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Saber de Si: O Papel da Autoconsciência no

Desenvolvimento da História Universal

Caius Brandão
caiusbrandao@globo.com

Introdução
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831), um pensador marcadamente
influenciado por Emmanuel Kant, é considerado um expoente do idealismo alemão.
Hegel foi responsável pela introdução de um método essencialmente dialético, com o
qual desenvolveu o seu sistema filosófico que culmina na Filosofia da História.
O sistema hegeliano compreende a filosofia em três grandes círculos, a saber: as
ciências da Lógica, da Natureza e do Espírito. A história está circunscrita na Ciência do
Espírito (subjetivo, objetivo e absoluto), mais especificamente na esfera do espírito
objetivo, que tem como objeto a Idéia, compreendida como o conceito e a efetivação do
conceito de liberdade, a qual só é possível entre os seres racionais (elemento espiritual).
Para Hegel, a idéia absoluta (ou idéia lógica) só encontra sua efetividade na realidade
concreta. Contudo, ela não ocorre no âmbito da Ciência da Natureza porque nele não
existe vontade livre, mas, apenas escolha e instinto. Em outras palavras, os seres
irracionais não podem eles próprios determinar livremente suas ações, posto que são
determinados pelas leis naturais. Neste âmbito, não existe liberdade e, por isso, não
pode existir história. Logo, a vontade livre é o ponto de partida da história universal,
que só se realiza no mundo do espírito, ou ainda, mediante a razão que governa o
mundo.
De acordo com Hegel, o ser humano tem sua origem após a criação do mundo
natural, mas com uma diferença essencial que é o elemento espiritual. O homem é um
ser natural, mas por ser também racional, ele representa uma antítese da natureza e se
ergue ao segundo mundo. O espírito e a sua própria evolução colocam em curso a
história do mundo, mesmo que esta sofra igualmente intervenções da natureza física.
Assim, ficam estabelecidas as determinações espaço-temporais da história universal.
Por outro lado, Hegel atribui à história um sentido racional a priori, sem deixar
de considerar que o seu desenvolvimento na realidade concreta ocorre mediante a
atividade espiritual dos homen. O caráter apriorístico do sentido da história do mundo
(o princípio de ordem teleológica) pode suscitar um problema acerca da liberdade do
espírito. Para elucidar esta questão, seria necessária uma ampla análise do sistema

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hegeliano. Neste trabalho, entretanto, nos limitaremos a ressaltar o papel que a
autoconsciência do espírito desempenha no desenvolvimento da história universal.
Em primeiro lugar, buscaremos traçar uma breve compreensão sobre a Filosofia
da História enquanto disciplina que se distingue da ciência histórica. Em seguida,
discutiremos sobre a determinação abstrata do espírito e suas configurações no mundo
concreto como sujeito da história universal. Esses passos iniciais nos servirão ao
propósito de explicitar alguns conceitos fundamentais, com os quais devemos abordar a
questão central deste trabalho. Em seguida, trataremos o tema da autoconsciência do
espírito ao relacioná-lo aos momentos mais marcantes da história universal que, para
Hegel, demonstram o progresso da liberdade.

A Filosofia da História

A tradição filosófica reconhece Hegel como o fundador da Filosofia da História.


De fato, o ponto culminante do sistema hegeliano é a Filosofia da História, que se
encontra circunscrita na Ciência do Espírito. Todavia, alguns comentadores atribuem a
Kant a pioneira distinção entre “Historie, disciplina do entendimento, e a
Weltgeschichte, discurso sobre o sentido necessário da história” (LEBRUM, 1979, p.
43). De qualquer forma, tanto em Kant, quanto em Hegel, a Filosofia da História busca
explicitar o fio condutor a priori da história universal, evidenciando um processo
racional com sentido e significado ao devir histórico. Vejamos como o próprio Hegel
define o papel da Filosofia da História:
Deus governa o mundo; o conteúdo do seu governo, o cumprimento do seu
plano é a história universal; apreender semelhante plano é a tarefa da
filosofia da história universal e o seu pressuposto é que o ideal se realiza,
que somente tem realidade efectiva o que se ajusta à ideia. Perante a luz pura
da Ideia divina, que não é um simples ideal, desvanece-se a ilusão de que o
mundo constitua um louco e insensato acontecer. A filosofia quer conhecer
o conteúdo, a realidade efectiva da Ideia divina e justificar a realidade
menosprezada. A razão é efectivamente a percepção da obra divina.
(HEGEL, 1995, p. 71)

Se a história universal não é uma combinação fortuita e desconexa de fatos, se


existe uma razão de ordem superior (a Providência) que governa o mundo com um
propósito, ou seja, um fim último que deve se realizar concretamente, então o conteúdo
desse processo deve se referir ao espírito do homem, que é o sujeito da história
universal. Como pano de fundo, temos aqui uma noção de progresso linear que se

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contrapõe à concepção cíclica da história. No devir histórico, a Filosofia da História
deve compreender o processo racional de evolução do espírito a partir de um princípio a
priori. De acordo com Márcia da Silva:
A história, como fato, é o material a que a filosofia se dirige, organizando os
acontecimentos segundo um princípio a priori e estabelecendo a sua
racionalidade, sem submeter-se ao acontecimento, mas, pelo contrário,
submetendo o acontecimento ao princípio filosófico. (SILVA, 2003, p. 104)

Para Hegel, mesmo que a história do mundo seja determinada também pela
natureza física, o mais essencial é o elemento espiritual e o curso da sua evolução. A
finalidade da história universal é a evolução do espírito. Ele deve alcançar uma
gradativa, mas completa consciência acerca daquilo que ele próprio é essencialmente, e
realizar objetivamente este saber de si. Se o que existe de mais essencial ao espírito é a
liberdade, então, o propósito da história universal é o progresso na consciência da
liberdade e da sua efetivação na realidade concreta do mundo.

A Determinação Abstrata do Espírito e suas Configurações na História Universal

Como vimos anteriormente, o homem é ao mesmo tempo natureza e espírito,


mas o que nele existe de mais substancial é justamente o elemento espiritual. Entretanto,
Hegel nos adverte que isso não significa que o espírito seja uma abstração da natureza
humana. Ele possui sim uma determinação abstrata, na medida em que o seu conteúdo é
sempre completamente espiritual. A sua existência consiste em se por a si mesmo como
objeto. Assim, dizemos que ele é consciência na medida em que é autoconsciente. Ao
fazer de si o seu próprio conteúdo, o espírito está sendo em si mesmo e isso, para Hegel,
é liberdade. Ao construir uma representação de si, o espírito busca conhecer a sua
própria essência. Logo, o saber-de-si do espírito é o reconhecimento da sua liberdade
como elemento essencial. Justamente por isso, na medida em que a autoconsciência do
espírito progride ao longo da história do mundo, dá-se também o avanço da liberdade.
Neste ponto, já podemos então sublinhar a importância da autoconsciência do
espírito para o desenvolvimento da história universal. Para Helgel, o “mandamento” ou
o “ímpeto irresistível” do espírito na história do mundo é a sua gradativa tomada de
consciência acerca de si mesmo e a realização efetiva do que ele é verdadeiramente
(liberdade). É importante salientar que a determinação abstrata aqui tratada se refere ao

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espírito enquanto definição conceitual, independentemente de sua configuração na
realidade concreta. No curso da história do mundo, o saber-de-si do espírito e sua
realização é um processo linear e irreversível rumo à plena consciência de si mesmo.
Na realidade objetiva, o espírito é absolutamente vivo e está em constante
atividade. De acordo com Hegel,
A actividade é a sua essência; ele é o seu produto e, portanto, é o seu começo
e também o seu fim. (...) Produzir-se, tomar-se a si próprio como objecto,
saber de si, eis a tarefa do espírito; portanto, este existe para si mesmo. As
coisas naturais não existem para si mesmas; por isso, não são livres. O
espírito produz-se e realiza-se segundo o seu saber-de-si; age para que o que
de si mesmo sabe também se realize. Portanto, tudo se reduz à consciência
que de si tem o espírito; se o espírito sabe que é livre, então isto é
inteiramente diferente de quando não o sabe. Com efeito, se não sabe, então é
escravo e está contente com a sua escravidão e não sabe que esta lhe não é
devida. (HEGEL, 1995, pp. 53-54)

Quando este povo toma consciência de si, compreendendo o seu próprio eu, e
atribuindo a si mesmo uma identidade própria, sua língua, costumes, leis, em suma, sua
atividade espiritual em determinado período da história constitui o que Hegel chama de
espírito do povo (Voksgeist). Quando o espírito sabe de si, ele se coloca num estágio
superior de realização efetiva da liberdade no mundo, isso porque saber de si é saber-se
livre. Na história mundial, o povo é a configuração mais concreta do espírito, que é um
indivíduo coletivo, um particular com natureza universal. No auge do seu apogeu, os
povos que, ao seu tempo, carregam o espírito do mundo (Weltgeist) exercem uma
hegemonia sobre outros povos, influenciando suas noções acerca da consciência da
liberdade. Mas o espírito do povo é como um ser vivo e, como tudo que vive, ele
também perece. Ele atinge o seu auge e entra em declínio, perde a vitalidade, e passa a
viver da fruição de seus feitos e conquistas. Neste momento, ele é já é capaz de realizar
uma auto-reflexão mais aprofundada, o que possibilita a consolidação da sua arte,
religião e filosofia. Concomitante ao perecimento deste povo surge outra civilização
para tomar o estandarte do espírito do mundo. Através dos povos particulares, o espírito
do mundo avança na tomada de consciência de si e na realização da liberdade. Diferente
da natureza, na qual a vida e a morte representam um ciclo eterno de continuidade do
mesmo, no mundo espiritual, com a morte de um espírito particular e o nascimento de
outro que assume o seu papel hegemônico, dá-se a evolução do espírito do mundo.
Desta forma, ocorre o progresso cumulativo da autoconsciência da liberdade e de sua
realização na história universal.

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Em suma, Hegel enxerga na história universal as seguintes categorias: o
espetáculo da mudança (a transitoriedade do espírito de um povo que após atingir o seu
apogeu, declina para dar lugar a um novo povo que passa a carregar o espírito do
mundo); o rejuvenescimento (o acúmulo progressivo do nível de consciência da
liberdade); e o propósito ou fim último (a autoconsciência do espírito do mundo acerca
da sua verdade e a sua efetiva realização no mundo).

O Progresso da Liberdade

Hegel lança mão de três quantificadores lógicos (um, alguns e todos) para
caracterizar etapas fundamentais no progresso da liberdade do espírito do mundo na
história universal. A primeira etapa deste processo se dá com o império oriental, onde
apenas um é livre. Em seguida, o império grego galga mais uma etapa, quando alguns
são livres. Mas a liberdade de todos apenas seria conquistada com o surgimento do
império germânico, quando a universalidade da liberdade é reconhecida, ou seja, que o
espírito do homem é livre por definição. Vejamos a seguir como este progresso da
liberdade se relaciona com o avanço da autoconsciência do espírito no devir histórico.
Na visão hegeliana da história, a civilização oriental se caracterizava pela
ausência de liberdade. Mesmo reconhecendo que somente o soberano é um indivíduo
livre, Hegel afirma que “Este um é, pois, apenas um déspota, não um homem livre,
verdadeiro homem” (HEGEL, 1995, p. 59). A noção moderna de vontade própria,
necessária à realização da liberdade, era algo inconcebível no mundo oriental, onde os
súditos seriam incapazes, pela ausência de uma consciência individual, de discernir o
justo do injusto a partir de julgamentos próprios. Isto se dava particularmente na China
e na Índia, onde a ausência de uma independência individual dos súditos resultava no
despotismo do patriarca e da natureza, respectivamente. Na Pérsia, no entanto, mesmo
que apenas o soberano fosse livre, existia um princípio geral que regulava as leis e os
costumes. De acordo com Peter Singer: “A idéia da norma baseada num princípio
intelectual ou espiritual significa o início do desenvolvimento da consciência da
liberdade que Hegel pretendia traçar; portanto, é o começo da ‘verdadeira história’”
(SINGER, 2003, p. 26).
Após o ápice e o declínio do império persa, surge a civilização grega
desempenhando um papel importante na evolução do espírito do mundo. Para Hegel: “A

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consciência da liberdade surgiu primeiro entre os Gregos” (HEGEL, 1995, p. 59). De
fato, o reconhecimento do princípio da “livre individualidade” avança com os gregos,
mas isso não significa que Hegel tenha admitido que neste império a liberdade do
indivíduo estivesse integralmente assegurada. Ele pondera que a liberdade entre os
gregos não era perfeita, na medida em que para alguns (os cidadãos) serem livres na
participação política, eles dependiam da escravidão de grande parte da população para a
sua manutenção econômica. Além disso, Hegel considera que os gregos não possuíam a
noção de consciência individual. De acordo com Singer, “seria mais correto dizer que os
gregos costumavam pensar em si mesmos como tão indissoluvelmente ligados a sua
própria cidade-estado que não distinguiam seus próprios interesses dos interesses da
comunidade na qual viviam” (SINGER, 2003, p. 29).
Para Hegel, o auge do progresso da liberdade na história universal se deu com o
império germânico (Alemanha, Grã-Bretanha, Holanda, etc.). Com o advento da
Reforma do cristianismo – movimento religioso que pregava aos seus fiéis a
independência de qualquer autoridade externa para interpretar as escrituras sagradas, e
defendia também que os cristãos tivessem uma relação direta com Deus – a consciência
individual passa a ser “o juiz último da verdade e da bondade” (SINGER, 2003, p. 34).
Esse foi o passo necessário para que o ser humano fosse considerado essencialmente
livre. Entretanto, a mera tomada de consciência acerca da liberdade do espírito, mesmo
que necessária, não seria suficiente para a efetiva realização da liberdade no mundo
concreto. Para tanto, seria também necessário que os princípios gerais da razão (a
liberdade do espírito) governassem todas as instituições sociais. Nas palavras de Singer,
Duas coisas seriam necessárias: que os indivíduos governassem a si mesmos
de acordo com suas próprias consciências e convicções, e também que o
mundo objetivo, que é o mundo real com todas as suas instituições sociais e
políticas, fosse racionalmente organizado. (SINGER, 2003, p. 37)

Hegel considerava que a efetiva realização da liberdade de todos começa a ser


concretamente viabilizada com o surgimento do Estado moderno, mais especificamente
com a monarquia constitucional da Prússia de seu tempo. Apenas então a plena
autoconsciência da liberdade poderia reinar tanto no âmbito subjetivo, quanto no
objetivo. Mas seria este o fim da história universal? Qual o sentido da história que já
realizou a sua finalidade?

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Considerações Finais

Hegel atribui à autoconsciência do espírito um papel axial para o


desenvolvimento da história universal, cujo fio condutor é o progresso da liberdade. Ao
longo deste trabalho, procuramos demonstrar a compreensão hegeliana de que, no devir
histórico, o progresso da liberdade caminha pari passo com o progresso da consciência
que o espírito acerca de si tem. Quando o espírito se coloca como objeto de si mesmo
(autoconsciência), ele busca conhecer a sua essência, que é a liberdade. Logo, o espírito
que não se reconhece livre será sempre escravo de determinações que lhe são exteriores.
Por outro lado, temos que ressaltar que a autoconsciência é necessária ao
progresso da liberdade, mas não suficiente. Isso porque o fim último da história
universal é o progresso da liberdade, tanto no plano subjetivo quanto no objetivo. Em
outras palavras, o espírito não pode ser livre se ele assim não se reconheça. Mas ele
deve também ser capaz de criar condições objetivas para que a liberdade se realize
concreta e efetivamente. Tais condições objetivas, para Hegel, significam a adequação
das instituições sociais aos princípios gerais da razão, os quais nos revelam que a
liberdade é a essência do espírito do mundo.

Referências Bibliográficas

DA SILVA, M. Z. A. História e astúcia da razão em Kant e Hegel. Fragmentos de


Cultura. Goiânia: Instituto de Filosofia e Teologia - Sociedade Goiana de Cultura -
Pontífica Universidade Católica de Goiás, outubro de 2003.

______________. A Razão na história: introdução geral à filosofia da história.


Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995.

LEBRUN, G. Uma escatologia da moral. Manuscrito. Tradução de Renato Janine


Ribeiro. Campinas: Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da
Universidade Estadual de Campinas, vol. 2, nº 2, abril de 1979.

SINGER, P. Hegel. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

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