You are on page 1of 19
Geografias do modernismo em um mundo globalizante = Fm meméria de Edward W. Said [A geografia do modernismo clissico primeiramente determinada pelas cida- des metropolitanas e pelos experimentos e sublevagées culturais que elas gera- ram: a Paris de Baudelaire, a Sao Petersburgo de Dostoiévski ou Mandelstam, a Viena de Schinberg, Freud e Wittgenstein, a Praga de Kafka, a Dublin de Joyce, a Roma dos futuristas, a Londres de Woolf; o dadaismo em Zurique e ‘em Munique, o grupo expressionista der blaue Reiter; a Berlim de Brecht, Dé blin ea Bauhaus, a Moscou de Tretiakov, a Paris do cubismo e do surrealismo, ‘a Manhattan de Dos Passos. Essa ¢ a lista-padrao da Europa continental, com seus poucos destacamentos avangados angléfonos, mas ela ignora o modernis- mo de Xangai ou de Sao Paulo na década de 1920, a Buenos Aires de Borges, o Caribe de Aimé Césaire e a Cidade do México de Frida Kahlo, Diego Rivera ¢ Alfaro Siqueiros. Esses acréscimos nos lembram que a cultura metropolitana foi traduzida, apropriada e criativamente imitada em paises colonizados ¢ pés- -coloniais da Asia, Africa e América Latina. Das maneiras mais interessantes, 0 modernismo perpassou culturas imperiais e p6s-imperiais, coloniais ¢ descolo- nizadas. Muitas vezes, o encontro de artistas € intelectuais coloniais com a cultura modernista da metrépole respaldou o desejo de liberdade e indepen- déncia. Eo encontro reciproco, embora assimétrico, do artista europeu com 0 mundo colonial alimentou a virada contra a cultura burguesa. O éthos antago- nico do modernismo europeu, portanto, assumiu matizes politicos muito dife- rentes na coldnia, os quais, por sua vez, exigitam estratégias literdrias e repre- sentacionais sintonizadas com as experiéncias ¢ subjetividades criadas pela colonizacao. As crises da subjetividade e da representacao, no cerne do moder- nismo europeu, desdobraram-se de formas muito diferentes numa modernida- de colonial e pés-colonial. Essas geografias alternativas do modernismo emer- giram em nosso horizonte desde a ascensio dos estudos pés-coloniais ¢ de uma nova atencao para com a genealogia da globalizagao cultural. Todas essas geografias sio também moldadas por suas inscrigGes tempo- rais, Costuma-se dizer que 0 modernismo internacional nas artes durou de meados do século XIX a meados do século XX, mas hd variagdes temporais ¢ Geografias do modernismoemum mundo globalizante 19 espaciais significativas dentro desse recorte. As culturas nacionais da Europa continental nao funcionavam em sincronia (o modernismo francés precedeu a variante alema), € diferentes meios artisticos voltaram-se para 0 modernismo em sequéncias diferentes (a pintura e o romance vieram primeiro na Franga, a miisica ¢ a filosofia, na Alemanha, ¢ a arquitetura modernista foi a tiltima a aparecer em qualquer lugar). Esses desenvolvimentos desiguais, para usar a expressao de Marx, tanto decorreram de tradigdes nacionais quanto refleti- ram diferentes estagios de urbanizagio e industrializagao. Além disso, os mo- dernismos na Europa divergiram de modos significativos no plano politico. Antes da Segunda Guerra Mundial havia um modernismo fascista, especial- mente na Italia; um modernismo comunista nas margens da cultura oficial soviética; e um modernismo liberal, incorporado na politica das frentes popu- lares do Komintern em meados da década de 1930. Apesar disso, 0 periodo do fim do século XIX até a década de 1930 tem, de fato, um denominador comum, se comparado ao periodo posterior a Segunda Guerra Mundial. Criticos como Fredric Jameson e Perry Anderson, entre ou- tros, enfatizaram que a ascenséo do modernismo na Russia, Alemanha, Fran- cae Itélia dependeu da presenga continua de um antigo regime, com suas an- tigas elites aristocraticas; da presenga de um academicismo sumamente formalizado no mundo organizado da arte, que simplesmente implorava que as varias secessées Ihe fizessem oposicaio; da ascensio de novas tecnologias, como a fotografia, o cinema e 0 radios e, por fim, da proximidade entre a re- volucao estética e a revolugao politica, com sua fase mais intensa logo depois da Revolucdo de Outubro. Naquelas décadas, a metrépole ainda era uma ilha de modernizagao em culturas nacionais dominadas pela vida tradicional do interior ou das cidadezinhas. Em outras palavras, o modernismo europeu sur- giu no limiar de um mundo ainda nao plenamente modernizado, no qual o velho € 0 novo eram violentamente jogados um contra 0 outro, soltando as faiscas da assombrosa erupgao de criatividade que s6 muito depois veio a ser conhecida como “modernismo”. Se a transi¢ao foi a condicao de possibilidade da ascensao do modernismo na Europa, dai decorrem duas observacdes: a transi¢3o para um mundo mais modernizado também caracterizou a vida nas coldnias, nao importa com que grau de diferenca, e se tornou um tropo central para impulsionar ¢ organizar 68 processos pés-coloniais depois da Segunda Guerra Mundial. Todavia, 0 modernismo pés-1945, na cultura da Guerra Fria no Atlantico Norte, operou em sociedades de consumo plenamente modernizadas, nas quais perdeu muito da contundéncia anterior. Com efeito, o modernismo como cultura adversaria (Lionel Trilling) nao pode ser discutido sem que se introduza 0 conceito de 20 Andreas Huyssen modernidades alternativas, as quais os miltiplos modernismos e suas diversas trajetorias permanecem ligados por mediacdes complexas. Nas décadas posteriores ao auge da euforia pés-modernista norte-america- na de meados da década de 1980, voltou a tona um novo debate sobre a mo- dernidade. O que um dia parecera relegado @ lixeira dos arquivos eruditos voltou para valer. Longe de condenar esse retorno como uma regtesséo (a exemplo de Jameson), eu 0 vejo como um sopro de ar fresco penetrando nas ciéncias humanas e sociais, dissipando a neblina do pés-moderno.' Durante um mimero excessivo de anos, prevaleceu uma compreensio pés-moderna ¢ és-colonial unidimensional da modernidade esclarecida como o pecado ori- ginal do Ocidente. Ir além dessas visdes reducionistas nao significa voltarmos a um triunfalismo da modernizagao. Dado o aspecto problematico da “modernidade” como um “universal do Atlantico Norte”, como a chamou Michel-Rolph Trouillot, devemos também nos dar conta de que o retorno discursive da modernidade capta algo da dia- lética da globalizagao, cuja mescla aporética de destrui¢ao e criagao, que tanto faz lembrar a modernidade na era classica do imperialismo, tornou-se ainda mais palpavel nos tiltimos anos.? Entio como agora, a modernidade nunca foi uma s6. A nova narrativa das modernidades alternativas, nos estudos ¢ na antropologia pés-coloniais, nos faz revisitar variedades de modernismo antes excluidas do cAnone euro-americano como derivadas ¢ imitativas, e, portanto, inauténticas, A mudanga de perspectiva é ainda mais apropriada na medida em que pudemos compreender o colonialis- mo e a dominagio como a propria condigao de possibilidade da modernidade e do modernismo estético. Um exemplo ilustrativo é a fascinagao pelo primitivis- mo nas artes visuais, ou a acolhida do pré-moderno e do birbaro, do mitico e do arcaico em autores modernistas como Gottfried Benn e Ernst Jiinger, T. S. Eliot, Ezra Pound ou Georges Bataille. Foi no modernismo classico que 0 moderno li- gou-se pela primeira vez ao nao moderno, amitide em termos de apropriacao, mas sempre ctiticando a civilizagio burguesa ¢ sua ideologia de progresso. Claramente, o novo interesse pelos espacos da modernidade no século XX, fora do Atlantico Norte, deve fazer parte do debate sobre a globalizagao, so- bretudo se estivermos interessados na genealogia do global, que nao nasceu da cabeca do capitalismo pés-Guerra Fria. ‘A questo desse novo debate critico sobre a modernidade j4 nao é sua opo- sigdo a pés-modernidade, embora esse bindrio inevitavelmente reducionista esteja por tras de grande parte do pensamento antimodernidade, ainda popu- lar, que emergiu do pés-estruturalismo e de uma abordagem pés-colonial en- tendida de maneira estreita.? Geografias do madernismoem ummundo globalizante 21 A questio é, antes, o que Arjun Appadurai identificou como “modernidade em peias” e que outros descreveram como modernidades altermativas.’ Como escreveu Dilip Gaonkar: Bla {a modernidade] nao chegou de repente, mas devagas, a5 poucos, a longo prazo ~ despertada pelo contato, transportada pelo comércio, admi- nistrada por impérios que exibiam inscrigSes coloniais, impulsionada pelo acionalismo, ¢ agora, cada vez mais, orientada pelos meios de comunica- 40, pela migragao e pelo capital globais.* De fato, 0 enfoque critico nas modernidades alternativas, com suas historias profundas e suas contingéncias locais, agora parece oferecer uma abordagem melhor do que a nogao imposta, digamos, do pos-modernismo na Asia ou na ‘América Latina. Também nos permite criticar as teorias atuais da globalizacéo nas ciéncias sociais, as quais, com seus modelos reducionistas e sua falta de pro- fundidade hist6rica, amitide fazem pouco mais do que reciclar a teoria anterior da modernizacao, gerada nos Estados Unidos dos anos da Guerra Fria. Mesmo que 0 Ocidente continue a ser uma eminéncia parda ¢ uma “camara de com- pensagi0” das modernidades mundiais, no dizer de Gaonkar, ele nao fornece 0 {inico modelo de desenvolvimento cultural, como parecem acreditar os uropistas da cibernética ¢ 08 teéricos antiutopistas da “medonaldizagéo” — especialmente depois que a histéria das duas modernidades, a boa e a md, parece agora ser mu to especifica de um lugar ¢ uma época. A descri¢ao-padrao do modernismo es- tético e do vanguardismo na Europa como uma cultura progressista € opositiva, voltada contra a modernidade social ¢ econémica da sociedade burguesa, talvez nao se aplique facilmente fora da Europa. Basta pensarmos no “modernismo de Xangai” da década de 1930 como espaco de emergéncia do comunismo chinés,® una explosio do modernismo no Brasil, nas décadas de 1920 ¢ 1930, ¢ em sua instrumentalizacdo para um projeto protofascista nacional, para sabermos que modelo europeu de uma forte oposi¢ao entre modernidade socioecondmica ¢ modernismo estético nao se traduziu fluentemente em outros contextos. ‘A atencao as geografias mais amplas do modernismo s6 emergiv depois do colapso do socialismo e do fracasso da descolonizacéo. Claramente, as questdes levantadas nos estudos pés-coloniais e na hist6ria cultural so pertinentes a essa investigagao. O debate sobre a globalizacao oferece um prisma para a avaliagao de modernismos alternativos e de sua insergao complexa nas formas coloniais ¢ pés-coloniais de modernizagio cultural e social. Mas, para os estudos sobre 0 tmodernismo, a globalizacao traz desafios praticos e tebricos que ainda nao fo- ram inteiramente reconhecidos. © mais importante: também representa um grande desafio para varias concepgdes tradicionais ¢ atuais da propria cultura. 22 Andreas Huyssen Até aqui, 0s processos de globalizagao, tidos como distintos de fendmenos anteriores historicamente comparaveis, como a internacionalizacao ou a construgao de impérios e a colonizacao, foram primordialmente estudados em termos da economia (mercados financeiros, comércio, empresas multina- cionais), da tecnologia da informagao (televisio, computadores, Internet) ¢ da politica (sociedade civil, enfraquecimento do Estado nacional, ascensao de organizagGes nao governamentais). As dimensoes culturais da globalizacio e sua relagao com toda a historia da modernidade continuam mal compreendi- das, amitide pela simples razdo de que a cultura “real” ou “auténtica” (espe- cialmente quando enquadrada num contexto antropolégico ou pés-herderia- no) é vista como aquela que é subjetivamente compartilhada por uma dada comunidade, e, portanto, como cultura local, ao passo que apenas os proces- sos econémicos e a mudanga tecnolégica so percebidos como universais € globais. Nessa visio, o local opde-se ao global como tradigao cultural autén- tica, enquanto o global funciona como “progresso”, isto é, como uma forca de alienagéo, dominagao e dissolugio. Mas 0 bindrio global-local é tio ho- mogeneizante quanto a suposta homogeneizacao cultural do global 4 qual se opée. Atrasa-se em rela¢io 4 compreenso transnacional das praticas cultu- rais modernas que ja fora alcangada por segmentos do movimento moderno. Em vez de oferecer uma nova perspectiva da cultura contemporanea, mera- mente recicla um modelo sociolégico mais antigo para analisar a modernida- de (tradi¢ao ou cultura autéctone versus modernidade, Gemeinschaft [comu- nidade] versus Gesellschaft [sociedade] etc.), sem nenhuma reflexio sobre como os processos de modernizacao ¢ globalizagao do século XX tornaram obsoleto 0 modelo oitocentista. Minha tese aqui é que grande parte da pesquisa sobre 0 modernismo no mundo académico ocidental e nos museus ainda esta atada pelo local. Apesar do celebrado internacionalismo do moderno, ainda deparamos com obstacu- los nas préprias estruturas das disciplinas académicas, em sua compartimen- talizagao nos departamentos universitarios das literaturas nacionais e em suas relagdes de poder intrinsecamente desiguais no reconhecimento do que chamo de modernismo sem entraves, isto é, as formas culturais transnacionais que emergem da negociacio do moderno com 0 nativo, 0 colonial e o pés-colonial no mundo “nao ocidental”,” E claro que o cdnone se expandiu nos tiltimos anos, incluindo, por exem- plo, fenémenos como a vanguarda brasileira da antropofagia ou o modernis- mo caribenho, mas os processos de tradugao e as migracdes transnacionais € seus efeitos continuam insuficientemente teorizados, e sio estudados, sobretu- do, em especializages locais. Geografias domadernismoem ummundoglobalizante 23 Portanto, falta-nos um modelo aproveitavel de estudos comparados, que seja capaz de ir além das abordagens tradicionais que ainda tomam as culturas nacionais como as unidades a serem comparadas e raramente atentam para os fluxos desiguais de tradugao, transmissao e apropriagao. Trouillot afirmou que a modernidade é estruturalmente plural: “Ela requer uma alteridade, um refe- rencial fora de si mesma - um pré-moderno ou nao moderno em relagao ao qual o moderno adquira seu pleno significado.”® Trouillot postula em seguida duas geografias entrelacadas, mas distintas: uma da imaginago e uma da gestdo, ambas as quais produziram o que ele chama de “moderno de outra maneira”. Timothy Mitchell, por sua vez, afirmou que a modernidade ocidental sem- pre se viu como uma etapa da histéria e da historiografia, em contraste com 0 temporal e geograficamente nao moderno.’ Os argumentos estruturais de Trouillot e os argumentos hist6ricos de Mitchell aplicam-se com igual forga ao modernismo. Os modernismos do geograficamente “nao moderno” foram ne- gligenciados, exceto, é claro, nas situagdes em que o “nao moderno” da escul- tura africana tradicional ou “primitiva”, digamos, foi simplesmente apropria- do, para provar a universalidade do moderno como forma. O Trocadéro, em Paris, € 0 Museu de Arte Moderna de Nova York sao os locais sintomaticos ¢ muito discutidos dessa apropriacao."” Sabemos muito menos sobre a geografia da imaginacao no mundo nao ocidental e sobre sua negociaga0 transformado- ra com o moderno das metrépoles. O debate sobre a modernidade e o modernismo liga-se estreitamente 4 ideia de literatura mundial, muito discutida nos tiltimos tempos." Como que funcionando no piloto automitico, tais discussdes voltam-se rapidamente para a terra prometida da Weltliteratur (literatura mundial], ideia que Goethe articulou pela primeira vez em 1827, numa conversa com Johann Peter Ecker- mann. Creio que devemos resistir a essa apropriagao simplista de Goethe, mas nao apenas com base no argumento retroativo de que Goethe sofria de eurocentrismo. O proprio conceito goethiano de Weltliteratur, com seus ma- tizes de cosmopolitismo setecentista, foi possibilitado por um grande projeto nacional de traducao e apropriagao dentro do romantismo alemao.'? Parado- xalmente, 0 projeto romantico de apropriagao e tradugao para a lingua alema deu origem a ideia goethiana de Weltliteratur, que visou, ao mesmo tempo, a opor-se & nacionalizagao crescente da literatura ¢ da cultura que viria a domi- nar o século XIX, e que, desde entao, tornou-se institucionalmente ossificada. Na era pés-romantica da construgio nacional, a proposta de Goethe nao chegou a ter sucesso, é dbvio. Ainda é duvidoso que nosso compromisso hoje popular com uma literatura global, de algum modo vista como pés-nacional, venha a ter melhor resultado. 24 AndreasHuyssen Ainda assim, 0 conceito de Weltliteratur manteve-se como um parametro, especialmente nas discussdes de literatura comparada, embora, até data recen- te, essa disciplina tenha permanecido centrada, em seguranga, numa triade de Iinguas ¢ literaturas europeias (francés, inglés e alemao), com alguns mestres de outros contextos nacionais incluidos na mistura. Mais importante que essa limitagao geografica, que afinal poderia ser corrigida, é uma limitagao teérica. Celebrar hoje a literatura global como uma forma nova e ampliada da Weltli- teratur goethiana ignora o fato de que a literatura, como meio de produgio cultural, j4 nao ocupa o lugar privilegiado que tinha na época de Goethe. Hoje, portanto, devemos formular a pergunta num tom diferente, até por forca de desdobramentos no proprio modernismo, como a ascensao de novos meios de comunicagao e a expansio de uma ideia da alta cultura, a de “litera- riedade”, para a nocao mais abrangente de textualidade. O que Adorno des- creveu num ensaio da maturidade, “Kunst und die Kiinste” [A arte e as artes}, como o Verfransungsprozess em larga escala ~ esgatcamento da especificida- de dos meios artisticos ¢ seus miltiplos efeitos cruzados - modificou para sempre a natureza e a fungao da propria literatura." Visto que a literatura como meio de comunicagao ja ndo ocupa o centro do palco na formagao das culturas nacionais, talvez convenha reformularmos a pergunta de Goethe, in- dagando: pode existir uma Weltkultur, uma cultura mundial ou cultura glo- bal, e, em caso afirmativo, como conceitué-la e fazer justiga a suas variagdes locais, nacionais ¢ cada vez mais transnacionais? Claramente, 0 local sempre modularé 0 global nos assuntos culturais. Nada estava mais longe do pensamento de Goethe do que a espécie de litera tura mundial homogeneizada que Erich Auerbach temeu num influente ensaio de 1952, traduzido para o inglés pela primeira vez por Edward W. Said e Mai- re Janus no fim da década de 1960." £ facil concordar em que nao pode haver cultura puramente global que se separe por completo das tradigdes locais. ‘Também ja nao pode haver uma cultura puramente local, isolada dos efeitos do global. A metrépole nacional de cento ¢ tantos anos atrés j4 era um lugar para esses encontros transnacionais e para sua montagem espetacular em ex- posicdes universais e feiras mundiais. ‘Mas que formas culturais podem ser rotuladas de globais na atualidade? Como sao determinadas pelas forcas de mercado, pelas praticas de traducao e pelos meios de comunicacao? E como circulam nos planos nacional ¢ transna- cional? © que havia de global no modernismo, se é que isso € possivel? E vié- vel imaginar praticas culturais que sejam globais, de algum modo, mas nao circulem globalmente? Sera que a ideia de “glocal”, de Ronald Robertson, é mais do que um chavao til, que aponta para um bvio entrelagamento entre Geografias do modernismoem um mundo globalizante 25 o global ¢ 0 local?"5 Parece-me que o debate atual presta muito pouca atencio as miltiplas camadas ¢ hierarquias no intercambio cultural transnacional. Sera que “global” nao é um termo global demais para captar a mistura cultu- ral, suas apropriagdes e sua mimica € citagio reciprocas? Especialmente se considerarmos que, nao raro, a literatura global € primordialmente entendida como a literatura escrita em inglés ¢ para o “mercado mundial”. £ precisa mente af que 0 foco em modernismos alternativos poderia acrescentar & dis- cusso alguma profundidade hist6rica e rigor tedrico. A globalizacio fornece, é claro, 0 horizonte para novas pesquisas sobre os modernismos comparativos atuais, mas também suscita assombrosos proble- mas metodolégicos e praticos. A tarefa consiste em fazer a transi¢ao das con- sideragdes sobre o global, comumente muito insipidas, que 0 veem como um fantasma ameacador ou uma benevolente mio invisivel, para o estudo das genealogias culturais da linguagem, do meio e da imagem, 4 medida que eles passam por transformagées, sob a press4o dos processos e trocas transnacio- nais. Nesse contexto, o foco nas geografias modernistas me sugere uma ima- gem mais abstrata da organizacao espacial, muito diferente da compreensio mais literal, porém crucial para minha tese sobre os elos subliminares entre 0 modernismo e a globalizagao cultural de hoje. espago cultural que foi habitado pelo modernismo dividia-se em supe- rior e inferior, em uma cultura de elite ¢ uma cultura de massa cada vez mais mercantilizada. © modernismo foi, grosso modo, a tentativa de fazer o postu- lado europeu tradicional da cultura superior voltar-se contra a propria tradi- do e criar uma cultura superior radicalmente nova, que descortinasse hori- zontes utépicos de mudanga social e politica, Muitos trabalhos foram feitos, desde a década de 1980, sobre como os artistas modernistas e de vanguarda se apropriaram de formas e contetidos da cultura popular ¢ de massa, reelabo- rando-os para seus préprios fins. Na década de 1920, quando a vanguarda abragou os novos meios de comunicagao ¢ a nova tecnologia, houve até uto- pias de um tipo alternativo de cultura de massas que evitaria a mercantilizago do capitalismo (Brecht, Benjamin, Tretiakov) e introduziria um novo mundo. Dada a fluidez da politica ¢ os imaginarios do futuro, antes e depois da Primei- ra Guerra Mundial, as utopias modernistas puderam emergir na direita, na esquerda e no centro liberal. Mas a divisao hierarquica entre superior e infe- rior persistiu, tal como as divisdes sociais. Sustento que esse modelo de superior e inferior, que, por razdes muito pro- vincianas, foi prematuramente descartado pelos estudos norte-americanos so- bre 0 pés-modernismo e a cultura, ainda pode servir de paradigma para analisar modernismos alternativos ¢ culturas globalizantes. Superior e inferior devem 26 Andreas Huyssen ser vistos aqui como a abreviatura de um conjunto muito mais complexo de relagdes, que envolve palimpsestos de tempos e espagos que so tudo, menos bindrios. Esse modelo, uma vez libertado de sua estreiteza anterior, proveniente de sua insergao em constelagées norte-americanas e europeias, bem pode servir de molde para fazermos um exame comparativo de fenémenos de globalizagio cultural, inclusive daquela fase anterior de modernismos nao europeus na Asia, na América Latina ou na Africa. Durante demasiado tempo, esses modernis- mos nao ocidentais foram ignorados, no Ocidente, como epistemologicamente impossiveis, jd que so 0 Ocidente era considerado avangado o bastante para gerar um modernismo auténtico, ou foram descartados na metr6pole e na pe~ riferia como uma imitagao lamentavel, como a contaminagao de uma cultura local mais genuina. Essa ‘‘ignordncia sancionada”, como certa vez a chamou Gayatri Spivak, em outro contexto, jé nao é aceitdvel. ‘A distingao superior-inferior nao é pertinente apenas a certa codificacéo do modernismo pés-1945. Também se estende a fundo pelo campo da tradicao e suas transmissdes modernizadas no presente. Com 0 risco de ultrapassar os li- mites do meu conhecimento, sugiro alguns exemplos. Se vocé pensar no papel politico desempenhado na india contemporanea por epopeias bramanes classi- cas, como 0 Mahabbaratha co Ramayana, poemas épicos escritos em sanscrito ha muitos séculos, porém infindavelmente exibidos na televisio e publicados em muitas linguas da atual cultura oral do sul da Asia; ou se pensar na nova luta pelo confucionismo na China, ele que, nos tempos de Mao, foi relegado a margem, por pertencer a uma cultura feudal; ou se vocé considerar a recente guinada para a cultura popular tradicional na China, como defesa contra 0 afluxo da cultura ocidental de massas, num debate macigamente carregado da politica do autenticamente local versus uma influéncia estrangeira superposta; ou, ainda, se vocé considerar a complexa mescla da cultura barroca espanhola ¢ portuguesa com indios locais, africanos e outras tradigdes europeias imigran- tes em varios paises da América Latina, ficard claro, de imediato, que a relacio superior-inferior assume formas muito distintas em diferentes momentos hist6- ricos ¢ pode ser modulada por politicas radicalmente diferentes. Nao se trata apenas de que as fronteiras entre o superior e o inferior te- nham comecado a se embotar de maneira significativa, depois do modernis- mo superior no Ocidente (o que levou alguns criticos a interpretarem erro- neamente a irrupcao dos romances latino-americanos como uma espécie de pés-modernismo avant la lettre),'® mas trata-se de que nao é possivel nem mesmo presumir que tenha existido em toda parte uma cultura literaria supe- rior forte e estavel, tendo por modelo Estados nacionais europeus como a Franca, a Inglaterra ou a Alemanha. E, nos locais em que efetivamente existia Geografias domodernismoem um mundo globalizante 27 uma cultura superior autéctone, como a India, 0 Japao ou a China, é inevita- vel que tenha havido uma relagao diferente com o poder ¢ com o Estado nos periodos pré-coloniais ¢ coloniais. Esses passados diferentes moldaram a maneira pela qual culturas especifi- cas lidaram com o impacto da modernizagao, desde 0 século XIX, e com a disseminago posterior de meios de comunicagao, tecnologias da comunica- cio € consumismo, trazida pela globalizagao. Especialmente no Caribe e na ‘América Latina, os legados dos modernismos importados ¢ nativos, do que chamo de “modernismos sem entraves”, so parte integrante dessas negocia- des. Embora os meios de comunicagao € 0 consumismo possam espalhar-se por todas as partes do mundo, ainda que com intensidades diferentes e com um acesso amplamente divergente, os imagindrios que eles produzem nao che- gam nem perto de ser tio homogéneos quanto lamenta uma nova espécie de Kulturkritik global. Mas os comparatistas tem um problema, de fato. Numa época em que se pretende que os estudos sobre 0 modernismo abarquem um territério cada vez maior, tanto geografica quanto historicamente, com isso sobrecarregando os circuitos de qualquer critico individual, 0 perigo é que a disciplina perca sua coeréncia como campo de investigacao, atole-se em estudos de casos cada vez mais locais, ou se torne superficial, negligenciando a necessidade de manter um projeto metodolégico e tedrico. O modelo norte-americano de estudos culturais, em particular — com seu foco reducionista na tematica e nas etnogra- fias culturais, sua predilegio pelo consumo, em vez da produgio, sua falta de profundidade histérica e do conhecimento de linguas, seu abandono dos pro- blemas estéticos ¢ formais, aliado a sua maneira de privilegiar sem questiona- mento a cultura popular ¢ de massa -, nao é um modelo adequado para en- frentar 0s novos desafios.” Uma tarefa essencial, portanto, é criar conjuntos de parmetros conceituais para que essas comparacdes deem alguma coeréncia a um campo de estudo que corre 0 risco de se tornar muito amorfo, ou de simplesmente continuar muito provinciano. Minhas reflexes provis6rias tencionam mover-nos para 0 espaco cultural crucial que se alimenta do local, do nacional e do global, e que abrange todos os trés como espacos da modernidade e de sua geografia imaginativa. © modelo de superior versus inferior, conhecido principalmente pelos deba- tes sobre o modernismo, pode ser repensado de maneira produtiva e relaciona- do com o desenvolvimento cultural de sociedades “periféricas”, p6s-coloniais ou pés-comunistas. Na medida em que capta aspectos das hierarquias cultu- rais e da classe social, de raca ¢ religiio, de relagdes de género e codificagoes da sexualidade, de transferéncias culturais coloniais, da relagao entre tradigio 28 Andreas Huyssen cultural e modernidade, do papel da meméria e do passado no mundo contem- pordneo, e da relagdo entre a midia impressa ¢ os meios visuais de comunicagao de massa, ele pode tornar-se produtivo para as andlises comparativas da globa- lizagao cultural de hoje, bem como para uma nova compreensio de caminhos anteriores e diferentes, seguidos dentro da modernidade. Em outras palavras, 0 discurso sobre modernidades alternativas na india ou na América Latina pode expandir-se de maneira proveitosa, para incluir a avaliagio de desdobramentos alternativos nas relagoes ¢ de correntes cruzadas entre a cultura popular nativa, as culturas minoritdrias, a cultura superior (tradicional e moderna) e a cultura mididtica de massa. Historicamente, as modernidades alternativas sempre exis- tiram, e suas trajetérias continuam na era da globalizagao.* Mas por que devemos nos concentrar nesse problema? ~ perguntaria al- guém. Primeiro, a reinscrigdo da problemética superior-inferior, em todas as suas dimens6es complexas e multifacetadas, nas discussdes da modernidade cultural nos contextos transnacionais, bem como através das fronteiras, pode contrapor-se a ideia muito difundida de que a cultura do Oriente ou do Oci- dente, do islamismo ou do cristianismo, dos Estados Unidos ou da América Latina € to unitaria quanto sugeriram autores como Alan Bloom, Benjamin Barber e Samuel Huntington. Em outras palavras, pode contrapor-se & heran- a ruim da antropologia cultural e a um tipo spengleriano de Kulturkritik de estilo norte-americano. Pode questionar a necessidade mais do que evidente de criar um mito do dentro e do fora, a fim de manter uma Feindbild imagem do inimigo], um outro absoluto que possa ler a si mesmo como heranga da Guerra Fria nas teorias atuais sobre o choque das civilizagdes. Segundo, também pode contra- balancar e complicar a tese, igualmente limitada, de que s6 a cultura local, ou a cultura como local, é boa, auténtica e resistente, a0 passo que as formas culturais globais devem ser condenadas como manifestacdes de imperialismo cultural, ou seja, de americanizacao. Como sabemos pela obra de Pierre Bourdieu, toda cultura tem suas hierar- quias e estratificagGes sociais, e estas diferem enormemente, de acordo com as circunstancias e as hist6rias locais. Desembrulhar essas diferenciacdes tempo- rais e espaciais pode ser um bom modo de chegar a novos tipos de compara- Ges que vao além dos clichés de colonial versus pés-colonial, moderno versus pés-moderno, ocidental versus oriental, centro versus periferia, global ver- sus local, ou 0 Ocidente versus 0 resto. Para “desocidentalizar” ideias como modernidade e modernismo, precisamos de muito mais trabalhos descritivos, teoricamente informados, sobre os modernismos sem entraves, sua interagao ou nao interagao com os modernismos ocidentais, sua relagio com as diferen- Geografias do modernismoem um mundo globalizante 29. tes formas de colonialismo (diferentes na América Latina, em relagao ao sul da Asia e também a Africa) e suas codificagées do papel da arte e da cultura em relagdo ao Estado e 4 nacionalidade. No fim, é bem possivel que consta- temos que, a despeito das melhores intengdes, essa “desocidentalizagao” do modernismo e da modernidade continuara limitada, por causa da genealogia ocidental dos proprios conceitos.” Essa tensio deve ser reconhecida até o dia em que tal projeto possa nao parecer to pertinente quanto se afigura agora. Para mim, no entanto, ha outras duas raz6es para repensar a relagao supe- rior-inferior de hoje. Primeiro, ela nos remete de volta aos debates da esquer- da sobre o modernismo na década de 1930 (Brecht, Lukacs, Bloch, Benjamin, Adorno) e a scu nunca abandonado interesse por problemas de valor estético e da percepgio estética em relagao & politica, a historia e & experiéncia.” Revisitar a problemética superior-inferior num contexto transnacional talvez nos sirva para reinscrever 0 problema do valor ¢ da forma estéticos no de- bate contemporaneo. $6 entdo poderemos repensar a relacdo historicamente alterada entre o estético e o politico na nossa era, de diferentes modos que com certeza iro além dos debates da década de 1930, mas também além dos debates sobre pés-modernismo e pés-colonialismo das décadas de 1980 e 1990. Segundo, o debate sobre modernismo na década de 1930, conduzido principalmente no jornal de exilados alemies Das Wort, publicado em Mos- cou durante alguns dos piores episddios de repressao stalinista, foi também um debate complexo sobre realismo, no em oposi¢o a0 modernismo, mas dentro dele. Relembrar esse debate poderia ser muito salutar nos dias atuais, quando a “realidade” se dissolve no que Bruno Latour chamou de “situagao de conto de fadas” (tudo € projegao e construgao, também conhecidas como spin) ow se enrijece num fato positivista, que nao deixa espago para a tensao constitutiva entre realidade e imaginagao.2! Além disso, dois pontos sucintos. (1) A luz do fato de que uma dimensao estética molda nao apenas as artes superiores, mas também os produtos da cultura de consumo em termos de design, propaganda mobilizacao dos afetos e do desejo, € retrégrado afir- mar, no estilo populista da esquerda, que qualquer preocupagio com a forma estética é intrinsecamente elitista. (2) Se os debates anteriores foram primor- dialmente organizados em torno de um eixo linear temporal (modernismo versus realismo, depois pos-modernismo versus modernismo) ¢ concentrados nos meios de comunicagio da cultura superior, como a literatura e a pintura, a situagdo de globalidade requer considerar uma forte dimensao geografica ¢ espacial, reconhecer os entrelagamentos do temporal com o espacial ¢ dos efeitos que eles provocam. Conviria explorarmos mais o que Appadurai des- creveu, proveitosamente, como a “producio da localidade” e a “localidade 30 Andreas Huyssen como produtora”, como ingredientes fundamentais da modernidade sem en- traves, Nesse ponto, a andlise das culturas urbanas, as percepgdes estéticas € 08 usos sociais do espaco fornecem um campo instigante para novas investi- gacdes. A prépria distingao superior-inferior, em sua metaforicidade espacial, pode ser pragmaticamente ligada aos diferentes espagos urbanos de produgao e consumo culturais, como a rua, o bairro, o museu, a sala de concertos € 0 teatro de épera, 0 ponto turistico e 0 shopping. Meu ponto principal, contudo, € que reconsiderar 0 superior-inferior traz de volta, inevitavelmente, a questo da estética e da forma, que os estudos culturais dos Estados Unidos (em contraste com os estudos culturais do Brasil ou da Argentina) praticamente abandonaram, em seu movimento contra 0 suposto elitismo da estética.” O ataque a estética, é claro, caminha de maos dadas com um ataque ao modernismo, mas os dois ataques ja nao ajudam na avaliagao retrospectiva do modernismo. O ataque politicamente legitimo a um elitismo sociocultural anterior, encarnado na figura do especialista em estéti- ca, desconhece que a insisténcia no valor estético e nas complexidades da re- presentacio na producao cultural pode facilmente ser descasada, hoje em dia, de um elitismo socialmente codificado, no sentido da “distingao” de Bour- dieu? Para entender melhor como funcionam os nossos mercados culturais muito expandidos em condigdes de globalizagao, a compreensao critica da dimensio estética de toda producio de imagens, miisica e linguagem continua a ser crucial. A luta contra o estético como senha do modernismo e do elitismo europeus tornou-se obsoleta. Como sair desse duplo beco sem saida da “literatura global” e de estudos culturais autolimitantes? Em termos muito preliminares, sugiro o seguinte: 1, Abandonar a distingo superior-inferior em sua configuracao tradicional, que opée radicalmente a literatura ¢ a arte sérias & cultura mididtica ¢ po- pular, e substituir essa relago de valor, estritamente hierdrquica ou vertical, por uma configuragio primordialmente lateral ou horizontal, apropriada as realidades culturais de nossa época. Isso esvaziaria a ideia do superior e reconheceria que ele é tao sujeito as pressbes do mercado quanto o inferior. Mesmo no modernismo europeu, as fronteiras sempre foram mais fluidas do que as codificagdes posteriores & Segunda Guerra Mundial nos levaram a crer. Hoje, com certeza, nao enfrentamos uma inddistria da cultura totali- tdria ¢ seu outro superior auténomo, como sugerido nos escritos de Adorno ou de Clement Greenberg na era do nazismo e do stalinismo, ¢ sim um marketing diferenciado de massa, com nichos para todos os tipos de consu- mo cultural, em niveis divergentes de demanda, expectativa e complexidade. Geografias do modernismoem um mundo glabalizante 31 2. A questio da hierarquia, entretanto, nao deve desaparecer por completo da anilise. As relagdes hierdrquicas de valor continuam inscritas em todas as praticas culturais, mas atuam de maneira mais sutil, dependendo das estra~ tificagaes da produgio e da recepgao, dos géneros e da midia. A hierarquia cultural é um problema-chave para os modernismos alternativos, inevita- velmente moldados pelas relagées de poder entre a metrépole ¢ a periferia. No mundo colonial, o afluxo do modernismo ocidental nao adquiriu auto- maticamente o status de superior, comparado as tradigGes classicas locais (por exemplo, a India no periodo pés-libertagao), ¢ a cultura ocidental de massas encontra resisténcia, muitas vezes, ndo por ser “inferior”, mas por ser ocidental (por exemplo, na China de hoje). Assim, as hierarquias ocidentais so multiplamente refratadas e transformadas pelas hierarquias locais de valor. Resta analisar de que modo essas refrages afetaram os varios modernismos alternativos, onde encontraram terreno fértil, como na América Latina, e onde depararam com a resisténcia do nativismo ou de politicas culturais oficiais, como na antiga Unido Soviética. 3, Devemos levantar a questo da especificidade do meio (oral-auditivo, escri- to, visual) em toda a sua complexidade historica, técnica ¢ tesrica, em vez de continuar a confiar na ideia intelectualmente preguigosa de que a cultura mididtica é inferior em si mesma. Como se a impressao grafica, supremo sis tema de apoio da cultura literdria moderna, nao fosse um meio, ela propria, Embora a impressio exista no mundo inteiro, é claro, os niveis de letramen- to variam, ¢ nem todas as culturas privilegiam 0 texto impresso no mesmo grau. Por exemplo, num pais como 0 Brasil, onde as tradigdes musical € visual no Ambito popular moldam mais a cultura do que aquilo que Angel Rama chamou de “cidade letrada”, esse foco na medialidade seria mais per- tinente do que a propria distin¢ao europeia entre superior e inferior. ‘A ideia de meio é especialmente pertinente a uma discussio de modernis- ‘mos alternativos, uma vez. que também nos permitiria ir além da linguagem e da imagem, incluindo meios nao verbais, como a arquitetura € 0 espaco urbano construido. Afinal, arquitetura ¢ planejamento urbano estiveram entre os principais transmissores do modernismo no mundo nao ocidental. 4, Devemos reintroduzir questées de qualidade e forma estéticas em nossa andlise de qualquer pritica ¢ produto culturais. Aqui, a questao dos cri- térios é obviamente fundamental: em vez de privilegiar 0 radicalmente novo, a moda da vanguarda ocidental, convitia nos concentrarmos na complexidade da repetigéo ¢ da reescrita, da bricolagem e da tradugio, com isso ampliando nosso entendimento das inovagdes. O foco poderia 32 Andreas Huyssen entio incidir na intertextualidade, na mimica criativa, no poder do texto para questionar habitos arraigados através de estratégias visuais ou nar- rativas, na capacidade de transformar 0 uso da midia e assim por diante. Com tal sugestao, defendo uma pratica artistica no sentido brechtiano, mas trata-se de uma versio do modernismo com uma diferenga: é politi- camente mais modesta ¢ esteticamente mais receptiva a praticas passadas do que admitia a retorica utépica da vanguarda historica, Muitos dos escritores geralmente descritos como representantes da literatura global contemporanea podem ser lidos sob essa luz. Devemos abandonar a ideia de que um ataque bem-sucedido a cultura de elite possa desempenhar um grande papel numa transformagio politica ¢ social. Essa foi a assinatura do vanguardismo europeu em sua fase heroica, e ela ainda persiste em alguns postos avangados académico-populistas nos Estados Unidos. Em vez disso, devemos prestar rigorosa atengio ao modo pelo qual as praticas ¢ produtos culturais se ligam aos discursos do politico e do social em constelacées locais e nacionais especificas, 8 medida que se desenvolvem no intercimbio transnacional. A politica dos modernismos alternativos esta profundamente inserida nos contextos coloniais € p6: -coloniais, nos quais nocdes como elite, tradigao e popularidade assumem codificagdes muito diferentes das encontradas no Atlantico Norte, no pas- sado ou agora. Seja qual for a geografia do modernismo que analisemos, devemos explorar com cuidado até que ponto uma dada cultura se organi- za de acordo com 0 hébito e a distingdo social, como a chamou Bourdieu. Quaisquer que sejam os seus inegaveis beneficios, as modernas socieda- des de consumo parecem bloquear a imaginagdo de futuros alternativos. Quando tudo fica disponivel (embora nem sempre acessivel) & escolha do consumidor, torna-se muito mais dificil encontrar lugar pra uma critica po- litica eficaz. A critica ao consumo em si, além de ser insincera, nao substitui a visio politica. Assim, talvez também convenha indagarmos se a equacao antes plausivel entre 0 cultural ¢ o politico nao levou a um culturalismo politicamente incapacitante. Para ir além do arraigado provincianismo dos estudos culturais norte-ame- ricanos e do gesto universalizante do global norte-americano, devemos em- penhar-nos num sério trabalho transnacional, em muitas linguas diferentes ¢ em terrenos diversos. Os fendmenos transnacionais raramente (ou nunca) abrangem todo 0 globo. O transito ¢ a distribuigdo dos produtos culturais sdo sempre especificos e particulares, nunca homogeneamente globais. Para estudar essas trocas transnacionais, precisamos de novas formas de coopera- Geografias domodernismoemum mundo globalizante 33 40 pratica com estudiosos do mundo inteiro. $6 entao o foco intensificado nas promessas e vicissitudes da traducdo poderd dar resultados. O que esta em jogo é a traducao no apenas da linguagem, mas do habito, de formas nao verbais de expresso, padrées de pensamento, formagdes disciplinares historicamente determinadas e coisas similares. Com efeito, a traducao, em seu sentido linguistico e histérico mais amplo, cria 0 maior desafio para qualquer reavaliagio das geografias do modernismo em sentido global, 7. No plano metodolégico, talvez convenha aos comparatistas combinar es- tudos culturais no reducionistas com as disciplinas da histéria cultural e politica (incluindo uma dimensao sociol6gi tropologia cultural e com as tradigdes de leitura rigorosa da critica literaria e da critica histérica da arte. Além de levantarem fenémenos culturais espe- cificos (um romance, um filme, uma exposigao, a miisica popular, as estraté- gias da propaganda) em suas viagens transnacionais, sera fundamental que mantenham o foco nas operagdes e fungGes das culturas populares e no papel mutivel da critica dentro delas. Esse foco levars, inevitavelmente, a questes Politicas envolvendo os direitos humanos ¢ a sociedade civil, as comunidades imaginadas ¢ o papel da religiao, do género e da subalternidade, as assime- trias econdmicas e o debate emergente sobre os imaginarios urbanos trans- nacionais, como loci de compreensao de si num mundo globalizante, © econémica), com a nova an- Essas sete sugestdes dependem, é claro, do reconhecimento de como 0 atual estagio de globalizagio dé continuidade a modernidade anterior que produziu a cultura do modernismo, mas se distingue dela. S6 através dessas distingdes, cuidadosamente tragadas, é que estaremos aptos a elaborar novas leituras do modernismo como um fenémeno transnacional ¢ incipientemente global, ¢ ndo apenas internacional. A palavra internacional (afora seu antigo sentido marxista) refere-se as relacdes entre Estados ou culturas como entidades fixas, 0 passo que transnacional aponta para os processos dinmicos de mescla ¢ migracao culturais. O global se comporia, portanto, de um niimero crescente desses processos transnacionais, os quais, no entanto, jamais fluirdo juntos para uma totalidade homogénea. Na atualidade, repensar a problematica superior-inferior aponta para a disténcia que percorremos desde os dias estonteantes do pés-modernismo e da emergéncia de novas formas de estudos culturais. Como afirmei, revela tam- bém o provincianismo norte-americano subjacente a febre do pos-modernis- mo. O pés-modernismo se considerava global, mas talvez nao tenha passado de uma tentativa atrasada de afirmar um modelo internacional dos Estados 34 Andreas Huyssen Unidos, em oposicao a0 modelo do estilo internacional europeu de modernis- mo superior do periodo entreguerras.** Todavia, as décadas pés-modernas nos Estados Unidos, dos anos 1960 aos anos 1980, de fato geraram uma nova relacdo entre a cultura superior ¢ a cultura midiética, a qual repercute, ainda que de maneiras diferentes, em outras culturas do mundo. No contexto global, portanto, a questdo da relacao entre a cultura superior {tradicional ou autéctone e moderna), a cultura nativa e popular nacional, as culturas subalternas ou das minorias e a cultura midiatica transnacional ainda pode impulsionar um novo tipo de trabalho comparativo, que chame nossa aten¢do para as formas muito diferentes que essas constelagdes assumem, diga~ ‘mos, na {ndia ou na China, comparadas América Latina ou ao Leste Europeu. Virias questdes tedricas interessantes emergem nesse contexto. Podemos perguntar, por exemplo, se e como a teoria pds-colonial se aplica, de forma ndo problematica, aos paises latino-americanos, cuja histéria colonial e pés-colo- nial é marcantemente distinta da indiana ou da dos paises africanos;* se a ideia do subalterno pode ser transferida, sem problemas nem mediacées, de um con- texto geografico para outro; se as ideias de hibridagao e didspora - a ltima moda em significantes-mestres, ao que parece — s40 suficientemente rigorosas para descrever as complexas misturas raciais, étnicas e linguisticas de diferentes partes do mundo atual. £ claro que as praticas pés-modernas, na literatura € nas artes, sempre rejeitaram a escolha entre superior ¢ inferior, produzindo toda sorte de fascinantes hibridos de superior e inferior que pareceram descor- tinar novos horizontes para a experimentacio estética. Mas a propria celebra- cdo de uma hibridago pés-moderna do superior com o inferior pode ter perdi- do seu antigo cardter critico, A produgao cultural de hoje atravessa com muita facilidade as fronteiras espaciais imagindrias entre superior e inferior. Também se tornou transnacional de novas maneiras geograficas, sobretudo na indiistria da misica,” bem como em alguns setores do cinema e da televisdo (por exem- plo, o cinema indiano na Africa ou a exportagio de telenovelas brasileiras). A hibridacio, seja de que tipo for, ocorre agora, cada vez mais, sob 0 signo do mercado. Mas os mercados, inclusive os mercados de nichos da elite, como assinalou Néstor Canclini em seu livro La globalizacién imaginada, tendem a domesticar ea igualar as arestas asperas ¢ inovadoras da producao cultural.* Preferem as formulas bem-sucedidas, em vez de incentivar modos de expresso estética ainda ndo muito conhecidos ou experimentais. A maior parte da cultu- ra superior est to sujeita as forcas de mercado quanto qualquer produto mi- didtico de massa. As grandes fus6es na industria editorial restringem a liberda- de de movimento dos textos ambiciosos. A celebragao do inglés global nao é solugo. Ao contrario, empobrece a riqueza linguistica da nossa heranga. Geografias do modernismoemum mundoglobalizante 35. ‘A propria literatura, tal como um dia a conhecemos, torna-se cada vez mais uma iniciativa extempordnea. Mas essa talver seja também a sorte da litera- tura. E que precisamos de um espaco de escrita complexa ¢ imaginativa que possa nos reorientar no mundo. Precisamos perguntar se 0 mercado ¢ capaz de garantir novas tradigées, novas formas de comunicagées e conectividades transnacionais, No entanto, abandonarfamos nosso papel de intelectuais erf- ticos se excluissemos dessas consideragdes, de forma prematura, a questio das relagdes complexas entre o valor estético € 0 efeito politico, que € fun- damentalmente enunciada pelas tradic6es do modernismo ¢ que precisa ser resgatada nas andlises contemporaneas de todas as culturas enfeiticadas pela globalizacao. Os legados do modernismo sem entraves ainda tém muito a nos ensinat, enquanto tentamos compreender os desafios da globalizagao cultural. Katka disse, certa vez, que 0 livro deve ser o machado para rompermos 0 mar congelado que ha em nés.” O efeito do machado de Kafka assemelha-se a0 Méglichkeitssinn, 0 senso de possibilidade de Robert Musil, invocado para enfrentar 0 futuro.” A ponderarmos sobre as potencialidades da globaliza- Gio, a heranca dos modernismos sem entraves ¢ sen cosmopolitismo intrinseco podem ser mobilizados para questionar os fundamentalismos econdmicos ¢ religiosos que hoje engolem o mundo. Mesmo que reconhecamos que © mo- dernismo foi gerado por uma fase de modernidade anterior no Atlantico Nor- te, as assimetrias culturais, econdmicas e politicas entao prevalentes nao im- pediram o intercmbio criativo e 0 reconhecimento reciproco. Uma concepcao ampliada das geografias do modernismo pode ajudar-nos a compreender a globalizagao cultural de nossa época. Notas 1 Fredric Jameson, A Singular Modernity, Londres, Verso, 2002 [Modernidade singular: ensaio sobre ‘a ontologia do presente, trad, Roberto Franco Valente, Rio de Janeiro, Civilizacao Brasileira, 2005}, 2 Michel-Rolph Trouillot, “The Otherwise Modern: Caribbean Lessons from the Savage Slot”, in B. M. Knauft (org.), Critically Modern, Bloomingron, Indiana University Press, 2002, p. 220 + Para uma exposigdo hist6rica e teGrica mais sofisticada da questio da modernidade, ver Timothy Mitchell (org.), Questions of Modernity, Minedpolis, University of Minnesota Press, 2000. Para ‘uma critica das versdes reducionistas do pés-colonialismo, ver Gayatri Spivak, A Critique of Postco- Tonial Reason: Toward a History of the Vanishing Present, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1999. + Arjun Appadurai, Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization, Minedpolis, Univer sity of Minnesora Press, 1996 [Dimensbes culturais da globalizagao - A modernidade sem peias, trad, Telma Costa, Lisboa, Teorema, 2004], 36 Andreas Huyssen 5 Dilip Gaonkar, “Alternative Modernities”, Public Culture 11 (1999). © Ver Leo Ou-fan Lee, Shanghai Modern: The Flowering of a New Urban Culture in China, 1930- 1945, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1999. > A formulagdo “modernismo sem entraves” tem uma divida ébvia para com Appadurai (ver nota 4) Outros termos possiveis para esse fendmeno s4o “modernismos alternativos” € “modernismos mél- tiplos”. © primeiro deles ainda sugere, a0 menos implicitamente, uma hierarquia de um moder ‘mo real ou original e suas alternativas, ao passo que a segunda expresso me parece pluralista de- ‘mais. Falta-Ihe também a ideia de uma geografia ampliada do modernismo, que a expressio “modernismo sem entraves” transmite. Quanto a questo do hibridismo, tal como o uso aqui em relagdo aos modernismos “nao ocidentais”, ver Néstor Garcia Canclini, Culturas hibridas: estrate- sgias para entrar y salir de la modernidad, México, Grijalbo, 1989; Hybrid Cultures: Strategies for Entering and Leaving Modernity, trad. Christopher L. Chipparie Silvia L. Lopez (Minedpolis, Uni- ‘versity of Minnesota Press, 1995 (Culturas hibridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, trad. Ana Regina Lessa, Helofsa Pezza Cintrio; trad. do preficio a 2° ed., Géneses, Sao Paulo, Edusp, 4" ed., 2003}. ® Trouillot, “Otherwise Modern”, p. 222. > Mitchell, Questions of Modernity, p. 1-34. 10 A exposigao “Primitivismo” na arte do século XX, no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1984, desencadeou um substantivo debate critico sobre essa questio, 0 qual depois foi levado adian- te, por ocasiao da exposigio Les Magiciens de la Terre, no Centro George Pompidou, em 1989. Ver a discussio publicada em Third Text, especialmente Rasheed Aracen, “Our Bauhaus, Others’ Mu- house”, Third Text 6, 1989, p. 3-14. 1 Ver as duas edigdes especiais, “Globalizing Literary Studies”, PMLA 116, n.° 1, 2001, e “Literature at Large”, PMLA 119, n.° 1, 2004. Ver também Franco Moretti, “Conjectures on World Literatu- re”, New Left Review, 1, 2000, p. 54-68; Richard Maxwell, Joshua Scodel ¢ Katie Trumpener, “Editors’ Preface”, in “Toward World Literature”, edigao especial, Modern Philology 100, n.° 4, 2003, p. 505-511; ¢ Christopher Prendergast (org.), Debating World Literature, Londres, Verso, 2004. 12 Ver Andreas Huyssen, Die friibromantische Konzeption von Ubersetzung und Aneignung: Studien aur frithromantischen Utopie einer deutschen Weltliteratur, Zurique, Atlantis, 1969. 18 Theodor W. Adorno, “Kunst und die Kinste”, in Ohne Leitbild: Parva Aesthetica, Frankfurt, Suhrkamp, 1967, p. 159. ¥ Erich Auerbach, “Philologic und Weltliteratur”, in Walter Muschg e Emil Staiger (orgs.), Weltlitera- tur; Festgabe fiir Fritz Strich zm 70. Geburtstag, Berna, Franke, 1952, p. 39-505 “Philology and Weltliteratur”, trad. Edward W, Said e Maire Janus, Centennial Review 13, 1969, p. 1-17. 48 Ronald Robertson, “Globalization or Glocalization?”, Journal of International Communication 1, 1994, p, 33-52. 1 Idelber Avelar, The Untimely Present: Postdictatorial Latin American Fiction and the Task of Mour- ning, Dutham, Duke University Press, 1999 [Alegorias da derrota: a fiegao pés-ditatorial e 0 traba- Iho do luto na América Latina, trad, Saulo Gouveia, Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003]; Jean Franco, The Decline and Fall of the Lettered City: Latin America in the Cold War, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2002, 17 Para uma critica sucinta aos estudos culturais norte-americanos, ver Thomas Frank e Matt Weiland (orgs.), Commodity Your Dissent: The Business of Culture in the New Gilded Age, Nova York, W. W. Norton, 1997. 18 Hoje existe uma enorme bibliografia sobre “modernidades alternativas”. Afora o trabalho anterior de Appadurai, ainda instigante, ver a edigao especial “Multiple Modernities", Daedalus 129, n.° 1, Geografias domodernismoemum mundo globalizante 37

You might also like