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MÜLLER - Uma Questão Fundamental Da Democracia (P. 47-105) PDF
MÜLLER - Uma Questão Fundamental Da Democracia (P. 47-105) PDF
caso, o tribunal (ou a outra
instancia de decisao)exerce 0 poder-violéncia [Gewalt]:” um
48. Cf. a respeito com exemplos priticos Friedrich Miller. ‘Richterrecht’. 1986,
49. A respeito da distingdo entre violéncia constitucional ¢ violéncia atual no
Ambito da teoria constitucional cf. Friedrich Miiller desde: Recht - Sprache -
Gewalt. 1975 (tradugio brasileira de Peter Naumann sob o titulo Direito -
Linguagem - Violéncia. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1995).- Sobre
a concepgao da estrutura textual cf. Id. Juristische Methodik und politisches
System. 1976, pp. 80 ss., 95 ss.; Id. (ed.). Untersuchungen zur Rechtslinguistik.
1989, pp. 205 s., 215; Id. Juristische Methodik. 6" ed. 1995, pp. 136 ss., 156,
289 ss,, 295s.QUEM £0 POVO 67
poder-violéncia, que é criado de forma constitucionalmente
necessdria com a instalagdo de uma tal competéncia decis6-
ria. A instincia prolatadora da sentenga com cardter de obri-
gatoriedade, que nao se pode basear em textos de norma de
modo plausivel em termos de método, exerce contrariamente
uma violéncia que ultrapassa esse limite, uma violéncia sel-
vagem, transbordante, consistente téo-somente nesse ato que
ja nao € constitucional; ela exerce uma violéncia “atual’.
Nesse caso a invocagio do povo, a ago “em nome do povo”
é apenas ic6nica.
Diante de tal configuragio nao se trata nem do “povo”
ativo nem também apenas do “povo” de atribuigdo; e muito
menos af 0 povo esté exercendo a dominagao real. Mas fala-
se como se ele estivesse exercendo a,dominagao real, como
se tivesse agido de forma mediada; tomo se Jegitimasse por
meio de lealdade mediada por normas. Nesse caso usamos 0
povo como sucessor da-justificativa pré-democratica, supra-
mundana: eis 0 legitimismo “pordbraegraga do povo” [“von
Volkes Gnaden”].
\' O povo como-iéone, etigido em sistemas induzsa prati-
cas extremadas.-A iconizagao consiste env'abandonar 0 povo
a si mesmo; ‘desfealizar’ fefitrealisieren} a populacao, em
mitificd-la (naturalmente, ja nag:se trata-hd muito tempo dessa
populagao), em hipostasidela’ decforma pseudo-sacral e em
instituf-la assin\como \padrotira.tutelar abstrata, tornada ino-
fensiva para 0 poder-violéncia— “notre bon peuple”.
Ou, caso #populagio real tiver dimensodes que atra-
vanquem os planos de legitimagao [als zu sperrig erscheint],
importa “criar 0 povo”, 0 que se faz por meio de medidas
externas: colonizagao, reassentamento, expulsao, liquidacao,
mais recentemente também por meio da “limpeza étnica”, um
neologismo barbaro a denotar uma velha praxis barbara.
Estamos aqui em um museu histérico e atual de horrores de
manipulacoes brutais de populagées, para em seguida poder68 FRIEDRICH MULLER
sacralizar 0 grande grupo composto corretamente 4 imagem e
a semelhanga dos atores dominantes — e aqui a pergunta pela
propria legitimidade j4 nao podera ser feita. Nos dias atuais,
neste fim de século, um “corpo popular” jungido a forga
desse modo pode ser perfeitamente levado em consideragao
como povo ativo. Em tal caso as eleigdes deixam de ser espe-
cialmente arriscadas; do mesmo modo, as votagGes, e.g. sobre
uma nova constitui¢déo, cujos contetidos foram impostos e€
que deve ser sacramentada formalmente pela maioria.
A expressio “criar 0 povo” pode referir-se também a
outra coisa, que oscila entre as duas fungdes do “povo”, mas
que se refere, nos textos fundadores ideal desse teorema,
sobretudo ao povo ativo: ela pode referir-se 4 concepgao do
estado educador, usual na linhagem de Platao até segmentos
da tradigao comunista (de forma pronunciada sobretudo em
Mao Tsé-tung), passando>por Rousseati € Fichte. Abstraindo
de dissidentes teimosos, que precisam ser eliminados, essa
concep¢ao busca ‘produzir um povo global homodgéneo, uma
populagao, ‘ativa completamente politizada’ [durchpolisitiert]
pela outorga da constituigao (“législateur”), pelas leis, pelos
costumes, pelaedueacao e pelo-folclore coletivo, bem como
por modelos libidinalmente investidos [libinds besetzte
Vorbilder].” Se aindadean-Paul Sartre fata da necessidade de
“criar 0 povo”, elé se afiovena linha de um rousseaunismo
difuso com,tendén¢ia anafco-libertaria.
Por fimo “‘povo— compreendido como conjunto
dos cidadaos ativosse diferenciado da populagdo total —
pode, num sentido mais atenuado, naturalmente ser também
feito sob medida [zurechtgeschneidert] pelo direito de imi-
gracdo, pelo direito regulamentador da assimilagao de popu-
50. Cf. a respeito Sigmund Freud. Massenpsychologie und Ich-Analyse. 1967,
pp. 27 ss. em todo 0 escrito.QUEM E 0 POVO 69
lagdes expulsas [Aussiedlerrecht] , pelo direito de estrangei-
ros, pelo direito de nacionalidade [Staatsbiirgerschaftsrecht] e
pelo direito eleitoral. Isso ocorre também constantemente na
pratica. Mas aqui j4 estamos de novo no campo das opera-
goes cotidianas do estado constitucional democratico e nao
mais diante da constelagao do “icone”.
Essa constelagaéo jd pertenceu ao inventario supra-
mundano da tradi¢g&o monarquica mais antiga, escorada na
religido. O rei garantia a sua boa moral perante Deus por
meio do sermao de governar para “o povo” e para o bem
deste. Historicamente seguiu-se a isso, passo a passo, 0 cons-
trangimento das pessoas e dos grupos dominantes de se justi-
ficarem no quadro de uma ética intramundana. Estava 4 mao
a estratégia de invocar agora “o povo” — a servigo da posi-
¢4o dos detentores do poder diantexdos que eram dominados
por eles. Os pintores de fconés* langaram- mio da escala de
cores do “poder constitiinte do povo”. Mas esse ritual
também ainda quer\Sugerir ilusoriamente [vortiuschen] 0
retorno a um estado social,«id qual’ “povg” teria realmente
existido: a totalidade detodas‘as pessoas.do grupo
horda, da tribo, da‘ grandé familia, que ainda na
didos por institui i olitieas oti, nostermos da
sociologia do direito, f S gffientariamente,
ainda nao funcion: ‘iados? nos quais, acres-
*. Na Republica Federal da Alemanha, os Aussiedler sio “titulares da
nacionalidade alema ou pessoas pertencentes ao povo alemao, que antes de 8 de
maio de 1945 estavam domiciliadas nas antigas regides orientais da Alemanha, na
Albania, na Bulgéria, na China, em Danzig (Gdansk/Polénia), na Est6nia, na
lugoslavia, na Letonia, na Lituania, na Polénia, na Roménia, na Unido Soviética,
na Checoslovdquia ou na Hungria, ou aquelas pessoas que abandonaram ou
abandonam esses paises depois do encerramento das medidas genéricas de
expulsio” (Creifelds et. al. Rechtswérterbuch. 11* ed., Munique, C.H. Beck’sche
Verlagsbuchhandlung, 1992, s.v. Aussiedler) [NT].
, —_70 FRIEDRICH MULLER
de uma constituigao.*' Também isso é portanto projecao; o
seu Cardter ora intramundano nao muda nada nisso.
Os pouvoirs constitués dominam 0 pouvoir
constituant. Este, quer dizer, 0 povo, teria precisamente
usado do seu poder-violéncia para fundamentar 0 poder-
violéncia daqueles outros sobre ele; ter-Ihes-ia insuflado de
uma vez por todas a legitimidade. O poder-violéncia encara 0
povo de modo alienado; 0 povo encontra-se sob 0 poder-
violéncia de um Estado, que mantém um povo para si — seu
povo do “poder constituinte”, de um santinho de forte lumi-
nosidade.
Na realidade, justamente nao se trata mais aqui de
grandes grupos estruturados de forma arcaica. Com 0 inicio
da Idade Moderna européia isso também se faz sentir. Para
Bodin e Althusius 0 “poyo”scainda tinha® os tragos da
universitas cuidadosamenté» hierarquizada, “organicamente
articulada” do feudalismo. Contrariamente, Locke, na esteira
de Hobbes, j4 parte’ do individto butguesmente.isdlado. Essa
construgao amoldava-se.melhor aos interessés degustificagao
da ascendente camada difigente burguesa.*’-Em Hobbes é 0
rei que faz comque,a “multidio’”-éxjstente seja'o povo. Mais
tarde, em,Locke,\a hierarquia’ ideologicamente\ pos-antiga e
pos-ctista, socialmente pos-feudal j&€ determinada pela eco-
nomia. O cidadag-proprietarie economicamente — e com
isso j4 politicamenté-— dnfluente é na realidade cotidiana
aquele que lucta’ como «modelo lockeano: esté dotado de
direitos eleitorais; Sendo j4 titular do chamado direito de re-
sisténcia, bem como de pretensdes de direitos fundamentais.
51, Sobre as sociedades arcaicas segmentariamente diferenciadas, “desprovidas de
alternativas” € fundamentadas no principio do parentesco, cf. Niklas Luhmann,
Rechtssoziologie. 3* ed. 1987, e.g. pp. 147s.
52. V. a propésito Friedrich Miiller. Essais zur Theorie von Recht und Verfassung,
ed. Ralph Christensen. 1990, e.g. pp. 139 ss., 200 ss.QUEM E 0 POVO 1
Isso nao penetra até a superficie textual do discurso liberal; 0
icone “povo” nao apresenta fissuras.
Somente Rousseau escapa a discriminagdes dessa
espécie. Quer ele transformar a populagao efetiva em povo
justificador, porque agente; quer transformar 0 soberano em
efetivo detentor democratico do poder. Como ele leva isso a
sério, precisa pressupor como campo de testes um pequeno
estado marginal da Europa, territorialmente limitado, nao
desenvolvido em termos capitalistas, relativamente homogé-
neo em termos econdmicos e sociais. Com o projeto de uma
reptiblica de leis em termos de democracia popular, dirigida
pela volonté générale e com isso orientada em termos de
contetido pelo bem comum (bien commun), Rousseau aban-
dona 0 discurso icénico sobre 0 poyo. Os atingidos pelas
decisdes [Betroffenen] devem sersimultaneamente os autores
das decisées [Betreffenden],}8 outorgantes-da norma devem
ser idénticos ao conjunto dos destinatarios da norma. Nesse
tocante — e somente’ nesse tocantes> ele menciona e.g. a
Atenas de Péricles como modelo} mas nao respeitante ao seu
sistema de ‘excluir dos direitos de cidadaniasa maioria da
populagao (todos exceto os homens,catenienses livres,
habilitados, para a atividade guerreina; contribuintes e domi-
ciliados ha muito tempo).Rousseau.nao quermenhuma exclu-
Jo coletiva de grupos, do“Conceito mormativo de “povo”,
nenhuma segmentagao adigional. da’sdciedade por intermédio
do escalonamenté dos direitos, que cria privilégios. Ocorre
que os conceitos dé Rousseau sao muito exigentes: reptiblica,
lei, vontade geral, bem comum; e eles se acham vinculados
ao tratamento igual de todos. Por isso “povo” (peuple) tam-
bém nao significa em Rousseau indistintamente a populagao
existente, inclusive os dissidentes inacessiveis 4 doutrinagao
*, Literalmente: os “atingentes”. O jogo de palavras nao pode ser reproduzido
satisfatoriamente em portugués [NT]72 FRIEDRICH MULLER
[unbelehrbar]. Refere-se ele 4 totalidade dos cidadaos
(citoyens) comprometidos com 0 bem comum gragas a vir-
tude politica (vertu). Nesse sentido, 0 povo deve ser primei-
ramente criado por medidas politicas ou pedagégicas ou cul-
turais, que demandarao muito félego. O conceito diferencia a
partir da sua pretensdo tedrica, mas nao discrimina liminar-
mente por exclusao real (juridica/violenta).
A Assembléia Nacional da Revolugio Francesa atuaré
depois diferentemente, na esteira de’Sieyés. Também aqui se
supde, segundo a tradi¢do antiga de um conceito seletivo de
luta social, quem € 0 povo: 0 terceiro estado, a nova burgue-
sia proprietéria, quer dizer, nem a aristocracia eclesidstica e
secular, nem o lumpenproletariado de Babeuf.
Em termos bem genéricos,.a iconizagao reside por
igual também [nicht zuletzt}.You might also like