You are on page 1of 98
Maria Elisa Cevasco DEZ LICOES SOBRE ESTUDOS CULTURAIS INTRODUGAO Um espectro ronda os departamentos de literatura das universida- des, da Austeilia a0 Alabama: os estudos culturais. Nas verses mais horrorizadas, anova disciplina veio para destruir a ata litera- tura, transformando refinados amantes de um Shakespeare ou de tum Guimaraes Rosa em fas de cultura pop e analistas de shopping centers. Naversio apologética, cla veio para fazer a revolugio e nio deixar pedra sobre pedra nos modos tradicionais dese fazer critica de cukura Este livro visa dar vida concreta a esse fantasma, mostrando como os estudos culturais surgicam em um determinado ambien- te sécio-histérico, suas r ‘com os estudos literdrios, suas pri meirasconquistastesricas eseu projeto intelectual —que inclui cer- tamenteo estudo da cultura dita popular e dos fendmenos da vida cotidiana ~, mas reserva espaco para um novo modo de ler a alta cultura, Como tantas outias disciplinas anteriores, vieram para suprir as necessidades intelectuais de uma nova configuracio sbcio-histérica. Estas dezligSes sio dedicadas aos estudantes de ciéncias huma- nas ¢ demais interessados no debate cultural contemporineo. Oferecem uma visio introduréria, que pode ser complementada pelas sugestées de leitura que acompanham cada ligéo. Procuram fazer um acompanhamento historico, desde o surgimento da dis- ciplina na Gra-Bretanha dos anos 1950 — em aulas noturnas para trabalhadores — & sua floragio como item de exportacio da acade- sia inglesa eespecialmente norte-americana. Buscam tragar afor- magdo social de onde surgem, suas formulagBes teGricase posturas politicas ¢ as transformagdes que novos tempos determinam na disciplina, Como se trata de um fendmeno que, na sua origeme no atual ponto central de disseminacao, esté localizado na Gra-Bre- tanha choje mais nos Estados Unidos, o foco destas dezligesestd voltado para esses paises eem especial para a obra mais produtiva de Raymond Williams (1921-1988) cade Stuart Hall (1932. afinal, como brinca Hall, os estudos culturais surgiram no momento em que ele conheceu Raymond Williams ¢ em seguida tocou um olharcom Richard Hogeart! Para beneffcio do estudan- ce brasileiro, atltima ligéo procura estabelecer uma ligasao entre estudos culturaise formagoes intelectuais brasileiras Cercamente estas primeiras ligbes apresentam um ponto de vista especifico sobre os estudos culturais e visam contribuir para estabelecer uma posigio a partir da qual seja possivel avalias, com base no que é foi, os rumos que interessa dar a essa nova disciplina em straimportagio paraa academia brasileira. para nossa conver- sagao sobre cultura. O TEMA “CULTURA E SOCIEDADE” ‘Toda definigiode disciplina da érea de ciéncias humanas pressup5e, em menor ou maior grau, uma concepcao do significado de cultu- ra, Esse grau est4 maximizade em uma disciplina como estudos de cultura, que jaa coloca como seu elemento fundante. Certamente muitos outros paises tiveram umaowoutra forma de estudos de cultura muito antes que essa etiqueta se transfor- ‘masse na marca de uma disciplina ascendente nos departamen- tos de humanidades a partir da segunda metade do século XX. Maso fato é quea disciplina se constituiu primeiro na Inglaterra ‘nos anos 1950, e daf interesse maior cm examinar essa forma- cdo especifica. VERSOES DE CULTURA A palayra “cultura” entrou na lingua inglesa a partir do latim colere, que significava habitar ~ dai, hoje, “colono” e “colénia’s adorar ~hojecom sentido preservadoem “culeo”;e também cxl- tivar~ na acepcio de cuidar, aplicado tanto 2 agricultura quan- t0 08 animais. Esta a acepg0 preponderante no século XVI. Como metéfora, estendeu-se 20 cultivo das faculdades mentais cespirituais. Atéoséculo XVIII, culeura designava uma ativida- de, era cultura de alguma coisa, Foi nessa época que, ao lado da palavra correlata “civilizag0”, comegou a ser usada como um substantivo abstrato, na acepgio nao deum treinamento especi- fico, mas para designar um proceso geral de progresso intelec- ‘ual e espiricual tanto na esfera pessoal como na social - 0 pro- 10 estubes cuLruRAIS cesso secular de desenvolvimento humano, como em cultura ¢ civilizagao eucopéiz'. Durante o romantismo, em especial na Inglaterra e na Ale- ‘manha, passoua ser usada em oposigao a seu antigo sindnimo, civi- lizagdo, como uma maneira de enfatizar a cultura das nagées edo folclore ¢, logo, o dominio dos valores humanos em oposigio ao cariter mecinico da civilizagio” quecomecava aseestruturas com a Revolugio Industrial. Trata-se de uma virada semntica notdvel, que dé noticia de uma intensa transformagao social. “Culeura’ e “civilizagao” sao palavras a um s6 tempo deseri- tivas (como em civilizagao asteca) e normativas: denotam 0 que 4 mas também 0 que deve ser (basta pensar no adjetivo “civili- zado” ¢ seu oposto, “barbaro”). No decorrer dos processos radi- cais de mudangas sociais da Revolugio Industrial, foi ficando cada ver mais evidente que o tipo de “desenvolvimento huma- no” em curso em uma sociedade como ainglesa nfo era necessa- riamente algo a ser recomendado. O fato de, em especial ao longo do século XIX, « palavra ter adquiride uma conotagio imperialista (“civilizar os barbaros” era um mote que justificava a conquista ¢ a exploragéo de outros povos) contribuiu para a virada de sentido. E nesse processo que “cultura’, a palavra que designavao treinamento de faculdades mentais, se transformou, a0 longo do século XIX, no termo que enfeixa uma reacao uma eritica—em nome dos valores humanos A sociedade em proces- so acelerado de transformagio. A aplicagio desse sentido as artes, como as obras e préticas que representam ¢ dio sustenta- ‘slo ao proceso geral de desenvolvimento humano, ¢ preponde- rantea partir do século XX. Em meados desse século os sentidos preponderantes da palavra cram, além da acepgio remanescente na agricultura ~ cultura de " Ver exe reapeito Raymond Willams, Keyword: A Vocabulary of Calle and Scien Loire, Fonana, 1976. T | PRimeima Ligha 1t tomates, por exemplo -, o de desenvolvimento intelectual, espiri- tual c estético; um modo de vida espectfico; ¢ o nome que descre~ vveas obras e praticas de atividades artisticas. Uma das coisas que ficam evidentes nesse apanhado répido das mudangas de significado de cultura é que o sentido das pala- vvras acompanha as tcansformagbes sociais ao longo da histéria ¢ conserva, em suas nuancas econotagdes, muito dessa histéria, Na Inglaterra dos anos 1950, momento de estruturacao da disciplina de estudos culturais, o debate sobre a cultura parece concentrar muito do sentido de mudanga em uma sociedade que se reorga- niza no segundo pés-guerra. Raymond Williams (1921-1988), figura central na fundagio dos estudos culturais, conta como a palavra cultura comeca a ser cada ver mais usada como eixo dos debates desses rumos. No processo, uma de suas acepgSes de antes da guerra, a da distingio social, cultura como posse por parte de um grupo seleto, comega a desaparecer ¢ a dar lugar & preponderincia do uso antropolégico, cultura como modo de vida. O outro sentido de culeura, designando as artes ¢, no con- texto inglés em especial, a literatura, se inflete com a predomi- nincia da crftica sobrea criagéo, um dos eixos do projeto intelec- tual dominante na academia inglesa, 0 Cambridge English, assunto de nossa préxima ligio. © que Williams percebia nessa concentragao do debate eram os primeiros passos gigantescos da nossa “era daculeurs’, assim deno- minada pelo predominio dos meios de comunicagao de massa e pelo desvio do contlito politico e econdmico para o cultural, mar- casdotempo presente. Um bom exemplo para se entender essa ili- matendénciaé aénfasedeum estrategista militar, Samuel Hunting- ton, que, em um ensaio paraa revista Foreign Affairs de 1993", prevé quea fonte fundamental dos conflitosem nossos dias nio primor- 2 Samuel Funsngon The Cah of Cvilaion, tn Firegn Afr, 72 (3), 1993, p22. (dio beater O cheque der clisapb Rio de nero Oljare, 27) 12 estuoos cuctuRais dialmenteideol6gica ou econémica, “As grandes oposigées entre as expécies humanas ea fonte dominante dos conflitos sero cultt- sais”. Eclaro que Huntington pressupée ai quea cultura é dissocia- da da economia, da ideologia e da histéria Ironicamente, 6a inter- penetragdo cada vez mais evidente dessasesferas que marca nossa era da cultura, quando opoderio econémico seentrecruza com aexpan- stocultural ~basta pensar no cinema de Hollywood ou na america- niizagao do modo de vida de largas faixas do planeta — ea produgio. condmica com 0 conyencimento ideolsgico — mercadorias ¢ pro- paganda so duas faces da mesma compulsio de criar novas necessi- dadesem muitos ¢ dar a poucos a possibilidade de saisfazt-las, Jana década de 1950, ficou claro para Raymond Williams a necessidade de tomar uma posigio sobre a cultura ede intervir no debate para demonstrar as conexées entre as diversas esferas e sal- ‘vaguardar 0 conceito para um uso democrético que coauibutsse para a mudanea social. O ponto de vista da inter-relaco entre fendmenos culturais ¢ socioeconémicos ¢ 0 impeto da luta pela transformagio do mundo sio.o impulso inicial deseu projerointe- lectual. Escrevendo em 1961, diz: (..) ness alrura ficou ainda mais evidence que nio podemes entender © processo de transformasio em que estamos envolvidos se nos lit tarmos a pensar as revolugdesdemocrética, industrial e cultural como processes separedes. Todo nosso modo de vida, da forma de nossas comunidades’ organizasao econtetido da educagao, e da estrutura da famflia zo estatuto das artes ¢ do entretenimento, estd sendo profun- damente aferado pelo progresso c pela intcragio da democracia eda industria, c pela excensdo das comunicagées. A intensificagio da evo- Jugio cultural éuma parte importante de nossa experi niffcativa, ¢estdsendo incerpretada e contestada, de formés bastante cia mais sig- 5 Ciudo em Pery Andeson. A chilragio seus siiieados. In page ~ Revie de Eades ‘Martisas, 1.2, Si Palo, Boitempo, 1997, p. 27. i PRIMERA LiCko 13 ‘complexas, no mundo das artes edas idéias. E quando tentamos cor- relacionar uma mudanga como esta com as mudangas enfocadas em disciplinas comoa politica, a economia eas comunicagbes que desco- bbrimos algumas das questdes mais complicadas mas também as de ‘maior valor humano.* comportam as questdes queinteressa formular, Para lidar com as novas complexidades da vida cultural é preciso um novo voca- buldrio ¢ uma nova maneira de trabalhar: jé esta dado nesse momento o passo que leva i estruturacio dos estudos cultutais. No obra de Williams esse passo implica um mergulho histérico nos modos pelos quais a cultura foi sendo concebida ao longo da histéria inglesa moderna. Antes de deslocat as concepg6es € énfases do debate sobrea cultura, épreciso mapear seu desenvol- vimente histérico. A TRADIGAO “CULTURA E SOCIEDADE” Oeestudo classico de reconstituigao histérica dos discursos pre- ponderantes sobrea cultura natradigio britinica éolivrode 1958 Culture and Society, 1780-1950", de Raymond Williams, ao lado deletemos The Uses of Literacy, de Richard Hoggart (1957),¢ The Making of the English Working Class (1963)', de Edward P. Thompson — os trés considerados, nio por acaso, os livros fun- dantes da nova disciplina. O livro de Williams examina as idéias sobre cultura esocieda- de enfeixadasnamudanga do significado de termos como os pro- + Raymond Willams, The Zong Revelation. Londies, Chat and Windus, 196, px > Lem, Cuhure and Soety 1780-1950 (1958). Londres, The Hoggath Pres, 1993 (digo base: Cuba ¢ cede, 1780-1950, iad. Leosides H. B. Hegenberg, Sio Paulo, Companhia Edzora Nacional, 1963] S Bligo baslei: A formato da clase rabelbadraiogla. Ted. de Renato Bussato Neto ‘Chai Rocha de Almeida e Dense Borman. 2 vols Sto Taub Pz «Tera 1988, prios cultura e sociedade, ¢ mais indvstria, classe e arte desde os primeiros anos de consolidagao da Revolucao Industrial até 1950. O foco do interesse nas mudangas seménticas é que elas encapsulam ¢ informam reagoes as intensas mudangas sociais. As ruangasde significado desses termos sfo vistascomo um registro ¢ uma reagdo &s modificagées sociaiscausadas pela Revolugao Indus- trial e pela implantacio de uma ordem capitalista hegeménica na Inglaterra a partic do século XVIIL. Foi com esse livro que ficou cestabelecida a existéncia de uma tradicio inglesa de debate sobre a ‘qualidade da vida social: de diferentes pontos de vista politicos, os pensadores agrupados nessa tradigo vio constituindo um discur- s0 de critica cm relagao 8 nova sociedade industrial, Williamslocaliza tradicao em obras de autores que o saber tra- dicional estuda em separado: estéo li analistas politicos, publicis- tas, poetas, romancistas, criticos literérios. As linhas principais da tradigio jéestéo dadasnos anos 1700. Porum lado Edmund Burke (1729-1797), 0 feroz opositor da Revolugio Francesa, ¢ por outro William Cobbet (1763-1835), 0 polemista defensor de uma clas- se trabalhadoraquese organiza. Deixando de lado a oposigio usual da histéria das idéias entre um conservador e um radical, Williams demonstra queambos (..) criticam a nova Inglaterra a partir de sua experiéncia da velha Inglaterrae do inicio com seustrabalhasatradigées fortes de critica da novademocracis edo novo industialismo, tradigbes quem meados do século XX ainda sio ativas ¢ relevantes.” Na linhagem tragada por Williams, a tradigao iniciada por Burke e Cobbet continua nas obras de Robert Southey (1774- 1843), um dos fundadores do novo conservadorismo, para quem 0 Fstado devia cuidar da satide fica e moral dos pobres antes que Raymond Willams. Galtare and Scien... 0p ele 4. PRiweIga Ligho 15 estes se revoleassem, que 6 responsabilidade de toda a sociedade “o cuidado ea cultura” de todos; ede Robert Owen (1771-1858), uum dos fundadotes do socialismo e do cooperativismo, para quem, a natureza humana nZo é um dado estético, mas o produto de um modo de vida, de uma cultura, Com os poetas romanticos, em especial William Wordsworth (1770-1850) ¢ Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), entra com forga a acepsio de cultura como, nas palavras de Wordsworth, o “espirito encarnado de um povo", a medida da exceléncia humana, o tribunal perante 0 qual ‘ram julgados os valores reais em oposicio aos valores “ficticios” do mercado ¢ de outras operag6es similares do comércio e da induis- ttia, Se por um lado essa acepsfo eleva o conceito e conduz.a uma visio ativa da culcura como intervensio na sociedade, por outro a colocacomoum absoluto, um dominio tinico, serrado das rlagSes reais ¢ materiais. Um ponto alto desss tradigéo & figura de Matthew Arnold (1822-1898). Varios de seus temas e diregGes encontram expres- sGo em sua obra. Como os pensadores que o precederam, Arnold tem de se haver com as rupturas ¢ crises de uma sociedade cada vex mais industrializada. As injusticas na distribuigio das tique- 2as inerentes a um sistema que concentra a renda nas mios de poucos alimenta a divisio social. A religiéo, poderoso elemento apaziguador das tensde: sociais, comega a ser desacreditada pela. visio secularizada da cigncia. E nesse momento que a cultura é chamada a desempenhar um novo papel social, o de apaziguar e organizar a anarquia do mundo real dos conflitos e disputas sociais. Confrontando as irrupgées socizis dos anos 1860, quan- do as classes trabalhadores exigem o direito do voto, ele faz suas recomendagées pata o restabelecimento da paz social: Permitam-me recomendara cultura como um de nessos prineipais aux liaresdiance das dficuldades atuais, a culeura como busca da perfeigio Por meio do conhecimento, em todas as quest6es relevantes, do melhor que foi persadoe dito no mundo, e, por meio dese conhecimento, a Karl Maree Fieiich Hngeb. Peficioa A Cantnibcion 0 he Crigue of Polical Economy 1859), Idem ibid, Quarta Lighe 67 Ji.no ensaio citado, o Culture is Ordinary, de 1958, Williams ressalva que a nogio de uma base econdmica subjacente eda supe- restrutura determinada por essa base é mais complexa do queades- ctigdo sugere. Em seu trabalho subseqiiente, esclarece que anogio de determinagao em Marx € muito mais sutil do que a acepyao de leis inescapiveis. Trata-se de pensar a determinacio nao como algo inexorivel, que ndo deixa lugar para aagéncia humana, mas como o exercicio de pressdes ¢ 0 estabelecimento de limites. A frase de Marx do 18 Brumério, os homens fazem suahistéria mas no nas condigées que escolheram”, exprime bem essa dialética entre a¢éo humana condigées pré-dadas. Um outto problema tedrico causado pelo modelo explicativo ‘marxista convencional é que pode deixar a porta aberta para um retomo das formulagSes idealistas. A metéfora da base/superestru- turaabreespago paraa colocagio das artes em um dominio separa- do, obscurecendo o fato de que a produgio artistica é ela mesma material, nio s6 no sentido de que produz objetos e notagSes, mas também no sentido de que trabalha com meios materiais de pro- dugio. Aquestio central élevar as tltimas conseqiléncias a contri- buigio do materialismo histérico, acabando de ver com descriges idealistas e logrando ver as artes como priticas reais, elementos de um processo social totalmente material, e ndo como “um reino separado das artes ¢ dasidéias, da ideologia, da estética ou da supe- restrutura, mas de muitas préticas produtivas e variveis, com intengSes especificase condigdes determinadas”” Para Williams, é preciso levar adiante o legado de Marx: “Aprende: com Maranio éaprenderférmulasoumécodos,€issocmespe- cial(... naquelas partes de eu trabalho, sobreasartes asidéizs, onde ele ‘io fo capaz de desenvolverou de demonstra suse sugestbes mais inte- Raymond Wiliars. Mersin and Litter, Oxford, Oxfrd Univesiy Press, 1977, 9.94 68 EsTuDos cuLtuRAIS resaances, ou em que sofreu efetivamente a imiragoes das ideas domi- nantes de seu tempo, As duas dreas em que essa falta de desenvelvimen- (0 sio mais limicantes sio, em primeiro lugar, ahistériasocial e material dosmeios edas condigoes de produgio cultural, ue precisa ser estabele- «ida em seus pr6prios termos como uma parte essencial domaterialismo hiswérico;e,em segundo lugar, a nacureza dalinguagem, que Marx eco- snheceu, de forma breve, como materiale descreveu como consciéncia pritica, mas que precisamente por esas rarBes éum elemento mais cen- ‘tale fundamental de todo 0 processo social do que foi reconhecido em ‘concepgées posteriores de “manual e mental”, “base e superestrutura’, “‘edlidade cconscigncia”. Esomente nos sentidos mais ativosda produ- «gio material da cultura eda linguagem como um process sociale mate- Fal que é possivel desenvolver um teoria da culeura, que pode agora ser vista como parte necessiria¢ até mesmo central da toria mais geral de Marx da producao edo desenvolvimento humanos.” ‘No momento da formacio dos estudos culturais épossivel levar adiante © legado de Marz nio pelo motivo banal de que se sabia mais do que ele, Se pensarmos na proposicao teérica fundamental da relagio dialética entre projeto ¢ formagio, vere mos que foram ‘mudangas na formagao social que permitiram as novas formula- {gbes tedricas. As condigées de possibilidade da nova armagio dos estudos culturais foram, entre outras, uma perspectiva tangivel de mudangas radicais na estrutura social dos anos 1950-1960. Sus- tentadas pelo ciclo expansivo do capital no segundo pés-guerra, essas perspectivas embalaram a década revolucionaria dos anos 1960, quando, em um mundo sacudido pelas revolugdes liberta- doras no Terceiro Mundo ¢ pelos movimentos de massa como 0 dos Direitos Civis nos Estados Unidos e o CND (Campanha de Desarmamento Nuclear) na Gri-Bretanha, parecia que “nada seria ‘como antes amanha’, ' Tem. Mave on Caleare 1983}. In Francie Mulhern (org) What J Comet Say. Lande, Hutchinson Rass, 1989, p. 224 QuARTA Licko 68 ‘Como explica o economista Ernest Mandel’, todo esse sent: mento de mudanga dé noticia de uma modificagio estrutural do capital, a que ele chama de capitalismo tardio. Trata-se de um momento em que, longe de termos uma sociedade pés-industria, como adesignam os idedlogos, emos, pela primeira veznahistéria, tama “industrializacio universal generalizada’. A mecanizagio, a escandardizagio, a superespecializagio e a divisio do trabalho, que antes determinavam apenas a esfera da producio de mercadorias nas fibricas, penetra agora em todos os setores da existéncia ~da agricultura& recreagio e, & claro, & producio cultural. Assiste-se af também ao que ele chama de “imecanizagio da superestrurura’, ou seja, a penetracio da cultura pela expansio e mercantilizagio da industria cultural. Nunca se produziu tanta cultura ¢ nem tantos meios de comunicagio diferentes como a partir dos anos 1960, ¢ nem nunca ela foi to elaramente um produto feito ¢ consumido para azeiraro funcionamento do sistema vigente. ‘A expansio da quantidade de meios de produgio cultural pos- sibilitou a percepcao clara de uma qualidade definidora desses meios, ou seja, so praticas de produgio que fazem uso seletivo de meios materiais como, para dar alguns exemplos, a linguagem, as tccnologias da escrita ou meios eletrBnicos de comunicagao, a fim de dar forma aos significados e valores de uma sociedade espectfi- ca. Esscs significados sio culturais, adquirem existéncia percepti- ‘vel pot meio dessas formas culturaise sio modificados na medida ‘em que entram em conjungo com pessoas em situagies expecifi- cas que os podem aceitar, modificar ou recusar. Assim, nao é de admirar que Williams, Hoggart e Thompson tenham se interessa- do pela cultura dos de baixo, buscando formas de resistencia a cul- ‘ura capitalista nos significades, valores e conhecimentos produzi- dos pelos que o sistema deixa de fora e explora. 9 mest Mandel. Late Capitlom, Landes Verso, TR. Outra percepsio facilitads pela sociedade dos meios de comu- nicagio de massas é que a producao cultural sempre esteveligada a processos de dominagio e de controle social. Na conjungio hist- rica atual, de uma sociedade cujas técnicas e abrangéncia dos modos de veiculacio de imagens stingem um alto grau de desen- volvimento, a anilise ¢o esclarecimento dessas formas podem constituir um modo eficiente de luta. Vé-se que a localizagio do projeto deestudos culturais em uma instituigao destinada ao ensi- no democritico da classe trabalhadora no momento em que essa sociedade do capicalismo tardio di seus primeiros passes € consti- tutiva da forma do projeto. Para Williams, hé um trabalho funda- meatal aser feito cm relagio Adominagio cultural, Num ensaio de 1977, ee resume tarefaaberta aos que nioesto satisfeitos com a situagio como esta: Acredito que sisternade signifcados valoresque asociedade capitals ta gera tem de ser derrotado no geral eno detalne por meio de um traba- tho intelectual eeducacionsl continuo, Esteéum processo cultural aque denomine’ a longa revolugio, ¢, ao farélo, eu tinha em mente que era uma parte das batalhas necessirias da democraciae da vtériaecondmica da classe trabalhadora organizada."* ‘Nao se trata af de uma hipéstase da cultura como o dinico modo de luta nem do idealismo atroz de pensar que somos nés, cestudiosos de culeura, que vamos Fazer sezinhos a revolugio. Mas trara-se certamente de uma codificagio tedrica (e disciplinar ~ se lembrarmos que os estudos cultuzais vém dai) de uma percepsio da experitncia da vida contemporanea, marcada pela expansio vertiginosa dos meios de comunicagioe pela invasio, pelas neces- sidades da sociedade das metcadorias, de todas as esferas da vida Wie a Mars, eerie you! In Raymend Londres, Vers, 1989, 9.76. OUARTA Gigho 78 humans, das mais amplamente politicas 4s mais estritamente pes- soais, configurando 0 processo de aculturagio abrangente que rege avida em noscos diss. Decorte dai muito do potencial cognitive ¢ oposicionista dos estudos culturais. Esse potencial esté evidente na formulacio teérica de um materialismo cultural ens andlisesinformadas.e minuciosas ‘que, a partir dessa posiglo teérica, Williams faz de textos literios, detilmes, da forma dosantinciosoudas ransmissSesde noticias pela televisio. Sua posicéo abre um enorme campo para que se levem a efeivo andlises das formas ¢ das formagées culturais. Entretanto, oF estudos culturais escolheram muitas vezes outros caminhos, mais condizentes com as novas formagées sécio-histéricas, SEQUENCIAS HISTORICAS: ‘Todos sabemos que as revolugdes prometidas pelos anos 1960 no lograram modificar 0 mundo, muitas de suas conquistas foram revertidas na crise econémica dos anos 1970 e, especialmente, na marcha paraa dircita que marcaasdécadas de 1980. 1990, marcha ilustrada de forma poderosa pela presidéncia em dois mandatos de Ronald Reagan nos Estados Unidos (1980-1988) e pelo longo (1979-1990) reinado neoliberal da primeira-miniscra britanica MargaretThatcher,adama de ferro. Essa reversio ideolbgicavisava responder Acrise econémica coma formula consagrada de conten- ‘¢50 dos gastos, apertona distribuigSo de rend, maiorconcentragio do poder do Estado. As energias libertétias dos anos 1960 séo re- contidas e vemos um endurecimento das relagies sociais entre as diferentes classes sociais ea diminuigo da atividade de resisténcia das instituigées, inclusive (como sempre) das universidades. © que acontece com os estudos culturais nesse cenério? Jé nos anos 1950, como um dos efeitos da politica da Guerra Fria, com seu temor ao comunismo, instalou-se uma prdtica de repressfo aos movimentos operirios, embora o establishment continuasse a apoiae suas insticuig6es culturais. A politica tradicional daluta de 72 estuoos cuturais classes — com movimentos de massas, greves ¢ luta pelo controle dos meios de producio se transforma para acomodar as mudan- ‘525 na configuragio politica. Como diz. um dos historiadores da formagao dos estudos culturais, “a politica nos meios de produsio se deslocou para a politica nos meios de representacio””, Esse movimento, portum lado, dénoticia das dificuldades das lutas para ‘uma mudanga radical da organizacio da sociedade, No Ambito da cultura, aénfase no aspecto politico da representagio possibilicou, entre outras coisas, 0 extraordinétio florescimento dos primeiras produgies da disciplina como o brago cultural de intervengio de uma Nova Esquerda. (Com a retragio dos movimentos operitios, a WEA foi perden- do significasao politica ~ muitos de seus professores mais icono- clastas foram absorvidos por universidades, Williams tornou-se professor em Cambridge e, a partir daf, um pensador profunda- mente original das questées culturais. Thompson foi por uns tem- os para a Universidade de Warwick e Hoggart acabou indo para Birmingham, onde, a partir do departamento de Inglés, fundou, em 1964, 0 Centro de Estudos de Cultura Contemporanea, que disigiu até 1968, Depois se transformou em assessor da Unesco. Hall, que sucedeu Hoggart, dirigiu o Centro até 1980, quando foi para 2 Open University, o programa universitério que substituiua interagzo professoraluno, que tanto marcara a WEA, pelas aulas por televisio e rédio para um grande niimero de pessoas. Apattir de Birmingham e de alunos desses primeiros mestres marcantes, adisciplina foi sendo instituida em diversas universida- des dos dois lados do Adlintico ~ nomes importantes da disciplina nos Estados Unidos como Lawrence Grossberg, Hazel Carby e Michael Denning estudaram no Centro. Mas as marcas desua ori- gem convivem de forma incdmoda com os padréesrigidos da ins- titucionalizagio universitétia, "Tam Sele, Te iergne of Calbural Suc, Lond, Lawrence & Wishart 1997, p. 208 ouneta Ligko 73 ‘Até hoje hi dificuldades de definir seus limites enquanto pro- grama académico, Como projeto interdisciplinar, os estudos cul- turais se situam em um amélgama de quatro disciplinas: Estudos das Midias, que, no Brasil, encontram-se nas escolas de comunica- ‘io. histéria, sociologiae, principalmente, Inglés. Masa énfaseesté ‘em diferenciar-se dessas disciplinas. Do Inglés, retiveram o interesse no texto e na textualidade, mas inclufram formas populares de cultura ultapassando o paradigmade cestudos de lingua/lcerarura que caracterizavam a disciplina. O pré- prio conceito do que ¢ literatura ¢ repensado, ¢ 0 canone, a lista das ‘obras consideradasgrandes, éampliado paraincluira produgao silen-

You might also like