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Kabengele Munanga Nilma Lino Gomes z , Ne educaliva § NJ t afina Brasil: pais do encontro de culturas e civilizagdes Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Essas so perguntas que as pessoas fazem para conhecer a sie reconhecer aos outros, para definir-se e para identificar-se. Também servem para criar o sentimento de pertencimento a um ou varios grupos, para conhecer a realidade presente, passada e projetar-se para o futuro. Saber quem somos equivale a outras questées, por exemplo: O que é © Brasil? O que nos torna brasileiros e brasileiras? Para respondé-las ha varios caminhos e diversas respostas. Uma das respostas para a primeira questo poderia ser esta: o Brasil é ‘o maior pais da América do Sul, sendo uma das maiores poténcias econdémicas deste continente, com uma superficie de 8.511.996 km*e uma populagéo de 169.799.170 habitantes. Outra 6 a de que se trata de um pais ‘com uma economia diversificada; um grande exportador de produtos: agropecudrios, como o café, agticar, cacau, tabaco, entre outros produtos. Também podemos caracterizar o Brasil como um pais de grandes contrastes sociais e desigualdades, por causa da ma distribuigao de renda. Isto quer dizer que ha disparidades no meio rural, com grandes concentragées de terra nas maos de uns poucos, extensas areas de alta produtividade, lado a lado, a pequenas propriedades, com agricultura familiar de subsisténcia. No meio urbano, néo € diferente, nas grandes metrépoles encontramos vastos bolsées de pobreza e a concentracdo de riquezas em uma pequena parcela da populacao. Ainda podemos definir o Brasil por suas caracteristicas socioculturais, ‘como um pais com grande diversidade cultural em termos religiosos, artisticos, musicais, culindrios, entre tantos outros aspectos. Mas todas essas respostas por defini¢éo sao incompietas. Nao. parecem dar conta de uma realidade tao complexa como a nossa, porque cada uma delas considera apenas alguns aspectos dessa realidade. Aprender e conhecer sobre o Brasil e sobre 0 povo brasileiro é aprender a conhecer a histéria e a cultura de varios povos que aqui se encontraram e contribuiram com suas bagagens e memérias na construgao deste pais ena produgao da identidade brasileira. 12> Essa histéria, na versdo de alguns, teve inicio com os aventureiros € navegadores portugueses que chegaram a uma terra da qual se consideraram descobridores. Embora essa terra jé estivesse ocupada @ tivesse seus donos, os portugueses anunciaram 0 seu descobrimento e dela ‘tomaram posse, estendendo para além da Europa seus dominios. Uma terra téo extensa poderia trazer-Ines grandes riquezas em termos ‘de matérias-primas: minérios diversos, esséncias vegetais raras, fauna e flora desconhecidas etc. Mandaram cartas ao Rei de Portugal, relatando tudo que encontraram e viram: a natureza local, a terra, a gente que acharam muito diferente. Segundo alguns deles, essa gente, a quem deram o nome coletivo de indios, era atrasada, andava nua, era canibal, praticava sacrificios humanos, ndo tinha religido, adorava os espiritos da natureza. Chegaram até a colocar em duivida a natureza humana dos chamados indios. Pero Vaz de Caminha era 0 escrivao da frota de Pedro Alvares Cabral (comandante da expedicdo portuguesa para o Brasil) e escreveu 0 primeiro relato sobre as terras brasileras. A seguir destacamos alguns trechos deste relato. Carta de Pero Vaz de Caminha, 1/5/1500 Posto que o Capitéo-mor desta vossa frota, e assim os outros capitaes, escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que nesta navegacdo agora se achou, ndo deixarei também de dar minha conta disso a Vossa Alteza, 0 melhor que eu puder, ainda que, cara o ‘bem contar ¢ falar, 0 saiba fazer pior que todos. (..) Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que thes cobrisse suas vergonhas. Nas mdos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho ihes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Ali ndo péde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por 0 mar quebrar na costa. Deu-Ihe somente um barrete vermelho ¢ uma carapua de linho que levava na cabega e um sombreiro preto. Um deles deu-the um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copezinha pequena de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-Ihe um ramal grande de continhas branes, milidas, que querem parecer de aljaveira, as quails pecas creio que o capitaéo manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu 4s naus por ser tarde endo poder haver deles meis fala, por causa do mar. (..) Todos andam rapados até cima das orethas; e assim as sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos. Eo capitéo mandou aquele degredado Afonso Ribeiro @ a outros dois degredados, que fossem é andar entre eles; @ assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles fogavam. Aos degredados mandou que ficassem (a esta noite. Foram-se ld todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a ume povoagéo, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram téo comprides, cada uma, como esta nau capitanis. Eram de madeire, ¢ des ilhargas de tdbues, e cobertas de palha, de.razoada altura: todas duma sé pega, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos estelos; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam, Debaixo para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa uas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro. Diziam que em cada casa se recoihiam trinta ou quarenta pessoas, @ que assim os achavam; e que Ihes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra hé e eles comem. Mas, quando se fez tarde, fizeram-nos logo tomar a todos e no quiseram que /é ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. (..) Parece-me gente de tal inocéncia que, se homem os entendesse @ eles ands, seriam logo cristéos, porque eles, segundo parece, nao tém, nem ‘entendem em nenhuma crenca. (...) Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé catdlica, deve cuidar de sua salvagéo. E prazerd a Deus que com pouco trabalho seja assim. (Disponivel em: . Avesso em: 12 ago. 2004.) Saber se esses recém-descobertos, os indios, eram bestas (animais, sem racionalidade e alma) ou seres humanos como os europeus, tornou-se grande motivo de especulagées religiosas ¢ cientificas entre os séculos XV € XVII. O centro dessas especulagées foi a peninsula ibérica, em Portugal ¢ Espanha. Havia s6 um caminho para provar que os incios eram seres humanos: provar que eles também eram filhos de Deus, ou seja, descendentes de Addo. Os estudiosos dessa época, grandes tedlogos, vasculharam as biblias ¢ escrituras sagradas em busca dos argumentos a partir dos quais o Papa Paulo Ill proctamou na bula Sublimis Deus que os Indios também eram descendentes de Ado e, conseqtlentemente, fihos de Deus, cu seja, seres humanos. <3 ‘Mesmo tendo reconnecido a natureza humana dos indies, outro problema se calocava: eram humanos, mas diferentes dos europeus. Diferentes porque andavam nus; néo cultuavam o mesmo Deus cristéo; comiam e bebiam coisas inusitadas; tinham outras formas de organizagoes socials € polticas; nao tinham escrita; usavam técnicas variadas para explorar @ natureza, consideradas pelos portugueses como muito rudimentares, entre outros aspectos. Somadas todas essas diferengas, eles foram considerados como inferiores com rela¢do as europeus. Além dessas diferengas que podemos resumir como diferengas cultureis, pois vestimentas, religido, culinéria, danga, musica, ciéncia, tecnologia constituem-se como componentes da cultura, havia uma outra diferenga importante inscrita no corpo. A cor da pele € os tragos morfologicos (nerz, lébios, formato da cabega, queixo, textura do cabelo, etc.) diferenciavam fisicamiente indios e portugueses. Todas essas diferencas, fisicas e culturais, constituiram, na viso dos “descobridores portugueses”, a3 ceracteristicas fundamentais dos recém-descobertos, coletivamente denominados indios. No inicio, os portugueses, sabendo que era impossivel muder as caracteristicas fisicas desses seres considerados inferiores, aposteram em provocar mudangas em suas culturas, comegando por sua conversao a0 cristianismo. Gradativamente, submeteram essa gente a um intenso Portugueses e indios brasileios no descobrimento do Brasil (Descobrimento do Brasil, Oscar Pereira de Siva) 14> processo de aculturago que os integraria na visdo de mundo ocidental; 0 que faria deles indios de “alma branca’. Assim, ensinaram sua lingua aos indios, prescreveram como deveriam se comporter, o que deveriam temer, em quem deveriam acreditar e as leis que deveriam respeitar. Esse conjunto de procedimentos constituiu a chamada Miss4o Civilizadora. Miss40 de responsabilidacie dos homens brancos em relagéo aos povos por eles descobertos, qualificados como selvagens ou primitives. Por tras deste belo discurso @ dessas boas intenges, a Miss40 Civilizadora tinha como verdadeira intengao a dominagao. O ato aparentemente generoso e humanitério, de ajudar ao “outro", de promover 0 desenvolvimento por meio da aquisigao da ciéncia ¢ tecnologia, da integragéo na boa religido, escondia os verdadeiros motives: a dominagao politica co outro pela invasao do seu territério, a exploragao econdmica de suas riquezas naturais e a sujeic&o cultural que pretendia substituir as culturas, religido e viséio de mundo dos povos indigenas por outras consideradas melhores e superiores. ‘A dominago poltica foi realizada pela ocupagao do territério pelos estrangeiros portugueses. Faziam incursées em terras indigenas, instalando capitanias (pequenas provincias) e outras formas de ocupagéo comuns na época as regides invadidas. Os bandeirantes, considerados como herbis, civilizadores, foram responséveis pela invaso de terras e pelas atrocidades feitas 20s povos indigenas. A presenga da soberania estrangeira devia assegurar a explorago econémica. Terras abundantes, esséncias naturais, matérias-primas vegetais minerais estavam todas prontas para serem exploradas para produzir riquezas. Mas feltava uma condigao fundamental que Portugal nao era capaz de fornecer: a fora de trabalho, a m&o-de-obra gratuita. Na época, Portugal ndo era um pais muito povoado para fornecer a quantidade de pessoas necesséria para esta exploracdo. Além disso, seus habitantes no trocariam suas raizes pela aventura numa terra tao longinqua @ desconhecida sobre a qual viajantes contavam tantas historias monstruosas. Repetindo uma historia bem conhecida entre “nés", a necessidade de m&o-de-obra para explorar as terras dos indios obrigara os invasores portugueses a buscé-la nas terras recém-descobertas, junto &s populagdes locais. Teria sido possivel conseguir essa méo-de-obra pelo estabelecimento de um centrato de trabaho livre, mediante uma remuneragao, como jé era pratica na propria Europa? Esta forma de relagdo de trabalho, no século XV, ainda estava engatinhando entre os europeus. <15 16> Para conseguir a mao-de-obra necesséria, os colonizadores recorreram a um procedimento chamado escravidao, destituindo populagées indigenas de todos seus direitos sobré’a terra de seus ancestrais € de seus direitos humenos e transformando-os em forga animal de trabalho. Sendo escravizados, os indios eram obrigados a trabelhar gratuitamente sem remuneracao. Encontrando-se em seus territérios que melhor conheciam e dominavam, eles tenteram resistr & escravido, buscando esconderios nas reas das matas virgens de dificil acesso aos invasores. Foram encurralados © cagados por invasores armados com fuzil a pélvora e com cdes treinados. ‘As doengas venéreas, gripes e outras endemias trazides pelos europeus contribuitam também para plorer 0 quadro demogrético das populagdes que a chegada dos primeiros portugueses, no século XV, contavam-se por milhdes € que hoje no chegam gos duzentos mil ‘A resistencia dos povos indigenas ao processo de escravizagéo teve duas conseqiiéncias notaveis: a sua massiva exterminag&o ¢ a busca dos africanos que aqui foram deportados para cumprir 0 que os indios nao puderam fazer. Assim, abriu-se caminho ao tréfico negreiro que trouxe 20 Brasil milhoes de africanos que aqui foram escravizados para fornecer a forga de trabalho necessaria ao desenvolvimento da colénia. Seres livres em suas terras de origem, aqui foram despojados de sua humanidade através de umn estatuto que fez deles apenas forga animal de trabalho, coisas, mercadorias ou objetos que podiam ser comprados e vendidos; fontes de riqueza para os traficantes (vendedores) e investimentos em “maquinas animais" de trabalho para os compradores (senhores de engenhos). Foi este o regime escravista que fez do Brasil uma espécie de Sociedade Gividida e organizada em cues partes desiguais (como uma sociedade de castas): uma parte formada por homens livres que, por coincidéncia histérica, & branca, e a outra formada por homens e mulheres escravizados que, também por coincidéncia histérica, é negra. Aescravidao foi o meio que os portugueses encontraram para tirar maior lucro do Brasil. Além do tréfico e do comércio de algumas esséncias naturals, em especial o pau-brasil (que deu crigem ao nome do pais). eles recorreram também & agricultura de acuicar, na 6poca um produto raro, comercializado pelos érabes e vendido em gramas a prego de ouro, como se vendem hoje os remédios nas farmécias. Os portugueses descobriram o ‘segredo da plantagao de acucar entre os sicilianos e a experimentaram nas ithas de Acores e de Séo Tomé e de lé a importeram para ¢ Brasil junto com Os primeiros escravizados, provavelmente trazidos dessas ilhas. No $e sabe com exatidao a data da deportagao dos primeiros afticanos para o Brasil. Alguns autores indicam que os africanos foram deportados a partir da primeira metade do ‘século XVI; outros na segunda metade. A Unica certeza que temos é a cle que comegaram a chegar no ‘século XVI, com a produgao de agticar que se constituiu na primeira atividade ‘entavel ¢ a partir da qual teve inicio a construgéio da base econémica do pai, Gradativamente, foram descobrindo e explorando outros ramos da agricultura, Como 0 fumo, 0 algodao, 0 café e as atividades de mineracdo, sempre no modelo escravista inspirado no modelo dos engenhos de cana-de-agticar. Até a primeira metade do século XVII, o nimero de imigrantes europeus Que entraram no Brasil era muito reduzido. A maioria deles veio de Portugal que, Naquela época, tinha menos de um milhao e meio de habitantes. A Populagao branca, nas estimativas feitas em 1798 e 1817, era de aproximacamente 1,3 milhao; 35% da populagao total. Um pouco mals de um terco da populago era de crigem européia e a maior parte era de origem africana e inaigena. A partir de 1808, a populaco branca comegou a crescer gragas ao fim da Iei que proibia a imigragao no portuguesa. Iniciaram entéo as grandes Correntes imigrat6rias, de diversos paises europeus, em fungéo de uma Politica de subvengao do governo colonial que financiava as viagens desses imigrantes. Em épocas ¢ datas diferentes a partir de 1808, vieram alemdes, sulgos, italianos, espanhdis, franceses, irlandeses, poloneses, austriacos, belgas, russos, ingleses, sirios e libaneses. Os asiiticos, em especial os laponeses, comegaram a entrar no fim do século XIX ¢ inicio do século XX, Principalmente a partir de 1908. De modo geral, 0 atual povo brasileiro 6 oriundo de quatro continentes: América, Europa, Africa e Asia. Quando os primeiros portugueses pisaram nesta terra em 1500, eles encontraram no local um mosaico de centenas de nagGes ou grupos nativos a quem denominaram indistintamente indios. TToces: indigenas, estrangeiros (oriundos de outros paises) e africans eportados eram representantes de diferentes culturas e civilzagoes, Eles trouxeram em suas bagagens e memérias coletivas elementos Tepresentativos dessas culturas. E por isso que o Brasil, como pais e como Povo, oferece o melhor exemplo de encontro de culturas e clizagdes. Cada um destes componentes étnicos ou culturais trouxe sua contribuigao para a formago do povo e da histéria dos brasileiros; na construggo da cultura e de nossa identidade. Por esta razdo, aprender a conhecer 0 Brasil é aprender a conhecer a historia e @ cultura de cada um desses componentes para melhor captar sua <17~ 18> contribuigao na cultura e na histéria do pais. Para entender “nossa” histéria € nossa” identidade € preciso comegar pelo estudo de todas as suas matrizes culturals: indigena, européia, africana, arabe, judia e asiatica. infelizmente, no 6 isso que acontece na histéria do Brasil que foi ensinada tracicionalmente na escola e sistematizada pela historiogratia oficial. Em relacdo & matriz africana, na maioria dos livros didticos que conhecemos, 0 ensino sobre a Africa é geralmente ausente ou 6 apresentado de modo distorcido ou de forma esterectipada. Essa maneira distorcida de olhar @ Africa e seus poves pode ser ilustrada pelos antigos filmes de Tarzan © pelas informagées divuigades pela imprensa escrita ¢ falada ou pelas midias eletrénicas de modo geral. Nas informagGes veiculadas, focalizam-se, por exemplo, as chamadas guerras tribais, as calamidades naturals e as Goengas como Aids ¢ outras endemias que cizimam anualmente milhées de atricanos. O brasileiro de ascendéncia africana, ao contrario dos brasileiros de outras ascendéncias (européia, asiética, érabe, judia etc.), ficou por muito tempo privado da meméria de seus ancestrais. Por isso, a Lei n° 10.639, promulgada pelo Presidente da Reptiblica Federativa do Brasil em 2003, depois de 115 anos da abolic&o da escravidéo, veio justamente reparar essa injustica feita nao apenas aos negros, mas a todos os brasileiros, pois essa historia esquecida ou deformada pertence a todos, sem discriminagao de cor, idade, sexo, género, etnia e religiao. Africanos no Brasil: origem e coniribuigdes Origem (Os negros brasileiros de hoje so descendentes de africanos que foram trazidos para 0 Brasil pelo trafico negreiro. Muitas deles so mestigos resuitantes da miscigenacéo entre negros brancos, negros e indios. No censo brasileiro, os mestigos séo classificados como pardos, mas alguns deles, por decisao poltica ou ideoiégica, se considera negros ou afro- descendentes. tréfico negreiro € considerado, por sua amplitude e durago, como uma das maiores tragédias da historia da humanidade. Ele durou séculos € tirou da Africa subsaariana (regio do continents africano abaixo da linha do deserto do Saara) mithdes de homens e mulheres que foram arrancados de suas raizes e deportados para trés continentes: Asia, Europa e América, através de trés rotas: a rota oriental (através do Oceano Indico}; a rota transaariana (através do deserto do Sara e do Mar Vermelho); a rota transatlantica (através do Oceano Atiantico). | Os arabes foram responsaveis pelas rotas oriental e transaariena, no periodo compreencido entre 650 1600, estimando-se que teriam sido | envolvidos cerca de cinco milhdes de africanos. Por essas duas rotas, os | atricanos foram levados para 0 Oriente Médio (Arabia Saudita, Emirados | Arabes, lémen etc.) India, China, Sri Lanka etc. Os europeus foram os maiores responsaveis pelo trafico transatlantico, através do qual 40 a 100 milhGes de africanos foram deportados para Europa ¢ América. Embora os estudiosos no estivessem de acordo sobre as estatisticas, 40 milhées ou um pouco menes que isto é um nlimero assustacior quando se pensa em méo-de-obra naquela época, o que representa quatro vezes a populacao atual de Portugal ou a totalidade da populagao da Espanha, ROTA DO TRAFICO —~y Ess / Seance Mara com os continentes atticanos @ americanos que mostram as rotas do tréfico negraira bara a América @ para o Brasil (Mari de Nasaré Baiocchi, Kalunga: 0 povo da terra, Brasii, Ministerios da Justiga, Secretaria dos Drreitos Humanos, 1896), <19 20> Todos os africanos levados para 0 Brasil o foram através da rota transetlantica, envolvendo povos de tras regides geogréticas: a) Africa Ocidental, de onde foram trazides homens e mulheres dos atuais Senegal, Mali, Niger, Nigéria, Gana, Togo, Benin, Costa do Marfim, Guiné Bissau, Sao Tomé ¢ Principe, Cabo Verde, Guiné, ‘Camarées; ) Africa Centro-Ocidental, envolvendo poves do Gab&o, Angola, Republica do Congo, Reptiblica Democratica do Congo (antigo Zaire), Reptibica Centro-Africana; ©) Airica Austral, envolvendo povos de Moganbique, da Africa do Sul e da Namibia. Na literatura e outros textos sobre o assunto, diz-se geralmente que os africanos escravizados no Brasil foram trazidos do litoral de Angola, do litoral de Mogambique e do golfo de Benin, de onde embarcaram rumo ao Brasil. Mas, de fato, teriam vindo do interior das dreas citadas e de outros paises € grupos étnices, cuja documentacao foi em grande parte queimada sob as ordens de Rui Barbosa, ministro das relagdes exteriores do Brasil. Contribuigdes As contribuigdes dos africanos trazidos para o Brasil, de quem descendem os brasileiros de hoje, so de trés ordens: econémica, demografica € cultural. No plano econémico, os negros serviram como forga de trabalho, fornecendo a méo-de-obra necesséira as levouras de cana-de-acuicer, algodo, café ¢ & mineragdo. Uma m&o-de-cbra escravizada — sem remuneragao —, tratada de maneira desumana e submetida a condigdes de vida muito precéiries. Foi gragas a esse trabalho gratuito do negro escravizado que foram produzidas as riquezas que ajudaram na construcéo do Brasil colonial e na construgao da base econémica do pais. No plano demogréfico, os africanos ajudaram no povoamento do Brasil, téo grande era 0 trafico negreiro. A titulo de exemplo, a evolugao demogréfica, segundo alguns autores, mostra que, até 1830, os negros constituiam 63% da populaedo total, os brancos 16% ¢ os mestigos 21%. A partir de 1850, data da eboligao do tréfico negreiro, acompanhada pela ‘extingao da escravidao em 1888, 2 populacdo negra comegou a decrescer sensivelmente por causa das mas condi¢des de vida em que se encontrava e da mestigagem com brancos ¢ indios. Estimativa da Populacdo do Brasil (1820 a 1890) em porcentagem (*%) ¢ ndmero Asakusa 1827 72,54 15.5% 12% 100% (Fugendas) 9.768.000 800.000 «636.000 51,860.00 1830 63% 16% 21% 100% (Matte-Brun) 5.340.000 1.947.000 1.748.000 £84.350.000 Fonte: Femmando A. Albuquerque Meurko. “La présence de la culture aficaine et la dynamique du processus social africain au Brési", Communication présentée au 2° World Black and Festival and Culture, Lagos/Kaduna, Nigéria ~ 1S/janeio-12,feverero, 191 No plano cultural, cestacam-se notaveis contribuiges dos negros africanos na lingua portuguesa do Brasil, no campo da religiosidade, na arte visual, na danca, na misica, na arcuitetura ete. No plano da lingua, os africanos stroduziram um vocabulério desconhecido no portugués original e que faz hoje parte do falar brasileiro. Muitas palavras das linguas africanas so cotidianamente utiizadas pelos brasileiros, sem consciéncia de que so palavras africanas aportuguesadas. Alguns exemplos: acerajé, atoxé, agogé, angu, axé, bagunea, balanganda, bamba, banzo, berimbau, bobs, bumba, bunda, cagamba, cacimba, cagula, cafunds, cefuné, calunga, camuncongo, candombe, candombié, canjica, capan caruru, catimba, cuca, dendé, fubd, gangazumba, ginga, ie, 18, jf6,jinga, lengalenga, lamba, maculelé, macumba, mandinga, marimba, marimbondo, mocambo, mungunzd, moquece, muvuca, nagé, orixé, Oxalé, quenga, quiabo, quitanda, sacena, samba, senzala, soba, sunga, tanga, umbanda, vatapd, vodum, xereca, xoxote, ituais ce cancomiie (Trés zabumba, z0n20, zumbi etc. tambores no Brasi, Piere Verger, (Emanoel Aratjo, Para Nunca ae Esquecer: Negras Mamérias/ Fonte: Yada Pessoa de Castro, Falares africanos na Bahia, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, Meméries de Negros, Sé0 Paulo, 2001 } Miristério da Cultura/Fundecéo Cultural Palmares, 2007) 22> No que diz respeito @ religiosidade, os africanos legaram ao Brasil algumas de suas religiées populares, tals como o Candombié, Umbanda s Macumba, que fazem parte do patriménio religioso orasiletro. (%ang6 no Brasil, Pere Vergen. (Emancel Araujo, Para Nunca Esquecer: Negras Meménias/ ‘Memeérias de Negros, So Paulo, Ministéro da Cutura/Fundacao Cultural Palmares, 2001), Na arte, eles deixaram suas marcas nas figas de madeira, nos objetos de ferro, nos instruments musicais como os tambores, a culca, o berimbau. Na mineracéo introduziram a bateta. Borimbau, cuica e tambor (; ). _ Na musica e danga, eles introduziram os congados, coco, jongo, maculelé, maracatu, bumba-meu-boi, destacando-se 0 samba, um dos géneros musiceis populares mais conhecidos e que constitui uma das facetas da identidade cultural brasileira. Ceriménia de maracatu, bumba-meu-boi ¢ capoeira (Luis da Gémara Cascudo, Diciondrio do Folcore Brasiiero, 10. ed., $40 Paulo, Global, 2001). <23 24> idao na Africa e Trafico Mas qual a crigem da escravido, desta forma de exploracdo da mao- de-obra? A escravidao sempre se manifestou do mesmo modo que no Brasil colonial”? Appalavra escraviddo nao fol inventada a partir da deportacdo dos africanos e de sua escravizagao em outros continentes. Trata-se de uma préttica antiga na histéria da humanidade. Textes biblices e escrituras santas falam da escravidao dos israelitas no Egito antigo, onde trabalhavam nos rebanhos dos faraés. Tem-se eco do trabalho escravo nas literaturas sobre antigas civilizagdes egipcia, grega e romana. Algung dos monumentos gigantescos, cujos vestigios e ruinas resistem até hoje nesses civiizacées, foram construidos em parte com o trabalho escravo. De acordlo com algumas versdes da histéria, 0 tréfico humano sistema de escravidao ja existiam na Africa, mas essa questdo € um assunto carregadio de emocionalidade e afetividade. Os atticanos néo ficam & vontade quando se toca neste assunto, porque se sentem acusados de terem sido co-responséveis pelo trafico de seus proprios povos; por terem, através de alguns de seus dirigentes tradicionais, participado do trafico. Os brancos, de modo gerel, querem se libertar de suas culpas e das lembrancas das atrocidades cometidas no pasado ao transferir esta responsabilidade aos reis € aos principes atricanos implicados no tréfico e no comércio negreiro. Em muitos livros de histéria e materiais didéticos encontramos a seguinte justificativa para 0 trafico: “0 indio, acastumado com a liberdlace, recusou-se 20 trabalho escravo, 0 que obrigou 0 colonizador portugues a ir buscar essa méo-de-obra escrava no continente atricano onde os negros, acostumados com a escravidéo jd existente em sua terra, ndo se importavam com sua sorte”. Dizer que 0 colonizador portugués foi para a Africa buscar escravos que ele adiquiria, comprando-os pela troca de fumo da Bahia e de outres mercadorias, gragas a cumnplicidace dos reis e principes afticanos, nao deixa duvida sobre a crenga na existéncia des escraves como categoria natural, ou seja, na existéncia de seres humanos que nasceram escravos na Africa. A partir dessa crenga, podemos jé suscitar uma duvida e fazer uma primeira indagagao. Algumas pessoas podem nascer escraves, ou todos nascem livres, até que algum sistema os escravize no decorrer de suas vides? Pera comegar, 0 significado do conceito de escravo, no contexto das realidades africanas, € muito distinto daquele aplicado no Brasil ou em outras cutturas, em diferentes épocas. Na Africa, esse conceito seria aplicado a categorias distintas que nada tem ou pouco tém a ver cam 0 conceito de escravo, tal como se deu na realidade escravista do Brasil colonial e das Américas de modo geral. Na Africa tradicional, 0 conceito de escravo designava todes aqueles que estéo ou estiveram em uma relagao de sujeig&o ou subalternidade leiga ‘ou religiosa com um parente mais velho, um soberano, um protetor, um lider, etc. Geralmente, esses termos significam estar subjugado, suometido, dependente, servo. As filhas ptiberes, os cagulas, as esposas, os protegidos, ‘os penhorados, entre outros, esto submetidos ao poder absoluto do chete de familia. Eles podem ser espancados, alienados, eventualmente mortos. A obrigagao de trabalho passa sobre todos aqueles, frances cu cativos, que dependem de um senhor, de um “patriarca”, de um soberano. Ao contrario, 0 lado deles, alguns na mesma relagéo de sujeigéo podem gozar de privilégios que os colocam em uma situagao aparentemente superior. Além dessas relag6es de sujeigéo que existem em todas as sociedades africanas tradicionais (no interior de um reino, de uma chefia, de um cl, de uma linhagem, de uma familia), existiram também relagdes de sujeigao ‘quanto aos estranhos cativos das querras e penhorados pelas préprias familias. Quando havia guerra entre duas sociedades inimigas, a sociedade vitoriosa poderia ocupar ou anexar o territério vencido, que passava a integrar seu império; poderia deixar livres 0 rei e os habitantes do territério ‘ocupado, mas eles teriam como obrigagéo pagar regularmente um tributo Os vencedores poderiam capturar algumas pessoas, homens e mulheres calibatérios ¢ leva-los para sua terra, como cativos. Os catives masculinos trabaihavam como servos dos reis, notaveis e guerreiros, e os cativos femininos integravam os haréns desses como reprodutoras. Os homens catives podiam casar-se com as mulheres livres da sociedade, sem direito de paternidade sobre seus filhos que nasciam lives e eram integrantes das comunidades de suas maes. Ambos, fihos de homens e mulheres catives, nasciam totalmente livres. Houve também muitos casos em que aigumas sociedades domésticas no tiveram interesse em promover a reprodugdo continua desses cativos que adauiriram em azo das circunstancias gloriosas da guerra. Nao davam 208 cativos masculinos nenhuma ocupagao, nem na reproduggo nem na produc, fazendo deles apenes um bem de prestigio, um objeto desprovido de qualquer funedo ativa nas comunidades. Como outros bens semelhantes, eles poderiam ser destruidos através da imolago por ocasiéio de funerais ou ceriménias relgiosas (per exemplo, eram enterrades vives com o rei defunto, a5 ‘a quem continuavam a servir no mundo dos ancestrais). A imolago dos homens estranhos capturados era mais freqtlente que a das mulheres, porque o valor social e econémico destas como procriadoras ndo era subordinado a ditfceis processos de integragdo. Os cativos estranhos no provinham apenas das guerras. Existiu em varias sociedades africanas a pratica de penhor humano. Um cla, grupo ou linnagem, pela deciséo do petriarca, pocia empenhar um de seus membros celbatérios a uma oultra linhagem credora, que poderia usé-lo gratuitamente até a extingdo da divida. © penhor poderia ser feito, por exemplo, em momento de grandes calamidades naturais. Neste caso, o'parente era ‘empenhado para receber em troca quantidades de cémida para salvar a linhagem da fome, Os empenhados, emibora subjugades, néo perciam sua corigem. Sua condigao de cativo era proviséria e reversivel, pois com a extingdo da divida teoricamente teria direito & alforria. Todas as categorias acima descritas existiram nas sociedades africanas tradicionais, mas, nem por isso, devemos ver nelas a exist&ncia de um certo tréfico negreiro entre os poves africanos, anterior ao trafico transatlantico, pois a relacdo comercial que caracteriza 0 trético refere-se ao enriquecimento @ acumulagao de riqueza por seus responsdveis. Supde a existéncia de sisternas em que os seres humanos so mercadorias, produtos comerciéveis, que podem ser vendidos e comprados e a existéncia dos mercados regulares, para esse tipo de operagao. Nada, na Africa antes do trafico oriental @ transaariano liderado por arabes e do tréfico transatldintico liderado pelos europeus, comprova a existéncia do tréfico humano e da relagao de enriquecimento e acumulacdo de riquezas recorrentes. ‘Todas as situacdes de exploragao existentes na Africa tradicional acima referidas ndo se constituem em sistemas esoravistas, porque a exploragéo do era renovada sistematicamente e no suscitava uma categoria de individuos mantida institucionalmente (de fato ou de direito) em uma relagao de subordinacdio. A escraviddo como modo de exploragao 86 pode existir se se constituir uma classe distinta de individuos com um mesmo estatuto social. Essa classe distinta, dita escrava, deve-se renovar de forma continua € institucional, de tal modo que es fungées a ela destinadas possam ser garantidas de maneira permanente e que as relagdes de exploragao ¢ a classe exploradora (dos senhores) que delas se beneficiam possam também se reconstituir regular e continuamente. Nenhuma dessas formas de organizar a escravidao existiu na Africa antes do tréfico organizado, porque muitas dessas caracteristicas chocavam- se com as pratices culturais dos povos que ld viviam. Assim, nao era possivel nem necesséria a formagdo de uma populagao escravizada (a classe dos senhores e dos escravizados) por meio da reproducao. Os filhos nascides das unides entre mulheres e homens cativos eram sujeitos completamente livres e membros das comunidades recebedoras dos “estranhos”. Diferente do Brasil, onde, por um longo periods, os filhos de escravizados nasciam na mesma condigéo de seus pais e serviam para o aumento do contingente de méo-de-obra. Nas sociedades africanas, hevia uma impossibilidade pratica também, pois tal reprodugao supunha, Gemograficamente, um contingente iminimo de subjugados bem superiores aos contingentes habituais de cada comunidade doméstica, Esta ndo poderia reuni-los e submeté-los sem modificar profundamente, sendo radicalmente, as suas estruturas. Fora do acolhimento e da guerra, nao promoviam o abastecimento continuo de. pessoas subjugadas. Tanto a renovagéo continua, por meio de incursdes, ou da guerra periédica organizada, como a compra regular, estavam fora do alcance de uma economia de auto-subsisténcia com a dos povos que lé habitavam. CO tréfico negreiro instalou-se na Africa a partir de uma intervengao extema, arabe e ocidental, que ultrapassou o préprio continente. Por isso, no pocemos aceitar a tese de um sistema escravista africano que justificaria ¢ legitimaria as formas de escravidéo que deram origem as primelras separagées e deportagées de africanos historicamente conhecidas. Sem dievida, alguns dirigentes africanos dos séculos XVI-XIX entraram nesses circuitos de tréfico humano como forecedores da mercadoria humana num mercado intemacionel sobre o qual no tinham nenhum controle, Alguns se enriqueceram, tornando seus reinos bem potentes e armados com a ajuda és treficentes estrangeiros, para garantir 0 fornecimento regular da mercadoria através de capturas pela guerra. Mas 0 que deve estar em questéo néo sao os homens ou os Continentes ou pafses que se envolveram com 0 tréfico, mas sim o sistema escravista como tal e 0 trafico que 0 alirnentava, hoje considerado como uma das maiores tragédias da humanidade. Foram milhées de homens e mulheres arrancados de suas raizes que morreram nas querras de capture na propria Africa, nas longas caminhadas para os litorais de embarque, nas condigdes de confinamento, falta de comida e higiene nos armazéns humanos. construidos nos portos de embarque da carga humana, na travessia, enfim nas condigdes de trabalho e de vida reservadas a eles nos paises de destino que ajudaram a construir e a desenvolver.

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