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Estupos O GOVERNO DOS AUSTRIA E A «MODERNIZACAO» DA CONSTITUICAO POLITICA PORTUGUESA ANTONIO MANUEL HESPANHA Departamento de Histéria da F.C.S.H.-U.N.L. PENELOPE. FAZER E DESFAZER HISTORIA, N.° 2, FEV. 1989 AM HESPANHA I 50 EsTupo$ A HISTORIOGRAFIA portuguesa sobre o periodo da monarquia dual tem sido seriamente obscurecida por uma «pré-compreensao» nacio- nalista, Durante muitos anos, a explicacao histérica do periodo filipino uti- lizou, quase exclusivamente, a ideia de «sentimento nacional» e de «patrio- tismo». Em muitos dos autores, esta perspectiva foi emocional e a-critica. A existéncia de um generalizado e nitido sentimento anticastelhano — antes, mas, sobretudo, durante e depois da integracdo na monarquia ca- t6lica — parece historicamente bem estabelecido, pois dele existem muitis- simos testemunhos da época, de nacionais e estrangeiros. Mas sua valori- zag&o no contexto das reacgdes portuguesas a politica filipina deve ser sujeita a algumas cautelas. Em primeiro lugar, e pata que se nao caia em proposicdes anacrénicas sobre o significado politico do nacionalismo', importa ndo esquecer que, na teoria politica da época sobre a legitimidade do Poder, as consideragdes «nacionalistas» so claramente preteridas pelas consideragdes «dlegitimis- tas». Isto acontece, também, na polémica luso-espanhola acerca da ques- tao dindstica, onde a questo determinante é a da legitimidade (quer quanto ao titulo, quer quanto ao exercicio) dos candidatos. Alguns argumentos.de sentido nacionalista — como o do principio do «indigenato» no provimento de honras e oficios?, o da utilizagao da lingua portuguesa nos actos oficiais ou, mais em geral, 0 do «desamor» dos reis castelhanos pelos stbditos por- tugueses — nao tém um valor auténomo, visando antes demonstrar a ile- gitimidade in exercitio dos reis da Casa de Austria (pela violagdo dos capitu- los jurados ou pelo incumprimento de regras deontoldgicas do oficio de reinar), Em segundo lugar, nao est4 provado que o «nacionalismo», sé por si, tivesse virtualidades (activas) para desencadear ou a resisténcia ou a revolta. O que parece provado, quer pelos eventos de 1580 quer pela cronologia dos movimentos anticastelhanos nos anos 30 do século seguinte, é que justa- mente este sentimento nacional permaneceu como um elemento passivo até. que factos politicos concretos tenham ofendido interesses sociais (de diversa natureza, desde a econdmica a simbélica) que, esses sim, provocaram a re- volta. O nacionalismo tera actuado, neste caso, sobretudo como um cimenito ideolégico do bloco social contestatario, facilitando a compatibilizagao de interesses e pontos de vista em si destoantes. A partir da década de 50 — sobretudo por influéncia do estudo de Jaime Cortesao, «A economia da Restaurac4o» (Cortesao, 1940) —, comegaram a aparecer estudos que procuravam reduzir a perspectiva nacionalista, ana- lisando, em contrapartida, os contextos sociais e econémicos que tinham condicionado, quer a «uniao», quer a «restauracdo» (Serr&o, 1950, Franca, 1951 e Godinho, 1968)?. iT Estes estudos, situados numa época em que predominava um certo re- ducionismo do «politico», nao consideravam suficientemente os efeitos politico-sociais das medidas governativas. A conjuntura econémica — e as suas sobredeterminacées conjunturais — tendia a polarizar a explicacao dos movimentos dos grupos sociais. Em contrapartida, foram menos destaca- dos os efeitos que sobre tais movimentos tiveram as préprias medidas po- liticas tomadas pelo Poder, em parte explicdveis no 4mbito da evolucao da economia, em parte auténomas em relagao a esta. Coube, sobretudo, a Anténio de Oliveira, numa jé longa série de traba- thos (v. bibliografia final) sobre revoltas populares durante o periodo fili- pino, chamar a atencdo para o impacte das medidas governativas, sobre- tudo das medidas fiscais, na gestagéo de um ambiente activo de reaccado antiespanhola‘, esclarecendo o alcance dos elementos «nacionalistas» na conjuntura filipista. No entanto, uma avaliaco rigorosa e global do movimento antiespanhol tem de ter em conta um facto fundamental, recentemente destacado, para Espanha, I. A. A. Thompson. Mas que é ainda mais fundamental, porven- tura, para Portugal: o cardcter estrutural das mudancas politicas empreen- didas pelos monarcas da Casa de Austria. De facto, a forma «espanhola» do Poder apresentava carcateristicas estruturalmente distintas da forma «portuguesa», esta ultima mais préxima das matrizes tradicionais do sis- tema politico europeu-ocidental, a primeira apontando para um Poder cen- tral mais centralizado, liberto de limitacdes corporativas e, por isso, mais eficaz. Enfim, mais «moderno». Neste artigo, procurarei, justamente tracgar um balanco das tensGes cau- sadas, em alguns sectores estratégicos do governo, por esta mudanga es- trutural da forma do Poder, procurando destacar as reac¢Ges sociais que daj decorreram. 1. Aspectos constitucionais. A comunicagao entre o rei e o reino. O periodo da monarquia dual introduz algumas novidades no plano da constituigao politica do reino. Algumas delas decorrem, como direi, da forca expansiva do modelo castelhano, a que a constitui¢ao politica portuguesa ja nao era imune, pelo menos desde os meados do século xvi. Outras, por sua vez, representam exigéncias da evolucdo da pratica politica das novas unidades politicas (frequentemente designadas com a expressaio «Estado mo- derno»), que se manifestam mais ou menos por toda a Europa e a que a dinastia portuguesa dos Braganca nao deixar, também, de se curvar. Um primeiro exemplo de modificac4o estrutural, no plano da constitui- Gio politica, é 0 do advento de novas formas de institucionalizar a comu- nicagao politica entre a coroa e os poderes periféricos do reino. 0 GOVERNO l DOS AUSTRIA 51 A HESPANHA | 52 EStupos . Como se sabe, durante os séculos xiv e Xv, o canal mais importante desta comunicagao tinha sido as cortes, nas quais tomavam assento, além dos procuradores dos estados privilegiados, os procuradores de mais de uma centena de concelhos. * Em que termos se entendia a funcdo representativa das cortes é matéria que carece ainda de dilucidacao. Por um lado, sobretudo quando se Ihes colocaram questdes de politica global do reino, por sua natureza indivisi- veis (v. g., questdes dindsticas, como em 1385, ou relativas a regéncia do reino, como em 1438 ouem 1562), parece que as cortes se assumiam como representando o reino. Em contrapartida, perante questdes de outro tipo, nomeadamente perante pedidos ou «servicos» a fazer 4 coroa — que, por sua natureza, eram «divisiveis», pois podiam ser aceites por uns procura- dores e rejeitados por outros —, permaneceu até muito tarde a ideia de que cada participante se representava a si mesmo e, em seu nome, concordava ou nao com o que lhe era pedido. Esta perspectiva atomista da representa- Gao, era, de resto, a que estava mais de acordo com o tépico, tantas vezes invocado, de que o que interessa a todos deve ser por todos aprovado (quod omnes tangit ab omnibus approbari debet). Na verdade, este brocardo tes- temunha um estddio de pré-personificago do reino; pois, adquirida a ideia de que o reino constitui um todo diferente do conjunto das partes, esta aberta a porta para a consequéncia de que a sua representacdo pode ser as- segurada apenas por alguns (a maior pars ou a sanior pars). A estrutura das cortes portuguesas, com uma abundante participacdio dos concelhos, favorecia este conceito atomista da representagdo. Bem se po- deria, com efeito, dizer que os poderes periféricos que importavam, para a decisao das matérias comuns, ai estavam todos. Por outras palavras, que nenhum dos presentes era representante de ausentes relevantes. Embora, ainda na segunda metade do século xvi1 — nomeadamente, NOs anos sessenta, sob a regéncia de D. Catarina de Braganca —, haja alguns sinais de quebra das anteriores concepodes, € a partir dos inicios do século xvi, na pratica politica de Filipe II e de Filipe III, que se ma- nifesta claramente que se estava estabelecendo — Ppropulsionada pela coroa, mas aceite, aparentemente, pelos concelhos — uma nova ideia sobre o funcionamento das cortes no seio do sistema de comunicagao po- Mtica entre a coroa e os estados. Ideia cujas linhas de forga sao as se- guintes: 1) a audicao do reino para fins tributarios deve restringir-se ao universo dos que vao contribuir; assim, se se tratar de uma finta apenas dirigida ao Povo, nobreza ¢ clero ndo tém de ser ouvidos; Il) 0 universo dos que contribuem — e, logo, que devem consentir — éum universo hierarquizado, dotado de uma cabega, de membros ¢ de ou- tras extensdes menores; a cabeca cumpre dar o exemplo e fazer as diligén- ESrupos cias e contactos com os membros; a estes representar (implicitamente) o resto do corpo; ILD) ao lado das cortes, ha outros érgdos que asseguram a participacdo/re- Ppresentacao do reino e velam pela salvaguarda dos seus foros e jurisdi- ges — os conselhos e os tribunais. Este novo modelo constitucional — em que a influéncia do modelo cas- telhano € notéria, mas que, em contrapartida, sobreviver4 a Restaura- ¢4o —, tem, como diremos, duas consequéncias politicas fundamentais. Por um lado, promociona a imagem da unidade do reino como corpo politico, dotado de uma cabega (capital) e de extensdes territoriais também encabecadas pelas suas cidades e vilas mais notaveis. O espaco da repre- sentagdo politica deixa de ser a anterior constelagdo inorganica de centena e meia de concelhos, para se tornar num sistema, hierarquizado, de uma cabeca com um numero limitado de membros, assegurando 0 controlo de todo o corpo. Por outro lado, acrescenta ao modelo da representag4o/participagao por cortes, o modelo da representacdo sinodal/burocratica. A primeira manifestacdo nitida do novo modelo da-se em 1612, aquando da negociagao do pedido de ajuda de custo do rei para a sua visita ao reino. Em Agosto de 1602, Filipe II escreve 4 camara de Lisboa, comunican- do-lhe a intengdo de se deslocar a Portugal (Oliveira, 1885, 11, 139). A via- gem é sucessivamente adiada, mas, em 1609, surge novo projecto, desta vez acompanhado de um pedido de subsidio para a deslocag&o, dados os apu- ros da fazenda real (Oliveira, 1885, 11, 178). Lisboa — que ja vinha sendo a principal interlocutora do rei nas insisténcias no sentido de ele visitar Por- tugal — escreve entdo as camaras das terras cabeca de correic¢&o, comuni- cando a visita iminente (ao que se cria) e pedindo uma contribuicaéo, bem como sugestdes quanto ao modo mais suave e adequado de obter o dinheiro. Ao mesmo tempo, requeria-lhes o envio de uma procurac&o com poderes bastantes para tratar com o rei o montante do subsidio e para fazer o seu repartimento pelas terras contribuintes (referéncia 4 carta de Lisboa em EFOL, 1, 189). Todas as cémaras respondem, reticentes quanto ao subsidio, mas apa- rentemente concordes com o processo seguido para o obter. A intervengdo de Lisboa como interlocutora privilegiada do rei e inter- medidria nas negociacées € justificada com recurso ao tépico da represen- taco simbélica do corpo pela cabeca®, Esta ideia de encabecamento de um conjunto de pessoas, nomeadamente para fins tributarios, por uma delas era corrente, nao sé na institucionalizagao da representacdo dos corpos (Hes- panha, 1986, I, 387 ss.), como em alguns institutos correntes do direito da época, como, por exemplo, na centralizacdo das prestacdes dos varios en- fiteutas de um mesmo senhorio num deles (0 cabecel). 0 GOVERNO DOS AUSTRIé 53 AM. HESPANHA I 54 Estupo$ © Apenas duas cidades se afastam desta aceitagao do papel mediador de Lisboa. Uma delas é Santarem, que lhe coloca uma restrigdo, ela mesma significativa e retomada anos depois, como veremos: a funcdo capital de Lisboa nunca precludiria o direito que as terras mais importantes — as de primeiro banco (Santarém, Coimbra, Porto e Evora) — tinham de serem ouvidas. O que apontava para uma representacdo do reino, ainda mais eli- tista, reduzida a cinco terras principais, a uma das quais se reconhecia al- guma primazia. «Posto que o intento da cAmara dessa cidade [de Lisboa] [...] seja sempre tratar do que convém a todo o Reino, sendo pode tirar as outras camaras do primeiro banco dar o seu parecer e voto nas matérias de importancia, pois se nao podem affectuar sem suas procuragées.» (carta de 25.5.1609, Oliveira, 1885, 11, 190) Mais radical era o Porto, quanto a deixar-se representar por Lisboa, «porque ndo parece bem que sendo esta cidade a segunda do reino, e a melhor de todo Entre Douro e Minho, que fique sujeita ao voto doutra» (assento de 8.7.1609, Oliveira, 1885, 11, 128). Mas, em suma, o que parecia estar em causa ndo era o principio da repre- sentacdo saniore parte; era o do Ambito dessa parte — cabecas de comar- cas, s6 terras do primeiro banco ou sé mesmo Lisboa? As relagdes entre os concelhos ouvidos e o resto do reino nao ouvido nao € expressamente abordado, salvo no caso de Tavira, que se assume, cor- respondentemente, como cabega do Algarve («ella so tomaré a sua conta todo o Servigo que este Reino do Algarve lhe ade fazer» (carta de 20.8.1609, Oliveira, 1885, 11, 209). Cartas de outras terras sugerem que elas sé esta- vam a responder pelos seus termos, sem se arrogarem a representacao da comarca; é 0 caso de Lamego, Miranda ou Braga. Mas outras claramente se encarregam de contactar as terras «suas dependentes»; tais sdo os casos de Coimbra, Porto («saberse a contia, para se comunicar com as villas e lugares vizinhos, que nisso devem contribuir», carta de 1.5.1609, Oliveira, 1885, 11, 202). Note-se que esta ideia de «terras dependentes» tinha uma fraquissima traducdo institucional, pois, em si mesmas, as cabecas de co- marca nao gozavam de qualquer poder hierdrquico ou de tutela sobre os concelhos da sua correigao. Elas apenas eram as sedes do corregedor — esse sim, com certos poderes regionais de tutela. Como ja foi notado (Maga- lh&es, 1986, 35), o poder local em Portugal é a-regional ou mesmo anti- -regional. Enfim, o negécio conclui-se «conforme a practica que se tratou com a camara da dita cidade, e com as demais cidades e villas, cabessas de comar- cas» (carta régia 4s cémaras transcritas, Oliveira, 11, 291). Faz-se a repar- tig&o por comarcas (ibid., 11, 289) e, mais tarde, envia-se o dinheiro para Lisboa, onde ficard 4 guarda da cidade, acabando esta por autorizar 0 seu dispéndio para outros fins, embora protestando que o nao poderia fazer sem consentimento das cAmaras. contribuintes. Embora Manuel Severim de Faria informe que foi grande a reac¢fo con- tra a finta, por ser geral, por ter sido aprovada por poucas c4maras e por STITT ser lancada sem cortes (cod. 241, da Bib. Nac. Lisboa, fl. 29), o que é certo é que estava lancado um novo modelo de representacdo e trato com o reino. Este modelo facilitava 0 controlo politico do reino. Por um lado, tor- nava mais operacional, do ponto de vista da coroa, a comunicacao com os poderes periféricos. A convocacdo e celebracdo de cortes era um processo moroso, dada a enorme quantidade de concelhos representados e a sua dis- persdo territorial. Mas também, do ponto de vista dos concelhos, sobre- tudo dos pequenos concelhos, a ida a cortes era, muitas vezes, pouco ape- tecida, pois a deslocacdo dos procuradores obrigava ao empenho das suas rendas por muitos anos, sem que, no final do processo, resultassem bene- ficios muito aparentes (Hespanha, 1982, 380 ss.), Numa época em que a coroa ja tinha estabelecido uma rede de funcionarios — nomeadamente, os corregedores — que podia servir de canal de comunicacéo permanente entre o centro e a periferia e em que tribunais e conselhos centrais digeriam com certa eficdcia a informagao dai resultante, o modelo das cortes, esta- belecido numa anterior fase do sistema de comunicagao politica, revela-se muito pouco econémico. Por outro lado, a substituicaéo de um modelo participativo e atomista por um outro representativo, nomeadamente, sob a forma de uma representa- ¢4o de muitos por muito poucos, facilitava o controlo politico do elemento concelhio. Sobretudo, se se tiver em conta que, a partir dos meados do sé- culo XVI, as vereacées das camaras mais importantes eram de nomeagao ré- gia. Em 1598, o Cardeal Alberto reivindica para si 0 apuramento das pau- tas das camaras do 1.° banco; em 1620, duas cartas régias (de 1.7 e 20.7) remetem a decisaio para Madrid, o mesmo dispondo o regimento do vice- -rei Conde de Basto, em 1633 (Silva, 1985, 1, 441 ss.; Hespanha, 1982, 257). E dificil deixar de pensar que este progressivo controlo dos governos das principais cidades e do processo de «elitizagéo» da representacdo do reino no séo fenédmenos relacionados. Mas no se pode ainda esquecer que esta centralizacdo da representacdo numas quantas cidades, nomeadamente na capital, pode seguramente in- diciar um processo de polarizacao do potencial econdémico, e logo tributa- tio, do reino em alguns centros. Antes de todos, na capital. Mas também em cidades como o Porto e outros centros portudrios, muitos deles sedes de correic&o (Viana, Aveiro-Esgueira, Lagos, Setubal e Tavira). Em 1619, porém, volta-se ao modelo tradicional das cortes. Mas ai, para além de se tratar da primeira visita do rei a Portugal, estava em causa um facto politico transcendente, como era o juramento do herdeiro. De qual- quer modo, pela documentago conhecida, nao parece que a participagdo dos concelhos com capitulos especiais tenha sido entusidstica (Serrao, 1977, 88 ss.). A manifestago mais nitida do novo modelo de comunicagao rei-reino dé-se, no entanto, com a negociagdo, em 1631, da renda fixa. A partir de O GOVERNO DOS AUSTRI? 55 AM. HESPANHA I 56 Est 1630, 0 governo de Madrid comega a insistir na necessidade de encontrar uma renda fixa anual de 1 000 000 de cruzados (crz.) para a constituigéo de uma armada permanente de 30 velas para o socorro do Brasil e para o apresto de outros meios militares para a conservac4o das conquistas portuguesas da Asia e da Africa (cf. lista das despesas em Oliveira, 1885, 111, 496 ss.). Con- correndo a coroa com 500 000 crz., caberia ao reino a outra metade. Em parte como medidas preliminares de recolha de fundos, em parte como meio de pressdo, a coroa introduz as meias anatas (31.6.1631), o estanque e tributo sobre o sal (4.8.1631) e retém o pagamento do primeiro quartel dos salarios, juros e tencas de 1632 (1.12.1631). Logo em Janeiro de 1632, perante esta ultima ameaga, o filho de um dos governadores do reino propde (parece que abusivamente) ao governo, em nome da cAmara de Lisboa, um expediente para realizar a soma pedida. O reino encarregar-se-ia do pagamento das tencas vitalicias a cargo da coroa, libertando cerca de 500 000 crz. das rendas reais (Oliveira, 1885, 11, 487). Para o desempenho das tengas, contava-se com a morte dos seus titulares, mas previa-se também a sua remissiio, realizada pelas forgas de um subsidio anual de 100 000 crz., a pagar pelo reino, e por ou- tros meios de que se pudesse dispor. Por sugestéo de Lisboa, foi nomeada uma junta, presidida pelo vice-rei, para gerir 0 processo do desempenho das tencas (junta do desempenho das tencas, junta da renda fixa ou junta de Per- nambuco) (ibid., 111, 537)’. Tendo o rei aceite a sugestao (ibid., 1, 555), é a propria junta que lhe sugere que se convoquem os procuradores dos bra- gos do reino, «elegendose cinquo p" ecclesidstico, cinquo p' nobresa e dez p' povo, sendo estes nomeados p'** cinquo camaras das quatro cidades e villa de Sanctarem, do primeiro banco» (cf. carta régia de 2.1.1633, Oliveira, 1885, Iv, 2). O rei conformou-se: «resolvi nesta conformidade se proce- desse, escrevendose aos prelados e nobresa; e com esta carta se vos remete a copia das que se escrevem as camaras com a das mais p* as do primeiro banco» (ibid., Iv, 2, onde se publica o texto da carta circular dirigida as c&- maras que nao eram do primeiro banco, pedindo-se-lhes que passassem pro- curagéo e poder a cada uma das cinco terras do primeiro banco). Formalmente, nao se tratava de cortes, mas apenas de uma junta, em- bora participada. No entanto, a opinido geral tomou a iniciativa como uma tentativa de convocar «cortes limitadas» (talvez 4 maneira castelhana), em violagao dos foros do reino. Tal foi o sentido do protesto dos procurado- res dos mesteres da camara de Lisboa, que, de Outubro de 1633 a Abril de 1634 encabecaram um movimento — que veio a ter apoio muito geral, pelo menos na capital — de contestag&o 4 convocacdo dos procuradores do reino (cf. Oliveira, 1885, 11, 544, 1v, 12 — «em cazo que seja necessario fazer cortes p* servigo do d. s, se hdo-de fazer neste reino, com assistencia pes- soal delrey nosso s*, e de todos os seus povos, e ndo por via de junta com povos limitados», assento de 4.2.1634, Oliveira, 1885, 1v,1)®. E interes- sante, em todo o caso, notar, que de tal modo estava interiorizada a ideia Estupos da representaco simbdlica do reino pela sua cabega, que a propria Casa dos 24 se arroga a representagdo do povo de todo o reino — «sem consen- timento do povo, que he hum dos bracos do R"™, se néo podem celebrar cortes [...] 0 qual consentimento o povo embargante desta cidade, em seu nome e dos mais do R"°, nao pode nem deve dar» (ibid. Iv, 28). O processo era, no fundo, semelhante ao de 1609. Com algumas dife- rengas. Sendo o projectado servico de aplicacéo geral, convocam-se tam- bém os procuradores da nobreza ¢ do clero. E, desta vez, opta-se por um modelo representativo menos centralizado: em primeiro lugar, porque os interlocutores directos da coroa sao as cinco terras do primeiro banco; de- pois porque, aparentemente, sdo pedidas procuracées a todas as terras com assento em cortes, e ndo apenas as cabecas de comarca". Se a tentativa triunfasse, as cortes portuguesas passariam a estar muito mais préximas do modelo castelhano"', No entanto, perante a resisténcia geral, a camara pede ao rei que opte Por outro meio de realizar a renda fixa e que «cesse esta voz de cortes» (Maio de 1634, ibid., 58). De futuro, a carta circular as camaras sera o meio es- colhido para a comunicagdo entre o rei € 0 reino, no sé para pedir dona- tivos voluntdrios, mas mesmo para lancar novos impostos, como 0 novo real d’dgua. Sempre que possivel, porém, Lisboa desempenha o papel de mediadora e de exemplo, encarregando-se, nomeadamente, da correspon- déncia mais delicada. Em 1632, 0 governo de Madrid chega ao extremo de pedir a camara da capital quarenta cartas seladas com o selo da cidade, mas com destinatdrio em branco, dirigidas 4s cAmaras do reino, instando-as a contribuirem para o socorro da india (real d’4gua e sustento de soldados), sem sobrescrito (carta régia de 12.7.1632, Oliveira, 1885, 111, 517). A Restauracao, em 1640, ndo oblitera completamente este novo modelo de representac&o do reino. As cortes na forma da tradi¢do constitucional portuguesa sdo naturalmente convocadas, ou ndo fora a violacdo desse pri- vilégio do reino uma das queixas mais frequentes dos sectores autonomis- tas. Mas, logo a parir de 1641, a camara de Lisboa recupera a sua fun- ¢40 mediadora ao propor ao rei um sistema de realizacdo do subsidio de 1 800 000 crz. acordado em cortes (cf. carta régia de 16.6.1641 e carta cir- cular da camara de Lisboa as restantes do reino, de 1.9.1641). As cortes a antiga, essas, entrarao na sua fase final, conhecendo a sua ultima reu- nido ainda antes do final do século. 2. Justiga e governo. Juntas versus conselhos. Um segundo aspecto das modificacdes da forma do Poder durante a mo- narquia dual é a instituicéo de um novo equilibrio entre «justiga» e «go- OGOVERNO I DOS AUSTRIA 57 A.M. HESPANI I 58 Estupos verno». Ou, pondo a questao do ponto de vista dos érgaos que tipicamente sustentam cada tipo de actividade, entre o governo por conselhos e¢ 0 go- verno por estruturas comissariais (secretarios, juntas ad hoc). A op¢4o por uma ou outra forma organizativa nem era irrelevante do ponto de vista das lutas de Poder — tanto das. de 4mbito mais vasto como daquelas que tinham a corte por palco — nem deixava ter uma relacdo pro- funda, quer com os objectivos do governo como com a forma de governar. Aestrutura sinodal — conselhos, com atribuigdes determinadas por lei e garantidas por eficazes mecanismos juridicos contra qualquer usurpacao, mesmo por parte do rei — constituia um suporte organizacional adequado a decis4o judicial, garantindo a expressdo de todos os pontos de vista € res- peitando, por isso, a natureza t6pica e argumentativa do processo juridico de decis&io (Hespanha 1982, 466 ss.). No entanto, revelava-se pesado e em- perrante no dominio da administracao activa, que exigia prontiddo e ine- quivocidade na decisdo, t{picas de érgaos individuais, mas nao de conse- lhos, acéfalos, de constituicdéo heterogénea, e atravessados por rivalidades pessoais e estatutdrias !. E este modelo organico-institucional que entra em crise nos inicios do século XVII. Com Filipe I, parece assistir-se, ainda, a um reforgo da administracdo si- nodal e jurisdicionalista. E, desde logo, reforcada — em termos ndo apenas simbélicos, mas também institucionais — a componente jurisdicionalista da administracdo, néo apenas pela promulgacao das Ordenacées (em 1603) — com 0 que isso representava de satisfacao das pretenses dos circulos de juristas, mas ainda pela reforma da justica (27.7.1582) e pelo reforgo da estrutura sinodal da administracdo juridico-judicidria, com 0 estabele- cimento, na mesma data, da Relacdo do Porto (ou Casa do Civel), tendo havido propostas de criag4o de outros tribunais superiores de Justica’?. Por outro lado, a estrutura sinodal alarga-se 4 administracdo da fazenda, onde os Vedores da Fazenda sao substituidos por um Conselho (20.11.1591), com atribuigées jurisdicionais e participacao de letrados*. Com a criacéo do Juiz dos feitos da fazenda da Casa da Suplicacdo, a jurisdicionalizagao dos assuntos de fazenda acentua-se, pois todas as matérias contenciosas pas- sam a ser competéncia deste juizo'*. Também noutros dominios de «go- verno», a estrutura sinodal é aperfeicoada: é criado-um Conselho da {ndia (12.8.1604; extinto em 1614, porventura por presséo da Mesa da Conscién- cia, 4 custa de cujas competéncias se criara 0 novo érgio), e a Mesa da Cons- ciéncia tem novos regimentos (12.8.1608). Este estilo de governar, fomentando a resolucdo colegial dos assuntos, sublinhando as competéncias dos érgaos ordinarios e privilegiando a com- ponente jurisdicionalista, transparece dos regimentos dados aos vice-reis € governadores, aos quais se recomendava a regular audigdo dos conselhos ESrupos ¢ a pontual observancia dos estilos do governo (v.g., cap. 21 do regimento do Cardeal Alberto). Para além disso, nos tribunais, mesmo nos que nao sao de justica — o que deixard de acontecer nas juntas eventuais dos dois reinados seguintes —, pontificam os juristas, depositarios da tecnologia ad- ministrativa entéo dominante; e que nao podiam deixar de, ai, veicular os Pontos a matriz jurisdicionalista de exercicio do Poder. O processo ordi- nario da comunica¢ao politico-administrativa passou a ser a consulta. Ou- vir os tribunais ¢ conformar-se com as consultas eram 0 modelo do bom governo. Segundo Manuel Severim de Faria (cod. 241, Bib. Nac. de Lis- boa), um dos factores de esperanga que se sucedeu 4 queda de Lerma e aos primeiros tempos de governo do novo rei foi o facto de que este «no des- pacho das consultas ajusta-se tanto ao que vai do Conselho [de Portugal] que nenhuma coisa muda, o que também guarda nos outros Conselhos» (fl. 173). A partir da primeira década do século xvi, as coisas comegam a mudar. Nao apenas, porventura, por uma questo de estilo pessoal do rei ou dos seus ministros, mas porque o ritmo da evolucdo da conjuntura politica, a preméncia das respostas que tinham que ser dadas e as necessidades de uma politica unitdria e de mudancas, obrigavam a um novo modo de institucio- nalizacdo da acc4o politica, a uma nova forma do poder central. Osinal mais evidente disto é constituido pela multiplicagdo de juntas even- tuais. Ja em 1581 se criara uma «Junta da justica de Portugal», constituida por letrados e tedlogos, visando a reforma da justica'®. Em 1601, cria-se, em Madrid, uma «Junta para a repartic&o dos Contos», constitufda por cas- telhanos; perante os protestos do reino — apesar de o rei afirmar que ndo se tratava de um 6rgdo jurisdicional concorrente do Conselho da Fazenda, mas apenas de um 6rgdo de consulta — é extinta!’. Nos anos que se se- guem — mesmo antes do consulado de Olivares que, segundo algumas opi- nies, teria adoptado as juntas como modelo preferencial de organizacao administrativa —, multiplica-se a constituigdo de juntas, encarregues de di- ferentes temas. Embora as generalizacdes, no estado actual da investigacdo sobre o tema, envolvam riscos, talvez se possa dizer que as juntas constituem o modelo organizativo de «oposigao» aos conselhos institucionalizados e, frequen- temente, ao grupo que neles pontificava, os juristas. Isto passou-se, segu- ramente, com a junta de 1612, animada pelo grupo Lerma-Castelo Rodrigo contra a facgéo Uceda-Salinas que controlava o Conselho de Portugal. A sua vitéria levou a constituigao de outras juntas, uma delas para a re- forma do sistema de pagamento dos assentamentos, que nao podia deixar de constituir um baluarte da oposi¢&o ao Conselho da Fazenda e a admi- nistracdo ordindria dele dependente '’; no mesmo sentido, a devassa, en- tAo desencadeada, contra os ministros de justia, que chegou a causar bai- 0 GOVERNO DOS AUSTRI/ 59 Est xas entre os altos funciondrios da administrag&o da justica”’. Mais tarde, por volta de 1631, novos conflitos estalam entre o Conde de Castelo Novo, presidente da junta da Companhia de Comércio, e os érgdos da adminis- tracdéo ordindria, nomeadamente os governadores e os funciondrios da fazenda”". E, no mesmo ano, verifica-se novo embate entre os tribunais or- dindrios, nomeadamente a Casa da Suplicacdo e a Mesa da Consciéncia, e as medidas tomadas pela Junta do desempenho das tengas (ou por sua inspiragéo), designadamente quando se mandam suspender os pagamen- tos dos saldrios aos oficiais ou quando a Junta se arroga poder de convo- car membros dos tribunais palatinos”. Por outro lado, uma breve andlise do pessoal nomeado para estas jun- tas ou comissGes mostra que os juristas daf estiveram largamente ausentes. Validos, nobres'ou nao, ¢ oficiais subalternos e praticos, sobretudo da ad- ministracao financeira, constituiram os grupos onde, geralmente, se fazia recrutamento. Pessoal sempre dependente do rei, destituido das garan- tias institucionais dos membros dos conselhos ordindrios — ou, em geral, dos detentores de oficio ordinarios; e, por isso, pagando a permanéncia em fungdes com a maleabilidade e a obediéncia ao rei e seus ministros. Num documento de 1638, a Mesa da Consciéncia exprime bem o senti- mento dos érgdos da administrag4o ordindria sobre as juntas ou outros ti- pos de comissao: «Algdas vezes, cometeo Vossa Magestade a hia pessoa particular, o apresto de hia armada, independente do Conselho da Fazenda com consignagées e effeitos signalados, mas hera hia armada sé para hum ano, que nao continuava tribuna [...] Porem as que se continuarao por mais anos, vierao a cahir e incorporarse na fonte donde sahirdo, pelos inconve- nientes que se experimentarao do contrario. E bem se vio nas criagdes das juntas e tribunaes novos com separacdo dos antigos do consulado, do Con- selho da India, das juntas do comercio della, e da fazenda, nas quaes se experimentou que n&o podiao permanecer, ¢ se extinguirao, e sempre ha- veria grande controversia [...] 0 que importa hé que os ministros, tenhdo (como tem) a sufficiencia que se requere para os cargos, e que corrdo as materias pelos tribunaes a que tocdo, e que faca Vossa Magestade delles a confianca que convem.»”3 Ao lado das juntas, outros oficiais «politicos» ganham progressivamente poder: refiro-me aos secretarios de despacho e secretdrios de Estado”*, No periodo de Olivares, destaca-se, neste plano, Diogo Soares que, em com- binacdo com o seu sogro e cunhado Miguel de Vasconcelos, domina a po- litica portuguesa de 1631 a 1640, Numa carta a Miguel de Vasconcelos, ele exprime, orgulhosamente, o seu valimento junto do Conde Duque nos se- guintes termos:. «cada vez estou mais bem visto de meu amo, e agora me fez muita mercé a Condessa sua molher e tratando com o Conde meu Sr. ha negocio me disse: hable en el a Su Mag” y quite de ahi sus borsegui- nes. De maneira que me obrigou a fazer hi vestido de galla bem contra a minha vontade. Enfim, nado he cousa que ndo queira, que logo me nado chame»?5, Valimento que the permitia tratar com sobranceria a mais alta nobreza portuguesa e os ministros os mais elevados tribunais”®, Para além desta progressiva concorréncia das juntas com os Orgaos or- dindrios de governo, ha outros sintomas de substituicdo de um paradigma Jurisdicionalista de governo por um paradigma politico. Referimo-nos a tendéncia (que esté ainda muito longe de se consumar) para o afastamento da via ordindria de governo — que, grosso modo, cor- respondia a via da justiga, com toda a sua abertura a controvérsia e a pro- tecedo dos direitos dos particulares — em favor de processos mais expedi- tos e «autoritarios». Os sinais sio muitos. O mais evidente é a proibigdo de recorrer aos meios ordindrios de justica para reagir contra os actos do poder?’, A cobertura tedrica desta proibicdo de utilizar os meios ordindrios de justiga perante as decis6es emanadas dos érgdos de governo, encontramo-la numa carta ré- gia de Filipe III aos governadores do reino: «o direito das minhas provisdes € de todas as que se fizerem per jurisdigio subdelegada de mim sdo meo da minha vontade so independente [sic] de mais que de so Deus no que nfo he ecclesiastico e com isto respondo as demais das meyas annatas em que nao deveis de consentir em nenhfia sombra de Proposi¢ao contraria, eo mesmo na execucam do sal que nem hum nem outro he tributo, se ndo so- mente taxa...» (cod. 2632, Bib. Nac. Lisboa, fl. 322 v.). Enfim, o rei in- voca expressamente a teoria do oficio comissarial e da iurisdictio delegata, de remota origem, mas postos em evidéncia nos novos ‘modelos da administracdo”*, Este conflito entre dois modelos de administragao tem a sua contra-face, na luta entre dois grupos de «pessoal politico». Daj que ao desfavor da administracdo jurisdicionalista correspondesse um ambiente de ataque aos juristas. Da parte destes, a reaccao tipica era a de insistir em argumentos «conservadores» — manutengao das jurisdi- ges, manutencdo dos foros e privilégios, manutengao da via ordindria da administracdo, interdig&o das matérias de justica «as pessoas do governo». Ao mesmo tempo que se procurava prestigiar a funcdo da justica, aumen- tando o ntimero dos letrados nos tribunais, reforgando a seleccdo e pro- mogao pelo mérito (que, afinal, era controlada pelo corpo dos juristas), me- Ihorando a imagem social da justiga, sobretudo quanto a sua limpeza e eficiéncia, defendendo as prerrogativas simbélicas (nomeadamente prece- déncias), aumentanto os saldrios”?. Em contrapartida, os «politicos» multiplicam as medidas que, intencio- nal ou objectivamente, representavam ataques & Posicao dos ministros le- trados. Assim, em 1612, determina-se uma devassa contra os ministros da 0 GOVERNO l DOS AUSTRIA 61 AM. HESPANHA I 62 Estupo$ justica, conduzida pelo bispo das Canarias [Faria (BNL 241), 30 e 35 v.], que provocou 0 afastamento de um desembargador do Paco e de um de- sembargador da Casa da Suplicacdo. No mesmo ano, projectam-se medi- das de economia, pela redugdo dos oficios, 0 que nao deixava de cair, so- bretudo, sobre a camada burocratica, com consequentes prejuizos morais e materiais (ibid., 13 v.). Em 1621, promulga-se a odiada «lei dos inventa- trios», que obrigava todos os oficiais a entregar, ao tomar posse do cargo, um inventario dos seus bens, Em 1632, instituem-se as meias anatas, que recairiam duramente sobre o oficialato (cf. Hespanha, 1986, 1, 56 n. 52). No mesmo ano e em alguns dos seguintes, suspende-se o pagamento de quar- téis de saldrios, dando origem a conflitos graves entre a Casa da Suplica- ¢o e 0 tesoureiro da alfandega de Lisboa (Oliveira, 1980, 32 e 33 ss.). O préprio estilo «prolixo» das consultas dos tribunais no deixa de ser cen- surado pelo Conde Duque?!. Nao admira, com isto, que nos tribunais se encontrassem muitos «populares», ou seja, parciais nas opinides que faziam curso, hostis ao governo (Oliveira, 1980, 32); e que se encontrem n&o poucas medidas judiciais que contrariam os objectivos do governo. Um exemplo, parti- cularmente notério na época, € o da anulacao das doacées de bens da co- roa feitas a nobres castelhanos (v.g., a0 Duque de Lerma, ao Conde de Salinas e a D. Leonor Pimental), por contrariarem os pactos jurados em Tomar. 3. Pecunia nervus rerum. : A imposic&o de uma estrutura financeira «moderna» A visdo que decorre, quer da leitura das fontes literarias da época quer da literatura secundaria sobre o periodo filipino, é a de que entao se assis- tiu a um agravamento insuportdvel da carga fiscal. E, no entanto, neces- sdrio procurar estabelecer, com mais rigor, tanto em termos absolutos como em termos comparativos, 0 que de facto aconteceu. O poder real portugués de Seiscentos herdou o sistema financeiro do sé- culo anterior. Na verdade, a estrutura seiscentista (até 1641, pois entdo as coisas mudam sensivelmente, com a criagéo das décimas) das receitas da coroa é basicamente idéntica 4 que se estabelecera a partir dos meados do século XVI, nomeadamente com o encabegamento das sisas. Tal estrutura caracteriza-se, fundamentalmente, pelos seguintes tragos?*. A cobertura das despesas ordindrias do reino [despesas correntes da administracao (nomeadamente, salarios), liberalidades régias em dinheiro (tencas e juros) e servico da divida (juros)] era feita, fundamentalmente, com 0 produto das suas receitas ordindrias. A cobertura das despesas ex- traordindrias («despesas de Estado») era feita com os sobejos das rendas or- Esrup0$ dinarias e com o rendimento do comério ultramarino (rendimentos da Casa da India, muito varidveis de ano para ano). O quadro seguinte, baseado em dados recolhidos noutro lugar?, resume a situagdo das receitas da coroa, em Portugal e em Castela, durante 0 pe- iodo que nos ocupa, bem como as respectivas capitagdes. PORTUGAL CASTELA 1601-1620 1621-1640 1601-1620 1621-1640 Rendas ordindrias/ano 700 cts 700.cts-_«-2.400cts -—- 2. 400cts. Capitagao 390 rs 390 rs 395 rs 395 rs Impostos ordinérios sobre o consumo interno/ano* S10 cts $10.cts_ 1: 700cts_~—«:1: 700 cts Capitacdo 278 rs 278 ts 275 18 275 rs Nos dois casos, uma tributacdo ordindria per capita espantosamente idén- tica. Claro que estes mimeros apenas permitem comparar, em termos glo- bais, as respectivas cargas fiscais; mas nao querem dizer nada, em termos absolutos, pois nem o imposto recafa igualmente sobre todos nem a sua in- cidéncia era homogénea. Sobre esta pungao fiscal «ordinaria» enxertou-se, a partir os inicios do século XVII, a puncdo «extraordindria» (novos impostos e pedidos). Nao é facil, no estado actual da investigacao, contabilizar os montantes desta punc4o; e muito menos calcular uma sua média anual. Nao sdo, por vezes, conhecidos os montantes inicialmente pedidos. Muito menos os re- sultados efectivos da cobranga ou os ritmos do seu pagamento. Por outro lado, qualquer média anual é iluséria, tanto porque, como se disse, rara- mente 0 subsidio é realizado no ano em que é pedido, antes se arrastando a sua cobranca por anos sucessivos, como porque nem sempre esta carga fiscal assumiu as mesmas formas, nem recafu sempre igualmente sobre os mesmos grupos. Ao lado de subsidios impostos apenas aos cristaos-novos, encontramos donativos gerais de todo 0 reinoj empréstimos ou vendas for- ¢adas de pimenta recaindo sobre os homens de negécio, subsidios eclesids- ticos, pedidos especiais 4 camara de Lisboa, etc. Embora tendo em conta todas estas dificuldades, arriscamos um cAlculo global, fundado em dados que pudemos averiguar com relativa certeza. A primeira constatacao é a de que a evolucdo temporal destas contribui- Ges apresenta um perfil caracteristico: moderado até 1620, agravando-se 0 GOVERNO I DOS AUSTRIA 63 AM, HESPANHA | 64 Estupos brutalmente nas suas décadas seguintes, correspondentes ao governo do Conde Duque. O quadro seguinte justifica a afirmacdo: Contribuigées financeiras extraordinarias do reino (1600-1640): Anos Montante glogal Média anual (em 000 000 rs.) 1601-1610 170 178 1611-1620 928 92,8 1621-1630 2.990 299 1631-1640 2.290 29 Uma vez que avaliei, com recurso a uma referéncia da época?*, 0 pro- duto anual do imposto sobre o sal (1631) em 220 contos eo do quarto do cabecdo das sisas (1635) em c. 50 contos, se se quisesse obter o produto glo- bal de todos os encargos fiscais, haveria ainda que juntar o rendimento da extensio do real d’dgua a todo 0 reino (1635) € o peso de alguns dos novos impostos e estancos, sobretudo da década de 30: estancos das cartas de jo- gar (1630), bagaco de azeitona (1630), meias anatas (1632), quartos dos do- natdrios (1637); 0 papel selado (1637) parece nao ter chegado a ser cobrado. O quadro seguinte possibilita, agora em relacdo as receitas extraordind- rias, a mesma comparac¢ao com Castela** *”, ¢ PORTUGAL CASTELA Rendas extraordindrias/ano 5S cts 264 cts 858 cts 1790 cts Capitacdo 31rs 1471s 1401s 290 rs % rendas ordindrias 8 38 35 15 ‘% impostos ordindrios sobre 0 consumo W 52 50 105 Deste quadro — cujo valor aproximativo ndo pode deixar de ser recor- dado — ressalta que, se a puncdo fiscal ordindria tradicional em Portugal se encontrava espantosamente equilibrada com a castelhana, jé quanto as contribuicdes extraordindrias e novos tributos os lusos se situavam a niveis muito inferiores aos seus vizinhos. Isto quer se considere o peso destas re- lativamente A fiscalidade ordindria da coroa quer se considere o valor abs- tracto da capitacdo dos subsidios. Com isto mesmo argumentava frequen- temente Madrid, ao insistir na necessidade de novas contribuicdes. Estupos Se a capacidade tributaria do reino estava ou nao préxima do esgota- mento — como refere a generalidade das fontes portuguesas —, é questao que ndo pode ser resolvida, com os dados disponiveis. Nem a resposta po- deria ser uma s6 para todos os sectores da producdo e todas as classes de contribuintes**, Seja como for, o que é certo é que as décadas de vinte e trinta trouxe- ram um brutal agravamento da tributac4o extraordinéria, cujos encargos anuais mais que triplicaram em relac&o & década anterior. Habituados a um orcamento estabilizado, com tributos encabecados ou relativamente con- solidados por regimentos antigos (v.g., o foral da alfandega de Lisboa, da primeira metade do século xvi)*” e cujos montantes eram sucessivamente atenuados pela desvalorizagéo da moeda (sobretudo até ao inicio do sé- culo xvi), garantidos por privilégios que dificultavam muito a criacdo de novos impostos sem audicdo das cortes, os contribuintes sao postos perante a multiplicagdo de formas «selvagens» de arrecadar dinheiro. Mas esta onda da tributacao extraordindria — em Portugal como em Castela — nao re- presenta sendo o unico expediente possivel para actualizar as receitas da co- Toa, recuperando as perdas com a inflacdo dos finais do século xvi, com- pensando a evolucdo negativa do comércio da {ndia e respondendo ao pronunciado aumento das despesas de Estado provocadas pelas operagées bélicas, sobretudo no teatro atlantico (j4 que as despesas portuguesas com as guerras europeias da Espanha nao me parecem muito significativas). Assim, mais do que consequéncia de uma decisdo arbitrdria da coroa, © agravamento fiscal das décadas de Olivares é 0 produto de diversos fac- tores largamente inevitaveis: i) setenta anos de estabilizacdo das rendas da coroa (em termos nomi- nais, j4 que, em termos reais, se verificou mesmo uma sua descida pronun- ciada); ii) estancamento das receitas comerciais que, juntamente com a venda de juros, permitiam colmatar os deficits; iii) aumento progressivo dos encargos do servigo da divida (juros), em virtude da sua acumulagdo e consolidacdo, pois nado houve amortizagées significativas, apesar das tentativas de 1612 e de 1632, desde os meados do século XVI; em 1607, os juros ascendiam j4 a quase 20% das despesas do reino (fora o ultramar); em 1618, a percentagem parece ter diminuido li- geiramente (Vasconcelos 1865, 1, 17; 1, 6). iv) modificag&o qualitativa das despesas «de Estado», nomeadamente pela modificagdo dos cendrios de guerra e das técnicas ndutico-militares (nomea- damente aumento da arqueacdo bruta dos navios, incremento do uso da artilharia, recurso a soldados pagos); O reequilibrio do orcamento, em termos permanentes, interessava a co- roa. Por duas raz6es. Primeiro, porque as receitas eram certas, podendo OGOVERNO I DOS AUSTRIA 65 AM. HESPANHA I Estupos nomeadamente servir de base a operacGes crediticias. Depois, porque a sua cobranga era mais pontual. E, finalmente, porque evitava negociagdes con- tinuadas em que sempre corria 0 risco de ter que ceder algo. Embora no caso portugués sejam espantosamente reduzidas as concessdes ou contem- porizacdes da coroa. A tentativa de Olivares, a partir de 1632, de instituir uma renda fixa do reino, no montante de 200 contos, correspondia justamente a tentativa de reequilibrar o orgamento ordindrio, a um nivel que permitisse satisfazer as novas necessidades, nomeadamente militares, que ele pensava seriam co- bertas por meio da manutenc4o de uma armada permanente de 30 velas ¢ 10 440 toneladas portuguesas, ainda assim paga em 50% por outras receitas da coroa™. Este projecto é recusado pelo reino, como renda fixa — i.e., como contribuicéo «ordinaria» —, embora este tenha sido obrigado a acei- tar pagar, como subsidios eventuais, somas semelhantes em 16354!, em 1636“ e, um pouco menos, em 163943, Em 1641, j& depois da Restaura- ¢4o, 0 reequilibrio permanente do orcamento ordinario é obtido, nomea- damente a custa das décimas e de novos e rendosos impostos, como o do tabaco. 4. Conclusado N§o sdo apenas estas as mutag6es estruturais originadas pela integracdo de Portugal na Monarquia Catdlica. Outras se verificam em planos tao di- versos como o do imagindrio social ou o dos quadros espaciais da acco politica. A arqueologia da Restaura¢ao poderd encontrar-se também aqui, nesta revolugdo da forma do Poder. Forma que na Monarquia Catdlica apon- tou mais precocemente para sistemas de comunicasdo politica, de governo e de alocacdo de recursos tipicos das formagées politicas estaduais. A per- plexidade dos estratos dirigentes portugueses perante estas novidades é evi- dente. E, no seu descontentamento e revolta, exprime-se, além do mais, um forte apego as formas mais tradicionais de viver o Poder. O advento da dinastia brigantina responde contraditoriamente a esta si- tuagdo. Por um lado, ensaia-se um retorno a certas formas tradicionais do Poder, reunindo cortes a antiga portuguesa, recolocando os juristas, os con- selhos e a via ordindria de justica numa posicdo de destaque. Mas, por ou- tro lado, nao se poderdo evitar, das anteriores mudang¢as, aquelas que ti- nham um cardcter estrutural. O exemplo mais t{pico é 0 da tributagdo que, por meio da décima, é substancialmente elevada, reequilibrando o orga- mento ordinario. As préprias cortes duram apenas mais cinquenta anos, sendo que, logo a partir de 1641, sAo assessoradas por uma «junta», a Junta dos Trés Estados. O que resistiu mais foi a administragao «jurisdiciona- Estupss lista» e «sinodal». Mas, também ela, iré sendo penetrada por nicleos de administracdo «comissarial», sobretudo nas areas de administracao finan- ceira e militar, bem como nas matérias de Estado. Em suma, apesar de, no prazo imediato, isso se ter saldado por um fra- casso, a politica catdlica — mas, sobretudo, a politica de Olivares — em Portugal constituiu um factor de «modernizacao» do sistema politico por- tugués. Embora, no curto prazo, tenha provocado-uma reaccdo que reins- talou, com a Restauracdo, alguns dos elementos mais «conservadores» desse sistema. NOTAS ‘Cf. Albuquerque 1974, 280 ss., que defende a existéncia, em Portugal, de um sentimento de Estado nacional a partir dos finais do século xiv. Como, de resto, bem nota o A., a ideia, quando é esbocada (e nao o é nem num primeiro plano da discussdo nem de forma explicita e aberta), aparece sempre «por forma indirecta», ou integrada na discussao da «legitimidade» (j. e., da ordenacdo do poder real ao bem comum, que seria mais dificil se 0 rei fosse estrangeiro), ou ligada ao tépico do cardcter «natural» e imperecivel do reino ¢ da casa real (que seria posto em pe- rigo pela sua anexacdo ao senhorio de outro rei, sobretudo se ele fosse rei de reinos maiores). Estes, sim, so temas centrais da teoria (mesmo, da antropologia) poli- tica medieval e moderna. Nao jd o tema do «nacionalismo», que — apesar do im- pacte «pratico» que podia ter na conjuntura portuguesa de entao — carecia do es- tatuto tedrico que apenas receberd com a teoria politica revolucionaria e romnica. 2 Que, de resto, cobria interesses sociais ¢ politicos de certos grupos sociais. 3 Mais recentemente e com aspectos novos, segue 0 mesmo caminho Fernando Bouzas (Bouzas, 1987). 4 Também Lufs Reis Torgal, num trabalho de historia (social) das ic » dedi- cado a Ideologia Politica e Teoria do Estado na Restauracdo, procurou, para o seu campo especifico, destacar alguns factores politicos da Restauragdo. 5.No entanto, é ainda preciso adoptar um conceito menos agregado de «fiscali- dade» para poder distinguir as diferenciadas reacgdes sociais que cada «tipo» de me- didas fiscais desencadeava, pois 0 que se verificava nao era uma reac¢Go igual de todos em'relacao aos expedientes fiscais ou financeiros da coroa, quaisquer que eles fossem, mas antes uma reacco particular de certos grupos a certos tipos de medi- das, acontecendo frequentemente que uns, para salvarem os seus cabedais, alvitra- vam medidas alternativas que iam ferir os interesses doutros. Um exemplo € 0 das insisténcias das cAmaras no sentido de se tributar 0 clero (mais do que a nobreza). Mas existem outros desencontros do mesmo género, por vezes subtis. 6 «Do que essa cidade, como cabega, Ihes fas servico, nos, membros della, ndo degeneraremos», escreve Coimbra (carta de 27.4.1609; 11, 194). Pinhel, por sua vez, reconhece (¢ aceita) que «Pende tanto todo este Reino dos procedimentos da cidade de Lx? [...], como cabega delle, e guovernada por menistros tam escolhidos» (carta O-GOVERNO I POS AUSTRIA 67 HESPANHA I 68 EStubos de 20.8.1609, ibid. 11, 210). A expresso é corrente em todas as cartas ¢ a propria Lisboa a utiliza: «ella [Lisboa], como cabega de todo elle [Reino] ¢ em seu nome, beija muitas vezes as maos a V. Mg4 (carta de 15.9.1612, Oliveira, 1885, 11, 287 n.). A cdmara de Setibal prefere uma outra imagem — a da relacdo entre mie e filhos, correntemente usada na literatura para descrever as relacdes entre rei ¢ subditos apontando para uma relacdo de tutela da capital em relacdo ao reino — «podera to- mar “obre si [Lisboa] todo o servico, que como mae o fizera, p* alevir todos os mais logares deste Regno que so filhos» (carta de 24.10.1609, 11, 226). 7 A historia das negociag6es da renda fixa esté hoje contada, nos seus tracos ge- rais, por Anténio de Oliveira (Oliveira, 1980). 8 J4 Lisboa o sugerira: «E quando se ajam de tratar de outros e d’esta nova im- posig&o no estanque do sal, se devia tratar em cortes, conforme aos privilegios do reino; e, quando isto nao possa ser, parece que de necessidade deve concorrer con- sentimento dos povos, mandando V. Mag“ escrever as camaras as conveniencias d’este negécio, assim como se haviam de propor em cortes, se o tempo dera lugar a V. Magé de as fazer; porque cousa tdo extraordinaria, como é fixar renda certa ...] 86 n’esta forma se poderd introduzir» (carta de 27.12.1631, Oliveira, 1885, 11, 478). 9 [* Passos mais importantes da contestagdo: 4 e 21.2.1634, embargo, por parte dos procuradores dos mesteres, do assento da camara de eleger os seus procurado- res a cortes (Oliveira, 1885, 1v, 12); 23.2.1634, a camara resolve reapreciar a ques- tao (ibid., II, 17); 4.3.1634; a Casa dos 24 recusa-se a passar procurago aos seus ‘representantes na cAmara (ibid. 11, 19); novos embargos dos procuradores, nova de- cisdo da camara (ibid., 11, 26); 24.3.1634, rejeicdo dos embargos pelo vice-rei (11, 26); 28.3.1634, assento da camara decidindo eleger procuradores (ibid., 31); 5.6.1634, protesto do povo (ibid., 32); 6.4.1634, convocacao dos eleitores (ibid., 34); 8.4.1634, protesto do juiz do povo (ibid., 45); 8.4.1634, elei¢do dos procuradores (fracassada por falta de quorum) (ibid. 47). *] Para além da questo do cardcter limitado da re- presentacdo do reino, os procuradores dos mesteres levantavam, nos seus embragos, outras questdes, uma das quais era a da ilegitimidade da cimara de Lisboa, nomeada pelo rei de entre membros da nobreza, para representar 0 povo da cidade, o qual «faz corpo por sy separado» (ibid., 1v, 29). 10 Estd publicada uma carta dirigida a Ponte do Lima, que no era cabeca de co- marca. 11 Modelo esse que manifestava a sua influéncia, também, quando Lisboa pede, 0 rei aceita, que qualquer acordo sobre a renda fixa seja reduzido a contrato, cu- jas cldusulas obrigassem taxativamente o rei, tal como acontecia, em Castela, com os contratos dos millones (condicdes de Lisboa, de 22.10.1632, em Oliveira, 1885, i, $87; resposta do rei, ibid., $59). '2 V., com desenvolvimento, Hespanha, 1986, 1, 708, bem como a sua versio es- panhola, algo refundida, em curso de edicdo. 13-Cf. Silva, 1985, 1089 e Bouzas, 1987, 1, 395 ss., ambos com novos dados. \4 Hespanha, 1986, 1, 343; sobretudo, na versdo espanhola). 15 A solugdo era, no entanto, completamente disfuncional em relacdo aos inte- resses da fazenda real, que no apenas se via sujeita 4 apreciacdo de juizes ndo espe- cializados como era enleada no eficaz sistema de defesa dos direitos dos particula- tes observado na ordem judicial comum. Assim, os anos que se seguem, praticamente até aos meados do século xvit, so o palco de um despique entre «financeiros» e «ju- EStupos ristas», de que so sintomas sucessivas providéncias legislativas, a propésito da se- paragdo de competéncias quanto a jurisdigao contenciosa em matérias de fazenda entre a Casa da Suplicagfo ¢ o Conselho da Fazenda (Hespanha, 1986, verso espa- nhola, capitulo sobre «A administracdo central»). 16 Sobre ela, por ultimo, Silva, 1985, 1098 ss. 17 Almeida, 1922, 1v, 67-68; Serrao, 197, 1v, 53 ss.; Lynch, 1982, 1982, 1, 84. 18 Em 1606-1607 e em 1610, criam-se juntas para a reforma do Conselho de Por- tugal (ANTT, Liv. 2608, fis. 30-54 v.). © mesmo se passa em 1612, em que uma junta de nobres desafeitos ao presidente do Conselho substitui este durante algum tempo (BNL, 241, 23 v.). No mesmo ano, cria-se outra junta para a reforma dos assenta- mentos (BNL 241, 26). Em 1613, na sequéncia da devassa & administracao da jus- tiga, conduzida pelo bispo das Canérias, cria-se uma junta para apreciar os resulta- dos da devassa (BNL, 241, 35v.). Em 1615, cria-se uma junta para a redugdo dos ju- 10s (BNL, 241, 57v; CAD H 14). A partir de 1672, funciona outra para o apuramento das dividas A fazenda (Oliveira, 1980, 11; CRs. 14.6.1628, 20.3.1634, 7.10.1637). Em 1628, cria-se a junta instaladora da Companhia de Comércio (BNL, 241, 223). Em 1631, a junta para a renda fixa ou do desempenho das tencas, de que ja se falou. A partir de 1637, existem juntas para a organizacdo das armadas do socorro do Bra- sil (cf. carta régia de 30.5.1637, Silva, 1851, 1634-1640, 124). Em 1639, uma Junta para 0s negécios de Portugal substitui o respectivo Conselho (BNL, cod 241, fl. 335 ss.). 19 Sobre estes episddios, v. o relato de Manuel Severim de Faria [Faria, (BNL 241), 21 v. ss.]. 20 Faria [BNL 241], fl. 27. Um dos atingidos foi Pedro Barbosa de Luna, pai de Miguel de Vasconcelos. : 21 Cf. algumas pecas da tempestuosa correspondéncia no cod. 9169 da Bib. Nac. Lisboa (anos 1631-1633). 2 Cf. Oliveira, 1890, 14/15. 23 ANTT, Registo de consultas da mesa da Consciencia e Ordens,vol. 35, fis. 78- -80; publicado por Oliveira 1983, 170.V., agora, testemunhos concordantes em Curo 1988, 233 s. 2 Sobre os secretarios de Estado, v., por iltimo, a sintese que fiz no capitulo so- bre a administragéo central da verso espanhola de Hespanha, 1986. 25 Carta de 20.2.1633 (Bib. Nac. Lisboa, ms. 199, n.° 23). 26 Esta sobranceria fica bem expressa na rudeza e grosseria com que Ihes refere na correspondéncia particular com o cunhado: «({...] todos [os seus inimigos em Por- tugal] hdo-de ficar como quem séo, porque Senhor Compadre com fazer o que de- vemnos, e ter menos dores... de agoa, hey de mijar nelles e se apertarem muito con- sigo, direy que vao beber da merda muitas vezes, porque me disse vosso irm4o quando estava qua, que por aqui entendereis como eu estava na valia, uso desta frase, ¢ to- dos hao de vir beijar a mao. E esse que faz a audiéncia [D. Diogo da Silva, conde Portalegre] hade ser 0 primeiro [...]» (carta de 20.2.1633, ms. 199, n.° 23 da Bib. Nac. Lisboa). 77 Quanto as suspeicdes sobre os ministros, estabelece-se que ndo se recebam nas matérias de graga, tratadas no Conselho de Portugal. (Regimento do Conselho de Portugal. 27.4.1586, n.° 8: ANTT, Ms. da Livraria 2608 [Casa forte]. Quanto aos meios ordinarios para reagir contra uma decisdo do Poder ofensiva de direitos par- ticulares (Hespanha 1986, 1, 684) —, € frequente, na década de 30, o seu afasta- mento. Em 1639, profbe-se ao chanceler-mor do reino a glosa (equivalente ao droit 0 GOVERNO I DOS AUSTRIA 69 AM, HESPANHA | 70 TUDO. de remontrance dos parlamentos franceses) das sentengas dadas no Conselho da Fa- zenda por ministros castelhanos (carta régia de 23.11.1639; Silva, 1854, 1634-1639, 203). Em 1637, preclude-se a utilizaco dos meios ordindrios de justica contra a criagdo do novo real d’Agua e ao aumento do cabecdo das sisas (cartas régias de 4.3.1637, Silva, 1854, 1634-1640, 120; 6.9.1637, ib., 130; 12.1.1638, ib., 143). Em 1640, determina-se que nao se recebam embargos sobre a requisicao de cavalos para a Ca- talunha (carta régia de 23.8.1640, Silva, 1854, 1634-1640, 240), sobre o recrutamento de soldados (cartas régias de 18.3.1638, ibid, 140; 3.5.1640, ibid., 1634-1640, 277; 5.7.1640, ibid., 243), sobre os oficios dados em Madrid (carta régia de 12.6.1637, Silva, 1854, 1634-1640, 126; 19.2.1638, ibid., 145; 18.8.1638, ibid., 171), sobre a prisio dos ciganos (carta régia de 22.5.1639, ibid., 191). 28 Hespanha, 1976, 1, 706 ss.. [* Particularmente chocante devia ter sido uma ni- tida funcionalizagdo da punicdo penal a objectivos politicos, nomeadamente ao ob- jectivo de soldados para as armadas. Isto implicava a supremacia, na economia da punig&o, de razdes de oportunidade sobre as razées de justica, o que contradizia no fundamental uma ordem penal dominada por valores religiosos e morais ¢ orientada por uma concepgo retributiva (¢ ndo utilitarista da pena) (Hespanha 1987). E, no entanto, as ordens neste sentido repetem-se (cartas régias de 27.6.1640, 7.2.1640, 8.2.1640, 14.3.1640, 28.6.1640, 15.10.1640, todas publicadas nos respectivos volu- mes de Silva, 1851) *). 29 So neste sentido, por exemplo, as recomendagdes de Manuel de Vasconcelos, regedor das justicas a partir de 1622, num memorando seu de data incerta (ANTT, Arquivo Galveias, mg. 32 [antigo 14.1], n.° 3). Sobre o papel politico dos juristas neste periodo, Hespanha, 1986, 1, 724 ss. 30 Cf. cartas régias de 14.9.1621 ¢ 31.1.1623, ambas publicadas em Silva, 1854, 1620-1627, 85-6. V. ainda Faria (BNL, 241), 178. Sobre as reacgdes 4 medida, ANTT, Livraria, ms. 1116, fl. 652. Parece que terd tido um principio de execugéo: ANTT, Arq. Galveias, mg. 32, n.° 3, doc. 1. 31 Cf. cartas de Olivares ao regedor das justicas, Manuel de Vasconcelos, de 22.6.1630: ANTT, Arq. Galveias, mg. 32 n.° 3, doc. 35. 32 Cf. Hespanha, 1986, 179 ss., de onde se extraem os elementos seguintes. 33 Hespanha, 1986, 1, 101; Artola 1982, 142, feito o cdlculo na base de uma po- pulacdo de 6 145 000 hab., em 1591. 34 Incluimos aqui os impostos sobre as vendas — sisas portuguesas e alcabalas castelhanas (ambos encabecados desde a segunda metade do século xvi) e as alfan- degas. Novamente, uma fundamental homogeneidade. 35 Oliveira, 1885, 11, 508. 36 Para os dados castelhanos, v. Artola 1982, 117, 142. 37 No montante das contribuigSes extraordinarias castelhanas, apenas estéo con- siderados os millones; mas deve notar-se que em Castela existiam outros impostos extraordinarios, para além dos millones (Artola 1982, 98 ss.): nomeadamente, os cien- tos (1626 e 1629), que correspondem aos aumentos do cabecdo das sisas em Portu- gal,e, mais tarde, a extensién de Ia alcabala (1641), semelhante as décimas portu- guesas, suas contempordneas. 38 A Igreja, por exemplo, pouco foi tocada; as suas contribuicdes de 1623, 1628 e 1634 nao sobem a mais de 240 contos, a que se deverd acrescentar a parte que lhe coube em alguns pedidos em espécie (v. g., de soldados), na retengdo de tengas e ju- Fos e-nos tributos € nos tributos de que ndo foi escusa (v.g., estanque do sal, aumento EstupoS dos reais d’dgua). Em contrapartida, ¢ dado que a nobreza também estava isenta de parte dos pedidos, embora tivesse — até por razdes de prestigio — de arcar com encargos importantes, nomeadamente no recrutamento e manutengdo de soldados (v.g., em 1639), o maior peso dos pedidos devia recair sobre os homens de negécio, nomeadamente os da praca de Lisboa, cujo comércio foi, por outro lado, muito aba- lado pelo corso holandés ¢ ingles e pela proibicdo de comerciar com rebeldes e hereges. 39 Hespanha, 1886, 1, 187 ss. 4 Oliveira, 1885, 11, 496. 4 Donativo voluntario geral: ibid., 1v, 110. Retencdo de dois quartéis ¢ juros, tencas e saldrios; Faria (BNL, 241), 319 v. 43 Recrutamento de soldados para a Catalunha: Oliveira 1885, 1v, 308; reten¢do de um quartel de juros e tengas: ib., 1v, 391. BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE (1974), Martim de, A consciéncia nacional portuguesa. Ensaio de historia das ideias politicas, Lisboa 1974. ‘ALMEIDA (1922), Fortunato de, Historia de Portugal, Coimbra, 1922-1931, 6 vols. 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