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Por que as constituicdes falam de pov O termo “democracia” nao deriva apenas etimologi- camente de “povo”. Estados dem@e¢raticos chamam-se gover- nos “do povo” [‘Volks”herrschaften]; eles‘se justificam afir- mando que em tiltima,instancia 0 povo estaria “governando” [“herrscht’]. Todas, a8 tazdes do-€xercicio democratico do poder e da violéncia, todas ascfazoes da critica da democracia, depen- dem desse pontode partida. A .explanacao, bem como .a-justificagae;-movem-se habitualmente no campo das..téenicas de répresentagao, de instituigdes e procedimentos. S6°assiny'o “povo” entra no campo visual;,ou ainda’ nossmomentos nos quais a delimita- cao (da “nagao”sda “seciedade”) esta em jogo. O presente“texto®indaga: quem seria esse povo, que i pudesse legitimar “democraticamente”? Talvez se descubra no curso dessa indagagao que nao basta que um documento invoque [beschwért] 0 povo; ou ainda, inversamente, que a descoberta [Einsicht] sdbria de que 0 povo com efeito nao exerce a dominagao ainda nao deve deslegitimar. O preémbulo da constituigdo brasileira (CB) de 1988 foi promulgado juntamente com o documento integral pelos “representantes do povo brasileiro”, “para instituir um Estado 48 FRIEDRICH MULLER Democratico”. No Titulo I, Art. 1° constitui-se a Reptiblica Federativa do Brasil como “Estado Democritico de Direito”, no qual “[t]odo 0 poder emana do Povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituigado” (CB Art. 1°, pardgrafo tinico). Similarmente a Lei Fundamental alema [Grundgesetz, doravante citado pela sigla GG] invoca no seu preambulo o fato de que “o Povo Alemio, por forga do seu poder consti- tuinte” teria outorgado esse texto; a Reptiblica Federal da Alemanha seria “um Estado federativo democratico e de bem-estar social”, no qual “todo o poder de Estado” emanaria “do povo” e deveria ser exercido “pelo povo em eleigdes € votagoes”, bem como “por meio” da atividade dos classicos Orgios ptiblicos divisores dos poderes (GG Art, 20, §§ 1 € 2; declarada como intocavel por meio de alteragao da constitui- ¢ao em GG Art. 79, § 3).Para os niveis\inferiores dos Esta- dos da federacao e.dos municipios estatui-se que, aqui “o Povo” deveria posstiir uma representacao democraticamente eleita (GG An28, § 1, frase 2);-os deputados doParlamento Federal sa0°credenciddos.como “representantes do povo in- teiro” (GG Art. 38, §-l} frase 2).Por fims pattidos(GG Art. 21, § 1) dewem co-atuar [mitwirken] na “formacao da von- tade polftica do povo”’, © fatd dessa ‘eo”-atuagao ser ex- Pressa em eufemismo j4,caiu aa boca do povo. Mas quem legitimaria aquiessa co-atuagag-— realmente 0 povo inteiro, ou apenas oS membros’ dos partidos ou apenas estes tiltimos — descontados os'memibros inativos, que apenas fazem nti- mero [Karteileichen]” —, ou, ainda, apen liderangas (ou liderangas de bancadas) oligarquicamente instaladas? Seria 0 povo, fora dos partidos e dos seus aparelhos, simplesmente a populagdo? Essa idéia provavelmente parecera temerdria pee eee *. A traducao literal do termo alemao é “cadaveres do fichario” e designa no caso 0s membros do partido que constam apenas no fichdrio [NT]. QUEM E 0 POVO 49 ao senso de responsabilidade dos competentes setores [maBgebende Kreise]’. Ou ser que a legitimacdo dessa co- atuagdo advém ao menos de todos os titulares da nacionali- dade [StaatsangehGrigen] ou ainda dos titulares de direitos eleitorais ativos e passivos? Esses conjuntos parciais nao sao idénticos entre si; e pergunta-se quem deles seria idéntico ao “povo”. Ao passo que a elegibilidade, o direito eleitoral ativo, a nacionalidade e os diversos graus e pressupostos da participagao sao perifraseados por textos de normas (em nivel constitucional e infraconstitucional), tais textos de normas faltam para a explanagio, para a definigdo legal [Legaldefinition] de “povo”. Nem a todos os cidadaos é permitido votar. Nem todos os eleitores votam efetivamente. E por meio de que deve legitimar a minoria, sempre, vencida pelg Voto da maio- ria nas eleigdes e em posteriores atos:legislativos? E que “povo” — caso necegsario, novamerite um outro “povo” — se esconde atrés.dos efeitos informais sobre a.formacado da opiniao piiblica ‘e da vontade politica “do povo”— efeitos que por exemplo as:pesquisas de opiniae ou.todas as ativida- des individuaise sobretudo aseatividades -associativas e corporativas podem produzirna politica? Justificado enquanto objeto, (intencionado) é sempre o Estado, enquantosdemocratico”. Mas quem legitima no papel do sujéito.intencionado ou nao-intencionado/nao- consultado)? Ao nivel dasfederagaio s6 todos os titulares de direitos eleitorais ativos [Wahlberechtigten] (GG, Art. 38, § 2) podem — o que é realista — ser representados pelos de- putados — pelos mesmos deputados que o texto da teodicéia estatal denomina “representantes do povo inteiro”. Talvez isso seja uma ideologia; mas talvez aqui um povo “inteiro” de *. A expresso alema, coloquial, é freqiientemente usada por jornalistas acriticos com propensao para o aulicismo [NT] 50. FRIEDRICH MULLER titulares de nacionalidade ou até a populacao efetiva do ter- rit6rio legitimem realmente de outro modo. Até agora, no entanto, est4 cada vez menos claro que povo supre aqui a legitimidade; isso fica cada vez menos claro, quanto mais de perto examinarmos 0 fendmeno em questao. Se uma constitui¢do recorre ao poder constituinte “do povo” ou se ela atribui “todo o poder [de Estado]... [ao] povo”, sera que ela ento formula um enunciado sobre a rea- lidade? Ha uma impressao difundida de que as coisas nao se passam assim. Nesse caso a_constituigao fi Ja, -e€ cala_ao mesmo tempo. Ela fala [spricht s nao sobre ° poder do povo; ; ela se atribui [spricht sich zu] egitimi sitimidade. Ao mesmo. tempo ela silencia sobre o fato de que e atribuigio [Zu- Schreiben] nao alcanga a reali dade ou, comosno caso da Lei Fundamental alema, que nao ‘conheceu nefhum procedimento democratico de outorga’ da constituigdo, sobre o fato de que ela também nfo ‘pode mais aleangéla. Existementao ainda caminhos justamente apartir de Rousseau, queyesse “povo »compreendido enquanto Si Se das Peaot real Bue habiter noterrit6rio de 36. Cf. a propésito Friedrich Miller. Fragment (iiber) Verfassunggebende Gewalt des Volkes. Elemente einer Verfassungstheorie V. 1995, e.g. pp. 58 ss “Povo” como povo ativo O primeiro componente de “democracia” é objeto de pouca reflexdo; 0 segundo domina continuamente 0 Direito Publico, a Sociologia Politica e a Ciéncia Politica. “Domina- sao” [“Herrschen”] abrange a €laboragao espromulgacao da Constituicao, a legislagdo.e@ instituigdedé normas nos planos subordinados, significando a_-execucio das _prescricdes vigentes e, por fim, ’o controlé\(a nivel interno,;do Executivo, no parlamento’e no Judictario); Segundo_acdoutrifia mais em voga, 0 povo atua,como sujeito de dominagao nesse sentido por meio da eleicaocde uma assembléia constituinte e/ou da votag’o-sobre o texto de uma noya constituigdéd:"” por inter- médio de eleicdes e, en? parte? por meio, da iniciativa popular [Volksbegehren] e\do.réferendo [Volksentscheid]; por meio 37. A pretensio formulada\eom_a\eoncepgaio do “poder constituinte do povo” é cumprida por meio da textificagdo e do procedimento democritico de outorga da constituigio ¢ da manutengdo de um niicleo constitucional (que abrange fundamentalmente a democracia) na praxis futura: Friedrich Miiller. Fragment (iiber) Verfassunggebende Gewalt des Volkes. 1995. A isso nao se liga nenhuma perda de “substancia”; muito pelo contrario, evita-se a mitificagdo (tal como ocorre em Carl Schmitt) bem como a tergiversagdo formalista (tal como ocorre em Hans Kelsen).- Cf. quanto a reflexes de princfpio sobre a “despolitizagio da legitimidade”: Paulo Bonavides. A despolitizagdo da legitimidade, in: O Direito (1993), pp. 61 ss.; agora sob 0 titulo Die Entpolitisierung der Legitimitét, em tradugdo para o alemao de Peter Naumann e Friedrich Miller, in: Der Staar XXXV, 4/1996, 56 FRIEDRICH MULLER de eleigdes para instancias de autogestio e, se for 0 caso, por meio da elei¢do dos funcionarios puiblicos ou ainda da eleigao dos juizes, incluida a eleigao dos juizes da Corte Constitucio- nal Federal alema, mediada de forma apenas muito rarefeita em termos de “demo” cracia. No geral esse povo ativo, a tota- lidade dos eleitores € considerada — nao importa quao direta ou indiretamente — a fonte da determinacio do convivio social por meio de prescrigdes jurfdicas. Disso faz parte também, num sentido mais amplo, a autodeterminagao insti- tucionalizada ao lado da autodeterminagao municipal, e.g. em formas de participagio na profissio, nas empresas, nas uni- versidades e nas escolas. Eleigdes e votagdes tém a dupla fungdo de enviar representantes a grémios e sanciond-los por atos eleitorais posteriores, se for 9 caso, bem como de tomar decisées individuais validas ow editar prescrigdes, em &mbito resteiig: 5 or \ No Poder Exeaitivo eno, Poder Judiciério a “domina- ¢aio” ido povo. ativo pode ser°vista? operandg, de forma me- diada, na medida em qué ‘presetiga s capazes de justificagao democratica estdoe ‘implementadas en? ‘decides cde maneira correta em termose de Estadoede_ Dire tq30no sentido de capazes de" universaliza ie reeapitulaeao plausivel [iiberzeugend nachvollzi¢hbat} YZ, Por forgacda. préscrigio ‘enihes sa as constituigdes somente contabilizam como Povo ativo os titulares de nacio- nalidade; isso, resulta‘ a0.menos da sistematica do texto (e.g. diretamente na CB, ‘Fitulo IL, Capitulo IV, Art. 14°, §§ 2 e 3; indiretamente com relacio a GG, Art. 38, § 2; Art. 28, § 1, frase 2). Uma novidade é a introdugio do direito de voto para cidadaos da Comunidade Européia ao nivel municipal no quadro da Uniao Européia. Valem como possibilidades legi- timas de restrigo do direito de voto de titulares de nacionali- dade a decretagao da perda dos respectivos direitos civis, cor- reta em termos juspenalistas, bem como a faixa etaria e 0 QUEM E 0 POvO 57 estado “mental”. Elas tradicionalmente nao sao consideradas uma discriminagao contraria 4 democracia, mas estéo, como tudo, tanto mais abertas 4 manipulagdo quanto mais um Estado se reveste de tragos autoritdrios. Mas justamente entao praticas como as de uma psiquiatria politica fornecem a do- cumentagdo comprobatoria de processos de deslegitimizacao diante do critério de aferigao “povo ativo”.* Tradicionalmente esse dimensionamento para os titu- lares da nacionalidade é matéria de direito positivo, mas nao se compreende por evidéncia. Estrangeiros, que vivem per- manentemente aqui, trabalham e pagam impostos e contribui- ges, pertencem a populaciio. Eles sio efetivamente cidadaos [faktisch Inléinder]', sio atingidos como os cidadaos de di- reito [rechtliche Inldnder] pelas mesmas prescrigdes “demo- craticamente” legitimadas. A sua-eXclusio, do povo ativo restringe a amplitude e a coeréncia da justificagéo democra- tica. Especialmente deficitario em teri de fundamentacao é 0 principio da ascendéncia, (it sanguinis), quectépresenta Oda fantasia naouma conclusao” fundamenta- vel pela empiria (‘safigue’) CA idéig, Lfendarmental da de- mocracia é a seiinte: determinagaio ormatiya “io tipo de convivio deaim povo pelo mesmo, povo. Ja quedo se pode ter o autégoverno, na pratica quase inexeqiifvel, pretende-se ter ao menos a aut dU ificagito, das preserigdes vigentes com - base na livre Ol peticao, entre -opinides e interesses, com alternativa: “manuse: Veis | & \possibilidades eficazes de san- cionamento politié Todas as formas da decisio repre- sentativa arredam [hehmen aus dem Spiel] a imediatidade 38. Em democracias deve-se cuidar para que medidas tio graves como a interdigio ou a internagio em uma clinica psiquidtrica devam ser regularmente reavaliadas e, se for o caso, revogadas, a partir de um fundamento normatizado. * O termo alemio para ‘estrangeiro’ € Ausidinder (literalmente: que € de fora do pafs), seu anténimo no sentido de ‘titular da nacionalidade’ € Inliinder (0 que é de dentro do pais), daf a opgao de traduzir o termo por ‘cidadao’ [NT]. 58 FRIEDRICH MULLER [Unmittelbarkeit]. Nao ha nenhuma razo democratica para despedir-se simultaneamente de um possfvel conceito mais abrangente de povo: do da totalidade dos atingidos pelas normas: one man one vote. Tudo 0 que se afasta disso neces- sita de especial fundamentacao em um Estado que se justifica como “demo” cracia. Essa imagem do “povo” nao se derivou da imagem da soberania.”” Para os teéricos 0 “‘povo” se apresenta como algo diferenciado, de acordo com as suas respectivas estratégias. Mas 0 “povo” das constituigdes atuais nao deveria ser dife- renciado segundo a disponibilidade de procedimentos repre- sentativos ou plebiscitérios ou de qualquer outra natureza mista; ele nao deveria ser diferenciado segundo o tipo de direito eleitoral, que um sistema adota, ou conforme a sua op¢ao pela instalagao de um sisterha parlamentarista ou pre- sidencialista de governo, e,assim por. diuinte.'O povo dos textos constitucionais modernos, que\procuram justificar-se por meio dele, é o ponto de partida, 0 grau zero [degré zéro] da legitimagdqCpbs-monérquiica*”’O povo ativo. nao pode sustentar sozinho um sistematao repleto,dé pressupostos. 39. No sentido de uma espécie de absolutismo popular, do qual fala Georg Jellinek. Allgemeine Staatslehre, 3* ed., 7* reimpr., 1960, p. 498. 40. Cf. a respeito em formulacao globalizante também José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo, 10° ed. 1995, p. 135: a democracia nao é apenas “governo”, mas “muito mais de que isso; € regime, forma de vida c, principalmente, processo”. Ti “Povo” como instincia global de atribuigéo de legitimidade Além disso é de se perguntar se antes o papel do povo no trabalho dos administradores, governantes e juizes nao foi visto de forma demasiado idealistacOnde funciondrios publi- cos e juizes nao chegam ao sev cargo poreio de uma clei- 40 pelo povo, a sua acao'se liga de forma demasiado etérea & agio origindria do povo ativo SA eleigio de parlamentares que colaboraram~na promulgagag de textos de-normas, que foram depois implementadas, de forma defensavel no Execu- tivo e no Judiciatio. Por essa razio deyerfamos formular a pergunta aqui jé de forma diferente. E, certo que no-caso ideal as coisas se apresentameda seguinte? maneira: textos de normas democraticameénte-instituidos satus civile." Quando eles sio respeitadds no‘trabatho cotidiano dos juristas (trata- mento do caso, décisiotomcarater de obrigatoriedade, con- trole e revisio) ¢6movinculantes e observados de forma correspondentemente séria no tocante ao método, o trabalho juridico permanece no discurso do direito popular. Ele nao 41. No sentido do direito popular da Roma antiga, republicana, desde a Lei das Doze Tabuas (por volta de 450 a.C.), que foi elaborado com a participagéo dos cidaddos romanos e nesse sentido por via democritica. No sentido atual - e a alusdo no texto interliga os dois sentidos -, como prescrigées de direito geradas por meio de procedimentos constitucionais democraticos. 60 FRIEDRICH MULLER resvala para um ius honorarium;” no Estado Democratico de Direito, o jurista nao pode brincar de pretor romano.** Os poderes ‘executantes’ [‘ausfiihrenden’] Executivo e Judicia- rio nao estao apenas instituidos e sao apenas controlados conforme o EstadoMde Direito; estao também comprometidos com a democracia‘“O povo ativo elege os seus representantes; do trabalho dos mesmos resultam (entre outras coisas) os textos das normas; estes sd0, por sua vez, implementados nas diferentes fungdes do aparelho de Estado; os destinatarios, os atingidos por tais atos so potencialmente todos, a saber, 0 “Povo” enquanto populagado. Tudo isso forma uma espécie de ciclo [Kreislauf] de atos de legitimagao, que em nenhum lugar pode ser ,interrompido (de modo nao-democratico). Esse € 0 lado democratico do que foi denominado estrutura de legitimagao.* Mas afirmar que os agentes-juridicos esta- riam democraticamente vinculados e quectiqui 0 povo ativo estaria atuante, ainda quéapenas de forma mediada, nao é a mesma coisa. E yerdade que o\ci¢lo.da legitimagdo nao foi interrompido ayesta altura.dé forma nao-democ¢ratica, mas foi interrompido. Pareceplausivel ver nessécaso~o papel do _Povo de outra matiira\¢omo instancia global.da atribuigao de legitimidade demiocratica. Eaiesse Sentid6 que sao proferi- das e prolatadas decisdes, judiciais “emmome.do povo”. 42. No sentido do Direito Romano: 9.direito criado durante a €poca da Reptiblica pelos magistrados judiciaisdo pattidiado (ius praetorium), que foi elaborado sem a participagdo do povos i, 6; dé forma ndo-democritica. - A alusao a esse exemplo hist6rico no texto acima significa que a constituigio moderna de uma democracia em um Estado de Direito nao permite mais nenhum direito (e.g. judicial) que se desliga das diretivas das leis democraticamente promulgadas (e.g. como ‘direito jurisprudencial’ livremente criado); ela significa, portanto, que 0 juiz no Estado democratico de Direito nao se pode comportar como um pretor romano. 43. Cf. Friedrich Miiller. Juristische Methodik. 6* ed., 1995, pp. 91 s. 44. E isso a partir do lado do Estado de Direto (“estrutura textual da legitimidade”) por Friedrich Miller, in: id. (ed.) Untersuchungen zur Rechis- linguistik. 1989, pp. 204 ss. QUEM E 0 POVO 61 Esse padrao se repete: 0 povo nao é apenas — de forma mediada — a fonte ativa da institui¢géo de normas por meio de eleigdes bem como — de forma imediata — por meio de referendos legislativos; ele é de qualquer modo o destinatario das prescrigdes, em conexao com deveres, direi- tos e fungdes de protecgdo. E ele justifica esse ordenamento juridico num sentido mais amplo como ordenamento demo- cratico, 4 medida que 0 aceita globalmente, nao se revoltando contra o mesmo." Nesse sentido ampliado, vale o argumento também para os nao-eleitores, e igualmente para os eleitores vencidos pelo voto (tocante ao direito eleitoral fundamentado no principio da maioria) ou para aqueles cujo voto foi viti- mado por uma cldusula limitadora [Sperrklausel]" Além disso uns conservam 0 direito de ir a eleigao na ocasiao vin- doura; € os outros continuam tendo'a chanceyde combater entio talvez ao lado das tropas\mais fortes {bei den stiirkeren Bataillonen zu sein]. Constituigdo) [Verfassunggebung]>abstraindo do fato.de que o conceito juridico do poder constituinte do povo, eXige-a texti- ficagao,"° faz-se mister, em segundo dugar, tim _procedimento democratico-pata criar a constitwigag: 0 pov (eleitor) elege os membros da assembléia Constituinteé/ou wota 0 texto aca- bado da constituigdo, so signified normatizar — de forma mediada e/ou imediataS~ porintermédio do povo ativo; quer 45.)O que naturalmente tatfibém significa: que nao deve ser impedido, através da opressado, de revoltar-se. *. O termo “Sperrklausel”, literalmente “cldéusula de barramento”, designa uma disposigdo na legislacao eleitoral alema segundo a qual um partido recebe apenas mandatos no parlamento caso tenha obtido um determinado percentual da totalidade dos votos. No Parlamento Federal e na maioria dos parlamentos estaduais a cléusula em questio exige um minimo de 5%, razio pela qual é também conhecida por “cldusula dos 5%”. A “Sperrklausel” visa a impedir a atomizagio da representagdo nos parlamentos [NT]. 46. A respeito disso e sobre 0 complexo global dessa pergunta cf. Friedrich Miller. Fragment (iiber) Verfassunggebende Gewalt des Volkes. 1995. Podemos nomear diversas¥ camadas na_outorga da | 62 FRIEDRICH MULLER dizer, o lado referente 4 funcionalidade da dominagao, 0 “kratein” em “democracia’”. Mas o terceiro requisito para poder estar 4 altura da invocag&o do poder constituinte do povo diz respeito ao lado referente 4 democracia de base: 0 povo como destinatério que permanece na postura de boa vontade, como o fundamento — legitimador na duragdo tem- poral — de uma ordem politica cujo nticleo [Kernbestand] constitucional € preservado, praticamente respeitado pela agao do Estado. A razao pela qual se pode ver nesse dispositivo um papel préprio do “povo” na democracia reside no protétipo desse mesmo dispositivo: “Todo 0 poder do estado emana do povo”. Todo o poder estatal [Staatsgewalt] € poder de direito. O estado nao € e.g. 0 seu sujeito, @ seu proprietario; ele é 0 seu dmbito material de responsabilidade e atribuigdo. A “es- tatalidade” desses poderes (nao reside nofato de que 0 estado seja 0 sujeito do poder) seu titular, fiato enquanto ente volitivo subjetivo, pessoal (ainda que? ficti¢io). Ele éanenos ainda a sua origem\como tal écmen¢ionado justamenteco “povo” na CB Art. I, pardgrafo unico, bem conto noGG, Art. 20, § 2, frase 1. Mas-isso evidentemente naomd sentido naturalista de um procedimento tinico, topico.dé “envanar’’}'mas no sentido juridico de uma instancia permanente, diante da qual o poder de Estado € responsavel, peranteca qual ele deve defender efetivamenté’o exercicio da.sta atividade “de poder-violén- cia” [“Gewalt’-Titigkeit]? no sentido dessa versio do princi- pio democratico» Segundo os textos mencionados todo o poder de Estado nio esté “no povo”, mas “emana” dele. En- tende-se como exercido por encargo do povo e em regime de responsabilizacgao realizdvel perante ele. Esse entendimento de “emanar” também nao é supostamente metafisico; € nor- mativo. Por isso nao pode ele permanecer uma ficciio, senado que deve ter o poder de desembocar em sang6es sensiveis na QUEM EO POVO 63 realidade, tendo necessariamente ao seu lado a promessa democratica na sua variante ativa. Dito de outra forma: 0 “povo” como instancia de atri- | buigdo nao se refere ao mesmo aspecto do “povo” enquanto povo ativo. Mas esse entendimento é defensdvel somente onde ele € simultaneamente real: nado em sistemas autorité- rios, onde 0 “povo” € fartamente invocado como instancia de atribuigdo, ao passo que depois s6 tem (des)valor ideolégico, nao mais fungdo juridica. A figura da instancia de atribuigao justifica — embora de maneira sui generis — somente onde estd dada ao mesmo tempo a figura do povo ativo. Entretanto, s6 se pode falar enfaticamente de povo ativo quando vigem, se praticam ¢ sao respeitados os direitos fundamentais individuais e, por igual [nicht zuletzt], também 08 direitos fundamentais politicos, Direitos fundamentais nao sao “valores”, privilégios, “excegdes” do poder de Estado ou “Jacunas” nesse mesmo poder, come © pensamento que se submete alegremente a _antoridade governamental [obrigkeitsfreudiges Denken} ainda -teima em afirmar. Eles sao normas,\direitos igu habilitagio dosthomens, i. €, dos cidadaos, a uma participagao ativa [aktive Ermiichtigung]. No que lhes diz_respeito, fundamentam juridicamente uma socie- dade libertaria, um estado: democratico)’Sem A pratica dos direitos do homem edo cidadao;\“o povo” permanece em metéfora ideologiéamente abstrata dé'ma qualidade. Por meio da pratica dos human righis.elese torna, em funcao norma- - tiva, “povo de um»pais”{*Staatsvolk”] de uma democracia *.)O termo alemao Obrigkeit (autoridade) remete ao autoritarismo politico alemio, historicamente explicdvel pela auséncia de uma revolugio burguesa vitoriosa (como a de 1789 na Franca) e pela tardia constituigao do estado nacional alemio no séc. XIX. Remete ao que a ciéncia politica alema denomina Obrigkeitsstaat, ao estado fundamentado nao na democracia republicana, mas no principio da monarquia e da autoridade [NT]. 64 FRIEDRICH MULLER capaz de justificagao — e torna-se ao mesmo tempo “povo” enquanto instancia de atribuigao global. ’ S <0 xo? o® oe? SX et o al oe now jo. : S © end! oor eo” M 0? © x on ie He 4 \e oe «ei ae? 60? ao od? “oh ar? gO” <0%® OF 0" HO Soh Orc W027. A gu? Ameer so. O% 0h es? oo x eh oe? VC GP PP 5 IV Povo como “icone” Um regime autoritdrio nao consegue justificar-se so com 0 “povo” de atribuigdo sem 0 povo ativo. Mas e ragiio pode, em uma avaliagdo concretas frac ssar também na democracia — que é 0 nico (end desse t x16" Pois 0 que deve valer se a constit invoca ose texto o poder constituinte do povognias essa constituicao - a como aconte- ceu no caso dadei undam ental em —é gpeo vigor sem um ‘procetiimento odes" Eo as leis parlamentares

caso, o tribunal (ou a outra instancia de decisao)exerce 0 poder-violéncia [Gewalt]:” um 48. Cf. a respeito com exemplos priticos Friedrich Miller. ‘Richterrecht’. 1986, 49. A respeito da distingdo entre violéncia constitucional ¢ violéncia atual no Ambito da teoria constitucional cf. Friedrich Miiller desde: Recht - Sprache - Gewalt. 1975 (tradugio brasileira de Peter Naumann sob o titulo Direito - Linguagem - Violéncia. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1995).- Sobre a concepgao da estrutura textual cf. Id. Juristische Methodik und politisches System. 1976, pp. 80 ss., 95 ss.; Id. (ed.). Untersuchungen zur Rechtslinguistik. 1989, pp. 205 s., 215; Id. Juristische Methodik. 6" ed. 1995, pp. 136 ss., 156, 289 ss,, 295s. QUEM £0 POVO 67 poder-violéncia, que é criado de forma constitucionalmente necessdria com a instalagdo de uma tal competéncia decis6- ria. A instincia prolatadora da sentenga com cardter de obri- gatoriedade, que nao se pode basear em textos de norma de modo plausivel em termos de método, exerce contrariamente uma violéncia que ultrapassa esse limite, uma violéncia sel- vagem, transbordante, consistente téo-somente nesse ato que ja nao € constitucional; ela exerce uma violéncia “atual’. Nesse caso a invocagio do povo, a ago “em nome do povo” é apenas ic6nica. Diante de tal configuragio nao se trata nem do “povo” ativo nem também apenas do “povo” de atribuigdo; e muito menos af 0 povo esté exercendo a dominagao real. Mas fala- se como se ele estivesse exercendo a,dominagao real, como se tivesse agido de forma mediada; tomo se Jegitimasse por meio de lealdade mediada por normas. Nesse caso usamos 0 povo como sucessor da-justificativa pré-democratica, supra- mundana: eis 0 legitimismo “pordbraegraga do povo” [“von Volkes Gnaden”]. \' O povo como-iéone, etigido em sistemas induzsa prati- cas extremadas.-A iconizagao consiste env'abandonar 0 povo a si mesmo; ‘desfealizar’ fefitrealisieren} a populacao, em mitificd-la (naturalmente, ja nag:se trata-hd muito tempo dessa populagao), em hipostasidela’ decforma pseudo-sacral e em instituf-la assin\como \padrotira.tutelar abstrata, tornada ino- fensiva para 0 poder-violéncia— “notre bon peuple”. Ou, caso #populagio real tiver dimensodes que atra- vanquem os planos de legitimagao [als zu sperrig erscheint], importa “criar 0 povo”, 0 que se faz por meio de medidas externas: colonizagao, reassentamento, expulsao, liquidacao, mais recentemente também por meio da “limpeza étnica”, um neologismo barbaro a denotar uma velha praxis barbara. Estamos aqui em um museu histérico e atual de horrores de manipulacoes brutais de populagées, para em seguida poder 68 FRIEDRICH MULLER sacralizar 0 grande grupo composto corretamente 4 imagem e a semelhanga dos atores dominantes — e aqui a pergunta pela propria legitimidade j4 nao podera ser feita. Nos dias atuais, neste fim de século, um “corpo popular” jungido a forga desse modo pode ser perfeitamente levado em consideragao como povo ativo. Em tal caso as eleigdes deixam de ser espe- cialmente arriscadas; do mesmo modo, as votagGes, e.g. sobre uma nova constitui¢déo, cujos contetidos foram impostos e€ que deve ser sacramentada formalmente pela maioria. A expressio “criar 0 povo” pode referir-se também a outra coisa, que oscila entre as duas fungdes do “povo”, mas que se refere, nos textos fundadores ideal desse teorema, sobretudo ao povo ativo: ela pode referir-se 4 concepgao do estado educador, usual na linhagem de Platao até segmentos da tradigao comunista (de forma pronunciada sobretudo em Mao Tsé-tung), passando>por Rousseati € Fichte. Abstraindo de dissidentes teimosos, que precisam ser eliminados, essa concep¢ao busca ‘produzir um povo global homodgéneo, uma populagao, ‘ativa completamente politizada’ [durchpolisitiert] pela outorga da constituigao (“législateur”), pelas leis, pelos costumes, pelaedueacao e pelo-folclore coletivo, bem como por modelos libidinalmente investidos [libinds besetzte Vorbilder].” Se aindadean-Paul Sartre fata da necessidade de “criar 0 povo”, elé se afiovena linha de um rousseaunismo difuso com,tendén¢ia anafco-libertaria. Por fimo “‘povo— compreendido como conjunto dos cidadaos ativosse diferenciado da populagdo total — pode, num sentido mais atenuado, naturalmente ser também feito sob medida [zurechtgeschneidert] pelo direito de imi- gracdo, pelo direito regulamentador da assimilagao de popu- 50. Cf. a respeito Sigmund Freud. Massenpsychologie und Ich-Analyse. 1967, pp. 27 ss. em todo 0 escrito. QUEM E 0 POVO 69 lagdes expulsas [Aussiedlerrecht] , pelo direito de estrangei- ros, pelo direito de nacionalidade [Staatsbiirgerschaftsrecht] e pelo direito eleitoral. Isso ocorre também constantemente na pratica. Mas aqui j4 estamos de novo no campo das opera- goes cotidianas do estado constitucional democratico e nao mais diante da constelagao do “icone”. Essa constelagaéo jd pertenceu ao inventario supra- mundano da tradi¢g&o monarquica mais antiga, escorada na religido. O rei garantia a sua boa moral perante Deus por meio do sermao de governar para “o povo” e para o bem deste. Historicamente seguiu-se a isso, passo a passo, 0 cons- trangimento das pessoas e dos grupos dominantes de se justi- ficarem no quadro de uma ética intramundana. Estava 4 mao a estratégia de invocar agora “o povo” — a servigo da posi- ¢4o dos detentores do poder diantexdos que eram dominados por eles. Os pintores de fconés* langaram- mio da escala de cores do “poder constitiinte do povo”. Mas esse ritual também ainda quer\Sugerir ilusoriamente [vortiuschen] 0 retorno a um estado social,«id qual’ “povg” teria realmente existido: a totalidade detodas‘as pessoas.do grupo horda, da tribo, da‘ grandé familia, que ainda na didos por institui i olitieas oti, nostermos da sociologia do direito, f S gffientariamente, ainda nao funcion: ‘iados? nos quais, acres- *. Na Republica Federal da Alemanha, os Aussiedler sio “titulares da nacionalidade alema ou pessoas pertencentes ao povo alemao, que antes de 8 de maio de 1945 estavam domiciliadas nas antigas regides orientais da Alemanha, na Albania, na Bulgéria, na China, em Danzig (Gdansk/Polénia), na Est6nia, na lugoslavia, na Letonia, na Lituania, na Polénia, na Roménia, na Unido Soviética, na Checoslovdquia ou na Hungria, ou aquelas pessoas que abandonaram ou abandonam esses paises depois do encerramento das medidas genéricas de expulsio” (Creifelds et. al. Rechtswérterbuch. 11* ed., Munique, C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1992, s.v. Aussiedler) [NT]. , —_ 70 FRIEDRICH MULLER de uma constituigao.*' Também isso é portanto projecao; o seu Cardter ora intramundano nao muda nada nisso. Os pouvoirs constitués dominam 0 pouvoir constituant. Este, quer dizer, 0 povo, teria precisamente usado do seu poder-violéncia para fundamentar 0 poder- violéncia daqueles outros sobre ele; ter-Ihes-ia insuflado de uma vez por todas a legitimidade. O poder-violéncia encara 0 povo de modo alienado; 0 povo encontra-se sob 0 poder- violéncia de um Estado, que mantém um povo para si — seu povo do “poder constituinte”, de um santinho de forte lumi- nosidade. Na realidade, justamente nao se trata mais aqui de grandes grupos estruturados de forma arcaica. Com 0 inicio da Idade Moderna européia isso também se faz sentir. Para Bodin e Althusius 0 “poyo”scainda tinha® os tragos da universitas cuidadosamenté» hierarquizada, “organicamente articulada” do feudalismo. Contrariamente, Locke, na esteira de Hobbes, j4 parte’ do individto butguesmente.isdlado. Essa construgao amoldava-se.melhor aos interessés degustificagao da ascendente camada difigente burguesa.*’-Em Hobbes é 0 rei que faz comque,a “multidio’”-éxjstente seja'o povo. Mais tarde, em,Locke,\a hierarquia’ ideologicamente\ pos-antiga e pos-ctista, socialmente pos-feudal j&€ determinada pela eco- nomia. O cidadag-proprietarie economicamente — e com isso j4 politicamenté-— dnfluente é na realidade cotidiana aquele que lucta’ como «modelo lockeano: esté dotado de direitos eleitorais; Sendo j4 titular do chamado direito de re- sisténcia, bem como de pretensdes de direitos fundamentais. 51, Sobre as sociedades arcaicas segmentariamente diferenciadas, “desprovidas de alternativas” € fundamentadas no principio do parentesco, cf. Niklas Luhmann, Rechtssoziologie. 3* ed. 1987, e.g. pp. 147s. 52. V. a propésito Friedrich Miiller. Essais zur Theorie von Recht und Verfassung, ed. Ralph Christensen. 1990, e.g. pp. 139 ss., 200 ss. QUEM E 0 POVO 1 Isso nao penetra até a superficie textual do discurso liberal; 0 icone “povo” nao apresenta fissuras. Somente Rousseau escapa a discriminagdes dessa espécie. Quer ele transformar a populagao efetiva em povo justificador, porque agente; quer transformar 0 soberano em efetivo detentor democratico do poder. Como ele leva isso a sério, precisa pressupor como campo de testes um pequeno estado marginal da Europa, territorialmente limitado, nao desenvolvido em termos capitalistas, relativamente homogé- neo em termos econdmicos e sociais. Com o projeto de uma reptiblica de leis em termos de democracia popular, dirigida pela volonté générale e com isso orientada em termos de contetido pelo bem comum (bien commun), Rousseau aban- dona 0 discurso icénico sobre 0 poyo. Os atingidos pelas decisdes [Betroffenen] devem sersimultaneamente os autores das decisées [Betreffenden],}8 outorgantes-da norma devem ser idénticos ao conjunto dos destinatarios da norma. Nesse tocante — e somente’ nesse tocantes> ele menciona e.g. a Atenas de Péricles como modelo} mas nao respeitante ao seu sistema de ‘excluir dos direitos de cidadaniasa maioria da populagao (todos exceto os homens,catenienses livres, habilitados, para a atividade guerreina; contribuintes e domi- ciliados ha muito tempo).Rousseau.nao quermenhuma exclu- Jo coletiva de grupos, do“Conceito mormativo de “povo”, nenhuma segmentagao adigional. da’sdciedade por intermédio do escalonamenté dos direitos, que cria privilégios. Ocorre que os conceitos dé Rousseau sao muito exigentes: reptiblica, lei, vontade geral, bem comum; e eles se acham vinculados ao tratamento igual de todos. Por isso “povo” (peuple) tam- bém nao significa em Rousseau indistintamente a populagao existente, inclusive os dissidentes inacessiveis 4 doutrinagao *, Literalmente: os “atingentes”. O jogo de palavras nao pode ser reproduzido satisfatoriamente em portugués [NT] 72 FRIEDRICH MULLER [unbelehrbar]. Refere-se ele 4 totalidade dos cidadaos (citoyens) comprometidos com 0 bem comum gragas a vir- tude politica (vertu). Nesse sentido, 0 povo deve ser primei- ramente criado por medidas politicas ou pedagégicas ou cul- turais, que demandarao muito félego. O conceito diferencia a partir da sua pretensdo tedrica, mas nao discrimina liminar- mente por exclusao real (juridica/violenta). A Assembléia Nacional da Revolugio Francesa atuaré depois diferentemente, na esteira de’Sieyés. Também aqui se supde, segundo a tradi¢do antiga de um conceito seletivo de luta social, quem € 0 povo: 0 terceiro estado, a nova burgue- sia proprietéria, quer dizer, nem a aristocracia eclesidstica e secular, nem o lumpenproletariado de Babeuf. Em termos bem genéricos,.a iconizagao reside por igual também [nicht zuletzt}.paraaima democra- cia legitima. O respeitondéssas posi¢Ses, que ndo sio proprias da cidadania no sentido mais estritostambém apdia o sistema politico, ¢ isso’ ndo*apenas nacsua qualidade de Estado de Direito. Isso se“aceréa novamente, dessa vez a partir de um outro Angulo, da‘idéia\fundamental ndo-realizada no sistema de dominagio: “one man one vote”: do Angulo da idéia do “povo” como totalidade dos efetivamente atingidos pelo direito vigente e pelos atos decisérios do poder estatal — totalidade entendida aqui como a das pessoas que se encon- tram no territ6rio do respectivo Estado. Segundo essa pro- posta (ao lado da figura do povo enquanto insténcia de atri- buigao), 0 corpo de textos de uma democracia de conformi- QUEM E 0 POVO qT dade com o Estado de Direito se legitima por duas coisas: em primeiro lugar’ procurando dotar a possivel minoria dos cida- daos ativos, nio importa quaio mediata ou imediatamente, de competéncias de deciséo e de sancionamento claramente definidas;’em segundo lugar e ao lado desse fator de ordem procedimental, a legitimidade ocorre pelo modo, mediante 0 qual todos, 0 “povo inteiro”, a populagao, a totalidade dos atingidos sao tratados por tais decisdes e seu modo de im- plementacao. Ambas, a decisio (enquanto co-participagao “do povo”) e a implementagiio (enquanto efeitos produzidos “sobre 0 povo”), devem ser questionadas democraticamente. Os dois aspectos so resultados de uma cultura juridica desenvolvida, assim como 0 € a corregio, nos termos do Es- tado de Direito, da observancia, por parte do Estado, das cir- cunstancias de fato de inibigao da ‘acto estataPbem como de prestagdes estatais diante das’ pessoas‘ vatingidas. Podemos denominar essa camadda funcional’do problema ‘o povo como destinatario’de prestagdes ceiVilizatorias do Estado [zivilisatorisché Staa sléistungen]”, como “povo-destina- tario”4 os ae S 54, Esse termo 6 proposto em virtude da sua brevidade, no em virtude da sua eventual elegancia, VI A que grupos reais correspondem os modos de utilizagao do termo “povo”? 'O povo icénico refere-se a ninguém no ambito do dis- curso de legitimagao.*° Ocorre que por ocasiao da politizagao crescente e de um emprego ainda pseudo-sacral (mitologia revolucionaria do “povo”)-as-inclusdes.e'exclusdes assumem um tom enérgico: “Nacetapa atual,ffo' perfodo da construgao do socialismo, perténcem ao povo todas as classes; camadas, grupos sociais ‘que concordam‘tom a construgae do socia- lismo, apdiam-no etrabalham para tab‘fim’,* esereve Mao Tsé- -tung. O povo como ) instdincia de atribuigao esta restrito aos titulares‘da nacionalidade, de forma mais, ow menos clara nos textos constitucionais; o,povo afivo esté definido ainda mais estreitamente pelo. direito positivo (textos de normas sobre o direito a eleigdes'e yotagdes\-inclusive a possibilidade de ser eleito para diversos cargos publicos). Por fim, ninguém esta legitimamente excluido do’ povo-destinatdrio; ‘também nao 55. O que nao significa que 0 Estado autoritério nao discrimine minorias; mas esse é um tema para outra reflexdo. 56. Palavras do Presidente Mao Tsé-tung. 1967, p. 56.- Por outro lado “todas as forgas e todos os grupos sociais que resistem a revolucao socialista, que nutrem sentimentos inimigos diante da construgdo do socialismo ¢ procuram solapé-la, so inimigos do povo”. Ibid. 80. FRIEDRICH MULLER e.g. OS menores, os doentes mentais ou as pessoas que per- dem — temporariamente — os direitos civis. Também eles possuem uma pretens&o normal ao respeito dos seus direitos fundamentais e humanos, a protegdo do inquilino, 4 protegao do trabalho, as prestagdes da previdéncia social e a circuns- tancias de fato similares, que so materialmente pertinentes no seu caso. Isso corresponde ao “government for the people”, n: conhecida formula de Abraham Lincoln, se quisermos tragar destarte a linha para a tradig&o, sem querer imputar sub- repticiamente [unterschieben] essa reflexdo ao autor. O “government by the people” deveria, em conformidade com a idéia fundamental da democracia, abranger na medida do possivel todos os adultos capazes; no entanto, isso nao é a praxis usual, sendo que a restri¢ao aos cidadaos eleitores exige maior intensidade de\fundamentagao-do que se costuma mobilizar.” Por fim, .0“government of the people” oscila entre a fungao ic6nica ea da. instéincia de atribligdo, con- forme a modalidade efetiva de Utilizacao, No_modelo ple- biscitérid-de Rousseau aparece até aotentativa herdica de fundir identitariamente © povo dexatribui¢aoe°0 povo desti- natario, e de-banitcom isso,,claramente no’ sentido de “of the people”, a piedosa imagem de, Sintodo peyo interditado, util aos detentores do, poder, para apré-historia da reptiblica mo- derna. Entre as rest bec classicas, a teoria do estado de Georg Jellinek seoferece para uma comparagiio mais precisa: status negativus (liberdade contra 0 Estado [Freiheit vom Staat], direitos de resisténcia ao Estado [Abwehrrechte]), 57. Cf. também a tentativa em José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10* ed. 1995, pp. 135 s., de tomar ao pé da letra a formula do “governo do povo, pelo povo e para 0 povo” ¢ de explicd-la para a teoria da democr: . também Jorge Xifras Heras. Curso de Derecho Constitucional. 2" ed. 1957, vol. II, pp. 21 ss. QUEM E 0 POVO 81 status positivus (pretensdes e exigéncias, prestagdes [Leistungen] e participacio, status no procedimento). Para Jellinek 0 status positivus significava sobretudo a pretensdo a protegao juridica; outros exemplos sao as pretensdes aos recursos juridicos [Rechtswege] e ao juiz legal, a oitiva pe- rante o tribunal, & proteg’o da maternidade, ao principio da isonomia [Gleichheitssatz] na distribuigdo de prestagdes do Estado. A terceira fungdo principal € 0 status activus: direitos de cidadania como 0 direito de votar, elegibilidade, acesso ao servigo ptiblico. Esse status estd reservado ao povo ativo, ao passo que a populagiio enquanto destinataria de prestagdes civilizatérias do Estado recebe essas mesmas prestagdes tanto por in- termédio do status negativus quanto por intermédio do status positivus.* C Esse cruzamento da teoria do statis de Jellinck com a pergunta pela legitimagao democratica e pelos diversos con- ceitos de “povo”,nao tem nada‘em,comum comuma “funda- mentag’o” prescritiva; éapena®proposta que’ Visacfacilitar © entendimento, remeténdo.auma analogia de alcancedimitado. 58, Em Georg Jelinek. Allgemeine Stactslehre. 3* ed., 7* reimp. 1960, pp. 406 ss., encontramos 0 “povo” na “fungdo dupla”, caracteristica da concepgao do autor: por um lado 0 “povo enquanto qualidade subjetiva” pertence “ao Estado enquanto sujeito do poder estatal”, por outro lado 0 povo & “objeto [Gegenstand] da atividade do Estado, povo enquanto objeto Objekt)”; ibid., p. 406.- Sobre a teoria do status cf. id, System der subjektiven dffentlichen Rechte. 2* ed, 1905. Vu “Povo” como conceito de combate. A positividade da democracia “Povo” evidencia-se como um conceito nao-natura- lista, a ser encontrado por via da ciéncia empirica. Nao € ele também simples, mas complexg€ artificial, i¢é) uma inferén- cia a partir de uma concepeao’e nao a paitir de um fato. Ele chega mesmo a ser um termo presctitivo, muitas vezes neces- sitado, empregado\e gasto normativamente, nesse_triplice sentido do terino alemao Sigebraucht”. “ Quando o ternio “‘povo” aparece em textos denormas, sobretudo em documentos constitueionais; deve ser.compre- endido como’ parte integrantecplenamente, vigenteé da formu- lagdo da‘prescri¢do juridica (doctipo Jegal), deve ser levado a sério como conceitorjuridico € serinterpretado lege artis. Na tradigo histrica’e Gus-)politica [(rechts-)politischen] do emprego do@onceito, otermo ‘povo’ nao se reveste de tragos inocentes, ficutros} objetivos, mas decididamente sele- tivos. Em Péricles 0 “demos” abrange tao-somente todos os homens atenienses livres, aptos para a guerra, contribuintes € domiciliados hé muito tempo. No direito romano o dualismo altamente elaborado [ausgefeilt] de nobreza e povo, que do- mina tudo, produz uma cisdo; e j4 nos Estados mais antigos dos quais temos’ noticia, nas poleis sumerianas, que por algum tempo evidenciaram possuir uma democracia munici- 84 FRIEDRICH MULLER pal desenvolvida, s6 os homens livres e aptos para a defesa podiam ser membros da assembléia “do povo”, apesar da situagdo juridica genericamente boa das mulheres. Na igreja cristé primitiva 0 caminho do kleros para o lads descreve uma rapida diferenciagio entre a “comunidade”, 0 “povo de Deus”, na diregao de uma hierarquia de dois graus, que con- solidou a cisao do “povo” (“comunidade” = todos os crentes) no caminho da divisaéo do trabalho por meio da divisao de fungoes, da hierarquia de fungGes até a hierarquia de institui- gOes e normas e a estruturas de dominacio. Exatamente por isso tornou-se necessdria uma palavra adicional para os “leigos” enquanto crentes simples, colocados em graus hie- rarquicos inferiores, enquanto ndo-funcionarios. Mesmo como totalidade das\siiditos no sistema auto- ritario 0 “povo” ainda é higrarquizadg lernamente: de qualquer modo as ae ss mas r add del clas os aborigines, os habitantes de paises ocupa dose s hilotas, os. membros de ragas “inferiores”)’as_ cau ea S08iais baixd age utros dis- criminadog prestam bonis Seas con saibsiditos [Unter- oe Yer? \e 9 ere 0? ac 0? A selegai doi do “pave J pale Se cvs ieoto camepipciacteridada sem, Xigoeh ea int totalitarios, em ditaduras partidarias cout antbe im -envoberta por forma- lismo juridico (nodtiber alismoctto ‘capitalismo incipiente desde John Locke)s“A aiguiezs dimagi ifativa nao chega tao rapida- mente a ints ae et ios da discriminagao: da cor da pele até a esGila¢ aticamente graduada no sistema sul- africano do apartheid: outras distingdes “raciais”; a condigdo de membro de uma religido ou etnia; o edificio dos degraus sociais da sociedade (escravos, libertos, semilivres, livres); sistemas de direito eleitoral plural econdmicos (volume de impostos pagos, situago patrimonial, propriedades imob rias) ou de outra natureza (grau de “instrugdo”, identificado com certificados de instrugao, e similares). Por fim, como o QUEM E 0 POVO 85 critério provavelmente mais universal, 0 género (e.g. direitos eleitorais apenas para os homens até 0 séc. XX adentro). Além disso “‘o” povo foi ou esta sendo selecionado qualitativamente segundo a sua disposi¢’o para a lealdade politica e simultaneamente foi ou esta sendo registrado, com maior ou menor grau de dupla moral, nos textos de justifica- ¢ao do Estado como “unitario”, como legitimador em bloco: 0 proletariado, os membros do movimento, do partido do Estado ou do partido unificado, os “segmentos politicamente conscientes do proletariado”, “os bons alemaes” etc. A partir daqui a distancia até a criagdo do povo bom (para os donos do poder) equivale apenas ao salto de uma pulga. Pois 0 “povo” atua, mais ainda do que um conceito apenas seletivo, como conccito finalista e mesmo.como conceiterde combate: no “combate semantico”” epigualmente,,se’ nao mais fre- qiientemente, na poda brutal'de populagées transformadas por coacdo ideolégica @\juridica estanuemilitari em, “povos” (privagao de direitos, opressio, expulsao, reassentamento, exterminio \de segmentos “‘inconvenientes’ da. populagao). Justifica-se assim-aparentemente um. discurso'sobre’o “povo” marcado pela ‘partidarizagao [parteiischer “Volks”-Begriff]. O mesmo) ocorre por forga-de ‘preserigdes juridicas e/ou im- plementagio tendenciosa de\textes-denormas existentes, quando se visa instituir,adesigualdade\de “povo” e “popula- ¢4o” por meio-de nuiltiplas técni¢as de discriminagao, exclu- sao e terror.” Fora de tais praticas absolutamente inaceitaveis, evi- denciou-se no Ambito de um Estado democratico de Direito 59. Cf. sobre essa concepgdo de metédica do direito e de lingiifstica juridica Friedrich Miller. Juristische Methodik. 6* ed. 1995, e.g. pp. 132 ss, 205 s., 288, 295 s., 306 s., com documentacdo comprobatéria.- Cf. mais genericamente a expresso do “combat spirituel” em Arthur Rimbaud. Une saison en enfer (1873), in; Oeuvres Completes. Paris, Pléiad. 60. A servico da “homogeneizai dadeiros conceitos de campo de concentragao. mpeza étnica” - ver- 86 FRIEDRICH MULLER que 0 “povo” se apresenta em diversos nexos e graus de ope- ragdes legitimatérias: dependendo do ambito funcional, como povo ativo, como instancia de atribuigio de tipo global, como destinatario de padrées civilizatérios da cultura constitucional democratica, que envolvem direitos de resisténcia ao Estado e direitos de prestagdes por parte do mesmo. Poder-se-ia es- tabelecer uma analogia aproximada com 0 status activus, 0 Status positivus € O status negativus, sendo que 0 povo como instancia de atribuigao nao é apreendido e nao precisa ser apreendido como jcone: a teoria construtiva do Estado de Jellinek nao necessita de um status ideologicus nem 0 me- rece. Dependendo da focalizagio [Fokussierung], vem a mente também a formula do “government of, by, and for the people”, cuja nitidez distintiva contudo nao tem muito al- cance. Especialmente incertoé aqui aquele\“of” the people, que deveria, dependendoda praxis normativa, ser ainda res- gatado como grandeza de atribui¢io, “nos bastidores” [“im Hintergrund”].da‘agao do Estado,ou ser banidd-do-discurso democratico’ ha sua_veFrsdocicénica. Essa? Variante aparece também fartamente nas democracias, @:2.,.como.séntenga ju- dicial legalmente inStistentavelermias

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