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41101 Textos e escritos: Etnografias

Tema 1: Etnografia e os/as antropólogos/as

Lúcio Sousa
Universidade Aberta
2019/2020
Apresentação da UC e dos Textos

Sinopse:

A unidade curricular, cuja designação reflete os vocábulos gregos éthnos, «povo» e


gráphein, «d/escrever», o que significa o processo de escrita e o objecto/ conhecimento
que surge da mesma, apresenta a etnografia simultaneamente como um produto e um
processo. Enquanto produto a etnografia corresponde aos textos elaborados pelos
antropólogos/as como resultado da sua investigação de terreno. Por seu turno,
enquanto processo, a etnografia corresponde ao método associado à fase de trabalho
de campo e observação participante, ao contacto e relação do antropólogo/a com os
seus sujeitos de estudo e colaboradores no terreno.
Esta unidade curricular pretende apresentar e analisar através de uma perspetiva
simultaneamente teórica e aplicada, obras etnográficas essenciais no desenvolvimento
da antropologia, em geral, mas dando igualmente destaque à antropologia portuguesa.
Para o efeito serão selecionadas algumas das etnografias mais ilustrativas, tendo por
referência a abrangência espacial e sociocultural da prática antropológica.

Competências:
• No final desta unidade curricular o/a estudante deverá ser capaz de:
• Compreender a especificidade do método e escrita etnográfica.
• Reconhecer obras etnográficas e autores fundamentais no domínio
antropológico.
• Aplicar a perspetiva etnográfica ao trabalho em ciências sociais.
• Desenvolver capacidade de reflexão crítica relativamente a temas de relevância
científica e de cidadania.

Organização dos Textos:

Os Textos e escritos: Etnografias estruturam-se da seguinte forma:


1. Apresentação do programa da unidade curricular sendo expostos os
pressupostos e objetivos gerais dos conteúdos temáticos.
2. Três capítulos relativos aos Temas 1- 3 do programa com o propósito de:
• Identificar os objetivos de aprendizagem;

1
• Apresentar textos de leitura fundamentais para trabalho de
construção de saberes1;
• Facultar elementos de exploração dos conteúdos trabalhados que
permitam recolher, selecionar e interpretar informação relevante.
• Refletir e ponderar a atuação por parâmetros éticos fundamentais.

3. Os Textos são, na essência, uma proposta metodológica de atividade de pesquisa


visando utilizar os conhecimentos e a compreensão dos temas adquiridos, de forma
a consolidarem os conteúdos trabalhados e os aplicar na área vocacional.
Para o efeito o trabalho deve ser desenvolvido com um “caderno de notas”, tal
como na prática etnográfica. A observação dos textos, a sua vivência, será aplicada
nos resumos orientados com base nos conteúdos a trabalhar (ficha disponível na sala
de aula). Estes conteúdos serão objeto de avaliação aquando dos momentos
específicos: e-fólios e provas finais.
Podem ainda usar um “diário de campo”, em que podem ir registando as dúvidas,
ansiedades, análises pessoais do que estão vivenciando, como esta experiência se
relaciona com outras aprendidas ou faz despoletar novas perspetivas sobre o mundo
envolvente, tão próximo quanto distante.

4. São efetuadas sugestões bibliográficas, de pesquisa online, de caráter


complementar, em língua portuguesa, espanhola, inglesa e francesa.

Disponibilização dos Textos:


Os Textos e escritos: etnografias serão disponibilizadas por temas de acordo com a
calendarização dos mesmos.
30 de setembro de 2019 Tema 1 Etnografia e os/as antropólogos/as
04 de novembro de 2019 Tema 2 Percursos: das etnografias clássicas às
abordagens contemporâneas
16 de dezembro de 2019 Tema 3 As etnografias portuguesas: encruzilhadas
coloniais e terrenos contemporâneos

1
Atendendo à dispersão geográfica dos estudantes e a eventuais limitações de requisição em bibliotecas
ou aquisição de obras de obras de referência, foi preocupação constante na elaboração deste trabalho
encontrar textos de qualidade disponíveis de forma legal na web, assim como colocar excertos de obras
salvaguardando os limites decorrentes dos direitos de autor. No caso dos textos do docente estes foram
usados de forma mais livre, porquanto pessoais.

2
Conteúdos letivos

1. Etnografia e os/as antropólogos/as............................................................5

1.1 O método, a escrita e a reflexibilidade.........................................11

1.2 Os/as antropólogos/as: testemunhos do terreno..........................49

2. Percursos: das etnografias clássicas às abordagens contemporâneas

2.1 O contexto e conceção de um terreno: do colonialismo ao


transnacionalismo

2.2 Críticas e novos cenários: o local e a voz em etnografia

2.3 (Re)descobrir objetos e terrenos: arquivos, corpos e ciberespaço

3. As etnografias portuguesas: encruzilhadas coloniais e terrenos


contemporâneos

3.1 Etnografias, usos e costumes, em Portugal e nas colónias

3.2 Etnografias contemporâneas

3
Objetivos gerais por tema

Conteúdos Conceitos/temas Objetivos gerais

• Etnografia
• Método • Explicar a emergência da etnografia;
• observação • Entender a sua especificidade enquanto
1. Etnografia e
participante método de investigação;
os/as • escrita • Explicitar as diferentes fases do trabalho
etnográfica etnográfico;
antropólogos/as
• reflexibilidade • Analisar o processo de escrita como parte
• integração do constituinte da experiência e saber
antropólogo antropológico

• autores clássicos • Conhecer e comentar algumas das principais


2.Percursos: das autores e obras clássicas;
• criticas pós-
etnografias modernistas • Compreender a emergência da crítica à
• etnografia multi- prática e escrita etnográfica;
clássicas às
situada • Reconhecer a presença de múltiplas vozes no
abordagens • multivocalidade discurso etnográfico
• ética • Analisar novas abordagens contemporâneas,
contemporâneas
• novos terrenos novos terrenos de investigação etnográfica

3. As etnografias
• tradição • Compreender o papel da etnografia em
portuguesas: portuguesa; Portugal
encruzilhadas • ocupação cientifica • Analisar o papel da etnografia no espaço
das colonias; colonial português
coloniais e • ruralidades • Conhecer alguns dos trabalhos de
terrenos • etnografia autores clássicos
contemporânea • Conhecer a emergência da antropologia
contemporâneos contemporânea

4
1. Etnografia e os/as antropólogos/as

2
A institucionalização da antropologia como disciplina académica ocorre no século
XIX. Até à época, o conceito de antropologia (antropos, homem; e logos, discurso)
englobava a dimensão físico-biológica e pré-histórica, associada à história natural da
humanidade (com o contributo da arqueologia). A dimensão sociocultural da
antropologia só adquire relevância à medida que os autores evolucionistas exploram os
domínios da linguagem, da organização social, em particular do parentesco, do religioso,
do político e económico, usualmente disseminados nas diversas tradições nacionais da
altura à etnologia (etno, povo/etnia; logos, discurso) e etnografia (etno, povo/etnia;
grafia, descrição) 3.
Durante o século XIX, a etnografia assume-se como a atividade de recolha de dados
do terreno, passíveis de serem interpretados numa perspetiva comparativista com o
objetivo de elaborar leis científicas (a ambição da antropologia evolucionista, mas agora,
não de forma especulativa, mas assente em dados recolhidos em primeira mão). No
entanto, como refere Sanjek (2004), a etnografia pode ser interpretada
simultaneamente como um produto e como um processo. Como produto resulta nos
estudos elaborados pelos antropólogos, enquanto como processo se manifesta no
trabalho de campo e observação participante (os métodos tradicionais de investigação
antropológica)4.

2
Texto baseado em Sousa, Lúcio. 2014. “A Etnografia e o seu “alcance prático” no Timor “Português”:
1894-1917”. In Timor-Leste nos estudos Interdisciplinares. (org.) Vicente Paulino. Díli. Unidade de
Produção e Disseminação do Conhecimento. Programa de Pós-Graduação e Pesquisa da UNTL. pp. 29-
44.). Disponível em:
https://uab-pt.academia.edu/LúcioSousa ou https://www.researchgate.net/profile/Lucio_Sousa
3
A etnografia, etnologia e antropologia podem ser interpretadas como etapas da investigação
antropológica. Como refere Lévi-Strauss (1996) a etnografia corresponde à fase de investigação no
terreno, a etnologia a uma primeira fase de comparação e síntese dos dados num âmbito regional e a
antropologia, social ou cultural, a uma última fase de síntese global.
4
A investigação antropológica advém da articulação da etnografia, no tema concreto em estudo, com a
comparação, que se sustenta num determinado ângulo teórico, e a contextualização, elementos de
carácter sociogeográficos, políticos e económicos, que enquadram a temática. A triangulação destes polos
distingue o discurso antropológico de outros géneros de escrita, como a de viagens.

5
Todavia, em pleno século XIX subsiste usualmente uma disjunção no papel do
antropólogo na prossecução de cada uma das etapas enunciadas. De facto, são poucos5
os que se deslocam até junto dos povos distantes sobre os quais elaboram teorias para
fazer a componente etnográfica, pelo que dependem de terceiros, usualmente não
antropólogos: viajantes, militares, missionários. Esta etnografia feita por não
antropólogos é a fonte substancial da produção antropológica do século XIX (Pels e
Salemink 1999).
Para ajudar esta pesquisa
Pode consultar a edição de Notes and
desenvolveram-se instrumentos de
Queries on Anthropology de 1892 aqui:
recolha etnográfica. Um exemplo
paradigmático são as Notes and Queries https://archive.org/details/notesandqueries
00readgoog
on Anthropology, editadas pela primeira
vez em 1874, pela British Association for A 6ª edição, de 1951, pode ser consultada
aqui:
the Advancement of Science, e revistas
https://archive.org/details/NotesAndQuerie
por um comité da Royal Anthropological sOnAnthropology.SixthEdition
Institute of Great Britain and Ireland, no

qual participam, entre outros, Edward Tylor e James Frazer, expoentes da antropologia
inglesa da época. A expansão académica e profissional da antropologia faz com que a
edição de 1912 já seja principalmente vocacionada para antropólogos (Petch 2007).
Porém, há exemplos de investigadores que desenvolvem o seu próprio trabalho de
terreno como Cushing entre os índios zuni na década de 1880 (Sanjek 2004). Outro
exemplo é Alice Fletcher que desenvolve na mesma década um trabalho de campo
assinalável entre as mulheres Sioux no Dakota (Casares 2008). No Sudeste asiático tem
relevância o trabalho desenvolvido pela expedição às Torres Straits, em 1889. Tratou- se
de um empreendimento multidisciplinar coordenado por Alfred Haddon da
Universidade de Cambridge e onde participaram William Rivers e C.G. Seligman.
Apesar destes antecedentes o trabalho de campo e a observação participante estão
especialmente associados a Franz Boas (1852-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-
1942). O primeiro nos EUA e o segundo na Inglaterra, vão fundar escolas teóricas que se
afastam dos pressupostos evolucionistas. Boas é considerado o “pai” da

5
Estes antropólogos eram designados “armchair anthropologists” (antropólogos de secretária/sofá) por
obterem as suas informações de forma indireta e trabalhá-las no recato dos seus gabinetes.

6
antropologia norte-americana. A sua abordagem, designada de particularismo histórico,
é uma forma de difusionismo moderado, assenta em trabalho de terreno.
Por sua vez, Malinowski, um dos mentores do funcionalismo, realiza o seu trabalho
de campo nas ilhas Trobriand, entre 1914 e 1918. Em 1922, publica o resultado do seu
trabalho: Os Argonautas do Pacifico Ocidental6, que se estabelece como o produto
paradigma do trabalho etnográfico na antropologia.
Com base nestes exemplos o protótipo do trabalho etnográfico passou a conjugar,
tradicionalmente, a estadia no terreno e a observação participante assente no
pressuposto de uma estadia prolongada no campo, junto de uma comunidade ou região,
com a concomitante aprendizagem da língua local e a obtenção de informações de
forma direta junto de informantes, os atores sociais, com os quais se interage,
observando e participando na vivência diária, de forma informal ou formal, com recurso
a entrevistas, usualmente abertas e semiestruturadas.

Como se reverte este saber na sociedade da época? Nos E.U.A. houve uma
preocupação dominante, desde cedo, na aplicabilidade dos conhecimentos
antropológicos na compreensão e resolução dos problemas consequentes da
incorporação da população nativa na agenda política americana. Todavia, foi uma área
de conflito entre os antropólogos e os políticos, cujos objetivos imediatos se
contrapunham à necessidade de tempo e às visões dos antropólogos.
No contexto europeu, a relação da antropologia com o colonialismo é incontornável.
No entanto, como refere Kuper (1996, 2005), no caso da antropologia social britânica
essa dimensão aplicada da antropologia resultou tanto de um comprometimento com o
projeto colonial inglês quanto com o interesse em legitimar a antropologia e sedimentar
a sua posição, na academia e na sociedade. Acresce que o alinhamento dos antropólogos
nem sempre foi concomitante com o das autoridades coloniais, promovendo a defesa
dos “nativos” que estudavam e sendo objeto de indiferença (em alguns casos mútua)
por parte de administradores coloniais.
Na Holanda. a posse das designadas Índias Orientais (futura república da Indonésia)
foi essencial para o desenvolvimento da sua antropologia. Segundo Bŏsković (2008), a

6
No original: Argonauts of the Western Pacific. URL:
https://archive.org/details/argonautsofthewe032976mbp

7
institucionalização da antropologia ocorre na Holanda em 1830, antecedendo as suas
congéneres europeias. Neste contexto, a etnografia desempenhou um papel de relevo,
quer na preparação de futuros funcionários coloniais quer como campo de pesquisa e
produção de etnografias que promoveram o desenvolvimento da antropologia na
Holanda.
No caso português, o desenvolvimento da antropologia metropolitana foi limitado e
a sua relevância colonial tardia. Leal (2000) e Schouten (1998 2001) caracterizaram a
antropologia portuguesa, na esteira da tradição filológica e etnológica romântica, como
“etnológica-folclorista” fazendo parte da chamada “antropologia de construção da
nação” (Stocking 1982). A antropologia colonial só se institui formalmente após o
Congresso de Antropologia Colonial de 1934, privilegiando a antropologia física e a
classificação das características somáticas das populações colonizadas (ver Roque 2001,
2006). Interesses que, como refere Schouten, seguiam “na esteira de teorias
antropológicas do séc. XIX” (1998, 2) e assumindo-se assim, nos termos de Stocking
(1982) como uma “antropologia de construção do império”.
A prática antropológica vai alterar-se substancialmente com o fim dos impérios,
recentrando-se nas sociedades de origem dos antropólogos, obrigando-os a olhar de
novo para o que lhes é familiar com novidade, ao mesmo tempo que se dão renovados
interesses pelos vestígios dos outros, nativos e antropólogos. Dos primeiros a sua
presença impõem-se num contexto museológico, ao mesmo tempo, sobre os segundos,
se abrem os arquivos que o tempo permitiu desvendar. Os “nativos” chegam igualmente
às ex-metrópoles no quadro de migrações de trabalho ou forçadas e passando a
constituir novos campos de investigação.
7
A escrita etnográfica vai ser objeto de acérrimos debates, questionando o
contexto e a forma da sua produção. O antropólogo passa a ser igualmente um objeto. Um
dos primeiros textos pós-modernistas é Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986) que
reúne os textos resultantes de uma conferência realizada em 1984. As ideias centrais são:
a antropologia desloca-se do campo (ou devia-se deslocar) da etnografia científica para o
estudo dos próprios textos etnográficos (a sua desconstrução – no caso dos antigos – e a
sua elaboração), a contextualização e reflexibilidade face à

7
Parágrafos adaptados de Sousa, Lúcio. 2016. Textos de Antropologia Geral.

8
metanarrativa (a ideia da grande teoria), a tensão relativa ao papel do antropólogo
face às suas lealdades.
O antropólogo não é um observador neutro, pelo que a situação do tempo e lugar
da investigação tem de ser claramente identificada, sob condição de o método ser
inconsequente. A escrita antropológica é também objeto de crítica, pois se a forma de
recolha dos dados é subjetiva estes não podem ser analisados de forma objetiva. No
limite esta é considerada uma ficção, e como tal é analisada pelos pós-modernistas. A
validade da interpretação é também questionada pelo facto de, no terreno, o
antropólogo trabalhar com um conjunto limitado de informantes, colocando-se assim a
questão de saber até que ponto as suas ideias são representativas de toda a sociedade.
No entanto, não é somente a condição pessoal do antropólogo que está em causa. O
trabalho de campo revela uma relação assimétrica de poder que medeia antropólogo e
os seus sujeitos de, revelando igualmente as posições particulares das suas sociedades,
que em contexto colonial se posicionam como dominante e a dominada. Este contexto
não pode deixar de ser considerado pelo antropólogo.
Todos estes aspetos tornaram prementes a reflexibilidade da prática antropológica.
Uma consciencialização das condições e mutualidade existente entre antropólogo e
informantes, comunidades, as pessoas com quem trabalha, assim como uma reflexão
sobre as políticas, estatais, corporativas e académicas, em presença na produção de
material etnográfico.

Princípios de um método…
Descritas estas jornada da etnografia podemos questionar o que resulta desta
enquanto método, o que lhe é específico? Para debater este tema com os textos que
iremos trabalhar indico aqui, resumidos, os cinco princípios que caracterizam a pesquisa
etnográfica para Stewart (1998, 5-8):
Observação participante: a característica essencial resulta do facto de o
conhecimento etnográfico resultar de uma experiência pessoal do etnógrafo.
Holismo: o etnógrafo sintetiza observações díspares para elaborar um constructo
holístico da “sociedade” ou “cultura” em estudo.

9
Contextualização: a imersão num determinado local permite ao etnógrafo ligar os
diferentes dados de forma compreensiva (permitindo comparações).
Descrição sociocultural: a descrição detalhada e análise das relações sociais e
culturais.
Conexões teoréticas: o papel da teoria antropológica no trabalho etnográfico é objeto
de debate, há quem defenda que não é possível fazer etnografia sem uma orientação
teórica, mas também há quem considere o contrário.

10
1.1 O método, a escrita e a reflexibilidade

No final deste capítulo deverá ser capaz de:

- Explicar a emergência da etnografia;


- Entender a sua especificidade enquanto método de investigação;
- Explicitar as diferentes fases de trabalho
- Analisar o processo de escrita como parte constituinte da experiência e saber
antropológico.

O trabalho deste tema assenta na leitura de dois textos:


Texto 1:
Urpi Montoya Uriarte, « O que é fazer etnografia para os antropólogos », Ponto Urbe [Online],
11 | 2012, posto online no dia 14 Março 2014, consultado o 20 Agosto 2016. URL :
http://pontourbe.revues.org/300 ; DOI : 10.4000/pontourbe.300
Texto 2:
Cornelia Eckert, Ana Luiza Carvalho da Rocha, Etnografia: Saberes e Práticas. Iluminuras v. 9,
n. 21 (2008) http://seer.ufrgs.br/index.php/iluminuras/article/view/9301

Com base no texto introdutório e textos 1 e 2 deverá analisar e escrever:


Quando e como emerge a etnografia;
Qual a especificidade do método?
Quais as caraterísticas do método etnográfico? [momentos/passos]
Quem está envolvido no contexto etnográfico? Quem são os atores em presença e como
interagem?
Como se constitui o ato de escrita como parte do processo etnográfico?
Em que consiste a reflexibilidade, que lugar tem esta na pesquisa?

Outros recursos, outras leituras, outras escritas:


Mariza Peirano, « Etnografia, ou a teoria vivida », Ponto Urbe [Online], 2 | 2008, posto online
no dia 06 Agosto 2014, consultado o 25 Setembro 2016. URL :
http://pontourbe.revues.org/1890 ; DOI : 10.4000/pontourbe.1890
Jornadas de Antropologia: Antropologia, Etnografia, Antropografia: trajetórias de uma
experiência, 2013, UNICAMP : http://cameraweb.ccuec.unicamp.br/video/usywhnsad2kg/

11
Urpi Montoya Uriarte

O que é fazer etnografia para os antropólogos

1 É louvável o entusiasmo que a etnografia vem suscitando, nos últimos anos, em diversas
áreas de conhecimento: se fala muito em “fazer etnografia”, adotar a “perspectiva
etnográfica”, “etnografar” isto ou aquilo. Parece que todo mundo pode fazer etnografia.
Até uma antropóloga, Barbara Tedlock, afirma isso ao dizer que “no mundo multicultural
e rapidamente mutante de hoje, todos temos nos tornado etnógrafos” (apud CLIFFORD,
1995). Em artigo recente, Mariza Correia conta como se surpreendeu ao, num congresso
reunindo geógrafos, educadores, filósofos, sociólogos, perceber o quanto a etnografia
estava na moda e quão difundida estava a ideia segundo a qual “todos podem ‘fazer
etnografia’, e a todos é desejável uma ‘perspectiva etnográfica’” (PEIRANO, 2008, p. 3).
Com efeito, entendida apenas como método, ela estaria acessível a qualquer
pesquisador em busca de algum. Mas, precisamente o que Peirano defende é que ela
não é apenas uma metodologia ou uma prática de pesquisa, “mas a própria teoria vivida
/.../ No fazer etnográfico, a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada
nas evidências empíricas e nos nossos dados.” (2008: 3). A teoria e a prática são
inseparáveis: o fazer etnográfico é perpassado o tempo todo pela teoria. Antes de ir a
campo, para nos informarmos de todo o conhecimento produzido sobre a temática e o
grupo a ser pesquisado; no campo, ao ser o nosso olhar e nosso escutar guiado, moldado
e disciplinado pela teoria; ao voltar e escrever, pondo em ordem os fatos, isto é,
traduzindo os fatos e emoldurando-os numa teoria interpretativa.
2 Mas afirmar que o campo é perpassado pela teoria não significa dizer que ele está
submetido a ela. Por definição, a realidade superará sempre a teoria. Em outras
palavras, o campo irá sempre surpreender o pesquisador. Sem cair em contradição,
podemos afirmar que se um campo não nos surpreender, é porque não fomos o
suficientemente bem formados! Justamente porque a formação antropológica consiste
em nos abrirmos para a desestabilização:

“os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para


desestabilizar nosso pensamento (e, eventualmente, também nossos
sentimentos). Desestabilização que incide sobre nossas formas dominantes de

12
pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças minoritárias
que pululam em nós mesmos.” (GOLDMAN, 2008, p.7).

3 Ou, em palavras de Favret-Saada (1990, apud GOLDMAN, 2008), o que caracterizaria


o antropólogo é essa formação para “ser afetado” por outras experiências. Por isso é que
vamos a campo munidos de teorias e voltamos retroalimentando-as, transformando-as:
“Agitar, fazer pulsar as teorias reconhecidas por meio de dados novos, essa é a tradição
da antropologia” (PEIRANO, 2008: p. 4).
4 Então, nem todos podem ser etnógrafos. Há de haver uma formação teórica em
antropologia, essa ciência que se dedica a “testemunhar outras humanidades” (DA
MATTA, 1992, p. 58) e “apregoar o anômalo”:

“Examinar dragões ; não domesticá-los ou abominá-los, nem afogá-los em barris


de teoria, é tudo em que consiste a antropologia /.../ Temos procurado, com
sucesso nada desprezível, manter o mundo em desequilíbrio, puxando tapetes,
virando mesas e soltando rojões. Tranquilizar é tarefa de outros; a nossa é
inquietar. Australopitecus, Malandros, Cliques Fonéticos, Megalitos: apregoamos
o anômalo, mascateamos o que é estranho, mercadores que somos do espanto.”
(GEERTZ, 2001, p. 65)

5 Em segundo lugar, nem todos podem ser etnógrafos porque para mergulhar é preciso
não apenas saber mergulhar, mas também gostar de mergulhar. É imprescindível uma
vocação pelo “desenraizamento crônico”, isto é, pelo “não se sentir em casa em lugar
nenhum”. Com efeito, no capítulo “Olhando para trás” do livro Tristes Trópicos, Lévi-
Strauss conta como a sua aproximação da etnografia não foi por meio de um curso, mas
pela vocação: “tal como acontece com as matemáticas ou com a música, a etnografia é
uma das raras vocações autênticas. Podemos descubri-la dentro de nós mesmos sem
nunca a termos aprendido.” (1979, p. 49). Assim, em palavras de Peirano, “a
personalidade do investigador e sua experiência pessoal não podem ser eliminadas do
trabalho etnográfico. Na verdade, elas estão engastadas, plantadas nos fatos
etnográficos que são selecionados e interpretados.” (2008, p. 3,4).
6 O prestígio da etnografia é tal que, até entre os antropólogos, ela se tornou a forma mais
simples de definir a nossa disciplina. Ou seja, o método se tornou mais conhecido do
que a própria disciplina que o engendrou! Esse método marcou tanto a disciplina que
até para os próprios antropólogos é mais fácil se definir por ele.

13
Quando perguntados que diferencia há entre a Antropologia e outras ciências como a
sociologia, a resposta imediata é o método. Como bem disse Geertz (2001), nos

definimos em termos de um estilo de pesquisa, não em termos daquilo que estudamos1.


7 Mas eu acredito, por definição, que temos de desconfiar de tudo, principalmente
das modas. Enquanto fora da Antropologia, a etnografia está na moda, dentro da
disciplina que a engendrou – a Antropologia – ela passa, há um certo tempo, por uma
série de revisões críticas, reflexões epistemológicas e hermenêuticas. A etnografia é o
método da Antropologia e é conhecendo o que é esta disciplina e pelo que tem passado
que podemos efetivamente entender em que ela consiste. O que estou dizendo é que
as propostas metodológicas estão sempre inseridas numa disciplina (por mais
indisciplinados que possamos ser), isto é, na forma como uma disciplina se desenvolveu.
O método etnográfico – suas virtudes e vicissitudes – se entende apenas conhecendo
como ele se desenvolveu dentro da Antropologia. O método cartográfico, dentro da
Geografia. Assim como a proposta do “urbanista errante” só se entende dentro das

limitações das formas tradicionais de enxergar a cidade por parte do Urbanismo2.

8 Então, para entender como a etnografia tem apreendido e narrado a cidade – que são
coisas bem diferentes –, vou começar falando sobre o que é a etnografia, como nasce,
quando, o que tem postulado inicialmente, o que se postula hoje. Vou fazer um
exercício extremo de síntese porque o que há a se dizer sobre ela corresponde, na matriz
curricular da grande maioria dos departamentos de Antropologia, ao conteúdo inteiro
de uma disciplina obrigatória de 68h.

A etnografia é um método próprio da Antropologia do século XX

9 A Antropologia do século XX é uma resposta crítica à Antropologia do século XIX: uma


ciência que se pretendia histórica, que queria reconstituir a história dos povos humanos
para explicar como alguns deles tinham chegado ao “estado de civilização” e muitos
outros não, ficando em “estágios” anteriores de “selvageria” ou “barbárie”. Para
reconstituir os diversos estágios, a Antropologia do século XIX se tornou a especialista
em “povos primitivos”, que imaginava e analisava mediante a leitura de relatos de
viajantes, expedições científicas, missionários ou informes das oficinas

14
coloniais, material que, no século XIX, se tornou bastante volumoso se comparado ao
existente nos séculos anteriores. Esses antropólogos trabalhavam em seus gabinetes,
lendo esse material, deduzindo e especulando, que eram os dois procedimentos
cognitivos próprios dessa fase da Antropologia. Falavam, assim, dos hotentotes da África
do sul, do “índio americano”, dos “índios canadenses”, sem nunca ter visto um “índio”
de “carne e osso”. Perguntando certa vez se ela tinha visto um, James Frazer, o
especialista em religião e magia nos ditos povos primitivos, respondeu: “Deus que me
livre!”. Nessas condições, não era de se estranhar que os textos antropológicos fossem
um acúmulo de afirmações e teorias etnocêntricas.
10 O panorama começa a mudar quando, no final do século XIX, os antropólogos passam a
integrar as expedições científicas que se tornaram freqüentes na segunda metade desse
século. Pela primeira vez, vêem os “índios”, nem que seja por pouco tempo, nas paradas
rápidas das expedições, e nem que seja sem poder falar com eles, devido ao
desconhecimento das línguas nativas. Foi numa dessas expedições, em 1914, que
Bronislaw Malinowski, um jovem polonês, fazendo o seu doutorado em Antropologia na
London School of Economics, foi parar nas ilhas Trobriand, onde ficou mais de três anos,
aprendeu a língua nativa, colocou sua tenda no meio da aldeia deles e conviveu dia após
dia entre os trobriandeses. Dessa experiência nasceu, em 1922, o livro os Argonautas do
Pacífico ocidental, e, com ele, a primeira formulação do que é o método etnográfico

(que apresenta em sua Introdução)3. O que o levou a romper com a forma de conhecer
própria da Antropologia anterior a ele? Na verdade, um acaso, para nós, um feliz acaso:
enquanto súdito austríaco, na primeira guerra mundial, ele não poderia integrar a
tripulação de um navio inglês, vendo-se obrigado a ficar quatro anos, até 1918, entre os
territórios das ilhas Tulon, Trobriand e Austrália.
11 Essa longa estadia fez Malinowski refletir sobre o método que vinha sendo usado
pela Antropologia. Tratava-se agora, ele propunha, do antropólogo conviver um longo
período entre os “primitivos” que queria entender até passar despercebido por entre
eles (ele acreditava que isso fosse possível). Somente essa experiência de trabalho de
campo lhe permitiria captar o que ele chamou de “o ponto de vista do nativo”, essencial
para conseguir uma visão completa do universo nativo. Com efeito, ele propôs que
este universo poderia ser compreendido captando três tipos de informação: a
numérica e genealógica, o cotidiano e as interpretações nativas. A estes três tipos de
informação denominou o esqueleto o corpo e a alma,

15
sendo as três fontes igualmente fundamentais. Podemos deduzir facilmente que, ao
conviver com os nativos e lhes conceder a palavra sobre si mesmos, a Antropologia do
século XX foi se tornando cada vez menos etnocêntrica, ou seja, o discurso sobre o
Outro – que é a Antropologia – deixou de ser centrado na sociedade do pesquisador e
passou a ser relativizado com a vivência entre os nativos e sua visão deles mesmos. A
Antropologia do século XX é, pois, o fruto de seu método, um método que surgiu de
forma não planejada, que não foi o resultado de uma crítica teórica, mas de um
descobrimento fortuito da importância de conviver e ouvir aqueles que pretendemos
entender. Com o novo método, o seu objeto mudou: de “tribos”, “índios”, “aborígenes”,
“bosquímanos”, “silvícolas”, “esquimós”, “primitivos” passamos a nos interessar nas
sociedades humanas, todas e qualquer uma delas (“atrasada” ou “adiantada”, ocidental
ou oriental, “moderna” ou “tradicional”, o bairro vizinho, a comunidade tal, a favela tal,
as torres tal). O quê nos interessa dessas sociedades? Sua Alteridade, sua singularidade,
a sua outredade, o que faz essas sociedades serem o que são. A Antropologia é o lugar,
dentro do espaço das ciências ocidentais, para pensar a diferença e o antropólogo é
aquele que se interessa pelo Outro: um sujeito bastante raro, é verdade, porque em
lugar de querer defender uma identidade, queremos ser atingidos pelo Outro, em vez
que nos enraizarmos num território de certezas, buscamos o desenraizamento crônico
que nos leva à busca pelo Outro. Somos como os Tupinambás descritos por Eduardo
Viveiros de Castro (2002b): de uma “radical incompletude” que nos deixa absolutamente
atraídos pela alteridade, com um “impulso centrífugo” que nos faz enxergar a alteridade
não como problema, mas como solução.
12 O método etnográfico, assim, se torna inseparável da própria Antropologia, definida
por Márcio Goldman como “o estudo das experiências humanas a partir de uma
experiência pessoal” (2006, p. 167).

O método etnográfico

13 Mas o que é exatamente um método? É uma forma de nos aproximarmos da realidade


que nos propomos estudar e entender. Se quisermos entender a vida urbana na cidade
de Salvador, por exemplo, as possibilidades metodológicas são várias: podemos
selecionar um grupo particular de nativos urbanos e estudá-los; estaremos usando o
método de estudo de caso. Podemos escolher a trajetória de uma família e contar a sua
história na cidade; estaremos usando o método biográfico. Podemos trabalhar

16
com vários estudos de caso e estaremos usando o método comparativo. Podemos
percorrer a cidade de forma lenta, corporificada e à deriva, estaremos usando o método
do urbanismo errante. Ou podemos nos “jogar de cabeça” na vida de uma rua e
estaremos usando o método etnográfico. O método etnográfico consiste num mergulho
profundo e prolongado na vida cotidiana desses Outros que queremos apreender e
compreender.

“o método etnográfico não se confunde nem se reduz a uma técnica; pode usar ou
servir-se de várias, conforme as circunstâncias de cada pesquisa; ele é antes um
modo de acercamento e apreensão do que um conjunto de procedimentos.”
(MAGNANI, 2002, p.17).

14 Esse “modo de acercamento” ou “mergulho” tem suas fases. A primeira delas é


um mergulho na teoria, informações e interpretações já feitas sobre a temática e a
população específica que queremos estudar. A segunda fase consiste num longo tempo
vivendo entre os “nativos” (rurais, urbanos, modernos ou tradicionais); esta fase se
conhece como “trabalho de campo”. A terceira fase consiste na escrita, que se faz de
volta para a casa. Nas linhas seguintes, falaremos sobre cada uma destas três fases.
15 Na linguagem corriqueira, confunde-se “trabalho de campo” com etnografia. Na
verdade, o trabalho de campo não é invenção da Antropologia nem muito menos
monopólio dela. Os geógrafos fazem trabalho de campo, assim como os geólogos
e os psicólogos. Vão “a campo” muitos pesquisadores, desde finais do século XIX, para
testar as teorias com materiais empíricos. Mas o “campo” antropológico supõe não
apenas ir e ver ou ir e pegar amostras, mas algo mais complexo: uma co-residência
extensa, uma observação sistemática, uma interlocução efetiva (língua nativa), uma
mistura de aliança, cumplicidade, amizade, respeito, coerção e tolerância irônica
(CLIFFORD, 1999, p. 94). Em uma palavra, o trabalho de campo antropológico consiste
em estabelecer relações com pessoas.
16 Então, o quesito pessoas se torna central. O nativo do antropólogo são pessoas e
não indivíduos abstratos, gente concreta, sujeitos nada genéricos:

“o que costumamos denominar ‘ponto de vista do nativo’, não deve jamais ser
pensado como atributo de um nativo genérico qualquer, negro, de classe popular,
ilheense, baiano, brasileiro ou uma mistura judiciosa de tudo isso. Trata- se sempre
de pessoas muito concretas , cada uma dotada de suas

17
particularidades, e sobretudo, agência e criatividade.” (GOLDMAN, 2003, p. 456).

17 A essas pessoas, damos voz, não por caridade, mas por convicção de que têm coisas a
dizer. E essa voz não é monológica, é dialógica. O pesquisador e o nativo conversam,
falam, dialogam. É nisso que consiste o cerne do método etnográfico: em trabalhar com
pessoas, dialogando pacientemente com elas.

“Entendo a etnografia antes de tudo como maneira específica de conhecer a vida


social. Sua peculiaridade: sua fundamentação existencial numa impregnação
profunda, no pesquisador (em seu corpo e sua alma, em sua inteligência e
sensibilidade), da imprescindibilidade da busca por aquilo que Eduardo Viveiros de
Castro denominou ‘diálogo para valer’ com o Outro sendo o conhecimento forjado
justamente a partir dos resultados desse diálogo.” (FREHSE, 2011, p. 35)

As fases do trabalho de campo

18 Para o antropólogo, o campo é, durante um bom tempo, uma incógnita, pelo simples
fato de os “fatos” não existirem.
“o trabalho de campo é sobretudo uma atividade construtiva ou criativa, pois os
fatos etnográficos ‘não existem’ e é preciso um ‘método para a descoberta de fatos
invisíveis por meio da inferência construtiva’ (Malinowski, 1935, vol.1, p.317)”.
(GOLDMAN, 2003, p. 456).

19 Como os fatos não existem para serem colhidos, fazer etnografia é uma tarefa difícil,
densa, pois tudo aparece aos nossos olhos como confuso, sem sentido:

“a etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não


ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais
automatizadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais
complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são
simultaneamente estranhas, irregulares, inexplícitas, e que ele tem que, de
alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar /.../ Fazer etnografia é
como tentar ler (no sentido de ‘construir uma leitura de’) um manuscrito estranho,
desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários
tendenciosos...” (GEERTZ, 1989, p.20)

18
20 O campo não fornece dados, mas informações que costumamos chamar de dados.
As informações se transformam em dados no processo reflexivo, posterior à sua coleta
(GUBER, 2005). Então, estamos falando de dois momentos em campo. No primeiro, o
antropólogo registra informações mediante o ver e o ouvir, tão bem apontados por
Cardoso de Oliveira como as “duas muletas que lhe permitem trafegar” (1998: 21).
Porém, não se trata de um ouvir qualquer. É um ouvir que dá a palavra, não para ouvir
o que queremos, mas para ouvir o que os nossos interlocutores têm a dizer. E falamos
aqui em interlocutores – não informantes ou entrevistados – porque a palavra cedida se
dá num contexto de diálogo, numa relação dialógica, e é nesse diálogo que os dados se
fazem para o pesquisador. A relação dialógica só é possível de ser estabelecida no meio
de uma posição do antropólogo entre os nativos: a de observador-participante, que cria
familiaridade e possibilita a “fusão de horizontes” da qual falam os hermenêutas,
condição indispensável para um verdadeiro diálogo.
21 Assim, no primeiro momento, o que fazemos é coletar em forma de descrições.
Descrevemos tudo, em detalhes. Transcrevemos longos depoimentos. Ficamos
“perseguindo pessoas sutis com perguntas obtusas”, anotando tudo porque não
sabemos o quê vai ser importante mesmo. Se os arqueólogos estão sempre com uma
corda e o urbanista sempre desenhando croquis, o antropólogo está sempre com um
caderno de campo, tomando nota de tudo.
22 Após um longo período de confusão e muitas anotações, vem a segunda fase do trabalho
de campo, o da “sacada”, isto é, quando começamos a enxergar certa ordem nas coisas,
quando certas informações se transformam em material significativo para a pesquisa.

“Também, a ‘sacada’ na pesquisa etnográfica, quando ocorre – em virtude


de algum acontecimento trivial ou não – só se produz porque precedida e
preparada por uma presença continuada em campo e uma atitude de atenção viva.
Não é a obsessão pelo acúmulo de detalhes que caracteriza a etnografia, mas a
atenção que se lhes dá: em algum momento os fragmentos podem arranjar-se num
todo que oferece a pista para um novo entendimento, voltando à citação de Lévi-
Strauss.” (MAGNANI, 2009, p.136).

23 Conforme bem salientado na citação acima, a “sacada” só pode advir depois de um


“certo” tempo. O trabalho de campo antropológico não pode ser de umas horas, alguns
dias, umas semanas ou finais de semana, quando sobra tempo dos

19
compromissos da universidade. A “sacada” advém do tempo em campo, pois só o tempo
é capaz de provocar um duplo processo no pesquisador: por um lado, conseguir
relativizar sua sociedade e, por outro, conseguir perceber a coerência da cultura
do Outro. Em palavras de Roberto Da Matta, o tempo possibilita que o antropólogo
torne exótico (distante, estranho) o que é familiar e familiar (conhecido, próximo) o que
é exótico (DA MATTA, 1981, p. 144)
24 É conveniente admitir que este tempo – este contato direto e prolongado com
o Outro – é um processo bastante sofrido. Por um lado, porque o pesquisador, longe de
casa, no meio de um outro mundo, sente na pele a marginalidade, a solidão, a saudade.
Mas, principalmente, porque não se estranha apenas o Outro: o processo de
estranhamento afeta o próprio Eu. Nos tornamos seres desenraizados – é isso, afinal,
que faz um antropólogo, segundo Lévi-Strauss – e que acaba se expressando no que
Roberto Da Matta chamou de anthropological blues: uma mistura de sofrimento e
paixão.

A formação teórica

25 Dissemos que a etnografia tem três momentos: a formação, o trabalho de campo e a


escrita. A formação teórica é a bagagem indispensável para ir a campo. Não adianta se
apressar para ir a campo sem ela, pois a capacidade de levantar problemas em campo
advém da familiaridade com a bibliografia do tema. A “sacada” etnográfica só virá do
tempo em campo e de nossa formação.
26 A nossa formação nos familiariza com as “sacadas” que tiveram todas as outras Gerações
de antropólogos prévias à nossa, com o qual aprendemos a ver. Ao cabo da
formação do antropólogo o nosso olhar se torna um “olhar devidamente
sensibilizado pela teoria disponível” e o nosso ouvido um “preparado para eliminar
todos os ruídos” (CARDOSO, 1998, p. 19, 21).
27 A nossa formação também consiste em, mediante a leitura de textos etnográficos
múltiplos, aprender a ver pessoas, não indivíduos, pessoas com nomes, com posições,
detentores de palavra, de saber. Somos igualmente ensinados a diferenciar a coisa do
significado, o feito do dito, o emic (categorias do pesquisador) do etic (categorias do
nativo). Enfim, aprendemos que

“o mundo não se divide em devotos e supersticiosos; que há esculturas nas


selvas e pinturas nos desertos; que a ordem política é possível sem o poder

20
centralizado /.../ que vemos a vida dos outros através das lentes que nós próprios
polimos e que os outros nos vêem através das deles” (GEERTZ, 2001, p.66).

A escrita

28 A terceira fase do fazer etnográfico advém após ter encontrado uma ordem das coisas
(em diálogo com o nativo) e consiste em pormos as coisas em ordem para possibilitar a

leitura por parte de um público que não esteve lá 4 e que nos lerá esperando que
façamos um correto casamento entre teoria e prática.
29 Se tivermos de dizer qual das três fases etnográficas é a mais difícil, diríamos
Certamente que é a da escrita, pois como converter tantos dados num texto? Em
quantos capítulos? De quê será cada um? A teoria irá em um capítulo e os dados em
outro? Por onde começar? São perguntas que ansiosamente todos nos perguntamos
quando nos vemos diante de uma escrivaninha abarrotada de depoimentos,
transcrições, fitas, cadernos de campo, fotos, diário de campo, lembranças, sensações,
etc. A dificuldade advém da etnografia e a escrita serem duas coisas radicalmente
diferentes: a etnografia é uma experiência, uma experiência do Outro para captar e
compreender, depois interpretar, a sua alteridade; a narrativa etnográfica é a
transformação dessas experiências totais em escrita, o que, necessariamente exige um
mínimo de coerência e linearidade que não são próprias da vivência. É essa diferença ou
distancia entre experiência e texto que nos ajuda a entender o fundo da pergunta que
Renato Rosaldo reproduz em seu texto Cultura y verdad: “como pessoas tão
interessantes, que fazem coisas tão interessantes podem escrever coisas tão chatas?”
(ROSALDO, 2000: 61)
30 Assim como a etnografia está ligada ao nome de Malinowski, a reflexão sobre
diferença/distância entre experiência e texto está igualmente ligada a este nome. Por
iniciativa da viúva e com uma introdução do antigo discípulo Raymond Firth, em
1967, se publica o Diário no sentido estrito do termo (1997), diário de
Malinowski nas ilhas Trobriand, no qual ele fala de seu sofrimento, mal-humor, sua
vontade de “dar o fora dali”, em que revela seu hipocondrismo, seu ódio dos mosquito
e pulgas, seu desconforto de conviver com porcos e crianças barulhentas, as
chantagens dos nativos para falar, seus desejos sexuais, o descompromisso dos
informantes (chamados de estúpidos, insolentes, atrevidos), a saudade da Europa, das
duas mulheres que amava, etc. No mesmo ano, Clifford Geertz escreve uma resenha
devastadora deste diário chamada “Under the mosquito net” em que vai se

21
perguntar como é que Malinowski conseguiu convencer todo mundo sobre o ponto de
vista do nativo sem nem sequer ter conseguido empatia alguma com os nativos? A
resposta seria: pela forma de narrar, o que importa é o modo como se narra a
experiência etnográfica, isto é, a narrativa, a escrita, o estilo. Na década de 1980, alguns
discípulos de Geertz retomam a reflexão inicial do mestre e se reúnem num seminário
em Santa Fé, cujas apresentações se publicam em 1984 no livro Writing Culture (editado
por James Clifford e George Marcus). Este movimento – chamado de pós-moderno em
Antropologia – vai refletir seriamente sobre como temos escrito sobre os Outros desde
os tempos de Malinowski até agora.
31 Além da distância entre experiência e escrita, outra dificuldade do terceiro momento do
fazer etnográfico radica no fato de não sermos apenas registradores de falas, tradutores
da palavra nativa, transcritores do Outro. Somos autores, pois pôr as coisas em ordem –
montar o quebra-cabeça – é um exercício criativo autoral. A criação faz dos textos
antropológicos, ficções:

“os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de


segunda e terceira mão. Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que
são ‘algo construído’, ‘algo modelado’ – o sentido original de fictio – não que
sejam falsas, não-factuais ou apenas experimentos de pensamento.” (GEERTZ,
1989, p. 25, 26).

32 Entretanto, o quebra-cabeça montado pelo antropólogo (a ordem proposta) tem de


ser o suficientemente honesto para apresentar tanto as peças soltas quanto as peças
montadas. Em palavras de Sahlins (2003), a realidade etnográfica não pode ser
substituída pela compreensão dela. As peças soltas são a descrição densa, as peças
montadas a interpretação proposta. Muitas vezes, o que resta destes trabalhos é muito
mais a capacidade de apreender e descrever os dados, do que a ordem que construímos.
Conforme salienta Mariza Peirano, “Darcy Ribeiro também confessou, um dia, que seus
trabalhos teóricos pouco valiam, estavam inclusive ‘errados’. O conjunto de seus diários
de campo era, sim, o que de mais importante havia produzido” (PEIRANO, 2008, p. 5).
Mas, como “montar uma ordem” sem mexer nas “peças soltas”? A rigor, essas “peças
soltas” não são também uma “montagem”, na medida em que se transformaram de
informações em dados? Podemos dizer que por mais que não queiramos interferir nas
informações, a montagem é feita e, de novo, voltamos à questão da formação teórica:
se o campo se iniciou com um trabalho de

22
formação teórica, ele culmina, novamente, na teoria, pois é ela que ajuda a pôr as
coisas em ordem, por mais mínima que essa ordem seja:

“Quem realmente estudou a obra de Nimuendajú sabe como a monografia, The


Apinayé (publicada em 1939) apresenta uma narrativa com severos problemas
descritivos, onde se observa uma evidente ausência de ‘ordem’, sinal de que
Nimuendajú escreveu esse texto sem nenhuma teoria da sociedade a guiar seu
trabalho de campo. Que contraste, porém, quando cotejamos esse livro com o
volume sobre a sociedade Canela, publicado dez anos depois, sob a égide de Lowie
que editou o texto original de Nimuendajú (cf. Nimuendajú, 1946). Nele, temos
uma narrativa
– um texto no melhor sentido de Ricoeur (1971) – onde, em que pese os inúmeros
problemas etnográficos que o especialista é capaz de descobrir, o conjunto tem
uma certa consição e unidade, a meu ver, dois dos elementos críticos das modernas
etnografias.” (DA MATTA, 1992: 61)

33 A escrita é perpassada também pela questão do lugar desde onde fala o antropólogo.
Há um certo tempo existe um consenso: a fala do antropólogo não se confunde com a
do nativo porque ele, por mais perto que tenha chegado deste, simplesmente, não é um
nativo. O Eu não é o Outro. Mas o Eu do antropólogo, sua voz, o posição desde a qual ele
fala, não é tampouco daquele pesquisador que iniciou o trabalho de campo

“a natureza da explicação pela via etnográfica tem como base um insigth que
permite reorganizar dados percebidos como fragmentários, informações ainda
dispersas, indícios soltos, num novo arranjo que não é mais o arranjo nativo (mas
que parte dele, leva-o em conta, foi suscitado por ele) nem aquele com o qual o
pesquisador iniciou a pesquisa.” (MAGNANI, 2002: 17).

34 Esse novo lugar é, diríamos, um entre-lugar, nem cá nem lá:

“É preciso pensar em que espaço se move o etnólogo que está engajado numa
pesquisa de campo e refletir sobre as ambivalências de um estado existencial onde
não se está nem numa sociedade nem na outra, e no entanto está-se enfiado até
o pescoço em uma e outra.” (DA MATTA, 1981, p. 153,4)

35 Viveiros de Castro deu uma brilhante resposta à pergunta que aqui nos ocupa: a voz
do antropólogo não é a voz do nativo porque uma coisa é o que o nativo pensa e
outra, o que o antropólogo pensa que o nativo pensa. O ponto de vista do

23
antropólogo é, pois, o da sua relação com o ponto de vista do nativo (Viveiros de Castro,
2002). O seu é um discurso que advém de uma relação: mais uma vez, a experiência de
diálogo “para valer” é o que marca a narrativa etnográfica.
36 Então, é o antropólogo que fala, mas esta fala advém de uma relação, o que significa
dizer que há autoridade, mas esta convive com a fragilidade, e seria esta combinação,
precisamente, a característica do discurso antropológico:

“É precisamente esta mistura de autoridade e fragilidade que tipifica o discurso


antropológico. A autoridade decorre de ser você quem testemunha e produz o
relato. Mas a fragilidade advém da consciência aguda e dolorida de que o ‘presente
etnográfico’ é uma ilusão que dentro de alguns anos será corrigida por outro
etnólogo que, numa outra pesquisa, fará outras perguntas /.../ Daí a relação íntima
entre boa etnografia e confissão (percebida por Lévi-Strauss) e entre boa
etnografia e romance.” (DA MATTA, 1992: 59)

37 Finalmente, o estilo. A narrativa etnográfica tem se caracterizado, segundo Marcus e


Cushman (1998), pelo realismo etnográfico, isto é, pelo “modo de escrita que busca
representar a realidade de todo um mundo ou de uma forma de vida” (MARCUS,
CUSHMAN, 1998, p. 175). É o realismo etnográfico que explica essa importância da
descrição nos textos etnográficos, dos detalhes, do cotidiano e, principalmente, das
alusões ao “eu estive lá”: é a forma que temos de fazer aparecer, de certa forma, a
totalidade, uma totalidade experimentada e partilhada pelo pesquisador. O resultado
desta estratégia narrativa é a criação de um mundo, “que parece total e real para o
leitor” (1998: 176). Contudo, estes autores distinguem entre o realismo etnográfico
“clássico” e o “experimental”. Dentre outras características, no primeiro, encontra-se
um abuso da terceira pessoa (“eles fazem, eles pensam”), uma ausência de pessoas
concretas e um tratamento marginal das condições do trabalho de campo; já no
segundo, mais recente, o personagem do etnógrafo é introduzido no texto, é dada uma
voz direta aos nativos, é diferenciado o ponto de vista nativo e o ponto de vista do
pesquisador, as condições do trabalho de campo são amplamente informadas e as
descrições são contextualizadas, e não generalizadas como dentro do realismo
“clássico”.

24
Conclusão

38 A conclusão é simples: a rigor, fazer etnografia não consiste apenas em “ir a campo”,
ou “ceder a palavra aos nativos” ou ter um “espírito etnográfico”. Fazer etnografia supõe
uma vocação de desenraizamento, uma formação para ver o mundo de maneira
descentrada, uma preparação teórica para entender o “campo” que queremos
pesquisar, um “se jogar de cabeça” no mundo que pretendemos desvendar, um tempo
prolongado dialogando com as pessoas que pretendemos entender, um “levar a sério”
a sua palavra, um encontrar uma ordem nas coisas e, depois, um colocar as coisas em
ordem mediante uma escrita realista, polifônica e inter- subjetiva.
39 Finalizando, gostaria de frisar que dizer o que é a etnografia para um antropólogo não
significa dizer que ela é “propriedade” nossa; significa, apenas, afirmar o quanto ela é
complexa para nós. Como outras disciplinas podem se apropriar dela é uma outra
questão, que ultrapassa o objetivo deste artigo.

BIBLIOGRAFIA

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. A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac
& Naify,2002 (b).

NOTAS
1 “O que fazemos que os outros não fazem, ou só fazem ocasionalmente, e
não tão bem feito, é (segundo essa visão) conversar com o homem do arrozal
ou a mulher do bazar, quase sempre em termos não convencionais, no estilo
‘uma coisa leva a outra e tudo leva a tudo o mais’ em língua

26
vernáculo e por longos períodos de tempo, sempre observando muito de
perto como eles se comportam.” (GEERTZ,
2001, p. 89,90). “A antropologia não se define por um objeto determinado:
mais do que uma disciplina voltada para o estudo dos povos primitivos ela é,
como afirma Merleau-Ponty, ‘a maneira de pensar quando o objeto é outro e
que exige nossa própria transformação.” (MAGNANI, 2002, p. 16).
2 O “urbanista errante” constitui uma proposta crítica que responde ao
método – planejado e de cima – predominante no Urbanismo. O que Jacques
(2006) propõe é uma postura de apreensão da cidade menos distante da
experiência urbana, uma que retome as formas de apreender própria dos
diversos errantes que existiram ao longo da história (andarilhos, flâneurs,
surrealistas, situacionistas, artistas como João do Rio e Oitica, entre outros).
Três seriam as características deste urbanista errante: se perder, ser lento e
corporizar. Após ser ensinado a se orientar, o urbanista deveria aprender a se
desorientar, se perder, para se reintegrar de uma outra forma, não-ensinada
previamente; após viver mergulhado na velocidade do mundo moderno, ele
teria de aprender o ritmo da lentidão; finalmente, no mundo da virtualidade
o num mundo asseptizado, onde tudo se descorporiza, ele teria de aprender
a corporizar novamente as coisas e as pessoas, isto é, usar, percorrer,
experimentar, tocar, sentir, cheirar.
3 Antes dele, nos Estados Unidos, o antropólogo Lewis Morgan visitou os
iroqueses nos anos de 1844 e 1846, e o antropólogo Franz Boas, entre 1883
e 1884, conviveu entre os nativos da Terra de Baffin, e, logo depois, entre os
Kwakiutl da ilha de Vancouver. Entretanto, o primeiro a formular a etnografia
como método foi Bronislaw Malinowski, bem mais tarde, na referida
introdução dos Argonautas (1922).
4 Retomo aqui expressões de Sahlins para se referir às antropologias de
Malinowski e Boas. Segundo Sahlins, o empirismo de Boas, em contraposição
à teoria funcionalista de Malinowski, o levava a “um compromisso em
encontrar ordem nos fatos, e não em colocar os fatos em ordem.” (SAHLINS,
2003, p. 80).

27
ETNOGRAFIA: SABERES E PRÁTICAS1

Ana Luiza Carvalho da Rocha


Cornelia Eckert

Passando de uma atividade exclusivamente literária a prática


da etnografia, eu pensava romper com os hábitos intelectuais que
tinham sido os meus até agora, através do contato com homens de
outra cultura e raça que não as minhas,
e com as muralhas que me
sufocavam, expandindo meu
horizonte para uma medida
verdadeiramente humana. (Michel Leiris, 1934)

Método etnográfico? Técnicas de pesquisa etnográfica?


É freqüente se afirmar que o método etnográfico é aquele que diferencia as formas de
construção de conhecimento em Antropologia em relação a outros campos de
conhecimento das ciências humanas. De fato o método etnográfico encontra sua
especificidade em ser desenvolvido no âmbito da disciplina antropológica, sendo composto de
técnicas e de procedimentos de coletas de dados associados a uma prática do trabalho de
campo a partir de uma convivência mais ou menos prolongada do(a) pesquisador(a) junto ao
grupo social a ser estudado. A prática da pesquisa de campo etnográfica responde, pois a uma
demanda científica de produção de dados de conhecimento antropológico a partir de uma
inter-relação entre o(a) pesquisador(a) e o(s) sujeito(s) pesquisados que interagem no
contexto recorrendo primordialmente as técnicas de pesquisa da observação direta, de
conversas informais e formais, as entrevistas não-diretivas, etc.
Desde já esclarecemos ao (à) aluno(a) de graduação que o método etnográfico é um
método específico da pesquisa antropológica. Outras ciências sociais recorrem não obstante a
determinadas técnicas de pesquisas que são singulares ao método de pesquisa qualitativa.
Mas neste caso trata-se de adotar alguns procedimentos técnicos próprios da pesquisa
etnográfica como a observação e as entrevistas, vinculadas agora a outros campos teóricos
1 Artigo publicado no livro organizado por Céli Regina Jardim Pinto e César Augusto Barcellos
Guazzelli Ciências Humanas: pesquisa e método. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2008.

28
de interpretação da realidade social que não a teoria antropológica.
Já o método etnográfico é a base na qual se apoia o edifício da formação de um(a)
antropólogo(a). A pesquisa etnográfica constituindo-se no exercício do olhar (ver) e do escutar
(ouvir) impõe ao pesquisador ou a pesquisadora um deslocamento de sua própria cultura para
se situar no interior do fenômeno por ele ou por ela observado através da sua participação
efetiva nas formas de sociabilidade por meio das quais a realidade investigada se lhe apresenta.
Inicialmente, em Antropologia, a preparação para o trabalho de campo implica inúmeras
etapas, uma delas é a construção do próprio tema e objeto de pesquisa desde a adoção de
determinados recortes teórico-conceituais do próprio campo disciplinar e suas áreas de
conhecimento (Antropologia rural, Antropologia urbana, etc.). Não é usual este projeto
contemplar hipóteses iniciais de pesquisa uma vez que estas emergem na medida em que a
investigação avança com a aproximação ao universo a ser pesquisado.

A observação direta

Se o método etnográfico é composto por inúmeros procedimentos incluindo


levantamento de dados de pesquisa probabilística e quantitativa (demografia, morfologia,
geografia, genealogia, etc.), a observação direta é sem dúvida a técnica privilegiada para
investigar os saberes e as práticas na vida social e reconhecer as ações e as representações
coletivas na vida humana. É se engajar em uma experiência de percepção de contrastes sociais,
culturais, e históricos. As primeiras inserções no universo de pesquisa conhecidas como “saídas
exploratórias”, são norteadas pelo olhar atento ao contexto e a tudo que acontece no espaço
observado. A curiosidade é logo substituída por indagações sobre como a realidade social é
construída. Esta demanda é habitada por aspectos comparativos que nascem da inserção
densa do pesquisador no compromisso de refletir sobre a vida social, estando antes de mais
nada disposto a vivenciar a experiência de inter-subjetividade, sabendo que ele próprio passa
a ser objeto de observação (Lévi-Strauss, 1974, p. 1 à 36). O
(A) aprendiz a antropólogo(a) coteja os aspectos que percebe cada vez mais orientados por
questões teórico-conceituais apreendidas já nos primeiros anos do curso de ciências humanas.
Após a elaboração de um projeto com tema pertinente ao campo de conhecimento
antropológico e orientado por um(a) professor(a) que lhe iniciará na pesquisa etnográfica, a
primeira atitude do(da) jovem cientista é aproximar-se das pessoas, dos

29
grupos ou da instituição a ser estudada para conquistar a concordância de sua presença
para a observação sistemática das práticas sociais.
A interação é a condição da pesquisa. Não se trata de um encontro fortuito, mas de uma
relação que se prolonga no fluxo do tempo e na pluralidade dos espaços sociais vividos
cotidianamente por pessoas no contexto urbano, no mundo rural, nas terras indígenas, nos
territórios quilombolas, enfim, nas casas, nas ruas, na roça, etc, que abrangem o mundo
público e o mundo privado da sociedade em geral.
Logo após o pedido de consentimento por parte dos indivíduos ou das pessoas, ou da
concordância institucional, o(a) pesquisador(a)-observador(a), em sua atitude de estar
presente com regularidade, passa a participar das rotinas do grupo social estudado e sua
técnica consiste então na observação participante. A prática da etnografia se torna mais
profunda e se constitui como uma forma do(a) antropólogo(a) pesquisar, na vida social, os
valores éticos e morais, os códigos de emoções, as intenções e as motivações que orientam a
conformação de uma determinada sociedade.
É recorrente se afirmar que o(a) antropólogo(a) não pode se transformar em nativo(a),
submergindo integralmente ao seu ethos e visão de mundo, tanto quanto não pode aderir
irrestritamente aos valores de sua própria cultura para interpretar e descrever uma cultura
diferente da sua própria (o que consiste no etnocentrismo), sob pena de não mais ter as
condições epistemológicas necessárias à produção da etnografia. O(a) antropólogo(a)
brasileiro Roberto Da Matta (1978 e 1981), denomina este sentimento de estar lá e do estar
aqui como parte das tristezas do(a) antropólogo(a), um eterno desgarrado de sua própria
cultura, mas na eterna busca do seu encontro com outras culturas. Por isto podemos
caracterizar a antropologia como a ciência que trata da diversidade cultural.

O trabalho de conhecer

A pesquisa de campo etnográfico consiste em estudarmos o Outro, como uma


Alteridade, mas justamente para conhecer o Outro. A observação é então esta aprendizagem
de olhar o Outro para conhecê-lo, e ao fazermos isto, também buscamos nos conhecer melhor.
Esta busca de conhecimento é sempre orientada por questões conceituais aprendidas no
estudo das teorias sociais. Todo tempo estamos, portanto, desenvolvendo o que o sociólogo
francês Pierre Bourdieu definiu como uma teoria em ato (apud Thiollent, 1980). A cada
percepção que nos permite refletir conceitualmente operamos o que o filósofo francês
Gaston Bachelard ensinou em sua obra de iniciação “A formação do

30
espírito científico” sobre como vencer obstáculos epistemológicos imbuídos de uma cultura
científica. Fascinado pelas generalizações de primeira vista, logo somos mobilizados pela
motivação científica e superamos as armadilhas de explicar o que observamos pelo senso
comum. Ao recorrermos às idéias científicas podemos então ordenar nossas descobertas em
uma lógica inteligente que provoca o conhecimento intelectual sobre o observado, sobre a
situação pesquisada, sobre as dinâmicas sociais investigadas. Bachelard nos ensina aqui que
vivemos no campo científico uma ruptura epistemológica (Bachelard, 1996).
Esta descoberta sobre o Outro, é uma relação dialética que implica em uma sistemática
reciprocidade cognitiva entre o(a) pesquisador(a) e os sujeitos pesquisados.
A acuidade de observar as formas dos fenômenos sociais implica na disposição do(a)
pesquisador(a) a permitir-se experimentar uma sensibilidade emocional para penetrar nas
espessas camadas dos motivos e intenções que conformam as interações humanas,
ultrapassando a noção ingênua de que a realidade é mensurável ou visível, em uma atitude
individual. O observar na pesquisa de campo implica na interação com o Outro evocando uma
habilidade para participar das tramas da vida cotidiana, estando com o Outro no fluxo dos
acontecimentos. Isto implica em estar atento(a) as regularidades e variações de práticas e
atitudes, reconhecer as diversidades e singularidades dos fenômenos sociais para além das
suas formas institucionais e definições oficializadas por discursos legitimados por estruturas
de poder.
A pesquisa se inicia pela aprovação de um projeto que contenha as intenções teóricas e
categorias antropológicas que fundamentam as etapas do desenvolvimento do trabalho de
campo sob a orientação de um professor(a)/pesquisador(a) antropólogo(a). Existem múltiplas
maneiras da inserção em campo ser iniciada, mas em sua maioria, uma etnografia se estréia
com um processo de negociação do(a) antropólogo(a) com indivíduos e/ou grupos que
pretende estudar, transformando-os em parceiros de seus projetos de investigação,
compartilhando com eles e com elas suas idéias e intenções de pesquisa. O consentimento
implica em saber quando e onde ir, com quem e o que se pode ou não falar, como agir diante
de situações de conflito e risco, etc. Algumas vezes o(a) antropólogo(a) é “iniciado(a)” no seu
trabalho de campo por um dos membros do grupo que investiga. Em geral denominamos
este(a) personagem que nos apóia nos primeiros passos no contexto da pesquisa de
“interlocutor principal”, quando não pela carinhosa denominação de padrinho ou madrinha de
iniciação. Outras vezes se coloca em campo a partir do consentimento de uma determinada
instituição que avalia a pertinência da pesquisa para sua concordância ou ainda uma
organização que desenvolve ações junto ao grupo com o qual pretende trabalhar.

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O antropólogo americano William Foote Whyte (2005) fez sua entrada em campo nas
ruas da cidade. Buscava se aproximar dos moradores do quarteirão italiano de um bairro de
Boston, Cornerville. Esta aproximação é mediada por um trabalhador que lhe apresentará Doc,
chefe de um grupo de jovens que lhe colocará em contato com seus companheiros, através
dos quais irá conhecer uma rede densa de relações no bairro. Fica evidente que a expressão «
entrada em campo » possui uma rica ambigüidade. Para o(a) etnógrafo(a) “entrar em campo”
significa tanto a permissão formal do “nativo” para que ele disponha de seu sistema de crenças
e de práticas como objeto/tema de produção de conhecimento em antropologia, quanto o
momento propriamente dito em que o(a) antropólogo(a) adquire a confiança do(a) nativo(a)
e de seu grupo, os quais passam a aceitar se deixar observar pelo(a) etnógrafo(a) que passa,
por sua vez, a participar de suas vidas cotidianas.

A escuta atenta

A entrada em campo sempre transcorre desde uma rede de interações tecidas pelo(a)
antropólogo(a) no seu contato com um grupo determinado, sendo o trabalho de campo um
laborioso trabalho de entrada do(a) etnógrafo(a) desde uma situação periférica no interior da
vida coletiva deste grupo até seu deslocamento progressivo no coração dos dramas sociais
vividos por seus membros. Obviamente não todos, mas aqueles aos quais o(a) antropólogo(a)
aderiu em seu trabalho de campo. A experiência situada é aquela que orienta a prática da
pesquisa em antropologia que jamais pretende atingir um conhecimento do mundo social a
partir da posição que ele (ela) ocupa no seu interior. Todo o conhecimento produzido e
acumulado pelo pensamento antropológico está referido a experiência singular que o(a)
etnógrafo(a) desenvolve com a sociedade que investiga.
A inserção no contexto social objetivado pelo(a) pesquisador(a) para o desenvolvimento
do seu tema de pesquisa, o(a) aproxima cada vez mais dos indivíduos, dos grupos sociais que
circunscrevem seu universo de pesquisa. Junto a estas pessoas o(a) pesquisador(a) tece uma
comunicação densa orientada pelo seu projeto de intenções de pesquisa.
A presença se prolonga e o(a) antropólogo(a) participa da vida social que pesquisa,
interagindo com as pessoas no espaço cotidiano, compartilhando a experiência do tempo que
flui. Esta comunicação se densifica com a aprendizagem da língua do “nativo” para a
compreensão de suas falas quando necessário, com o reconhecimento dos sotaques ou das
gírias, com a aprendizagem dos significados dos gestos, das performances e das etiquetas
próprias ao grupo que revelam suas orientações simbólicas e traduzem seus sistemas de

32
valores para pensar o mundo. O antropólogo americano Clifford Geertz (1978) sugere aqui
que estaremos desvendando o tom e a qualidade da vida cultural, o ethos e o habitus do grupo,
ou seja, estaremos interpretando o sistema simbólico que orienta a vida e conforma os valores
éticos dos grupos sociais em suas ações e representações acerca de como viver em um sistema
social. Isto significa estar junto nas situações ordinárias vividas como possibilidade
interpretativa dos ditos e não ditos que se constituem como parte fundamental das
aprendizagens de seu métier.
A disposição de escutar o Outro, não é tarefa evidente. Exige um aprendizado a ser
conquistado a cada saída de campo, a cada visita para a entrevista, a cada experiência de
observação. Os constrangimentos enfrentados pelo desconhecimento vão sendo superados
pela definição cada vez mais concreta da linha temática a ser colocada como objetivo da
comunicação. Diz-se então que a prática etnográfica permite interpretar o mundo social
aproximando-se o pesquisador do Outro “estranho”, tornando-o “familiar” ou no
procedimento inverso, estranhando o familiar, superando o pesquisador suas representações
ingênuas agora substituídas por questões relacionais sobre o universo de pesquisa analisado
(Da Matta, 1978 e Velho, 1978).

O universo de pesquisa, o contexto estudado

Os Jogadores de futebol de várzea, os fiéis de uma determinada casa de religião, os


moradores de uma vila de invasão, os habitantes de um cortiço de esquina de um bairro
popular, os grupos de travestis e as prostitutas em seus territórios de batalha, os
freqüentadores de fast foods, os doadores de rins, os vendedores de artesanato no mercado
de pulgas, os voluntários em uma Ong ativista ambiental, os jovens de classe média que
“ficam” numa boate, etc, todas estas redes sociais tem sua forma própria de pertencer e
viver, construindo realidades culturais próprias.
A escolha do tema de pesquisa leva a opção pela inserção em um contexto social
específico que responde a demanda intelectual do(a) antropólogo(a). Questões iniciais de
dificuldades ou impedimentos são levadas em conta em torno das condições sociais concretas
para a reciprocidade almejada. Sobretudo as pessoas devem estar cientes da intenção do
pesquisador e somente na disponibilidade e cumplicidade, a pesquisa tem sua continuidade.
Este lugar não é neutro de sentidos. Cada acontecimento está vinculado ao contexto
social em que a ação humana é desenvolvida.

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O esforço de construir este cenário social é então fundamental em toda monografia para
que os futuros leitores possam compartilhar dos matizes que orientaram os procedimentos
sociais nos atos interativos, bem como ter o mínimo de dados sobre as disposições sociais que
estavam em jogo nas interações cotidianas. Este contexto é elaborado a partir de dados
observados, estudos históricos, revisão bibliográfica de pesquisas já desenvolvidas sobre o
tema, análise de discursos e de documentos históricos, estudo de imagens produzidas, etc,
enfim, uma gama de dados empíricos e conceituais coletados e interpretados nesta atitude
arqueológica de reconstruir o saber produzido sobre o universo social pesquisado.

O exercício da escrita e a ipseidade

A cada investida “em campo”, o(a) etnógrafo(a), segue o modelo clássico fundado pelos
primeiros antropólogos que se aventuravam em viagens para conhecer os povos nominados
na época de exóticos, simples e distantes. Trata-se do registro escrito em notas, diários ou
relatos das experiências observadas ou escutadas no cotidiano da investigação.
O que se escreve? Recorremos aqui ao famoso antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro
(2006) que responde de forma muito simples:

Meus diários são anotações que fiz dia a dia, lá nas aldeias,
do que via, do que me acontecia e do que os índios me diziam.

Este ato de escritura define a capacidade de recriar as formas culturais que tais
fenômenos adotam e permite exercitar a habilidade de lhes dar vida novamente, agora na
forma escrita, com base em uma estrutura narrativa. Eis alguns pontos em comum entre o
método etnográfico e o romance, e que aproxima a Antropologia da Literatura.
O antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira recorre a uma expressão em inglês
para definir esta experiência de escrever sobre a experiência de observar o Outro e escutar o
Outro: Semantical Gap. Isto quer dizer que o(a) antropólogo(a) vivencia seja na interação face
a face, seja no ato de refletir sobre esta experiência, o momento de descoberta do Outro, mas
onde o pesquisador faz sempre um retorno a si mesmo porque ele também se redescobre no
Outro. O(a) antropólogo(a) reconhece, ao se relacionar na pesquisa de campo, uma diferença,
uma separação de valor, um abismo entre valores que é definido desde a fundação da premissa
de estranhar o Outro como de relativismo cultural.

34
Este momento é uma experiência única e intransferível. Uma busca de conhecimento
orientada por conceitos de um campo semântico da teoria antropológica que nos estimula a
questões anti-etnocêntricas, quer dizer, de não fazer com que os juízos de valores da
sociedade do(a) próprio(a) pesquisador(a) persistam ao olhar o Outro evitando a armadilha de
ver o Outro com os valores de uma sociedade tão distante que gere e reproduza o preconceito.
Para muitos uma mescla entre arte e ciência, o método etnográfico se conforma num
processo lento, longo e trabalhoso de acesso as inúmeras camadas interpretativas da vida
social, e que conforma os fenômenos culturais tanto quanto num laborioso procedimento de
reapresentar as formas culturais na qual tal vida social se apresenta para seus protagonistas.
A antropóloga americana Margareth Mead (1979) em um artigo célebre já havia
pontuado entre seus colegas que uma das peculiaridades da antropologia, desde suas origens,
é a de ser uma disciplina de palavras. A autora ao desenvolver seu argumento revela que a
prática etnográfica se traduz na memorização de acontecimentos orais complexos
(cerimônias, conversas, relatos, comentários, interações verbais, etc.) que necessitam ser
registrados, classificados, correlacionados, comparados e, logo após, retomados pelo
etnógrafo na forma de estudos monográficos, através do uso de conceitos teóricos e
metodológicos do seu campo disciplinar e não do próprio “nativo”. Todo(a) o(a) etnógrafo(a)
é por assim dizer um(a) escriba.
Para muitos cientistas sociais a sua formação no oficio de etnógrafo passa pelo
espinhoso processo da escrita de uma monografia, ou seja, um estudo pontual e denso sobre
uma prática cultural qualquer analisada onde necessita transpor para a escrita sua experiência
com o grupo pesquisado. O sofrimento que a escrita traz para este aprendiz de etnógrafo(a) é
mais complexa quanto mais ele ou ela se dedicarem ao estudo de práticas cujos contextos
culturais são marcados pela forte presença da oralidade na sua forma de expressiva, caso dos
estudos de contos e de lendas do folclore popular, de cantos e mitos em sociedades indígenas
ou tribais.
A prática da etnografia traz para o campo do debate, hoje, as questões da restituição
etnológica, isto é, o retorno ao grupo pesquisado das informações e dados que o(a)
etnógrafo(a) deles retirou quando de sua estadia entre eles. Esta foi, sem dúvida, uma das
grandes contribuições dos antropólogos americanos que reivindicam uma antropologia pós-
moderna. Estes se preocuparam fortemente com estas questões da autoridade etnográfica
dos escritos dos antropólogos e do lugar de autor que este ocupa no momento de oferecer a
comunidade dos antropólogos suas interpretações da cultura do Outro. Produção de estudos
monográficos que apresentam dados, situações, acontecimentos da

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vida cotidiana do “nativo” cuja natureza é diversa daquela dos dados obtidos no trabalho de
campo.
Não cabe no computo deste artigo discutir, mas vale lembrar que a prática da escrita
em antropologia (e o trabalho de edição, revisão e editoração) representa um rito de
passagem importante para a formação de um antropólogo precisamente pela forma como a
linguagem escrita permite ao próprio pensamento antropológico dar conta da natureza do
construto intelectual que orienta a representação etnográfica.
Importante se ressaltar que o trabalho de escrita etnográfica tal qual aparece nos
estudos monográficos clássicos foi, obviamente, concebido a posteriori, geralmente com o
apoio de casas de edições interessadas na venda de tais monografias sob a forma de livros. A
leitura dos clássicos, tal qual se apresenta no espaço livresco não pode ignorar que a realização
de um trabalho etnográfico necessita a prática de um dispositivo de pensamento especulativo
preliminar onde a escrita exploratória e ensaística é fundamental para o seu processo de
pensar seu próprio pensamento. A organização do trabalho de campo em fases bem precisas,
totalmente esquemáticas (preparação, coleta de dados, análise dos dados e escrita final do
estudo monográfico, dissertação ou tese) é, neste sentido, uma ilusão criada pelo espaço
livresco por onde circulam as etnográficas clássicas do pensamento antropológico e do qual
todo(a) o(a) aprendiz de etnógrafo(a) precisa ter acesso.
A escrita etnográfica desde a contribuição de Clifford Geertz (O antropólogo como
autor), de James Clifford (A experiência etnográfica) e de Paul Rabinow (Antropologia da
razão) supõe atualmente a pesquisa com novas formas de escritas etnográficas como forma
de acomodar as questões da controversa da restituição etnológica da palavra do Outro.

Conhecer a trajetória da antropologia como campo de idéias disciplinares

A prática do método etnográfico é seguida do estudo sistemático da construção do


campo da disciplina antropológica. Este procedimento permite a compreensão das disposições
intelectuais e ideológicas da trajetória do método antropológico em que o pesquisador se
engaja. Compõe-se, portanto, de um dos processos de formação pelos quais um aluno do
curso de ciências sociais necessita apreender para se formar na prática de investigação crítica
que delimita a produção de conhecimento em Antropologia na sua relação com os demais
campos das ditas “sociais”.
O encontro/confronto do cientista social com as sociedades não-européias foi
evidentemente que deu origem a este modo de conhecimento particular elaborado desde a

36
técnica da observação rigorosa contínua e regular da vida social a partir da localização do
investigado no interior das formas da vida social que pretendia estudar. Procurava impregnar-
se lenta e sistematicamente dos grupos humanos com os quais mantinha, então, estreita troca
e interação. Nas palavras do antropólogo alemão Franz Boas:

Qualquer um que tenha vivido entre as tribos primitivas,


compartilhado suas alegrias e seus sofrimentos, que tenha
conhecido com eles seus momentos de provação e abundância, e que
não os encarem como simples objetos de pesquisa examinados como
célula num microscópio, mas que os observe como seres humanos
sensíveis e inteligentes que são, admitiria que eles nada possuem
de um “espírito primitivo, de um “pensamento mágico” ou “pré-
lógico” e que cada individuo no interior de uma sociedade
“primitiva” é um homem, uma mulher ou uma criança da mesma
espécie possuindo uma mesma forma de pensar, sentir e agir que um
homem, uma mulher ou uma criança de nossa própria sociedade.
(Boas, 2003, p. 32).

Bronislaw Malinowski e Franz Boas foram os pais fundadores deste método ao


explorarem a distância que separava suas sociedades daquelas por eles investigadas. Suas
obras, Os argonautas do pacífico ocidental e A alma primitiva, respectivamente, são exemplos
da experiência de alteridade na elaboração da experiência etnográfica, tão necessária à
formação de um antropólogo, mesmo nos dias de hoje. Diz o antropólogo polonês e
posteriormente naturalizado inglês:

Se um homem embarca em uma expedição decidido a provar certas


hipóteses e se mostra incapaz de modificar sem cessar seus pontos de
vistas e de abandoná-los em razão de testemunhos, inútil de dizer que seu
trabalho não terá valor algum. (Malinowski, 1976, p. 65)

Estranhamento e relativização foram conceitos cunhados na tradição do pensamento


antropológico na sua tentativa de dar conta dos processos de transformação do olhar o outro,
o diferente, desde os deslocamentos necessários do olhar do(a) antropólogo(a) sobre si
mesmo e sua cultura, o igual.
A antropologia dos mestres fundadores foi assim responsável, no campo das ciências
sociais, por uma revolução epistemológica pela forma como a pesquisa etnográfica, tendo
como fundamento o trabalho de campo junto as sociedades ditas primitivas, provocaria nas
formas das ciências sociais: produzir conhecimento ao longo do século XX conquistando vigor
metodológico na investigação antropológica nas modernas sociedades complexas.

37
A etnografia como método de investigação das modernas sociedades complexas como
método de investigação, influenciou as formas de se fazer pesquisa entre os sociólogos da
Escola de Chicago. Este grupo de sociólogos americanos e europeus tinha por interesse comum
nos anos 30 do século XX, desenvolver um método e conceitos pertinentes para tratar do
fenômeno urbano e industrial. Suas descobertas para compreender a sociedade moderna
amplificaram seus efeitos nos questionamentos no campo da pesquisa em ciências sociais pela
forma como a etnometodologia encontrou nos estudos clássicos dos antropólogos sua fonte
de inspiração para o estudo microscópico das formas de vida social de nossas próprias
sociedades na cultura ocidental, urbano-industrial.
No inicio do séc. XX, principalmente após as crises dos anos 1930, eram inúmeros os
cientistas sociais que participavam de instituições públicas ou privadas que tinham por centro
de suas ações o trabalho com grupos e/ou indivíduos vivendo em situações de crise social.
Muitos destes cientistas fizeram destas experiências seu tema e objeto de teses em
universidades efetuando-se assim a passagem da participação para a observação das
situações vividas por tais indivíduos e/ou grupos, numa tentativa de reuni-los no interior de
um mesmo procedimento metodológico.
A etnometodologia foi neste caso fundamental para a pesquisa no campo das ciências
sociais migrarem de procedimentos e técnicas de pesquisa influenciadas por uma sociologia
funcionalista ou positivista para uma microsociologia com grande influência do método
etnográfico, em Antropologia. Um exemplo paradigmático é a Escola de Chicago que
influenciou grandemente os estudos antropológicos em sociedades complexas, em especial
orientando para a análise das práticas culturais no contexto da vida social nos grandes centros
urbanos. Reunindo esta experiência ao método etnográfico, a área de conhecimento da
Antropologia inovou em suas formas de pesquisar os fenômenos sociais nas modernas
sociedades urbano-industriais ao propor o conceito de relativização como inerente à pesquisa
em ciências sociais, resultado do jogo polêmico entre participação e distanciamento do
pesquisador em relação ao seu próprio território de pesquisa.
Outra forma de se produzir conhecimento em ciências sociais se expande desde aí tendo
como foco o tema das necessárias rupturas epistemológicas, conforme Pierre Bourdieu (1999).
Para o sociólogo francês tal pesquisa necessita contemplar o sentido reflexivo da trajetória dos
conceitos e teorias produzidos superando a força e a qualidade heurística das ditas ciências
duras. A apresentação do mundo subjetivo do pesquisador como parte integrante dos
procedimentos científicos de objetivação a pesquisa do mundo social e não como
impedimentos a sua realização encontram na história das técnicas de pesquisa em
antropologia uma fonte de inspiração.

38
Aprender a etnografia lendo etnografias

A pergunta do(a) aluno(a) ao professor(a) antropólogo(a) é freqüente: "como posso


aprender a fazer uma boa etnografia? Existe algum modelo que possas me sugerir? Tenho
pressa".
O(a) professor(a) antropólogo(a) sempre responde da mesma forma. Não existe
8
nenhuma "receita de bolo" pronta ou "cursinho Walita"2 a seguir. Você pode começar por
ler o Manual etnográfico de Marcel Mauss ou os vários livros que buscam sistematizar as
técnicas de pesquisa etnográfica. Mas somente lendo boas etnografias, os diários, as
crônicas de viajantes, uma boa literatura, os laudos de pesquisa, os relatos de campo,
somado ao estudo sistemático de abordagens teóricas, é que você conseguirá passar pelo
processo de formação epistemológica na experiência etnográfica.
O(a) aluno(a) conformado(a) de que a pressa não adiantará de nada, entenderá que a
prática da etnografia se baseia nesta disponibilidade de pesquisar a partir de um método que
o(a) coloque no encontro direto com os indivíduos e/ou grupos em situações de vida
ordinárias.
Lendo os chamados clássicos da etnografia, o(a) aprendiz configura o que significa a
experiência do(a) etnógrafo(a) misturar-se no seio do grupo social, colocando-se em
perspectiva a partir de conversas, diálogos que nascem das interações sempre na expectativa
de compreender as intenções e motivações que orientam as ações dos Outros e as suas.
Desvenda aos poucos os acontecimentos (rituais, cerimônias, eventos, conflitos,
solidariedades, etc.) particulares, interpretando os sentidos nele contidos. Pela leitura das
etnografias, o(a) pesquisador(a) vai participando cada vez mais de uma comunidade de
comunicação que compartilha de um estilo de produção do conhecimento, sempre
orientado(a) por interrogações e inquietações de seu tema e objeto de pesquisa: o que está
se passando naquele momento em que um determinado acontecimento esta
ocorrendo?

Quem faz o quê nestas situações? Quem é quem na ordem destes acontecimentos? Quais
as razões de tudo aquilo se passar da forma como está se passando? Quais as razões das coisas
serem como são?

8
2 Cursinho Walita resultou de uma publicidade da venda de liquidificadores Walita que sugeriam
receitas de culinária rapidamente elaboradas com o uso do aparelho.

39
Baseado no aprendizado da leitura etnográfica, o(a) pesquisador(a) perde este lugar de
“mal necessário” e se torna provocador de questões mais pontuais sobre a vida das pessoas e
dos grupos com as quais está dialogando, convidando-os a pensar sobre o sentido de suas
práticas cotidianas. No interior deste diálogo o(a) etnógrafo(a) transforma, assim, os
acontecimentos ordinários da vida dos indivíduos e/ou dos grupo com os quais interage em
evento extraordinário, promovendo entre eles o desafio de refletir conjuntamente sobre si
mesmos.

As implicações de ser um etnógrafo: a vigilância epistemológica

O método etnográfico se define pelas técnicas de entrevista e de observação


participante complementares aos procedimentos importantes para o cientista adequar suas
preocupações estritamente acadêmicas e academicistas à trama interior da vida social que
investiga. Uma das razões pela qual na etnografia a entrevista transcorre desde a elaboração
da estrutura de um roteiro de inquietações do(a) pesquisador(a) flexível o suficiente para
aderir as situações subjetivas que estão presentes no encontro etnográfico.
A preocupação desmedida do(a) pesquisador(a) com a estrutura de uma entrevista
dirigida, quase transformado em questionário, e sua insistência no afastamento do
entrevistado de uma reflexividade sobre suas situações de vida ordinária, em antropologia,
pode conduzir o etnógrafo muitas vezes ao desencontro etnográfico e, até mesmo, ao
desconforto do desinteresse por parte do grupo de investigação. Ao contrário, as relações de
reciprocidade, mesmo que oscilantes em dias de pesquisa ditos mais produtivos e outros
permeados de dificuldades de toda ordem (o informante que “deu bolo”, a desconfiança de
um entrevistado sobre a fidelidade de suas concepções, etc), são construídas em situações de
entrevistas livres, abertas, semi-guiadas, repletas de trocas mútuas de conhecimento.
Além destas duas técnicas associadas ao método etnográfico, existe outra, de extrema
importância para todo o(a) antropólogo(a), a técnica da escrita do diário de campo. Após cada
mergulho no trabalho de campo, retornando ao seu cotidiano de antropólogo, o etnógrafo
necessita proceder a escrita de seus diários de campo. Os diários íntimos dos antropólogos
trazem farta bibliografia sobre os medos, os receios, os preconceitos, as dúvidas e as
perturbações que o moveram no interior de uma cultura como forma de compreensão da
sociedade por ele investigada. Trata-se de anotações diárias do que o(a) antropólogo(a) vê e
ouve entre as pessoas com que ele compartilha um certo tempo de suas vidas cotidianas. Os
diários de campo, entretanto não servem apenas como um instrumento de “passar a limpo”
todas as situações, fatos e acontecimentos vividos durante o tempo

40
transcorrido de um dia compartilhado no interior de uma família moradora de uma vila popular,
com quem passou um tempo para pesquisar o tema da violência urbana. Ele é o espaço
fundamental para o(a) antropólogo(a) arranjar o encadeamento de suas ações futuras em
campo, desde uma avaliação das incorreções e imperfeições ocorridas no seu dia de trabalho
de campo, dúvidas conceituais e de procedimento ético. Um espaço para o(a) etnógrafo(a)
avaliar sua própria conduta em campo, seus deslizes e acertos junto as pessoas e/ou grupos
pesquisados, numa constante vigilância epistemológica.
Evidentemente que o diário de campo não é algo que possa ser escrito ao mesmo tempo
em que me encontro compartilhando com os outros suas vidas, no dia a dia! Ele resulta de
outro instrumento: o caderno de notas. É no caderno de notas de campo, onde o(a)
antropólogo(a) costuma registrar dados, gráficos, anotações que resultam do convívio
participante e da observação atenta do universo social onde está inserido e que pretende
investigar; é o espaço onde situa o aspecto pessoal e intransferível de sua experiência direta
em campo, os problemas de relações com o grupo pesquisado, as dificuldades de acesso a
determinados temas e assuntos nas entrevistas e conversas realizadas, ou ainda, as indicações
de formas de superação dos limites e dos conflitos por ele vividos.
O caderno de notas e o diário de campo são instrumento de transposição de relatos orais
e falas obtido desde a inserção direta do(a) pesquisador(a) no interior da vida social por ele
ou por ela observada. Muitos destes cadernos de notas e diários contendo dados brutos de
observações diretas em campo conduziram os antropólogos ao estudo e a pesquisa, por
exemplo, com as gramáticas e os vocabulários que constituem os diferentes dialetos de uma
mesma língua falados pelas sociedades por eles pesquisadas, com as genealogias de
parentesco que organizam seu corpo social; os mitos e os rituais que vivificam o sentido
coletivo de suas vidas, etc.

Nos termos de Roberto Cardoso de Oliveira (2000), ver, ouvir e escrever como parte
integrante da prática da etnografia não se limita a ações simples, mas giram em torno das
implicações do pesquisador com sua pesquisa uma vez que ela repousa sobre a qualidade e
densidade das trocas sociais do(a) antropólogo(a) com os grupos com os quais esta
compartilhando experiências. O resultado de um trabalho de campo se mede pela forma como
o(a) próprio(a) antropólogo(a) vai refletir sobre si mesmo na experiência de campo. A
confrontação pessoal com o desconhecido, o contraditório, o obscuro e o confuso no interior
de si-mesmo é uma das razões que conduzem inúmeros autores a considerar a etnografia
como uma das práticas de pesquisa mais intensas nas ciências sociais. Não raro, os diários são
hoje publicados ou revistos para publicação pelos(as) próprios(as)

41
antropólogos(as) como é o caso do “Os diários e suas margens, viagem aos territórios Terêna
e Tükúna” de Roberto Cardoso de Oliveira em uma clara intenção de devolução da obra escrita
e fotografada aos povos indígenas hoje em crescente índice de alfabetização e tomados agora
como leitores potenciais de sua própria história registrada e relatada pelo antropólogo
(Cardoso de Oliveira, 2002, p. 13).
Esta crescente circularidade das produções etnográficas elaboradas no âmbito
acadêmico para contextos além-muros universitários consiste numa perspectiva de
democratização e compartilhamento político do trabalho de pensar o mundo social. Como
esclarece o antropólogo americano Marshall Sahlins:

Agora, duzentos anos mais tarde, uma marcada consciência de


“cultura” está reaparecendo no mundo todo entre as vítimas atuais e
passadas da dominação ocidental – é como expressão de exigências
políticas e existenciais semelhantes. Esse culturalismo, tal como foi
chamado, está entre os mais surpreendentes, e talvez mais significativos
fenômenos da história do mundo moderno. (Sahlins, 2001, p. 28)

A tendência monográfica e a grafia da luz

A pesquisa elaborada no suporte escrito segue a tendência monográfica tendo por


projeto acadêmico divulgar e circular a descrição da experiência etnográfica.
A prática da escrita tem sido o espaço da produção intelectual do etnógrafo por
excelência. A escrita de artigos, de ensaios, de livros, de teses e dissertações ou de trabalhos
monográficos tem sido a forma adotada para a expressão final de um trabalho de campo com
base no método etnográfico, a ser reconhecido pelos pares do mundo acadêmico.
Entretanto, assiste-se ao longo do último século, uma reorientação desta tendência no
sentido de agregar a ela a produção de etnografias através do uso de recursos audiovisuais
como foi o caso da adoção da câmera fotográfica por Bronislaw Malinowski, entre os
trombriandeses e por Margaret Mead e Gregoire Bateson entre os balineses, para citarmos
apenas alguns entre outros antropólogos(as) que produziram imagens nas experiências de
campo nos primeiros cinqüenta anos do século XX.
O antropólogo visual australiano David MacDougall (2006), reflete sobre estas questões
que decorrem do uso do método etnográfico na pesquisa em ciências sociais. Ele afirma que a
produção textual de etnografias tem seus limites expressos no fato de que a linguagem escrita
reapresenta as diferenças culturais sob uma forma esquemática em

42
detrimento da concretude da experiência etnográfica traduzida, por exemplo, pela via da
fotografia e do filme. Na produção textual, segundo o autor, o “nativo” se deixa ver pela mão
do etnógrafo, desde um ponto de visa generalizante, abstrato e normativo da palavra escrita
em seu desespero de expressar as formas como os fenômenos foram vividos em campo pelo(a)
antropólogo(a). Outro fator determinante da escrita etnográfica é que na medida em que o
texto circula e é reinterpretado pelo ato da leitura, os dados etnográficos se depositam na
forma de uma produção textual e se tornam pouco a pouco independentes de seu contexto
original de enunciação, pois são reinterpretados desde outros lugares e contextos de leituras.
Estas questões sobre as modalidades de escrita do pensamento antropológico tecer
suas interpretações sobre a cultura “nativa” são aspectos fundamentais do avanço nos usos
dos procedimentos e técnicas dos recursos audiovisuais para a prática da pesquisa de campo
em Antropologia nos últimos 30 anos. Se antes a expressão figurativa do outro poderia ser
vista negativamente porque congelava a cultura do nativo e o próprio nativo numa imagem
determinada, alusiva apenas a um momento de sua vida compartilhada com o etnógrafo que
o fotografou e o filmou, durante seu trabalho de campo, hoje, este mesmo traço figurativo já
se coloca de outra forma: através do olhar de uma tradição interpretativa em antropologia
que, longe da ingenuidade positivista, não atribui a imagem técnica seu estatuto de duplo ou
cópia do real.
Acumulados ao longo dos anos nos acervos pessoais dos antropólogos ou nos arquivos
institucionais as imagens visuais e sonoras captadas e registradas do nativo e de sua cultura
durante os vários momentos do trabalho de campo permitem precisamente avaliar o grau
de impacto da presença do etnógrafo entre a população por ele estudada.
Para David MacDougalll (2006) o caráter figurativo da imagem fotográfica e filmica (hoje,
cada vez mais videográfica) ao mesmo tempo em que permite a quem as manipula pensar nas
semelhanças e diferenças entre ele e a cultura retratada na imagem, conduz a uma reflexão
sobre a passagem do tempo do qual estas imagens resultam. Precisamente por que é o seu
traço figurativo que podemos perceber quase como pistas, desvendando os gestos e
motivações simbólicas que orientaram o olhar etnográfico para a composição daquela
forma de representação do nativo e não de outra.

43
Etnografia e as novas tecnologias

Até recentemente, o leitor era orientado a ler na interface de um livro ou a olhar as


imagens ilustrativas anexas para conhecer e compartilhar da experiência etnográfica e do
potencial analítico conceitual do(a) antropólogo(a) em sua objetividade científica. Após os
aprendizados com a interface da fotografia e do cinema, é na era das textualidades eletrônicas
que se renova o desafio da metamorfose da escrita etnográfica. Neste contexto, o clique aqui
é o convite de um contrato de trocas complexas e efêmeras, que colocam autrement o ato
sempre possível da interatividade entre o pesquisador e os sujeitos da interpretação.
Vale ressaltar que uma das últimas fronteiras, hoje, é a produção de novas escritas
etnográficas com base no contexto enunciativo que constituem as novas textualidades
eletrônicas e digitais. Uma antropologia do cyberspace ou no cyberspace é hoje uma das
formas possíveis de expressão do trabalho de campo em Antropologia através do uso do
método etnográfico clássico em ambientes virtuais, o que tem gerado uma reflexão cada vez
maior em torno do processo de desterritoralização da representação etnográfica e a
desmaterialização do texto etnográfico no âmbito das ciências sociais.
O processo de desencaixe espaço-tempo que as novas tecnologias da informática têm
proposto para os lugares da memória no corpo da sociedade contemporânea, ao configurar as
relações entre homem e cosmos em redes mundiais de comunicação, tem provocado, nas
ciências humanas, a necessidade de se aprofundarem novas formas de entendimento das
estruturas espaço-temporais que conformam a magia dos mundos virtuais.
Para enfrentar esse e outros desafios, o que se coloca, cada vez mais, é a relevância não
apenas de refletir sobre as diferentes modalidades de tecnologias de pensamento (oralidade,
escrita, redes digitais) empregadas pelas sociedades humanas para liberar a memória de seu
suporte material (seguimos aqui Leroi-Gourhan, 1964) até atingir sua expressão recente em
redes eletrônicas e digitais, mas, principalmente, de indagar a respeito das operações e
proposições por meio das quais as ciências humanas têm enfrentado, até o momento, o
conhecimento da matéria do tempo e suas cadeias operatórias.
Importa, aqui, tratar da cultura da tela (Eckert e Rocha, 2005) e da civilização da imagem
(Durand, 1980) como novas formas de reorganização dos saberes que suportes mais
tradicionais disponibilizam, transfigurando seu sentido original e atribuindo-lhes uma
significação mais móvel, plural e instável pelo caráter granular que atribui a todos eles.
Pode-se supor a possibilidade de uma etnografia hipertextual (Eckert e Rocha, 2005),
com base numa retórica mais aberta, dinâmica, fluida de disponibilização dos dados

44
etnográficos em web tanto para o pesquisador quanto para sua comunidade lingüística, o que
contempla uma alteração na forma como até então as ciências sociais vinham produzindo
conhecimento.

Conclusões

Os fundamentos da prática etnográfica, portanto, apontam, assim, para o papel que


assume o pesquisador da área das ciências sociais na sua investigação da vida social no coração
dela, uma questão que se tornou central, principalmente nos anos 50 e 60 do século XX, mais
particularmente quando o objeto da Antropologia migra das sociedades ditas primitivas para
as sociedades dos próprios antropólogos. O papel do etnógrafo diante da coisa e das pessoas
por ele pesquisadas, seu grau de implicações com elas, sua forma de participar no transcurso
dos processos da vida social que se modifica e transforma no tempo e no espaço, configura-se
na própria delimitação do trabalho de campo segundo a situação que nela ocupa o pesquisador
em relação ao fenômeno etnografado.
Em antropologia, a dissimulação do(a) etnógrafo(a) (sua profissão, seus objetivos, suas
intenções, etc.) no interior do grupo a ser pesquisado desencadeia inconvenientes de ordem
ético-moral que tem sido debatido pela sua comunidade de pesquisadores que tendem a
rejeitar a situação em que o(a) antropólogo(a) esconde suas verdadeiras intenções em campo.
A figura do(a) antropólogo(a) travestido de nativo é, portanto, rara na prática do método
etnográfico colocando em risco precisamente o pacto de confiança e cumplicidade com o
grupo que investiga e desde aí comprometendo a natureza dos dados por ele obtidos.
O método etnográfico opera precisamente com esta distensão infinita do(a)
antropólogo(a) diante de si e do outro, sendo no interior deste vazio de sentido que brota sua
reflexão sobre as culturas e sociedades humanas.
Importante se frisar que duração de uma etnografia não é a mesma da duração da
temporalidade do próprio fenômeno social e cultural investigado. Desde suas origens, a
prática do trabalho de campo em Antropologia vem confrontando situações de extrema
complexidade, nem sequer imaginadas pelos seus pais fundadores. Cada vez mais
investigando os fenômenos de sua própria sociedade, o(a) antropólogo(a) ao usar o método
etnográfico se confronta com difíceis questões ético-morais no delineamento de suas relações
com as pessoas e/ou grupos sociais por ele pesquisados.
Neste sentido, a prática da etnografia no mundo pós-colonial desdobraram-se em
importantes debates sobre o lugar do(a) antropólogo(a) e das ciências sociais no âmbito, por

45
exemplo, das lutas pelos direitos humanos e dos direitos sexuais no mundo contemporâneo.
Esta complexidade decorre da interdependência que une hoje o oficio do(a) antropólogo(a) as
formas de vida dos interlocutores, onde muitas vezes se vê constrangido a participar das
atividades de lutas de defesa das suas culturas.
Se antes o ato de participar que configurava a técnica da observação participante não
trazia consigo o engajamento do(a) antropólogo(a) nas mudanças das formas de ser da cultura
nativa, hoje, o método etnográfico não pode ignorar que o próprio trabalho de campo do(a)
antropólogo(a) provoca nela intervenções, a ponto de ser um fator de transformação da
cultura do “nativo”.
Acusada inúmeras vezes de produzir um conhecimento insípido e inodoro das sociedades
humanas, pela forma inicial com que advogava a necessidade do(a) antropólogo(a) conservar em
campo uma certa distância do fenômeno observado, tendo em vista suas preocupações com o
rigor científico, a tradição etnográfica se transformou lentamente em expressão de uma
forma de produção de conhecimento engajada e, por vezes, até mesmo militante. Com o passar
das décadas, em fins do séc. XX, situados na defensiva diante de um modelo positivista ou da
radicalidade de um modelo militante nas formas de procederem às apropriações do método
etnográfico, alguns antropólogos inspirados numa tradição interpretativista re-orientam para as
tensões entre participação e distanciamento como inerentes à condição do tradicional ato de
“etnografar” as culturas nas mais diversas sociedades.
Mais ou menos participante, o debate em torno das tipologias da técnica da observação
participante que orienta o método etnográfico e seus graus variados de implicações do(a)
antropólogo(a) com o grupo pesquisado (até se chegar a controversa da pesquisa-ação ou
pesquisa participante) fez avançar a própria importância deste método para a formação de um
cientista social no campo da produção de conhecimento antropológico. O que coloca a
etnografia como uma forma fundamental de construção de conhecimento nas ciências sociais
é justamente esta sua abertura ao mundo das interações sociais e culturais que unem o
pesquisador às culturas e sociedades por ele investigadas e que reside em algumas perguntas
cruciais sem que por isto se tenha para elas uma resposta única: Como conciliar a necessidade
metodológica do pesquisador se implica na vida cotidiana de um grupo humano e a implicação
do(a) pesquisador(a) que desde aí decorre com a forma da vida humana que ele configura?
Como evitar nos tornarmos nós mesmos
« nativos » ou de transformar os “nativos” em nós?

46
A ruptura com o senso comum sem dúvida é hoje uma questão que provoca verdadeira
vertigem entre os cientistas sociais se pensarmos que neste “senso comum” estão as suas
próprias produções teóricas e conceituais. Na figuração de um tempo pós- colonial, o Outro, o
Diferente, é ameaçado de se tornar o Mesmo, o igual, e isto pelas mãos dos próprios etnógrafos
ou dos “nativos” transformados em antropólogos imbuídos da invenção ocidental da figura do
“nativo” universal.
Segundo Sahlins (2001) no desencaixe espaço-tempo do mundo pós-colonial, no
encurtamento das distâncias que colocam o pesquisador e sua produção no interior do “olho
do furacão” das guerras e disputas entre povos e culturas em busca de seus destinos, o apelo
moral da noção de nativo universal e da privação que ela impõe as possibilidades de
compreensão da experiência nativa, fora de suas particularidades ou pressupostos culturais,
como sugere a teoria perspectivista, se tornou hoje outro dos grandes desafios da
permanência do método etnográfico no campo das pesquisas sociais.
A prática etnográfica tem por desafio compreender e interpretar tais transformações
da realidade desde seu interior. Mas, sabemos também, que toda produção de conhecimento
circunscreve o trajeto humano. Assim o oficio de etnógrafo pela observação participante, pela
entrevista não-diretiva, pelo diário de campo, pela técnica da descrição etnográfica, entre
outros, coloca o(a) cientista social, o(a) antropólogo(a), mediante o compromisso de ampliar
as possibilidades de re-conhecimento das diversas formas de participação e construção da vida
social.

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48
1.2 Os/as antropólogos/as: testemunhos do terreno

No final deste capítulo deverá:

• Entender o processo pessoal de confronto com a alteridade


• Analisar como o trabalho de campo se constitui como fonte de produção etnográfica
• Perspetivar a postura reflexiva dos antropólogos

Texto 3:
Irene Rodrigues, « Ser laowai: o estrangeiro antropólogo e o estrangeiro para os migrantes
chineses entre Portugal e a China », Etnográfica [Online], vol. 16 (3) | 2012, Online desde 08
Outubro 2012, consultado em 26 Setembro 2016. URL : http://etnografica.revues.org/2118 ;
DOI : 10.4000/etnografica.2118

Neste texto deverá analisar e escrever:


Descortinar as condições pessoais de produção etnográfica
Identificar dificuldades e limitações, experiências face á imprevisibilidade do trabalho de
campo.
Analisar o processo de reflexibilidade do investigador perante o contexto da pesquisa e o seu
papel.

Outros recursos, outras leituras, outras escritas:


Dossiê: "Imprevistos e mutualidade: a produção do conhecimento etnográfico em
antropologia", Organização de Susana de Matos Viegas e José Mapril, Etnográfica [online], vol
16(3) 2012. http://cria.org.pt/site/revista-etnografica.html
Pires , Flávia Ferreira. 2001. Roteiro sentimental para o trabalho de campo. In Cadernos de
Campo. v. 20, n. 20 (2011). http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v20i20p143-148

49
Irene Rodrigues,

« Ser laowai: o estrangeiro antropólogo e o estrangeiro para os migrantes chineses entre


Portugal e a China »

No terreno, o etnógrafo quase sempre tem de lidar com o facto de ser visto como um estranho
pelas pessoas com quem interage, mas, em contextos etnográficos chineses, um etnógrafo não
chinês pode experimentar uma forma particular da condição de estranho encerrada na ideia de
laowai, uma categoria nativa de estrangeiro. A partir de experiências etnográficas com chineses
na China e em Lisboa, este artigo reflete sobre as condições de produção de conhecimento
etnográfico em terrenos chineses, descrevendo e discutindo o modo como a categoria de
laowai, emergente num contexto social, político e histórico específico, envolve o etnógrafo
numa complexa teia de relações que o colocam de modo ambivalente e simultaneamente em
posições de distância e de proximidade.
Entradas no índice

Keywords :
ethnography, fieldwork, foreigner, unpredictability, China
Palavras-chave :
etnografia, trabalho de campo, estrangeiro, imprevisibilidade,China
Plano

O que é um laowai?
A emergência histórica do paradoxo fascínio/ aversão pelos laowai
Auto-orientalização e ocidentalismo
Waidiren e dangdiren: chineses distantes e chineses próximos
Etnografia para principiantes: ser estrangeira na própria terra
De estrangeiro distante a estrangeiro familiar
Conclusão

1Há alguns meses, estava eu em Pequim (China) em trabalho de campo, quando encontrei
casualmente, em casa de familiares seus, uma mulher chinesa que conheci há vários anos em
Lisboa. Durante o almoço, ela convidou-me a acompanhá-la à sua terra natal nessa noite. À tarde
dirigimo-nos a uma das estações ferroviárias mais movimentadas da cidade para comprar o meu
bilhete (ela já tinha o seu). Enquanto aguardávamos na fila de uma das bilheteiras, uma mulher
de aspeto rude, com uma criança de meses ao colo, abordou a minha amiga e questionou-a
sobre qual o seu destino. Perante a resposta, a mulher sussurrou-lhe que já não havia bilhetes à
venda, mas que ela ainda tinha alguns “lá atrás”. E, olhando para mim, acrescentou: “Se quiseres
vens lá atrás, mas só tu. Nós não vendemos a laowai”. As duas mulheres afastaram-se e
combinaram o preço. A minha amiga pediu-me 300 yuans e as duas desapareceram na multidão.
Cerca de dez minutos depois, a minha amiga regressou com o meu bilhete.1

50
2A atitude desta mulher ao identificar-me como laowai reflete, não uma ética especial do
mercado negro chinês de não vender bilhetes a estrangeiros, mas o reconhecimento da minha
pessoa como pertencente a uma categoria diferente de pessoas. A vendedora recusou-se a
negociar comigo porque a categoria de pessoas em que ela me classificou – os estrangeiros – é
para muitos chineses correspondente a pessoas toldadas por uma perspetiva não chinesa e
“ocidental” do mundo que implica, entre outros, uma incapacidade de compreensão do modo
de ser e de estar chinês. A vendedora procurou assim evitar entrar num processo de
comunicação que ela previa repleto de equívocos.

3Laowai é um termo que, para a minha interlocutora e de forma mais geral em muitos contextos
chineses, identifica um “estrangeiro”, “ocidental”. A categoria tornou-se para mim um elemento
crucial da minha identidade ao longo destes vários anos de trabalho de campo entre chineses.
Neste artigo, parto da condição de laowai – “estrangeira”, “ocidental” – para refletir sobre as
condições de produção de conhecimento etnográfico em contextos chineses, através da
descrição e discussão sobre a ambivalência e a complexidade da relação simultaneamente
distante e próxima que, enquanto etnógrafa, estabeleci com os meus interlocutores.

4Sentir-se como um estranho e ser tratado como um estranho no momento em que se inicia o
trabalho de campo é uma experiência frequentemente relatada na literatura etnográfica. Nos
seus trabalhos seminais, tanto Evans-Pritchard (1974) como Malinowski (1922) referem como
lhes foi difícil ultrapassar a barreira de stranger imposta pelos habitantes locais e como, para
conseguirem aproximar-se, tiveram de quebrar com o estereótipo do white man, comportando-
se de modo diferente dos outros “brancos” que por ali viviam. Contudo, não é apenas neste
sentido que pretendo explorar a problemática da condição de estrangeiro no terreno.
Recorrendo a vários recortes etnográficos registados em Lisboa, Pequim e Wenzhou, durante o
meu trabalho de campo com migrantes chineses, procuro demonstrar como, desde o início da
investigação, ao ser classificada como pertencente a uma determinada categoria de pessoas –
os laowai –, a minha posição no terreno ficou marcada pela perceção que os meus interlocutores
tinham dessa categoria de pessoas, passando a integrar de modo determinante a minha
etnografia.

5O peso constante desta categorização ao longo da investigação levou-me a procurar


compreendê-la em termos epistemológicos. Trata-se, portanto, de um exercício, não tanto
reflexivo, de compreensão do modo como a minha pessoa afetou a investigação, mas no sentido
de procurar compreender como é que este contexto etnográfico específico – social, político e
sobretudo histórico – entende e classifica pessoas na categoria de “estrangeiras”, na qual eu fui
incluída.

6No final do artigo, integro esta reflexão sobre a trama de sentidos envolvidos na categoria de
laowai nas ideias de “estrangeiro próximo” e de “estrangeiro distante” formuladas por Georg
Simmel (1979 [1908]). A condição de estrangeiro descrita por Simmel ajuda-nos a situar as
ambivalências inscritas na categoria de laowai, que tornarei explícitas a partir desta reflexão.
Perceber o que resultou da condição de estrangeira com que lidei com os meus interlocutores,
tanto na fase inicial de campo como em situações de maior proximidade, é aqui tomado como
desafio propriamente etnográfico. A relevância do argumento aqui apresentado

51
é dupla e alicerça-se em lacunas na literatura. Por um lado, a literatura etnográfica sobre a China
é parca em reflexões sobre a interferência do estatuto de estrangeiro na investigação, e menos
ainda sobre o que podemos aprender e resgatar como conhecimento etnográfico a partir do
confronto com essa classificação. A temática do etnógrafo estrangeiro na China tem sido
abordada, pontualmente, a propósito dos entraves políticos e formais à obtenção de autorização
para a realização da investigação, e das reorientações temáticas que daí advieram (Wolf 1985;
Yang 1994; Pieke 2000). Por outro lado, a condição de estrangeiro em contextos chineses tem
sido abordada através da problemática dos chineses enquanto estrangeiros – sojourner – a viver
em sociedades como os EUA e o Reino Unido (Chan 2005; Siu 1952).

7Argumento neste artigo que a ideia de estrangeiro difundida na China tem fortes continuidades
e nuances históricas, já que ela não reflete apenas o modo como são percecionados os
“ocidentais” na China, mas também o sentido de modernidade na China e a própria ideia de ser
chinês na atualidade.2 O argumento constrói-se a partir da reflexão sobre várias situações de
interação social, como a que descrevi no início do artigo, e que fui experienciando ao longo dos
anos da minha interlocução de campo e dos diversos modos de me posicionarem como
estrangeira (laowai). É a partir dessa diversidade de interlocuções e interpelações que exploro
aqui etnograficamente os sentidos da categoria de laowai (estrangeiro), e procuro
responder a perguntas que têm formatado o debate sobre a questão, tais como: Como é que se
pode compreender que o estrangeiro seja uma categoria tão definitiva e tão ameaçadora na
China? Como é que se entende este paradoxo do fascínio e da aversão dos chineses por pessoas
que eles próprios classificam como laowai?

O que é um laowai?

8A minha primeira experiência de terreno aconteceu com uma família luso-chinesa de Macau.
Estávamos em 1999. A família fora-me apresentada por uma amiga comum, que lhes explicou
que eu era uma estudante, e que queria fazer a história da família como trabalho final de curso
(era na realidade a investigação para a tese de licenciatura). Esta ideia de escrever sobre a
história de uma família surgiu quando li Cisnes Selvagens, de Jung Chang (1998). A minha
intenção era fazer a história de uma família luso-chinesa de Macau, através de três mulheres de
gerações diferentes (avó, filha e neta). A história desta família era muito cativante,
principalmente a da avó, uma senhora de 80 anos nascida na cidade portuária de Nagasaki, no
Japão, mas educada em Pequim, donde fugira aquando da invasão japonesa de 1937. Apesar da
riqueza do material e da afabilidade da família, ao longo dos meses que com ela interagi nunca
deixei de me sentir algo desconfortável, o que terá resultado das dúvidas e ansiedades próprias
do primeiro trabalho de terreno.

9A minha ideia inicial para essa primeira investigação foi a de realizar um trabalho sobre
migrantes chineses. Rapidamente compreendi, contudo, que, apesar de já frequentar um curso
de língua e cultura chinesas, e de ter estabelecido contactos esporádicos com alguns chineses,
as dificuldades de comunicação eram excessivas para que conseguisse levar a bom termo um
trabalho de investigação. Assim, optei por adiar esse projeto e, um ano mais tarde, fui estudar
língua chinesa para Pequim. Esse foi o meu primeiro contacto com a China. Nessa época, as
informações de que dispunha sobre a China atual eram escassas. Eu lera algumas etnografias
sobre contextos chineses fora da China continental e outras tantas obras de

52
história geral da China, mas, poucos dias depois de chegar, constatei que a ideia que eu
construíra sobre a China pós-maoista era confusa, muito contraditória e pouca relação tinha
com aquilo que eu observava. Os primeiros tempos foram dominados por uma admiração e
estranheza perante tudo o que testemunhava.

10As minhas experiências de viagem até então tinham sido limitadas à Europa e, pela primeira
vez, deparou-se-me o facto de ser fisicamente diferente da maioria das pessoas que habitavam
o espaço social que me rodeava, e vista como “estrangeira”, “ocidental”, “europeia”. Esta
perceção da diferença começou por chegar de modo muito evidente pelas reações
comportamentais das pessoas à minha presença em locais de comércio e nos transportes
públicos. Estas reações alternavam entre a curiosidade e o tratamento diferenciado pela
negativa.

11Um episódio particularmente perturbador aconteceu quando visitava, na companhia de duas


amigas também portuguesas, as ruínas do Antigo Palácio de Verão destruído em 1860 por uma
invasão de forças anglo-francesas. Nos jardins que rodeiam as ruínas e o museu encontrámos
algumas jovens que, encantadas pela nossa presença, nos pediram para tirarmos fotografias ao
lado delas. Porém, no interior do museu, onde num acirrado tom nacionalista é narrada a
história da destruição do palácio, fomos intimidadas pelos olhares de desprezo e indignação
lançados por um grupo de chineses de meia-idade que, em surdina, comentava que deveríamos
ser inglesas, o mesmo país responsável por tamanha destruição.3

12Com o passar das semanas, e à medida que fazia progressos na língua local, comecei a
aperceber-me de que os olhares que me eram lançados na via pública eram frequentemente
acompanhados por um dedo indicador e um par de gritos exclamando “Laowai! Laowai!” Outras
vezes, as pessoas timidamente aventuravam-se a perguntar-me se eu era meiguoren
(americana). Laowaisignifica literalmente “velho (lao) de fora (wai)” e é utilizado pelos chineses
para se referirem aos ocidentais, caucasianos. Trata-se de uma expressão controversa porque,
por um lado, o carácter lao pode ser interpretado positivamente, como uma forma de
tratamento familiar, se pensarmos noutras expressões em que é utilizado, como em laopengyou
– velho amigo, oulaodifang – o lugar onde nos costumamos encontrar. Por outro lado,
laowaitende a ser usado nas situações em que se presume que a pessoa que está a ser alvo da
referência não o vai compreender – não é suposto que um laowaidomine a língua chinesa – e é
frequentemente acompanhado por risos e proferido num tom irónico. Se a expressão laowai é
usada para tratar os caucasianos ou indivíduos de aparência euro-americana, já os meus amigos
de origem africana eram referidos como heiren – pessoa preta. Deste modo, laowaioscila entre
uma expressão familiar e preconceituosa – mesmo racista em certas situações.4

13Durante uma visita a uma exposição dos melhores trabalhos de pintura do ano de 1999 numa
galeria de arte de Pequim, eu e uma amiga chinesa parámos diante de um dos quadros. A tela,
com cerca de dois metros por um, representava de forma mais ou menos realista o
bombardeamento das forças americanas à Embaixada Chinesa em Belgrado em Maio desse ano.
O episódio tinha ocorrido há poucos meses e fizera crescer entre a população um surto de furor
nacionalista, antiamericano e antiocidental. A minha amiga, uma dócil estudante de inglês de
17 anos, oriunda da província de Hebei, inesperadamente exclamou em inglês, num

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tom contundente: “I hate foreigners!” A rapariga ficou visivelmente embaraçada quando lhe
perguntei se me odiava também, uma vez que eu era uma foreigner, uma waiguoren,
umalaowai. Ela olhou para mim e atalhou que apenas se referia aos americanos. Claramente ela
não estava a falar de mim, eu era alguém que estava ali próximo, e ela referia-se a um inimigo
distante, diferente, e com o qual quase nada existe em comum. Naquele momento duas versões
de estrangeiro surgiram amalgamadas – distante e próximo – e geraram uma ambivalência sobre
o sentido das suas palavras. Ela encontrou uma saída na minha identidade não americana, mas
como seria se eu fosse americana?

A emergência histórica do paradoxo fascínio / aversão pelos laowai

14Consciente do sentido racista historicamente envolvido nesta categoria de laowai e querendo


intervir positivamente na imagem da China perante os estrangeiros, o governo chinês lançou há
alguns anos uma campanha de civilização (wenming)5 destinada a promover o bom uso da
expressão laowai, procurando retirar-lhe o tom negativo ou promovendo o uso do termo
waiguoren, expressão mais inócua que significa “pessoa de fora do país”.

15No célebre ensaio “The stranger”, Simmel (1979 [1908]) descreve um tipo de estrangeiro
especial, um “estrangeiro próximo” que encerra em si, simultaneamente, as qualidades opostas
de distância e de proximidade, que lhe asseguram uma forma específica de interação social. O
“estrangeiro próximo” de Simmel é elaborado a partir da condição do comerciante judeu na
Europa no século XIX, enquanto a condição de estrangeiro que aqui descrevo apresenta
configurações ligadas ao contexto chinês em particular, e que se consubstanciam na categoria
de laowai.

16Assim, ser laowai é uma forma particular de ser estrangeiro, constituída a partir de processos
históricos, políticos, sociais e culturais específicos. Tal como os gregos, mencionados por Simmel
(1979 [1908]), também os chineses consideravam bárbaros os povos que habitavam a periferia
do Império na antiguidade (Gernet 1974-1975; Fairbank 1992; Dikötter 1992; Fay 1997). Ao
longo dos séculos, a Grande Muralha funcionou como barreira que estabelecia os limites
culturais (e por vezes também políticos) entre a China interior (nei), a sul, e a China exterior
(wai), a norte (Gentelle 1994).6 Este forte sentido de diferença cultural / civilizacional dos
agricultores han em relação aos criadores de gado das estepes permaneceu, mesmo com a
entrada destes povos nos limites do império e a conquista do poder dinástico em importantes
períodos históricos (Dinastia Yuan ou Mongol, 1279-1368, e Dinastia Qing ou Manchu, 1644-
1911), permanecendo para a história como dinastias estrangeiras (não han).

17Ainda que as ligações às regiões ocidentais do continente eurasiático, primeiro pela Rota da
Seda e posteriormente pelas rotas marítimas, tivessem feito chegar estrangeiros ocidentais,
nomeadamente jesuítas, à corte imperial chinesa, pelo menos desde o século XVI, a gestão das
relações com os estrangeiros seguiu enquadrada no modelo de relações com os povos
“bárbaros” das estepes. O Império chinês entendia-se a si próprio como tian xia diyi – o primeiro
país debaixo do Céu –, e o Imperador, detentor do título de Filho do Céu, seria o seu
representante máximo na Terra. Todos os outros povos e reinos eram entendidos como
inferiores e seus tributários (Gernet 1974-1975).

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18A partir do século XIX, a pressão das potências ocidentais provocou transformações profundas
na conceção da China sobre si própria e na sua perceção dos estrangeiros. O sentido mais forte
do termo laowai deve ser procurado, principalmente, na relação dos chineses com a
modernidade ocidental e suas facetas de ambivalência, de fascínio e de aversão. De facto, se,
por um lado, a superioridade tecnológica e militar ocidental humilhou e vergou a China, por
outro lado, o pensamento iluminista e as sociedades ocidentais constituíam a principal fonte de
inspiração dos intelectuais chineses na busca de respostas para a transformação da China numa
nação moderna. No espectro das influências iluministas, o darwinismo social foi uma das teorias
mais influentes entre as elites intelectuais chinesas desse período (Schwarcz 1986; Dikötter
1992; Mitter 2004).

19Este rebaixamento político e diplomático teve consequências no quotidiano das relações


entre chineses e “ocidentais” e deixou marcas profundas na perceção dos estrangeiros na China.
Durante o período semicolonial, do início das Guerras do Ópio ao fim da invasão japonesa (1839-
1945), estrangeiros e chineses tinham direitos desiguais. Nas áreas de concessão das cidades
portuárias os estrangeiros eram soberanos (extraterritorialidade), e em muitos locais os
chineses não eram autorizados a entrar. Esta discriminação e atitude colonial tornou-se
incómoda, gerando a cólera dos intelectuais revolucionários (Fitzgerald 1996; Dikötter 1992). O
nacionalismo chinês fortaleceu-se pelo receio do “perigo branco” (Dikötter 1992).

20O encerramento da China ao exterior durante o maoísmo perpetuou uma imagem dos
estrangeiros como uma ameaça ao país, no âmbito da luta de classes e de colonizadores e
colonizados. Depois de 1978, o país foi aberto aos estrangeiros, mas de um modo muito
controlado. Até meados da década de 1990, muitas municipalidades e algumas províncias
estavam vedadas a visitas de estrangeiros. A Política de Abertura em 1978, apesar de procurar
tirar partido do interesse económico e financeiro dos estrangeiros pela China, inicialmente
baseou o seu modo de relacionamento nas anteriores práticas discriminatórias.

21Em suma, podemos dizer que a humilhação da China perante os poderes ocidentais no século
XIX constitui uma importante componente da aversão dos chineses em relação aos ocidentais,
mas, paradoxalmente, o sentimento de inferioridade infligido foi também catalisador de
fascínio. Como copiosamente demonstra Frank Dikötter em Exotic Commodities (2006), a
superioridade tecnológica ocidental corporificada na cultura material deslumbrou a China. A
apropriação de produtos estrangeiros começou por ocorrer nas classes altas, como símbolo de
prestígio, e perpassou às classes populares através das imitações de manufatura chinesa,
operando uma revolução na vida quotidiana (Dikötter 2006). Esta perceção dos produtos
“estrangeiros”, “ocidentais”, como “superiores” e dos produtos chineses como “inferiores”
impregnou-se e manteve-se muito para além do período da República da China. Na China pós-
Mao, a ideia de superioridade da cultura material ocidental continua a manifestar-se numa
cultura de consumo transversal à sociedade chinesa (Chao e Myers 1998; Latham 2006). Este
fascínio por produtos ocidentais é marcado pelo consumo de produtos de luxo, mas também
por um encantamento pelas indústrias culturais ocidentais, da moda ao cinema. Em conjunto,
estes produtos comunicam ideias de prestígio, modernidade e superioridade.

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Auto-orientalização e ocidentalismo

22Xiaomei Chen (1995) analisa a relação da China com o Ocidente como um processo de auto-
orientalização que terá conduzido a um ocidentalismo. O discurso do ocidentalismo, com origem
no início do século XX (Dikötter 1992), é ainda hoje evocado por vários grupos na sociedade
chinesa, com duas finalidades diferentes: por um lado, tem sido uma forma de o governo chinês
suportar o nacionalismo que tem como efeito a contenção interna; por outro lado, é também a
forma como a imaginação chinesa constrói um outro ocidental para disciplinar e dominar o self
chinês em casa. Este ocidentalismo popularizado pela propaganda nacionalista do governo é
dominante e continua a fazer parte de uma forma defensiva de estar da China. O ocidentalismo
de que fala Chen Xiaomei é reflexo de uma ideia do “ocidental” como estrangeiro distante, mas
aqui oscilando entre a ameaça e o ideal a alcançar.

23É neste contexto de ocidentalismo, de um forte sentimento de inferiorização e de


discriminação dos chineses pelos “ocidentais”, e de grande segregação entre estas duas
categorias de pessoas, que surge o termo laowai – uma categoria classificatória que ainda hoje
convoca a carga de uma história de perceções e práticas discriminatórias e desiguais entre
chineses e estrangeiros.

24A minha primeira experiência desta visão mais ampla da China e dos sentidos mais vastos da
expressão laowai aconteceu no fim da década de 1990, quando residi durante dois anos num
campus universitário chinês em Pequim. No interior da universidade, estudantes chineses e
estudantes estrangeiros viviam em edifícios separados, situados em extremos opostos do
campus, a uma distância que poderia ser de quase um quilómetro. O mesmo sucedia com as
residências de professores estrangeiros e professores chineses. Os professores chineses viviam
com as suas famílias num bairro modesto contíguo ao campus, enquanto os poucos professores
estrangeiros (leitores) eram colocados num edifício de pequenos apartamentos localizado na
área dos dormitórios dos estudantes estrangeiros e dos edifícios onde eram lecionados os cursos
de língua chinesa para estrangeiros.

25Os edifícios das aulas para estudantes chineses e estrangeiros eram diferentes e igualmente
localizados em áreas opostas do campus. Apenas a biblioteca se constituía como área comum,
sem divisões predeterminadas. Havia ainda cantinas para chineses e uma cantina para laowai.
Esta última era mais cara e tinha alguns pratos classificados como “estrangeiros”. O acesso às
cantinas, bares, cafés, casas de chá e campos de jogos do campus era livre, mas os preços dos
produtos e os serviços oferecidos determinavam uma segregação entre estudantes chineses e
estudantes estrangeiros.

26Quando eu queria que algum dos meus amigos chineses me fosse visitar ao dormitório, ele/
ela tinha de se identificar na shifu (a porteira). Se não o fizesse, era interpelado para o fazer, e
tinha um horário específico para fazer a visita. Ashifu tomava nota da sua identificação e do
horário de entrada e de saída. Tal não acontecia com os estrangeiros, que circulavam livremente
nos dormitórios dos estudantes estrangeiros. O mesmo se repetia quando eu ia visitar os meus
amigos chineses nos seus dormitórios, na mesma universidade ou noutra.

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27Neste campus os custos com a educação também eram diferenciados: um estrangeiro pagava
de propinas anuais dez vezes mais do que um estudante chinês. Era também inferior o valor
cobrado pelo alojamento aos estudantes chineses em relação ao alojamento mais barato
disponível para estrangeiros. Os dormitórios para estrangeiros eram aquecidos no Inverno (os
mais caros tinham inclusivamente ar condicionado), acomodavam no máximo duas pessoas (a
maioria era individual), tinham casa de banho e cozinha coletivas (os mais caros tinham casa de
banho individual), água quente corrente, máquina de lavar roupa e uma televisão com acesso a
canais estrangeiros.

28Os dormitórios para chineses acomodavam cerca de oito estudantes em vários beliches, num
espaço pouco maior do que os quartos dos estrangeiros. Também tinham aquecimento, mas
este era menos funcional. As roupas eram lavadas num tanque, e eram os próprios estudantes
que tinham de carregar a água quente para a sua higiene pessoal a partir de um local no campus,
mas fora do dormitório.

29Apesar de a diferença de condições corresponder também a uma diferença no preço do


alojamento, a desigualdade e a rigidez do sistema era uma condição de partida, já que um
estudante chinês, mesmo que pagasse a diferença, não poderia viver num edifício destinado a
estudantes estrangeiros, e vice-versa.

30O campus murado, com guardas e cancelas de alta segurança nos vários portões, funcionava
como uma pequena aldeia. Da janela do meu quarto, um primeiro andar do dormitório feminino
para estudantes estrangeiros, facilmente se ouviam, às primeiras horas da madrugada, os
treinos militares dos guardas da universidade e, diariamente, ao final da tarde, os altifalantes
espalhados por todo o campus ecoando as posições governamentais sobre acontecimentos da
atualidade.

31Fora do campus, na cidade de Pequim, havia bairros específicos onde os estrangeiros eram
obrigados a residir; não eram autorizados a fazê-lo fora desses bairros, a não ser em
campus universitários, em residências ou hotéis específicos. Estes bairros concentravam-se na
zona sudeste da cidade e neles não viviam chineses, que apenas ali trabalhavam como
empregados de limpeza, cozinheiros, motoristas e amas para a população estrangeira residente.
Os bairros, conhecidos por compounds, tinham vedações, cancelas e guardas à entrada, como
um condomínio privado. Se algum chinês quisesse entrar tinha de se identificar, dizer quem ia
visitar, o motivo da visita, e qual a sua ligação com essa pessoa. Com a liberalização do mercado
imobiliário em Pequim no início da década de 2000, esta segregação residencial esbateu-se. Nos
antigoscompounds e nos novos bairros residenciais da cidade coexistem chineses e estrangeiros.
A capacidade económica é agora “peneira” para a disposição residencial.

32Os locais de diversão na cidade estavam também muito segmentados; segundo os meus
amigos chineses, havia “locais para estrangeiros” e “locais para chineses”. Nestes locais, não
havia proibições ou necessidade de identificação por força de lei, mas nalguns locais de diversão
noturna frequentados por chineses só entravam estrangeiros quando acompanhados por outros
chineses.

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33A diferenciação entre chineses e estrangeiros ocorria, e ainda hoje continua a ocorrer, nas
relações comerciais em geral. Qualquer aquisição feita com base num preço que não esteja
afixado tem de ser regateada. Se o cliente for estrangeiro, o preço inicial será imediatamente
inflacionado, muitas vezes para o dobro ou triplo, dificilmente baixando de um determinado
valor. Os produtos em causa podem ir de algumas peças de fruta num mercado de rua a um
bilhete de autocarro nalgumas regiões do país.

34Quando questiono os meus interlocutores chineses sobre este facto, respondem-me quase
sempre da mesma forma: “Na China pensa-se sempre que os estrangeiros são ricos e que os
chineses são pobres, por isso pede-se sempre mais dinheiro a quem é estrangeiro”.

35Ainda hoje, mais de três décadas depois do início da Política de Abertura, e estando a China a
tornar-se a maior potência económica mundial, permanece a ideia de que o “estrangeiro” (neste
sentido identificado como o ocidental/ moderno) é necessariamente mais rico. Esta riqueza do
estrangeiro expressa muito mais do que ter dinheiro, significa ter poder por se encontrar numa
situação historicamente percepcionada como privilegiada. Esta noção de riqueza, ligada ao
poder e não apenas ao dinheiro, é transversal à sociedade chinesa. Ellen Hertz (1998), na sua
etnografia sobre a Bolsa de Valores de Xangai, confrontou-se com o facto de os seus
interlocutores, alguns deles homens de negócios chineses, se considerarem mais pobres do que
ela, uma estudante de doutoramento vinda dos Estados Unidos.

36Assim, tal como acima descrevo, o estrangeiro no sentido de laowai acaba por ter ainda mais
dimensões sociológicas do que as descritas por Simmel. A complexidade da relação da China
com o “ocidente” e a modernidade parece, pois, estar bastante presente nesta categoria.

Waidiren e dangdiren: chineses distantes e chineses próximos

37Apesar de me encontrar na capital de um dos últimos estados socialistas do mundo, quando


estive em Pequim fui-me apercebendo de que o modo de organização da vida quotidiana se
baseava numa forte estrutura de diferenciação entre pessoas, a qual não se restringia apenas às
relações entre chineses e estrangeiros. Havia também importantes distinções no interior da
categoria “chineses”, nomeadamente entre waidiren – pessoas de fora ou forasteiros –, e
dangdiren – pessoas locais – ou beijingren – pequineses. Um dia em conversa com um outro
amigo chinês, estudante de inglês oriundo da província de Jiangxi, ele avisou-me: “Agora tens
de ter muito cuidado a andar em Pequim. A cidade está cheia de waidiren [gente de fora]! Estes
waidiren sãohuai ren [gente má ou estragada] que rouba e mata! Esta semana saiu no jornal que
uma mulher foi violada aqui perto [em Haidian]. E tudo isto começou desde que chegou esta
onda de waidiren”. Estranhei um pouco o aviso, na medida em que também Yi era um forasteiro.
Foi então que ele me explicou que os waidiren de que falava não eram meramente pessoas de
fora, estudantes como ele, mas gente empobrecida que tinha vindo das áreas rurais para a
cidade trabalhar, mas também, segundo ele, para roubar e cometer outros crimes.

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38Em Pequim, estes migrantes internos eram classificados como waidiren(forasteiros), por
oposição aos beijingren (pequineses). Mas o termo não significava inocuamente forasteiro,
antes era usado num sentido extraordinariamente pejorativo, pressupondo tratar-se de pessoas
em situação ilegal e potencialmente criminosas. Estes migrantes internos, que o governo
designa por liurenkou (população flutuante), são tolerados por serem economicamente
necessários às grandes cidades chinesas como Pequim. Politicamente, eles são descritos como
ameaças latentes à paz, tranquilidade e segurança dos locais. Por toda a cidade era possível
observar um elevado número de trabalhadores humildes a fazer trabalhos, sobretudo físicos e
mal pagos, rejeitados pelos pequineses, principalmente na construção civil, que teve uma
enorme explosão nesse período. Esta população flutuante ocupava as áreas mais degradadas
da cidade, não tinha acesso a proteção social por terem um hukou (registo de residência) rural
e residirem ilegalmente na cidade.

39Na realidade, em 1999, os waidiren em Pequim não eram um fenómeno tão recente quanto
Yi parecia julgar. Já em 1995, o governo central e o município de Pequim haviam levado a cabo
uma campanha política contra a presença descontrolada de migrantes internos, nomeadamente
contra a Zhejiangcun(aldeia de Zhejiang), um dos maiores enclaves da capital, cujo poder e
autonomia crescentes eram vistos como uma potencial ameaça ao Estado socialista (Zhang
2000:173).

40As relações do Estado chinês com a população flutuante tem sido dúbia ao longo das duas
últimas décadas, alternando entre campanhas de “limpeza” com a sua expulsão das cidades em
determinados períodos, alegando razões de segurança, e uma maior flexibilização das regras do
hukou, permitindo às pessoas encontrarem trabalho fora das suas áreas de residência dentro do
limite da lei.7

41Waidiren e laowai têm em comum o facto de não pertencerem ao grupo interior e para ele
poderem constituir uma ameaça. Todavia, também podem ser benéficos. Os waidiren são
economicamente necessários, mas ao mesmo tempo são criminosos em potência. Os
laowai são benéficos pelo investimento e conhecimento sobre a economia e capitalismo global
que trouxeram e trazem à China, mas são percecionados como uma ameaça latente de
destabilização da integridade e unidade da nação. No passado foram as Guerras do Ópio, a
invasão de Pequim e a imposição de uma situação semicolonial à China, mais recentemente
apoiam causas como a soberania do Tibete, de Xinjiang ou de Taiwan e agitam a bandeira dos
direitos humanos. Na ótica de muitos chineses, estas atitudes revelam que os laowai não têm
capacidade, nem abertura, para compreender a China e os chineses, que não existe uma
gongtongdeyuyan – uma linguagem comum. É esta perceção da inexistência de uma linguagem
comum que torna os estrangeiros, nomeadamente os “ocidentais”, distantes. Este é o mesmo
motivo pelo qual a vendedora de bilhetes na estação de Pequim se recusou a negociar comigo
– a perceção e o preconceito de que “chineses” e “ocidentais”, em muitos domínios, possuem
visões do mundo incompatíveis.

Etnografia para principiantes: serestrangeira na própria terra

42Voltei a Lisboa, vinda de Pequim, em meados do ano de 2001. Foi então que me dediquei a
uma segunda investigação com chineses, desta vez sobre mulheres chinesas migrantes em

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Lisboa (Rodrigues 2009). Nesta segunda experiência de terreno, iria trabalhar com migrantes
chineses recém-chegados da República Popular da China, com muitos indivíduos em situação de
permanência irregular no país. A experiência em Pequim tornou-me consciente do modo como
os chineses me viam como uma estrangeira e de que esta barreira era inultrapassável, dada a
minha aparência não chinesa. Eu sabia agora que nunca conseguiria passar despercebida no
grupo e que teria necessariamente de lidar com a condição de estrangeira no terreno, mesmo
tendo um domínio razoável da língua. Falar mandarim (embora como uma estrangeira) e ter
vivido na China eram aspetos favoráveis, mas, como “estrangeira”, eu tinha de estar preparada
para lidar, e se possível desmistificar, os estereótipos subjacentes à categoria de laowai entre
os chineses. Ser laowai implicava não apenas que eu poderia ser uma potencial ameaça, mas
também ser considerada muito diferente no meu modo de vida, moralidade e visão do mundo.

43Numa fase inicial pensei ultrapassar as dificuldades mostrando, ingenuamente, que poderiam
confiar em mim por ser uma investigadora séria e profissional. A minha primeira entrevistada,
que conheci através de uma colega no meio universitário, era uma mulher licenciada que fazia
um MBA numa faculdade de economia em Lisboa. Nessa altura eu estava em início de carreira,
era monitora na universidade, e fui-lhe apresentada como uma antropóloga, docente na
universidade, interessada em fazer um trabalho de investigação sobre mulheres e migração
chinesa. Quando lhe falei do meu trabalho, ela acedeu a participar, e passei várias tardes em sua
casa a conversar.

44Ela interessou-se pelo meu trabalho e apresentou-me a dona de um restaurante chinês onde
costumava ir, perto de sua casa. Perante a amiga, a dona do restaurante concordou receber-me
e falar comigo dali a algumas semanas. Porém, quando voltei a contactá-la, fui interpelada pelo
marido, que me perguntou se eu era jornalista, uma vez que queria entrevistar a sua mulher.8
Sem conseguir convencê-lo totalmente das minhas intenções, ele lá acabou por me dizer que,
se a mulher quisesse, poderia falar comigo. Marquei encontro com ela ainda nesse dia à tarde,
quando a cozinha encerrasse no final dos almoços.

45Quando cheguei ao restaurante, uma empregada foi chamá-la, e ela apareceu na sala de
refeições pronta para sair com um casaco vestido e a carteira a tiracolo. Disse-me então que não
podia falar comigo porque estava doente e tinha de ir ao médico. Fiquei surpreendida por nada
me ter dito nessa manhã. Disse-lhe então que voltaria noutro dia e, desejando-lhe as melhoras,
saí do restaurante. Enquanto entrava no meu carro, do outro lado da rua, fiquei estupefacta
quando a vi voltar a entrar na área reservada do restaurante e regressar sem casaco nem carteira
para se juntar aos empregados que comiam numa das mesas. Apesar do compromisso assumido
perante a amiga, ela não queria falar comigo.

46Este episódio foi muito marcante no início do meu trabalho de campo. Se uma imagem de
seriedade profissional funcionava com pessoas com educação superior, que conseguiam confiar
na natureza do meu trabalho de investigação, esta estratégia não funcionava com migrantes
chineses com baixo nível educacional, o que correspondia à maioria dos migrantes chineses em
Lisboa.9Durante semanas refugiei-me na literatura à procura de uma estratégia milagrosa para
os convencer, pelo menos, a falar comigo. Ainda sem uma resposta para o problema, apercebi-
me da abertura revelada pelos donos do restaurante chinês perto da

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universidade, um casal oriundo de Zhejiang, vindo de Espanha há alguns anos, e que eu já
conhecia antes de ir para Pequim. Por falar mandarim, frequentemente eles solicitavam-me que
lhes ensinasse português ou que os ajudasse a resolver um ou outro problema relacionado com
o seu fraco domínio da língua portuguesa. Ao contrário da experiência com o outro casal, estes
não me afastavam e até pareciam ter interesse em relacionar-se comigo. O facto de a relação
ter começado com uma casual relação comercial, e já durar há alguns anos, gerou uma base de
confiança da parte deles, permitindo a minha aproximação.

47Aproveitando este interesse dos chineses pela minha capacidade de comunicação em


português e mandarim, numa fase de mudança para um novo edifício, a faculdade onde eu
trabalhava teve espaço nas instalações antigas e consegui autorização do diretor para lecionar
gratuitamente aulas de português a chineses. Fi-lo durante dois anos. As aulas decorriam no
intervalo do horário de trabalho, entre o almoço e o jantar dos restaurantes (das 15h30 às
17h30). Cheguei a ter 30 a 40 pessoas na sala de aula, embora à medida que os meses passavam
o número diminuísse, para depois voltar a aumentar no início do ano letivo seguinte. Eram
sobretudo recém-chegados, empregados de restaurantes e de lojas. Diziam trabalhar muito e
ceder ao cansaço quando à noite, finalmente, tinham algum tempo para dedicar ao estudo da
língua. Algumas pessoas vinham do Martim Moniz, mas a maioria vinha de Belém, Alcântara e
Algés.10 Apesar do horário previamente estabelecido, muitos chegavam depois da hora, quando
a aula já tinha começado, e saíam antes de terminar. Raramente se dirigiam a mim e evitavam
o preenchimento do número de identificação e do contacto na ficha de aluno, admito que por
estarem em situação legal irregular.

48Na prática, poucas ligações ou até interações consegui manter com eles fora do contexto da
aula. Contudo, no Natal enchiam-me a mesa com as lembranças mais diversas, acompanhadas
por um tímido e fugidio “Feliz Natal!” De entre todas aquelas pessoas, consegui estabelecer
relação com três famílias. Desde o início que me foi sempre mais fácil estabelecer relações com
pessoas com um nível de escolaridade mais elevado, mesmo que trabalhassem em Lisboa como
empregados de mesa ou ao balcão de lojas, e com mulheres. Foi através dos meus antigos alunos
chineses dessas aulas de português que comecei a frequentar restaurantes, lojas e casas de
migrantes chineses na cidade de Lisboa. Quando lhes aparecia em casa ou no trabalho, num
encontro previamente combinado, quase sempre me confrontava com pedidos de ajuda na
resolução de problemas. Os pedidos mais comuns eram explicar o conteúdo do correio, como
funcionam os seguros, como funciona o Sistema Nacional de Saúde, falar com os professores na
escola dos filhos, esclarecer sobre documentação pedida pelo Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SEF), entre outros. Muitas vezes, pediam-me também que fosse lá ensinar-lhes um
pouco de português. Este foi o modo como lentamente entrei nas suas vidas.

49Logo a partir dessa altura passei a ser vista como professora e não tanto como antropóloga
ou investigadora (a maioria não compreendia o significado destes termos), não apenas por
lecionar na universidade, mas principalmente por ter ensinado português a chineses. A
classificação de professora foi-me muito útil na realização do trabalho de campo para mestrado
e doutoramento. Não é fácil explicar qual o trabalho de um antropólogo, ou que tipo de
investigação é que realiza, nomeadamente a chineses com baixo nível de instrução,
principalmente quando já existe uma forte resistência devido à minha identidade de estrangeira.
Aprendi a não usar a palavra entrevista, mas a designar estes eventos por

61
conversas – que na realidade eram. Acompanhar chineses pelo Martim Moniz permitiu-me fazer
observação participante e alargar a minha rede de interlocutores, o que foi largamente
compensatório, permitindo-me vivenciar de perto as suas experiências como migrantes. Como
referem Sarró e Lima (2006: 18), a partilha do quotidiano com as populações que se estuda é
um dos eixos definidores do trabalho de campo, tanto em terrenos metropolitanos como na
etnografia clássica. Assim, ao adaptar a minha forma de estar no terreno à forma de estar na
vida dos meus interlocutores, eu acabei por partilhar com eles o seu quotidiano, ter a
oportunidade de fazer observação participante e, com o tempo, de conversar com eles também
sobre assuntos que me interessavam. Em última instância, ao deixar que fossem os meus
interlocutores a encontrar o meu lugar nas suas vidas, consegui encontrar os pontos de contacto
de que falam Viegas e Mapril na introdução a este dossiê. Porém, a minha atitude por vezes mais
contemplativa de apenas “estar por lá” não deixou de causar uma certa estranheza aos meus
interlocutores, que me perguntavam: “Hoje tens tempo? Não tens de trabalhar?”Normalmente
respondia: “Quando converso contigo / com vocês eu estou a aprender coisas para o meu
trabalho, e por isso estou a trabalhar”. Geralmente reagiam a esta resposta com um sorriso.

De estrangeiro distante a estrangeiro familiar

50Um dia em 2003, quando visitava uma aluna na sua loja no Martim Moniz, ela apresentou-
me uma das suas duas filhas, recém-chegada da China. Três semanas mais tarde chegou o neto
de 10 anos, filho da filha, e ela perguntou-me se não me importava de dar aulas de português
ao neto duas vezes por semana, ali mesmo na loja. O filho desta mulher também estava em
Lisboa e, passado alguns anos, regressou à China para casar com uma rapariga da terra natal dos
pais. Depois do casamento, ela juntou-se ao marido em Lisboa. Cerca de um ano depois nasceu
o primeiro filho do casal e eu fui convidada a ser madrinha. Alguns meses mais tarde, os pais da
mulher vieram a Lisboa conhecer o neto. Quando me desloquei à China em 2010, visitei-os na
sua terra natal.

51Ao longo do trabalho de campo, nas minhas visitas e deambulações por lojas, armazéns
chineses e restaurantes chineses do Martim Moniz, testemunhei várias versões do diálogo que
me humanizava como “estrangeira distante” aos olhos dos chineses.

“— O que é que esta laowai está aqui a fazer?

— Ela fala putonghua [mandarim], é professora na universidade e foiliuxuesheng [estudante


estrangeira] em Pequim.

— Ah. [OK]”

52A esta descrição normalmente seguia-se um sorriso e uma curta conversa para confirmar se
eu falava mesmo mandarim. Nalgumas situações eu quase passei por chinesa. Numa véspera de
ano novo chinês, eu estava no estabelecimento de uma família no Martim Moniz, onde os donos
resolveram organizar uma pequena festa. Durante a tarde assistiu-se à gala anual de Ano Novo
transmitida pela CCTV, fizeram-se jiaozi (pequenos pastéis de massa recheada com carne e/ ou
vegetais), comeram-se amendoins, tangerinas e doces. Clientes, amigos e

62
conhecidos acorreram ao estabelecimento para espreitar o programa (transmitido via
parabólica) por alguns minutos, ou para deixar as crianças a assistir. A anfitriã divertiu-se
bastante com as conversas dessa tarde em reação à minha presença:

“— Ah, quando entrei pensava que ela era waiguoren.

— Mas ela é waiguoren!

— Ah?! [o quê?!]…”

53Em momentos de celebração como este, contagiados por uma intensa alegria e boa
disposição, os meus amigos chineses entusiasmados exclamavam: “Ta yiban shi zhongguoren!”
– Ela é metade chinesa! Em situação oposta a esse momento em que fui considerada (quase)
meia-chinesa, a minha presença em momentos de tensão social e familiar gerou situações
desconfortáveis e remeteu-me para a minha condição de ignorância, por ser laowai. Quando
perguntava o porquê da atitude de uma determinada pessoa perante uma situação difícil, ou
até quando me atrevia a aventar uma solução mais “à portuguesa”, a resposta que
invariavelmente eu ouvia era: “Tu não és chinesa. Não percebes”. Nestas ocasiões eu voltava a
ser a estrangeira distante e sem capacidade de compreensão da sua visão do mundo. Os
benefícios da minha presença iam além da resolução de problemas práticos do quotidiano e do
ensino de português. Nalgumas situações, aparecer com uma amiga “estrangeira” era
capitalizado pelos chineses que eu acompanhava, perante outros chineses, como uma forma de
promover a sua mobilidade social ascendente. Desta forma expressavam o seu sucesso em
Portugal.11

54Ao longo dos anos, a minha presença desafiou os meus interlocutores a encontrarem para
mim um lugar no seu mundo. Se em Lisboa eu sou professora, antiga estudante estrangeira em
Pequim, quando fui visitar Wenzhou, a terra natal de muitos dos meus interlocutores em Lisboa,
um casal (Zhou e Li) que conheci em Lisboa há vários anos resolveu adotar-me e apresentar-me
perante os seus vizinhos e amigos na aldeia como a sua quarta filha. Quando Zhou e Li diziam
aos vizinhos que eu era a sua quarta filha, eles olhavam muito atentamente para mim e
exclamavam: “Não pode ser! Ela éwaiguoren!” Mesmo no interior da família, onde fui
estimulada a chamar aos meus pais adotivos A-Ma (mamã) e A-Ba (papá), ou jiejie (irmã mais
velha) egege (irmão mais velho) aos meus irmãos de adoção, mantinha a condição de
estrangeira perante a geração mais nova.

55Quando eu tentava falar com os meus sobrinhos adotivos, crianças e adolescentes entre os
12 e os 17 anos, não havia da sua parte nenhuma reação corporal – não me olhavam sequer.
Apenas murmuravam qualquer resposta muito rápida e escapatória quando coagidos por algum
adulto para o fazerem: “Responde à Ayi! A Ayi está a falar contigo! Estás a ouvir?!” Apesar do
termoAyi ser de aparente proximidade, já que significa tia – um termo educado usado para
chamar as mulheres da geração da mãe –, eles viam-me como uma estranha, uma estrangeira.
Por isso não me falavam nem me olhavam diretamente. Mas havia uma exceção: a atitude de
uma das crianças, nascida e educada em Portugal, que estava apenas temporariamente na China
a passar férias em casa dos avós. Com esta criança eu interagia frequentemente e ela falava
comigo e olhava-me de frente. Uma noite os adultos tomaram

63
este contraste de atitudes das crianças para exporem verbalmente o que pensavam sobre a
minha posição ali e mais ainda sobre o que justificava essa diferença entre as crianças. Uma das
irmãs dizia que a reação dos filhos e sobrinhos chineses, por oposição ao sobrinho português, é
um reflexo do facto de as crianças chinesas serem ensinadas desde tenra idade a não
interagirem com estranhos de modo nenhum. Apesar de os pais e avós assegurarem às crianças
que eu era da família e que deveriam tratar-me como a xiaoyi – a tia mais nova –, elas nunca
conseguiram ultrapassar essa barreira. A sua relutância em se relacionarem comigo estaria
relacionada com o facto de eu não pertencer à sua rede de relações até ali, mas em parte
também devia-se à minha ausência de ancestralidade chinesa.

56Na China, a prole é considerada um bem valioso para a família, pois assegura a sua
continuidade, tanto nas gerações vindouras, como pelo sustento das gerações mais velhas em
vida e depois da morte. Por esse motivo, as crianças sempre foram protegidas das ameaças dos
estranhos. Na atualidade, as crianças chinesas vivem condicionadas por uma vivência muito
limitada no interior da família e da escola. À medida que vão crescendo, vão formando vários
círculos de segurança – a família, o grupo de pessoas da sua terra de origem, o grupo de pessoas
da mesma origem nacional, expressando receio em interagir com pessoas exteriores. Assim,
quando se encontram num país estrangeiro, como Portugal, os chineses tendem a reatualizar
esta forma de entender o mundo baseada na diferenciação entre pessoas de dentro (família,
terra de origem, nacionalidade) e pessoas de fora (estranhos, forasteiros, estrangeiros), e a
preferirem interagir com quem consideram que os compreende. Durante o trabalho de campo,
vários migrantes chineses me falaram sobre os seus sentimentos de solidão e de isolamento em
Lisboa, mesmo em relação a outros chineses, confessando-me a sua dificuldade em fazerem
amigos chineses (para não mencionar portugueses) em quem pudessem verdadeiramente
confiar, como se confia na família e nos amigos de longa data.

Conclusão

57A minha situação de estrangeira entre chineses foi uma condicionante fundamental do
percurso etnográfico. Descrevi aqui o caminho que percorri, não tanto pelos seus meandros
reflexivistas sobre a experiência de campo como experiência pessoal, mas como parte do
processo de conhecimento etnográfico: neste caso, sobre ser laowai. Se a descoberta do terreno
foi para mim um percurso em direção à familiaridade com o espaço, que de longínquo passou a
próximo (Sarró 2008: 151), para os meus interlocutores foi um processo de humanização da
minha pessoa estrangeira, dotando-me, aos seus olhos, de alguma capacidade de compreensão
da sua forma de estar no mundo. Este processo só foi possível porque categorias de classificação
distantes e vastas como ocidental, americano, ou chinês foram deixadas para segundo plano, a
partir do momento em que foram encetadas relações sociais mais próximas, abrindo a
possibilidade de compreensão mútua.

58Os sentidos implicados nesta categoria poderiam ser então e por último pensados a partir do
que Simmel nos diz sobre a condição de estrangeiro em “The stranger” (1979 [1908]),
nomeadamente da tensão existente nesta relação, que é simultaneamente de distância e
proximidade. A minha descrição da categoria de laowai neste artigo pretendeu mostrar que a
compreensão mútua e até a proximidade também fazem parte dos significados de se serlaowai.
Para a compreendermos, temos de a situar na própria história de exclusão / inclusão

64
que mostrei estar inscrita na história chinesa e estar presente nos modos de relacionamento e
categorização de pessoas entre os chineses emigrados em Lisboa. Ao mesmo tempo, mostrei
que, mesmo quando essa proximidade parecia íntima e estabelecida, essa mesma condição de
serlaowai podia projetar-me de novo para a minha condição de estrangeira, e novamente ser
vista como uma laowai.

59Ao ser laowai, experimentei os limites que a categoria implica no acesso a determinados
níveis de proximidade e de interação. A abordagem epistemológica da condição de
laowai possibilitou alcançar um sentido mais analítico do modo como se desenvolveram os
processos de interação entre a etnógrafa e os interlocutores no terreno e proceder a uma
reconfiguração das categorias de conhecimento considerando laowai como uma categoria
nativa historicamente situada.

Bibliografia

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Notas

1 Parte da etnografia usada neste artigo foi financiada pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia (FCT), através de uma bolsa de doutoramento. Quero agradecer à Susana de Matos
Viegas e ao José Mapril os seus comentários e sugestões, que contribuíram de modo indelével
para refinar o argumento e tornar o texto mais escorreito. Ainda numa fase inicial foram muito
importantes os comentários do Ramon Sarró, da Madalena Patriarca e do Max Ramos. Por
último, quero agradecer a leitura, as sugestões e os comentários muito oportunos dos dois
pareceristas anónimos. Os erros que permanecem são obviamente da minha responsabilidade.

2 The Discourse of Race in Modern China (1992), de Frank Dikötter, é um dos poucos trabalhos
que lateralmente toca esta temática, ao realizar uma análise histórica do discurso de raça na
China moderna.

3 Atualmente existe um debate na opinião pública chinesa sobre se o Yuan Ming Yuan (nome
chinês do Antigo Palácio de Verão) deverá ou não ser alvo de recuperação. Por um lado,
recuperar as ruínas seria reerguer um monumento destruído num momento de fraqueza do país
e demonstrar metaforicamente como a China se reergueu. Por outro lado, os opositores à
reconstrução do palácio argumentam que reconstruí-lo seria apagar da memória coletiva a
humilhação e os atos vexatórios perpetrados pelos ocidentais.

4 Sobre as classificações de raça na China moderna e as suas ligações ao pensamento ocidental,


ver Dikötter (1992).

5 Esta campanha é semelhante a outras lançadas pelo governo, destinadas a elevar a qualidade
(suzhi) da população chinesa, tais como a campanha para banir as cuspidelas na via pública ou
o uso de pijama na rua.

6 Wai é aqui o mesmo carácter usado em laowai e significa fora, exterior.

7 Em 2010, em trabalho de campo no Município de Wenzhou, província de Zhejiang, um local


de forte emigração para grandes cidades chinesas e para todo o globo, confrontei-me com o
facto de os wenzhouneses (waidiren em Pequim) utilizarem igualmente o termo waidiren para
darem conta da massa de camponeses, provenientes de áreas rurais empobrecidas de toda a
China, que ali afluem para trabalharem na indústria ligeira que tem tornado esta cidade média
um dos grandes polos de desenvolvimento económico da China. Também aqui o termo
waidiren comporta uma carga de ilegalidade e potencial criminalidade, quando

67
mencionado pelos locais, apesar do modo como naturais de Wenzhou foram tratados em
Pequim por serem waidiren.

8 Os jornalistas são percecionados pelos chineses em Lisboa como personas non gratas, que
fazem perguntas incómodas e que têm uma “agenda” contra as posições chinesas.

9 Na sua investigação sobre famílias da elite financeira de Lisboa, Antónia Pedroso de Lima
(2003) também verificou que a erudição dos seus interlocutores facilitou a compreensão da
tarefa da investigadora, muito embora neste caso tal não impedisse que os interlocutores
tivessem imposto limites aos momentos e formas de interação, colocando um desafio
metodológico à etnografia no sentido mais clássico.

10 A praça do Martim Moniz, área adjacente ao bairro da Mouraria no centro da cidade de


Lisboa, é uma zona de grande concentração de negócios, serviços e também de residência de
migrantes chineses. Tem sido considerada pelo próprio município uma área “multicultural” por
nela conviverem migrantes não só da China, mas também provenientes de vários países
africanos, principalmente de expressão portuguesa, da Índia, Bangladeche e Paquistão,
misturados com uma população nativa portuguesa, na maioria envelhecida (Mapril 2010;
Menezes 2009; Bastos 2001).

11 Esta situação remete para o modo como a categoria de laowai, historicamente imbuída numa
relação de poder de tipo racial e colonial, se articula com a noção de guanxi (contactos sociais
privilegiados) e também de mianzi (face) (Yang 1994) entre os chineses, e que resultam em
formas de acumulação de prestígio social. Porém, a análise da importância das guanxi e da
mianzi no trabalho de campo está para além do âmbito deste artigo.

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