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Friedrich Miller Fragmento (sobre) o Poder Constituinte elon ene) L PODER CONSTITUINTE NAO UMA IDEOLOGIA, MAS UMA QUESTAO DE DIREITO 1 O“poderconstituinte do povo” nao’ “6",amancirada ontologia, uma substancia ou esséncia: também nao, de forma por assim di- zer ontol6gica, algo cfetivamente existente,comoc.g. “poder/vio- léncia", “forga” ou “vontade”. Se, por um lado, “o Conselho Fede- ral” ou “6rgdos especiais da legislagao, do Poder Executivo e do Judicidrio” baseiam-se em prescrigdes constitucionais, ¢ se, por outro Jado, também revelam possuir um lado material, uma reali- dade fisica ¢ social, j4 o poder constituinte carece de tal materiali- zagio. A Gnica afirmagio que se pode fazer dele com bons argu- mentos é a seguinte: cle é uma expressdo de linguagem e, como expressao nos diplomas constitucionais, um texto escrito. 2. As legimitag6es extramundanas (por conseguinte, supramun- danas) das pessoas/dos grupos dominantes, por meio daafirmagio de governar para 0 povo € no seu melhor interesse, foram formu- ladas a servigo da boa moral dos donos do poder diante de Deus. Desde que eles foram substitufdos pela coagdo intramundana das pessoas/dos grupos dominantes, de invocar‘‘o povo” —agora, por- tanto, a servigo da posigao real de poder dos donos do poder, dian- Digitalizada com CamScanner 70 (SOBRE) O PODER CONSTITUINTE DOPOVO 20 FRAGME! dos por cles dominados -. desde entio existem textos sobre i dees sai tall “pod rconstituinte Essestextos nao nos! mente, na sua seqiiéncia, nas ist6ria. ao longo da hist aeaets eed ee tae Com vistas a uma sistematica das locugses ideolégicas, “po- der constituinte” aparece como ponto inicial de uma deformagao de Constituigdes, cujo ponto terminal pode ser reconhecido no discurso sobre a “unidade da constituigéo”. Na pratica, 0S dois padrdes de texto sdo.utilizados como elementos exordiais e termi- nais de ideologia constitucional aplicada. Em vez disso, a expressao “poder constituinte” interessa-nos aqui como texto. )juridico (nao como texto ideolégico); e isso quer dizer, como parte integrante normal dos documentos constitucio- nais nos quais ela aparece. Por que essa op¢a0? Conceitos nao sao usados gratuitamente. Diplomas constitucionais nto falam impunemente do “poder cons- tituinte”; e se o fazem, deveriamos puni-los por isso — tomando a expresso do poder constituinte ao pé da letra. interessam aqui; ao menos nao individual. suas ramificag6es, na sua variedade 3. Tomamos ao pé da letra uma expresso em uma codificagao quando a tratamos como texto de norma. O discurso sobre o poder constituinte € uma agao. Primeira- mente ele deve poder ser justificado, antes que se possa olhar de frente para um efeito justificador (legitimador do ordenamento constitufdo de poder-violéncia) do que se discute e invoca,\™ do complexo “poder constituinte”. No diploma fundador de uma de- mocracia constituida em Estado de Direito como o da Lei Funda- mental, 0 discurso sobre o poder constituinte é legitimo quando nao aparece ou € tratado como texto ideolégico, mas como parte do “direito vigente”, i. €, como parte do conjunto assim caracteri- zado de textos de normas, como texto (individual) de norma. “7 des Beredeten. Digitalizada com CamScanner 1. PODER CONSTITUINTE: QUESTAODEDIREITO 21 A opgao resulta, portanto, por outro lado daquela opgdo pela democracia com Estado de Direito e Estado de Bem-Estar Social, constituida pela Lei Fundamental. 4. Ainvocagao do poder constituinte “do” povo, asua invocagio magica, sugere ilusoriamente o retorno aum estado social no qual houve, teria havido efetivamente, um “povo” (i. é, a totalidade de Todas as pessoas do grupo; € a sua totalidade como algo ainda nio sistematicamente cindido por instituigdes juridicase politicas, tais comoa horda, a tribo, ocla); a um estado, portanto, do qual o povo justamente por isso nao necessitou de uma Constituigao. Onde se necessita de uma Constituigao por nao existir mais nenhum povo (que — caso dela necessitasse — pudesse outorgar-se uma Constituigao por ter o poder), se recorre entio a fatos substi- tutivos (e.g. auma considerdvel homogeneidade étnica, a existén- cia de uma classe média economicamente definida), aagdes subs- titutivas (votagGes sobre projetos de Constitui¢ao, discussdo pu- blica da Constituigdo como na Suécia etc.) ea simbolos substituti- vos (e.g. os recursos de Smend para a “integracao” material e pes- soal), bem como um argumento ideologicamente sintetizador: 0 poder constituinte do povo. A doutrina do poder constituinte atuacomo um dos instrumen- tos para trabalhar a contradigdo e cisao no Estado Constitucional com osmeios especificos do mesmo. Umacontradigao fundamental jd reside na desigualdade dos meios de poder (liberdade/servidio reais como diferengas de igualdade), que é (a) confirmada, conti- nuadae (b) legalizada, legitimada, organizadae com isso estabili- zada pela constituigiio de uma Constituigao. 5. Desde que Deus se retirou da vida politica (e se despediu da hist6ria), seu cargo na estrutura funcional nao foi declarado vago. Digitalizada com CamScanner oP) FRAGMENTO (SOBRE) OPODER CONSTITUINTE DO Povo, Assim como outrora ELE, 0 povo foi desde entio usado da boc, 1 fora e conduzido aos campos de batalha’" por todos os inn a Fessados no poder ou no poder-violéncia, sem que antes the ee m perguntado. A diferenga reside no fato de que 0 povo Poderi para ser ter sido perfeitamente consultado. Mas nesse caso os donos do Poder deveriam ter se contentado com a populagao real, e nesse caso Te- sultariam sempre desejos distintos, o cardter heteréclito das neces. sidades,acontraditoriedade dos interesses, aincompatibilidade. ‘das intengdes, em suma, a situagao real. Em vez disso, e provavelmente também por causa disso, a despedida de Deus nio foi aceita sem am. bigiiidades. E 0 dono do poder (juntamente com os seus adversérios que queriam torar-se donos do poder) criou 0 povo conforme a sua imagem; conforme as suas necessidades € 0 seu gosto ele 0 criou. E ademocracia? Mesmo l4 onde se pensou na populacao e se tentou instituiro seu governo, aseletividade de cada invocaciio do” povo (e mesmo da” populagiio) acabou por se impor diabolica- mente: o deus evidenciou ser dificilmente exorcizdvel (diferengas de informagao, de cultura, de camada, de classe, de linguagem; ma- nipulagdo; “estrutura de vigéncia” jurfdico-institucional). Portrés do lado vitrine do Uno Ponto de Convergéncia de todas as legitimacées pelo povo”, pulula e atuao politeismo real (i. é, dos constituent groups, das classes decisoras, dos que sao capazes de articulagiio e poder-violéncia (poder) entre os grupos). 6. O sistema feudal invocou fontes de legitimagéio supramunda- nas. Ante Deus, as contradigGes reais diariamente experimentadas (mesmo a entre ricos e pobres, poderosos e impotentes) podiam fundamentalmente nulas; e nulas elas foram também afigurar- declaradas expressamente pela doutrina crista. Nas suas origens, o Estado Constitucional burgués da moder- nidade pés-feudal constituiu-se por legitimago intramundana; «T) im Mund und ins Feld gefiihrt. — | Digitalizada com CamScanner | PODER CONSTITUINTE: QUESTAODE DIREITO 23 embora os padrdes feudais de justificagao ainda interfe rante muito tempo (monarquia, direito natural ideali: da que esse Estado Constitucional ainda estava subdesenvolvido. Ele preeisava agora acabar com as contradigdes reais dia experimentadas, usando seus préprios recursos. Fazem parte desses recursos, em grau reforgado, o de uma lin- guagem que se racionaliza e sistematiza e, nesse sentido espectfi- Se torna mais cientifica: textos de normas, garantias processuais sobre a claboragdio menos “correta”™"' e muito mais “conforme as regras"S” (do Estado de Direito) de normas decisérias, da Dogmitica erudita. O cardter escrito e ptiblico das leis bem como a idéia de uma Constituigao escrita tornam-se cada vez mais im- portantes para a tradigio da Europa continental. 7. Com vistas ao caso histérico da constituigaio da Constituigio, “poder constituinte do povo” é um subcaso do principio da sobe- rania popular, Combates hist6ricos nao sao travados no papel de livros sobre Teoria do Estado, nao se trata de uma luta entre “o principio da soberania popular” e “o principio mondrquico”. A velha monar- quia aparece como fungio da sociedade feudal. Dependendo das condigGes, o monarca pré-absolutista era marionete ou ator na rea- lidade politica; no campo da psicologia social, era objeto de iden- tificagéio; para a teoria politica, era instancia de atribuigio, sinal secreto da legitimidade. Servia ao sistema feudal em cada uma dessas qualidades. O discurso da soberania do povo expressa que “o” povo tenha lutado por uma forma de sociedade que superaria futuramente o sistema feudal e o seu fator mondrquico. Esse novo sistema care- cia de um Estado no qual —diferentemente do estado feudal — tudo 70 “Tichtige”. 7) “Korrekte”. Digitalizada com CamScanner FRAGMENTOSOBRF)OPODER CONSTITUINTE DO POVG M i tependia decisivamente da soberania, O novo Principio social oq es ério, centralista ala. bs ado Estado executivo unitirlo, ce ntralista, buroctatizado, Um, recia a " ; ade costuma ser formulada quando ini necessid 7 USWA CEetivacao, Primeiro vieram as transformagdes sociais, nao em tiltimo lugar as, depois a sua reflexdo na reivindicagao da Soberania, Mas o sistema feudal ¢ a sua organizagio mondrquica aindy nao tinham sido derrubados, a soberania (ainda) podia ser atribuidg a0 principe (a soberania do principe de Bodin; v. também Hobbes) Que por razdes histricas a soberania se visse obrigada se tomar posteriormente soberania popular, deveu-se preci: AMENKe ao fato de que foi “o” povo (na forma da burguesia) que estava lutando Por uma nova forma em prol de uma sociedade nova no seu Contetido, Noquadro do Estado burgués sistematicamente. OrganizadoNt e da soberania popular, 0 povo foi para o ato da Constituigao da Constituigo novamente a instanciaa qual o Poder correspondente deveria ser atribuido — e isso justamente também Porque somente podia ser “o” povo que estava lutando por um Estado de Novo tipo, que era tanto fundamentado por uma Constituigao (escrita) - nes. se sentido contra o principio monarquico enquanto expressiio da sociedade feudal - quanto também limitado (para fins de liberagaio da nova camada social dominante), ccondmics 8. Duas figuras de argumentagdo caracterizam a forma juridica destacada da burguesia, a sua Constituig0-e isso nos lugares mais marcantes, por assim dizer no inicio e no fim da sua atuagio: na constitui¢ao da Constituigdo e na sua efetiva “aplicagao”, na con- cretizagio, © “poder constituinte do povo” € uma representagio harmonizadora, unitaria, medida que contradig6es existentes (ou persistentes) em conformidade com ou apesar da Constitui¢ao podem parecer justificadas no tocante ao seu contetido pelo fatode ‘ST Anstaltsstaat [termo de Max Weber]. — Digitalizada com CamScanner | PODER CONSTITUINTE: QUESTAODEDIREITO 25 que “o” povo as teria dado ou nao eliminado, que ele, portanto, as teria “querido” de qualquer modo. No tocante aos sujeitos, vale a mesma coisa, & medida que a cisdo do povo em grupos desigual- mente posicionados e desigualmente providos de direitos (constituent groups; estrutura de classes ou de camadas) nao é ad- mitida, a medida que a Constituigao nao é identificada como dita- da por um grupo ou, na melhor das hipoteses, solugio de compro- misso de um grupo, mas alegada como oriunda “do povo” na sua totalidade. A figura de argumentagao que aparece “no inicio da Constitui- ¢40”, 0 poder constituinte do povo, € tao antiga quanto o Estado Constitucional moderno. Em contrapartida, a segunda figura “no fim (i. €, pritico, no cronol6gico) da Constituigao”, a f6rmula au- toritéria, iluséria de uma unidade da Constituigdo, é de data recentissima. A primeira no existe na natureza, tampouco a segunda. A pri- meira nao cria nenhuma dimensao genericamente 6ntica nem um transcendentale ontol6gico, Nao designa umacategoriauniversal, indistintamente aplicdvel a situagSes politicas, do tipo: sera queo poder constituinte no pais cabe & junta de generais A ou Ajunta de coronéis B?A pergunta pelo poder constituinte é uma questiio cons- titucional, com isso uma questo normativa; enquanto tal, ela esta subtraidaa gratuidade formal, Aindiferenga’™ comrelag’ioaoscon- tetidos. J4 como pergunta, ela se coloca com sentido somente nes- sa familia constitucional, designada por um niicleo normativo. Somente no chao dessa familia constitucional a palavra “poder constituinte” pode ser usada com sentido, ao menos do modo no qual ela ¢ utilizada aqui. O poder esta constituido em todos os tipos de Estado. O Esta- do Constitucional divisor dos poderes, amparado em direitos fun- “70 A original interpretagio do substantivo Gleichgiiltigkeit (indiferenga), resultante da conscientizagdo dos seus componentes mediante hifenizagio (Gleich-Giiltigkeit), no pode ser reproduzidaem portugues. A tradugio literal seria: qualidade do que tem vigéncia igual. Digitalizada com CamScanner 26 FRAGMENTO(SOBRE)O PODER CONSTITUINTE DO! POVO damentais, talcomo oconhecemos desde a Idade Moderna, carac- teriza-se pelo fato do poder nele estar constituido desse modo. O “poder: constituinte” deve legitimar isso: para chegara esse mode- lo de Estado, 0 povo teria feito sentir o seu poder (-violéncia) (em Locke: a burguesia em vias de expansio econ6mica). O poder ci no mais metafisico, seria o poder A constitui¢do de si mesmo nao se faz por meio da redagio e subscrigéio de um papel chamado “Constituigio”. Uma associagao se constitui realmente pela priixis, nio pelo diploma; nao por meio da entrada em vigor," mas pela vigéncia:'™ diariamente, na du- ragio histérica. O poder constituinte do povo € tentado no modelo de Estado de Rousseau; em todos os lugares, onde os atingidos pelas deci- sdes so simultaneamente os autores das decisdes:%™ na pdlis ateniense de Péricles, na democracia dos conselhos. S6 queem Rousseau nao deve ocorrer nenhuma segrega¢ao de grupos docon- ceito normativo “povo”, nenhuma segmentagao adicional da so- ciedade por meio da gradagao criadora de privilégios. Opoderconstituinteseriareal somente se os pouvoirs constitués nao fossem exercidos por outros, mas pelo pouvoir constituant. Contraissoo Estado Constitucional moderno faz valero argumento de que 0 povo teria usado 0 seu poder exatamente para fundar o poder desses outros. A legitimidade ser-lhes-ia insuflada uma pri- meirae tinica vez; a partir de entao eles poriam e disporiam’™ vi- olentamente acerca do povo, de posse dos, pouvoirs constitués por forgada Constitui¢do. Mas nao hdpoderconstituinte do povo onde onstituinte no pleno sentido do termo, macigo e real, do povo de constituir-se. ©) Inkrafitreten. ©) Inkrafts (t Literalmente: os “atingentes”. O sugestivo jogo de palavras (die Betrofjenen: os atingidos pelas decisdes, e die Betreffenden: os autores das decisées) niio pode ser reproduzido em portugues. © schalteten und walteten. in. Digitalizada com CamScanner 0 poder contempla o povo em alienagio; onde povo nao encontra a simesmo, masapenasa violénciade um Estado que mantémum povo para si, Para tal Estado, o “poder constituinte” é um s mbolo especial- mente vistoso, uma metifora especialmente luminosa. Serd que se trata realmente de concebera” justiga (i. é, gerd-la comolinguagem, como texto) ¢ depois comecaratarefade efetiva- la? Ou ser que nao se trata, muito pelo contrario, de ter de come- carcom aefetivaciio de uma justica inteiramente ndo-assegurada— muito antes de termos podido assegurar-nos “da” justica? Pois os realia so pesados e dificultosos de mover; por isso nao podemos esperar até que se chegue ao consenso acerca de um texto. Sempre precisamos saltar antes na realidade, do contrério ela nos assalta. E textos so faceis de mover; por isso nunca poderemos ter 0 texto uno. Intocados, os realia ter-nos-iam esmagado antes. Isso tam- bém faz parte da quase desesperangadae manquejante caminhada histérica do poder constituinte real do povo atrds do poder-violén- cia dos textos que dao o poder do Estado. 9. Sobre a formalidade também das outras garantias constitucio- nais: na época do seu surgimento, ela cumpria a tarefa pratica de beneficiar apenas a classe ascendente. Aos integrantes da gigan- tesca maioria oprimida nao se adjudicou, e.g. 0 trabalho, 0 pio, 0 minimo necessario para a existéncia. Muito pelo contrario, conce- deram-se a “cada um"! direitos de liberdade que 6 podiam ser eficazes para os membros de minorias privilegiadas, Adicionalmen- te, formalidadecumpriaatarefaideolégica de justificaranovaforma de sociedade ¢ desvalorizar individualmente todos os que nao po- diam fruir de fato os direitos formais; a culpa nao podia ser da for- ma de sociedade, vide 0 texto constitucional. Uma terceira fungiio da formalidade foi importante sobretudo naépocadoseu surgimento, mas nao o ficou sendo duradouramente, (ST) jedermann (cf. John Locke: everyman —O tradutor]. ' Digitalizada com CamScanner SOBRE ER CONSTITUINTE re 28 FRAGMENTO(SOBRE) OPODER CO! ‘TEDOPOVO adiferenga das duas primeiras fungée: a jiante do adversério poli. tico, do aparelho de Estado do Absolutismo, os direitos de liberda. defuncionavam como duplamente legitimadores, ‘sabercomo ne. co da prixis e como teoria da sua imagem contraria, historica. mente ainda sem mediagoes. Diante dessa Politica “Tibertadora”, os mecanismos de seguranga social ainda contidos no Sistema fey. dal mais antigo podiam ser paulatinamente empurrados para o se- gundoplano. Ideologicamente, aética protestante do rendimento't! (na verdade: do sucesso) era maravilhosamente funcional: “cada um” temagoraa liberdade (do cristo, do cidadao titular dos direj- tos fundamentais, do senhor da economia que arrebanha mMeritori- amente a sua fortuna). “Liberdade” significa agoraa missao supe- tior de subir na vida. Quem nao sobe na vida nao aproveita sufi- cientemente a sua liberdade, nao administra usurariamente o seu talento, esté com efeito visivelmente destinado a danagio (vy, Calvino). De tal modo 0 retrocesso na garantia da existncia so. cial,em comparag4ocom o feudalismo, era: absorvido, porum lado; poroutroe simultaneamente, programou-see Praticou-seumanova ideologia positiva, uma ideologia ndo-defensiva, mas ofensiva (antiabsolutista), a ideologia da “liberdade” como conjunto de Sarantias formais de liberdade (John Locke), 10. Umaespécie de dialética real consiste, por um lado, no fato de que na evolugao subseqiiente também aquelas classes, que nao ti- nham conquistado o Estado Constitucional naluta, cresceram, por assim dizer, para dentro do status fatico de poderem fazer uso dos direitos de liberdade; no fato de que elas podiam, enquanto nova classe posteriormente. ‘ascendente, justamente por causa: daforma- lidade desses direitos, Tecorrer aos meios da ascensiio da velhaclas- Se, da burguesia, agora no sentido antiburgués. Em grau ndo me- Nor, a dialética se mostra também no fato de que modelos sociais 7 Leistungsethik, Digitalizada com CamScanner SatnnEnEnnn ERR EERE neenemeeeemeaneneeel |, PODER CONSTITUINTE: QUESTAODEDIREITO 29 des: arte atingidos e concebidos como anti e pés-burgueses remanescem burgueses (Estado Social, Estado de Bem-Estar So- cialete.), Mas podemos perguntaragoraem que medida mesmo as sociedades revolucionariamente transformadas permanecem bur- guesas? Uma hipotese possfvel (i. é, abstraindo da hip6tese mar- xista sobre as “sociedades de transigdio”) seria a seguinte: porque perduram (ou: se reforgam; ou: ndo si revogiveis) aquelas condi- ges objetivas ds quais se deveu outrora a ascensio da burguesi Vejamos um exemplo: o papel do aumento da populagiio, oda extingao de recursos ou da descoberta de novos recursos; generi- camente: o papel das alteragGes nas condigdes materiais da vida, 4 medida que clas advinham “de fora”, como provocagdes exterio- res no sentido do Segundo Discurso de Rousseau, ¢ 2s quais os fatores ligados praxis da burguesia (formagao do mercado, liber- tagao dos servos da gleba, redugio de barreiras tradicionais, ma- nufatura, demanda de invengGes para maximizaro lucro,demanda da descoberta de paises como fontes de matérias-primas e merca- dos de comercializagao, sistema industrial, racionalidade de todos 0s setores parciais da sociedade) respondiam “funcionalmente”, mas as quais os fatores tradicionais do periodo feudal nao (mais) logravam reagir suficientemente, perdendoem conseqiiénciaoseu vigor. O fato de 0 povo talvez nao poder governar-se asi mesmo, por razbes de ordem demogréfica, técnica, organizacional, psicolégi- ca, de dinamica de grupos, no sentido burgués: em virtude de “ra- z®es cogentes, decorrentes do proprio objeto”, nao pode seres- camoteado como pergunta. Dissecar analiticamente o “poder cons- tituinte do povo” como figura de argumentacio ideolégica ndosig- nifica ao mesmo tempo afirmar simplesmente a possibilidade pré- tica de um real poder constituinte do povo. Significa, entretanto, despedir-se de qualquer modo do “poder constituinte do povo” enquanto ilusao cinicamente imposta. & “Sachawiinge”. Digitalizada com CamScanner 10 SOBRE JOPODER CONSTITUINTE DO POVO AGMENTOSS de ' stituinte” um conceito finalista em Sieyés, j4o 0 ee outra coisa ele poderia ser? foraem Locke. da Teoria do Direito e do Estado sio siglas dos Os conceitos at difundidos nessas disciplinas; e cadauma ntos de vista a uma formula nobre para designar interesses ab- dessas Core aie embora encadernadaem couro de novilho, ae postos em comunicagio, os interesses expressam- m : como finalidades. F Poressarazioecom vistas aesse fato, nadacontra Locke, Sieyes eseussécios. Masoque desrecomenda fazer do’ ‘poder constituinte do povo” enquanto conceito finalista dos dominadores (do Povo), aservigodessamesma domina¢ao, finalmente um conceito do povo paraasua autodominaga0? Nada; a ndo ser a “vontade” (os interesses, as teorias, os con- ceitos) dos dominantes. Nada de insuperdvel (para 0 povo), por- tanto. Resta a tarefa: criar 0 povo. 12. Sobre a pergunta das normas “pequenas”, i. €, das prescrigdes infraconstitucionais (detalhadas): enquanto textos de normas, es- tas devem — como de resto j4 a Constituigao —, num ordenamento jurfdico que corresponda finalmente ao poder constituinte do povo, ser institutdas precisamente por aqueles contra os quais elas po- dem ser executadas (impostas) efetivamente (i. é, segundo as rela- Ges dadas de classe, de comunicagao e, bem genericamente, de poder-violéncia). : Nao basta dizer: por aqueles aos quais elas dizem respeito: pois isso elas fazem, no papel, diante de todos no Ambito da esfera (da soberania) do direito; mas na realidade, no caso de énus de qual- quer espécie, as vezes de nenhum modo ou muitas vezes com mais leniénciacontraos dominantes¢ seus beneficidrios,em virtude das Telagdes dadas de poder-violéncia. Digitalizada com CamScanner 1 PODER CONSTITUINTE: QUESTAO DEDIREITO 31 De qualquer modo, os dominantes j instituem os textos das normas nos grémios “representativos”. O argumento de que eles afinal de contas também setiam afetados pelos textos das normas s6vingaem surdina,em virtude daestrutura antes insinuada; mais precisamente, diante daqueles que no caso emergencial sempre podem decidir por mais uma excegao legal ou por uma anistia e que as vezes também podem encomendar uma decisao da inst4n- cia jurisprudencial suprema. 13. Analisado a luz do dia, o “cerne” da Constituigdo é formado portextos de normas; uma Constituigdo enquanto diplomacontém apenas textos de normas (artigo 79, inciso II, al. 120 da LF"), Se jd a textificagdio do poder constituinte deve ser critério de aferigio de legitimidade, este legitima somente 4 medida que a praxis jurfdica continuaem conformidade com os respectivos tex- tosdenormas (do poder constituinte). Nesse tipo de Estado, 0 “po- der constituinte” sublima-se, por um lado, na normatividade no sentido da riquezade contetidos que, noentanto, nao pode, enquanto normatividade, serintencionadaem termos diretamente fiticos, mas em termos que fornecem apenas um critério indireto de aferigao: um dos dois tipos fundamentais da constituigao da Constituigio. O poder constituintenesse sentido elaboradonéioé, porum lado, uma norma positivamente formulada do inicio até o fim, mas, por outro, uma norma aceitével como princfpio constitucional ricoem contetidos, no quadro dessa tradigiio e desse tipo de Constituigao. Como qualquer norma juridica (0 que jé basta para que nao seja necessdrio mobilizar o direito natural), esta também niio é uma ordem materialmente vazia, mas um modelo de ordenamento ma- terialmente determinado, cujos elementos materiais atuam de modo co-normativo, conforme a concretizacao defensavel no quadro do (ST) A constituigio da Reptiblica Federal da Alemanha (Grundgesetz, Lei Fundamental) doravante é citada pela sigla LF. Digitalizada com CamScanner FRAGMENTO (SOBRE) OPODER CONSTITUINTEDO Povo 32 FRA Direito. Como norma, ela também nao é uma decisho NT pura, materialmente vazia, em nome da decisig s uma decisio™ cujos elementos materiais se in exo da legitimagdo do poder estatal Estado de voluntarista’ voluntarista, mas serem nesse caso no comp: 14. Vistos assim, 0 poder constituinte ¢ a legitimidade, o direito revolucionario ¢ 0 direito a resisténcia sao conceitos juridicos; conseqiientemente, conceitos normativos e, com isso, conceitos materialmente vinculados, conceitos que oferecem critérios ‘mate- riais de aferigao, que deixam para trds o voluntarismo, 0 normologismo, 0 decisionismo e o sociologismo em nome do ca- réter vinculante do direito e da constituigao; so normas (em parte escritas, em parte nao-escritas). O Ambito material € comumaes- ses quatro conceitos: um conjunto de instituigdes nucleares, de garantias de direitos nucleares, de formas de organizagao nuclear, que sealimenta da tradigao hist6rica nessa medida consistente dessa familia constitucional e deve ser elaborado em seus pormenores pela Hist6ria Constitucional e pelo Direito Constitucional Com- parado. Por conseguinte, também 0 direito a resisténcia e 0 direito re- voluciondrio estao contidos no Ambito material do artigo 20, inci- soll, alinea 1, e do artigo 79, inciso III, alfnea 1, I da LF; mas nao como normas préprias, i. é, com potencial programa de norma e Ambito da norma. Para ambas deveriam ainda ser institufdos tex- tos especificos de normas: por meio da formulagiio de inferéncias que autorizam um comportamento correspondente — em caso de contradi¢aio da acao do Estado coma legitimidade e o poder cons- tituinte que nao possa ser sanada de outro modo. Com isso, 0 problema de principio do “siléncio da Constitui- ¢40” estd tematizado: quer dizer, (a) o problema da falta de “™ Dezision. “ Entscheidung. Digitalizada com CamScanner | PODER CONSTITUINTE: QUESTAODE DIREITO normatizagées onde elas seriam possiveis sem mais nem menos, considerando-se 0 potencial de rendimento dessa Constitui¢ao (e.g. determinagées mais pormenorizadas paraas associagdes naesfera politica, direito resisténcia);' outrossim, (b) nos casos nos quais essas normatiza¢Ges praticamente nao poderiam tomar-se efetivas em virtude das relacdes dominantes de poder, assim e.g. proibi- Ges, limitagdes de associagées (do setor privado) naesferaecond- mica; ¢ (c), o problema inverso da existéncia de normas onde elas permanecerao necessariamente ineficazes, considerando-se 0 po- tencial de rendimento do tipo de Constituigao (como, talvez, no caso da invocagao do “poder constituinte do povo”). Aqui a Cons- tituigdo “fala” como texto, mas “cala” sobre o fato do seu enunci- ado nao alcangar ou nao poder alcangar a realidade. 15. Carl Schmit? pergunta por que uma Constituicao, uma norma teria vigéncia. Resultado: porque ela teria sido instituida por uma vontade. O que deve valer entao para o direito constitucional con- suetudindrio (normas de direito consuetudinario)? Provavelmen- te, como sempre, uma “vontade” existencial, s6 que dessa vez da coletividade. No entanto, como termo pseudopsicolégico, “von- tade” é coletivamente aproveitavel apenas para mistificacdes. Po- tenciais animicos coletivos devem ser conceitualizados diferente- mente do que com categorias sotopostas de estagios obsoletos da teoria do psiquismo individual. Com efeito, o direito consuetudi- nario“vige” assim como o direito institufdo: porque determina mo- tivagdes humanas; porque responde a, ordena, soluciona (ajuda a solucionar), enquanto pressuposto da atualizagao e da utilizacgio de motivagdes, perguntas, problemas e conflitos emergentes com ‘os recursos da ordem juridica; porque é assegurado e respeitado, Q direito a resisténcia foi normatizado pela Lei de 24 de maio de 1968. como artigo 20, alinea IV (nota do editor). Verfassungslehre. Reimpressao da 3.* ed. 1957, p. 9. Digitalizada com CamScanner 4 PR AGMENTO(SORREDOPODER CONSTITUINTE DO Poy 0 em caso de contlito imposto ¢ sancionado Unilateralme; fngdo da organizagdo do Estado (pela via de outras norm, odes, totivagdes de funcionarios do direito); Ne, Nesey IS, Obi a : © porque tudo, ioe camimbo de um ciclo de informacoes se toma simultaneamente im um ciclo de monivacdes que tendencialmente permanece estivel emg. ey si desde que no deive de funcionar um dos seus fatores, a saber: a, ode sercons derado vinculante (conhecimento do cariter juvidico, se} Jo institufdo, seja por razi sdo"fato de pre-exit Nt fato “psiquico-motivacional”, enquan. to direito consuetudinirio); ou a capacidade de responder a questdes que podem tornar-se atuais (caso contnirio: obsolescéncia em virtude de nao se tornarem mais atuais, eis uma quaestio facti), ou a capacidade do direito consuetudindrio de — responder objetivamente a questdes atuais (caso contré- rio: pressio politica sobre a regulamentagio legal poresta ter se tornado inadequada; ou: fim da communis opinio acerca da qualidade de ius e da necessitas; fim do consen- so minimo dos afetados pelo direito); ou ainda o fato de ancionado, imposto nessas fungdes pela organizagiio do Estado, videncia-se que a pergunta de Schmitt (“Por qué?” > “Por- que!") nio € pertinente.N™ Afirmar que a norma vige por ter sido institufda nao esclarece de nenhum modo 0 que “viger” deve sig- nificarrealmente, juridicamente, praticamente. A colocagio da per gunta evidencia ser infecunda, a resposta vazia. Com vistas a0 que “viger” pode significar na realidade social, a resposta niio € nem certa nem errada; ela se localiza 4 margem do tema. Schmitt falada“vontade” enquanto “existencialmente existen- te”, do “seu ser”. Nao admira que ele desvele em outros momen- tos, e contrariando a sua prépria vontade, a sua posigio como. jus- &T) *Gegebenhei 2) die Sache nicht tiff, Digitalizada com CamScanner 1, PODER CONSTITUINTE: QUESTAO DEDIREITO 35 naturalista: cadalei seria “segundoa suaesséncia uma ordem, quer dizer, vontade”,* e “a Constituigao enquanto ato volitivo” estaria hierarquicamente acima da “lei constitucional”: eis um jusnatura- lismo voluntarista, conhecido de longa data. 16. O argumento “Por qué?” — “Porque” conduz a mistificagio da “vontade”; as alternativas excludentes “estar positivamente ordenado”/"estar correto” so cegas diante da realidade. Uma nor- ma textificada é institufda em termos de direito positivo ou nao é uma norma (conforme deveria dizer todo 0 jurista que nao queira serjusnaturalista, como Schmitt). O fato de uma norma ter sido ins- tituida positivamente por pessoas nao diz com certeza = oque significa “norma” nem (conexamente) = oquedeve significarviger”. A infecundidade da pergun- ta de Schmitt se revela também aqui. A norma vige porque foi instituida positivamente — de inicio na forma do texto da norma. A norma € institufda positivamente — mas isso ainda nao acaracteriza em termos praticos/concretos, pois elasempreesta ordenada como “estae nenhuma outra”: como nor- ma materialmente determinada. Isso quer dizer: foi decidido, foi instituido, foi positivado, mas nio um Nada, nao uma institui¢ao, decisio, positivagao “puras”, mas um modelo de ordenamento materialmente determinado. Uma norma juridica é materialmente determinada. Por isso, como também em virtude dessa determinidade material, ela deter- mina, por sua vez, as coisas, consegue responder a perguntas, “vige” como um complexo sui generis de regulamentagoes, capaz de so- lucionar por via da concretizagao 0 caso ¢ 0 conflito em questao.O mero ato de instituir nao é suficiente; a vigéncia no sentido men- cionado confere concregio, eficdcia social ao fato de estar instituido. © Loe. cit. p. 76. Tid. Digitalizada com CamScanner = 36 FRAGMENTO (SOBRE) O PODER CONSTITUINTEDO POVO Por isso também o poder constituinte nao deve ser compreendidg apenas como um ato isolado tépico, mas simultaneamente como capacidade permanente de se regulamentar no tempo. O“estarcorreto” isento de jusnaturalismo é essa determinidade material; é a perspectiva de fazer justica a “coisa”, na medida pos. sivel; €ajustiga material relativa. De outro 4nguloea partirdeuma base distinta (neokantiana) o velho direito natural ja foi degradado ereinterpretado em “direito natural com contetido cambiante”, em “direito cultural” (Radbruch e outros), o que se coaduna parcial- mente com a concepgao da familia constitucional enquanto con- senso histérico (parcial) com um nticleo de contetido. Digitalizada com CamScanner

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