os povos que do possuem a lactase, muitos utilizam coalhada na alimentacdo, pois tem a mesma composicao do leite, entretanto, em virtude da aco de bactérias, a lactose € parcialmente decomposta. Dessa forma, ‘as pessoas que nao possuem lactase podem ingerir a coalhada (ou o iogurte) sem manifestar proble- mas digestérios preocupantes, Existem relatos de que muitas pessoas que ingerem produtos lacteos apresentariam reacdo alérgica as proteinas presentes nesses alimen- tos, geralmente em forma de enxaqueca. Esse fato, segundo alguns pesquisadores, pode ser evidéncia de que os seres humanos adultos no estariam fisiologicamente preparados para o consumo de leite e derivados. A ingestao do leite integral pode aumen- tar o nivel de algumas substéncias prejudiciais a satide, afetando principalmente o coracao e a CirculagSo. Isso acontece porque o leite integral e seus derivados so ricos em determinados tipos de lipidios e de colesterol (leia discussao adiante) que, em excesso, podem trazer problemas para a satide. No mercado, podemos encontrar com facilidade leite sem lipidio, denominados desna- tados. Carne Quando 0 assunto é carne, principalmente carne vermelha, a discussao torna-se acirrada. Aspectos biolégicos, médicos e religiosos so colocados em pauta. Do ponto de vista religioso, alguns argumen- tam que os animais no existem para que os seres humanos os matem e deles se alimentem. Alegam, ainda, que é compreensivel que os ani- mais se devorem, poi res humanos, nao tém alma e, portanto, nao sao. capazes de compreender a criacdo divina. No- te-se que esses argumentos classificam o ser hu- diferentemente dos se- mano fora da categoria dos animais, ao contrario do que entende a Biologia. O argumento ligado a sade € basicamen- te seguinte: a carne, independentemente da origem, é impregnada de horménios (utilizados para acelerar 0 processo de crescimento dos animais) © antibiéticos (aplicados para evitar infecgdes nos animais). Tanto os horménios como 05 antibidticos, ao serem ingeridos com a came pelos seres humanos, podem desencade- ar varios problemas de satide, Muitos estudiosos contrarios ingestéo de carne argumentam que a menarca (primeira menstruacao) precoce nas adolescentes hoje é resultado do alto consumo de came contendo horménios. Além desse argumento, vilido para carnes de qualquer origem (com excacdo da came or- ganica), a carne vermelha possui mais dois agra- vantes: 0 excesso de lipidios, que é prejudicial 26 PSICOBIOLOGIA DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR @ sade, e 0 excesso de substancias téxicas |i- beradas durante os processos vitais do animal. Geralmente os animais que sao fonte de carnes vermelhas (comumente os bovinos) tém metabo- lismo mais intenso do que aqueles que fornecem carnes brancas (mais comumente aves e peixes). Com 0 metabolismo mais intenso, mais substn- cias toxicas, resultados finais desse proceso, aca- bam se acumulando. A cor vermelha decorre da maior concentracao de hemoglobina, pigmento respiratorio que aparece com mais intensidade em tecidos com maior taxa metabdlica. Os argumentos biolégicos s4o dois: em pri- meiro lugar, os seres humanos na fase cacadora- coletora ingeriam pouca carne; em segundo lu- gar, 0 aparelho digestério humano estaria mais adaptado para a alimentagao onivora, com ten- déncia para ingerir mais vegetais do que produtos animais. Mesmo assim, aqueles que sao a favor da in- gestéo de carne concordam em parte com esses argumentos, ou seja, consideram que os seres humanos devem ingerir carne, mas com parci- ménia. Afirmam que muitas pessoas exageram na ingestéo de carne, e por isso os problemas de satide aparecem. A carne - argumentam - é fonte rica em proteinas principalmente em ferro, além de vitamina B,,, que nao € encontra- da nos vegetais. Sabemos, entretanto, que esses nutrientes (com exce¢ao da vitamina B,,) podem ser encontrados em outros alimentos, incluindo 9s produtos lacteos. Contudo, se a vitamina B,,, que € essencial para a sade, é encontrada somente nos produ- tos de origem animal e se os seres humanos do periodo Paleolitico nao possuiam leite a disposi- Ao depois do desmame, onde conseguiam essa vitamina, a nao ser em carnes ¢ ovos? Sabemos que as maiores fontes de vitami- na B,, sdo as visceras bovinas (figado ¢ rins) ea came, bem como o leite € os ovos; entretanto, a quantidade encontrada no leite e nos ovos é mui- to inferior a contida nas visceras e na carne. No figado, a quantidade pode variar de 30 a 120ug; nos rins, de 18 a 55g; € no leite e nos ovos, de 0,3 a 0,4ug. Essas quantidades referem-se a cada 100g de alimento, De acordo com a literatura da rea, 0 ser hu- mano necessita de aproximadamente 3 a 4ug de vitamina B,, por dia. Como o leite nao esta- va disponivel para os humanos adultos na era Paleolitica, seria necessaria a ingestao de cerca de 10 ovos por dia (tomando-se como base 0 ovo da galinha) para satisfazer suas necessidades didrias de vitamina B, ,. Caso contrério, seria necessaria a ingestao de visceras e de carne. Em primeiro lugar, cada pessoa precisaria conseguir 10 ovos por dia, retirando-os de ni- nhos, tarefa nada facil se levarmos em conside- racdo a constante protecao aos ninhos por parte dos pais. Em segundo lugar, o aparelho digesté- rio suportaria tamanha ingestdo diria de ovos? Embora os valores citados possam variar de um autor para outro, as diferencas entre as fontes alimentares continuam altas. Os dados expostos baseiam-se em pesqui- sas recentes, mas ndo sabemos se no periodo Paleolitico as necessidades eram maiores, pois uma das funcées da vitamina B,, é a maturacdo das células sanguineas, com influéncia direta so- bre 0 metabolismo; seré bom lembrarmos que 0 gastos energéticos naquela época eram bem maiores do que sao hoje. Conclui-se que ha fortes argumentos em fa- vor da ingestéo de care pela espécie humana. Muitos vegetarianos argumentam que é possivel encontrar vitamina B,, nos vegetais. Entretanto, fontes mais convictas no concordam. Porém, nao sabemos e talvez nunca saberemos se ali- ‘mentos vegetais na Pré-Historia possuiam vitami- na B,.,. Parece que bactérias presentes no solo a sintetizam, e 0s animais, ao ingeri-las junto com 0 alimentos, tornam-se fonte dessa vitamina. Nos ruminantes, como os bovinos, as bactérias Presentes no aparelho digestério sintetizam a vitamina B,,, que sera aproveitada por esses animais e pelos outros que ingerirem sua carne, incluindo os seres humanos. AEVOLUGAO DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR NA ESPECIE HUMANA 27, As pesquisas feitas nessa indicam que o ser humano primitivo ingeria came. Parece que a quantidade consumida dependia da regido, da época e da disponibilidade de caga. Em regides de clima frio com pouca disponibilidade de vege- tals, é provavel que os humanos naquela época dependessem muito da ingestao de carne. Muitos pesquisadores afirmam que a caca teve grande influéncia na socializacao da espécie humana, bem como no desenvolvimento da lin- guagem e da fala Como foi afirmado, é preciso entender as marcantes diferencas entre a época Paleolitica e a nossa. A primeira, e talvez a mais importante, refere-se & composicao da carne. Os varios tipos de carne que ingerimos provém, em geral, de animais domesticados, confinados e alimenta- dos com ragées concentradas. Esses aspectos deixam a carne com uma concentracéo muito maior de lipidios do que a carne originaria de animais selvagens, fontes da alimentagao dos seres humanos na era Paleolitica. Pesquisas recentes indicam que os animais silvestres pos- suem menos de 4% de lipidios em sua composi- G40 € 05 animais domesticados, de 25% a 30%. Além disso, sabe-se que animais silvestres pos- suem em seus tecidos magros (musculos) altas concentragées de acidos graxos insaturados ~ benéficos para a satide -, ao contrario de ani- mais confinados que possuem alta concentra- do de Acidos graxos saturados, que podem ser prejudiciais ao nosso organismo. Uma duivida que geralmente surge é como 05 povos que vivem em regies frias (como os Inuites), que se alimentam basicamente de car- ne, podem ter uma vida saudavel, pois estariam ingerindo grandes quantidades de acidos graxos saturados e colesterol. Embora o colesterol tam- bém seja considerado um viléo da sauide huma- na, devemos lembrar que é importante para a sintese de horménios sexuais (estrogénio, tes- tosterona) e de cortisona, além de fazer parte da membrana celular e ser importante na sintese da vitamina D. A alimentacao dos Inuites é rica em uma substancia conhecida como émega 3, que pro- tege as artérias, pois evita que as plaquetas se aglutinem formando codgulos e impedindo a circulagao normal do sangue; além disso, essa substéncia é primordial para a sintese de uma outra substancia ~ a prostaglandina -, importan- te no crescimento, na diferenciacdo celular e em respostas imunes, fazendo parte estrutural das células cerebrais; portanto, é importante para a satide fisica e mental. Entre os dcidos graxos insaturados, ha dois essenciais para a saude humana, ou seja, necessitamos deles, mas ndo os sintetizamos. Portanto, precisamos ingeri-los pela alimen- taco. Esses dois dcidos so conhecides como linolénico e linoleico. Em razao de suas estru- turas quimicas, 0 linolénico é um émega 3, € 0 linoleico € um émega 6. Ambos devem estar em perfeito equilibrio no nosso organismo. 0 omega 6 é encontrado em abundancia em nos- sa alimentagdo, e podemos obté-lo por meio da ingestao de carne de porco, sementes, nozes 6leos vegetais; jd o émega 3 nao é tao presen- te em nossa alimentacdo, pois encontrado em alimentos como sardinha, salmao, éleo de linhaga, algumas nozes e castanhas, que séo bastante consumidos pelos Inuites, mas ndo pela populacao em geral. Muitos autores rela- cionam varias doencas modernas com a baixa ingestao do Acido linolénico. s cacadores-coletores do Paleolitico consu- miam 6mega 3 por meio da ingestdo de came de mamiferos e aves, animais que se alimentavam de relvas ricas nessa substancia. Além dos aspectos quantitativos, devemos ressaltar também que os animais na Pré-Histéria que serviam de alimentos para os seres humanos, alimentavam-se de vegetais ricos em fitoquimi cos. Hoje, os animais que os seres humanos uti- lizam para se alimentar so tratados com ragdes sem essas substéncias. Jé que os seres humanos primitivos ingeriam came e esta era a unica fonte de vitamina B,,, dis- 28 _PSICOBIOLOGIA 00 COMPORTAMENTO ALIMENTAR ponivel, isso pode entao significar que precisa- mos ingerir carne, embora em quantidade bem menor do que a ingerida atualmente. Agucar Outro ponto importante que merece discusséo & a ingestdo de acucar pelos seres humanos. Os acicares fazem parte do grupo dos carboi- dratos, juntamente com 0 amido. A diferenca principal entre os acticares (como a sacarose, 0 agticar comum utilizado para fazer doces, bolos, sorvetes etc.) e 0 amido (encontrado em cereais, folhas e utilizado para fazer bolachas e biscoi- tos) € o tamanho das moléculas, que so maio- Tes no amido, Entretanto, o amido que os seres humanos primitivos ingeriam era proveniente de alimentos integrais, ricos em varios outros nutrientes e, por isso, mais nutritivos. Os seres humanos modernos ingerem muito mais acucar do que seus ancestrais. Pesquisas mostram que a ingestdo exagerada de aguicar pode comprometer seriamente a satide dos dentes, além de causar obesidade e doengas como o diabetes do tipo Il. Os seres humanos primitives ingeriam o acticar presen- te nos frutos, alimento consumido de maneira eventual. A maior fonte de carboidratos eram as raizes, desprovidas de acuicar e ricas em ami- doe fibras. Além do mais, pesquisas recentes mostram que os carboidratos, ingeridos de alimentos inte- grais so mais saudaveis do que os que provém dos refinados, que séo adicionados em doces, bolos, sorvetes e biscoitos. Durante muito tempo, predominava a nocao de que os carboidratos denominados polissaca- rideos (como 0 amido) eram saudaveis, a0 passo que os monossacarideos e os dissacarideos (agu- cares) eram prejudiciais. Hoje, entretanto, esses conceitos modificaram-se gracas a descobertas que permitiram a introducao na literatura cien- tifica das expressées indice glicémico e carga alic&mica, Indice glic&mico é a quantidade de glicose liberada em um determinado tempo quando um alimento contendo carboidrato é ingerido. Para se calcular 0 indice glicémico, utilizam-se 50g do carboidrato contido no alimento. Essa quan- tidade comparada a um padrdo especifico, que pode ser a sacarose ou 0 pao branco. Atribui-se um valor arbitrario - 100 para a sacarose e 130 para 0 pao branco ~ e a comparacao é feita com © alimento a ser testado. Para se ter uma ideia, basta dizer que a batata (rica em amido) possui um indice glicémico semelhante ao da sacarose e maior do que 0 da frutose (acticar presente nos frutos). Carga glicémica é a quantidade de carboidra- to presente no alimento multiplicada pelo indice glic3mico. O conceito de carga glicémica nos dé uma nogao melhor sobre os efeitos da ingestao de determinada fonte de carboidrato. A cenoura, por exemplo, tem um indice glicémico (131) mais alto do que a sacarose pura (100); entretanto, a quantidade de carboidrato na cenoura é baixa, cerca de 8%, 0 que significa que, para se atingir um indice glicémico de 131, teriamos que ingerir cerca de 600g de cenoura. A consequéncia de indice glicémico e carga glicémica altos é a liberacao de muita insulina na corrente sanguinea, o que causa sérios danos as artérias e favorece o actimulo de lipidios, a obesi- dade e o diabetes. Os fatores que afetam o indice glicémico ea carga glicémica sé0 a composigao do carboidrato € 0 fato de ser o alimento refinado ou integral. 0 alimento refinado possui indice glicémico mais alto do que o integral. Pesquisas recentes mostram que alimentos produzides com carboidratos refinados, ricos em agiicares e gorduras, promovem resisténcia a saciedade, pois interferem nas mensagens en- viadas ao cérebro, impedindo assim que o animal interrompa a ingestdo alimentar.* A nossa hipétese para esse fato é a sequinte: © nosso sistema fisiolégico foi selecionado com alimentos ricos em alimentos integrais, com a abi ‘AEVOLUGAO DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR NAESPECIE HUMANA 29 quantidade limitada de acucares e gorduras; seria logico esperar-se, portanto, que o sinal de saciedade alimentar estivesse ligado a ingestéo de alimentos integrais e pobres em acucares e gorduras, como no Paleolitico. Sob essa perspectiva, surge uma questéo: se 0s acticares e as gorduras saturadas, quando ingeridos em grande quantidade, prejudicam a nossa satide, por que gostamos tanto deles? Por que a evolugéo nao nos preparou para nao inge- rir grande quantidade dos alimentos que contém acicar e gordura saturada? Os alimentos que continham acticar (frutos, principalmente) e gorduras (basicamente carnes, nozes € castanhas) nao estavam disponiveis a todo o tempo para os seres humanos primitivos. 3s frutos eram sazonais e a carne era determina- da pelo sucesso nas cacadas, além de terem com- posicao quimica diferente daquela das canes consumidas hoje, conforme ja discutido, Pode-se entéo concluir que esses nutrientes séo necessd- rios em pouca quantidade e que os seres huma- 1os primitivos possuiam mecanismo muito eficaz para percebé-los, jé que nao era facil encontré- los. Como os mecanismos para percebé-los ndo se alteraram ao longo da evolugdo humana, é fé- cil imaginar o prazer que sentimos ao ingerir ali- mentos ricos em acticares e gorduras. “CONSIDERAGOES FINAIS Embora saibamos de toda a diversidade de teo- tias sobre a nossa alimentacéo, parece ndo restar diividas sobre um aspecto: se quisermos ter uma alimentagio saudavel, devemos lancar nosso olhar para 0 comportamento alimentar da es- Pécie na fase cacadora-coletora no Paleolitico e, obviamente, fazermos as adaptacdes alimentares para nossos dias, Basta verificarmos que todos 05 conselhos que tém o intuito de valorizar uma vida saudavel véo ao encontro da alimentagéo dos humanos no periodo Paleolitico e dos exerci-

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