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Pua Tomo 92 CIENCIA E CULTURA John Henry 4 ! me 0 Grim. ¢ a FuMaca z Hen Atlan ; TEORIAS OE TUDO Ua BREVE HISTORIA \ bo IneaTo i st A REVOLUGAO CIENTIFICA John D E AS ORIGENS DA CIENCIA MODERNA z Tradugdo. rc Mana Luiza X. de A. Borges “| Revisdo técnica: Henrique Lins de Barros Doutor em SERA QUE Deus Museu de Jose Davos? [AS ORIGENS DE NOSSO UNIVERSO Malcolm S. Li Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Para minha irma, Kay (1948-1996) In memoriam ‘Trndugio avtorizada da pamerra edigio norte-americana, publicada em 1997 ; por Macmillan Press, de Londres, Inglaterra Copyright © 1997, John Henry ht © 1998 da edigdo em lingua portuguesa: Jorge Zahar Editor Lida México 31 sabreloya Cop) i> teemea Heaque Rio de Janeiro; Jorge Zaher Ed, 1998 esata, 1 CBU 501091) SUMARIO Nota sobre as referéncias . Agradecimentos Apresentagao, por Henrique Lins de Barros 1 A revolugio cientifica e a historiografia da ciéncia O método cientffico . (A matematizagdo da representago do mundo Gi) O método experimental ‘A magia e as origens da ciéncia moderna A filosofia mecnica Religido ¢ ciéncia : A ciéneia e a cultura mais ampla Nauaw Conclusio . Bibliografia Glossdrio Indice remissivo 13 20 20 35 53 66 82 95 103 107 131 143 NOTA SOBRE AS REFERENCIAS 1 As referéncias sio citadas sempre entre colchetes de acordo com a numeragdo na bibliografia selecionada, com ponto-e-virgulas separan- do cada item. Referéncias de pagina, quando necessirias, so indicadas por dois pontos apds 0 némero da bibliografia. AGRADECIMENTOS Como muitos de meus colegas sabem, a produgio deste pequeno livro exigiume muito mais tempo do que deveria. Dé-me grande prazer poder, enfim, agradecer a Richard Overy e a Roy Porter por sua Paciéncia e incentivo indefectivers. Na Macmillan, Vanessa Graham © depois Simon Winder provaram-se também sempre encorajadores & inacreditavelmente tolerantes & medida que os prazos finais venciam. tum apés © outro. Sou muito grato a ambos por esse generoso trata- mento. A maior divida do autor ao trabalhar num livro deste upo, porém, é para com os autores de todos aqueles livros e artigos de que fez, uso a0 escrevé-lo. A lista completa de todos eles seria mais longa do que a bibliografia em que este livro é em grande parte baseado. Gragas a esses autores posso concordar sinceramente com Robert Hooke, quando disse que “quanto mais mformado vocé est, mais € capaz de indagar e tentar descobrir o que se considera ser um conhe- cimento mais profundo com relagio Aquele assunto”. Tenho grande esperanga de que os leitores deste livro se sentirao também eles proprios mais capazes de seguir buscando uma compreensio mais completa das origens da ciéncia moderna. Enquanto este livro era escrito minha irma, Kay, suportava bravamente as devastagées do cancer de mama € do tratamento médico destinado a aplacé-lo. Ela morret algumas semanas antes que eto pudesse concluir. Sempre nos amamos muito ternamente e dedico este livto & sua meméri JOHN HENRY Edimburgo, 1996 APRESENTAGAO No século xvi a Europa ocidental comegou a desenvolver uma nova forma de olhar a natureza. Embora as bases dessa nova visfo estejam situadas bem antes, € nos trabalhos de filésofos da natureza como Galileu, Descartes, Newton € muitos outros que se encontram, jé de forma bastante elaborada e consolidada, os elementos da chamada Fevolugdo cientffica. De fato, hoye percebemos que estes pensadores, Praticantes das matematicas, estudiosos da vida, sintetizaram varias correntes de pensamento e iniciaram uma nova descricao dos fendme- nos naturais, em oposigéo A bem estabelecida e sOlida interpretagio medieval baseada em uma cosmologia aristotélica. Esse momento da ist6ria do pensamento ocidental € o infcio de um verdadeiro império do saber ractonal que, hoje, est claro no que chamamos ciéne1a. Nao se trata de momento isolado nem de contribuigao de um ou outro genial pensador. Antes, € a consolidacao de idgias © de observagdes que se ajustam © se encaixam, permitindo pensar, de forma matematica abstrata, uma realidade que, até entio, era vista como algo real ¢ concreto, regida por designios e sujeita a vontades sobrenaturais: os corpos celestes estdo fixos em esferas de cristal e giram em movimento uniforme, os movimentos ou sao naturais ou violentos, a natureza nao admite 0 vacuo, ¢ assim por diante. A idéia de que os trabalhios desses fil6sofos se caracterizam pela adogao, em targa escala, de experimentos controlados ndo tem susten- lagdo plena. Nao que a idéia de experimento tenha sua importincia questionada, mas sim que ela, por si 86, nao é capaz de alterar uma cosmovisdo ou contribuir para um conhecimento extremamente coe- rente de um fendmeno. Tampouco € verdade que os trabalhos desses filésofos tenham tido aceitagio imediata € se estabelecido como ci 105 Ginicos de descrigdo do mundo natural. Muito ao contratio: v correntes conviveram por muito tempo, € 0 que hoje entendemos, por exemplo, como uma fisica newtontana, 6, de fato, uma construgio ¢ uma depuragio dos trabathos de Newton. Entender essa revolugo do pensamento nao é tarefa que possa ser desenvoivida som 0 auxilio de varias diseiplinas: impossivel ignorar as questdes téenicas dos trabalhos desses homens, assim como seria ieviano desprezar o contexio em que eles foram produzidos, as crengas, que formavam uma espécic de base para claboragio do raciocinio, as interferéncias religiosas © as part questées relacionadas com o proprio perfil psicolégico de cada um de monia, a clegancia, a simplicidade, que curopeus da Idade Média e tem, no Renascimento, sua ‘ais conhiecida — contribu: de forma flagrante na j@ncia moderna. O humanismo renascentisia, que co- loca no homem a possibilidade (c a obrigagio) de entender 0 mundo que sc apresenta muito compiexo, teré sua importincia clara nos trabalhos de varios pensadores. Como explicar, por exemplo, a ctenga, em nenhum momento questionada, de que existem leis untversais que regem a natureza c que estas, por sua vez, podem ser explicitadas em forma matematiea? As reagdes iniciais a essa posigao cedem rapidamente lugar a um certo olimismo ou mesmo euforta: a natureza é descritivel por mero da matemitica, ¢ relagdes de pureza sao relagdes naturais. As harmo- hnias musteais, que no século XVII estio bem estabelecidas com as rogras de contraponto c as possibilidades de fazer uma musica com- melodias, iro influenciar esse movimento em que a natureza passa a ser olhada como uma espécie de iaboratério, onde 0 fendmeno deve ser compreendido em suas partes, em que o experi- mento deve ser lido & luz de uma teoria que sea econdmica e bel A historia da ciéncta nfo pode prescindir de todos esses elementos. Ho pode focalizar somente um avango técnico ou a formulagio de uma nova tcoria dentro do corpo tedrico da area. Deve, para se propo! ser uma verdadeira Histéria, voltar-se para um contexto muito mais complexo, onde teorias, expernmentos, instrumentos ¢ interpretagées , de forma alguma, produto de um pensamento isolado mas refletem um momento hist6rico. E curtoso vermos que o que poderia parecer um mero fendmeno natural, portanto isento de qualquer inter- a realidade, uma construgo onde se privilegia um ou Aoncsenragio ' outro aspecto. Nao se trata, naturalmente, de negar 0 fendmeno, de dizer que tudo 0 que se encontra na natureza ou se observa com os nossos sentidos ndlo possua uma realidade propria, Trata-se, sim, de afirmar que nossa iterptetagao tem uma dimensfo histérica, que varra ge acordo com 0 corpo de conhecimento que auxilia a interpretar 0 que € observado. Nesse sentido, o real é inatingivel e © que nos resta fazer & construir, a cada momento, uma interpretagao que seja aceita © que tenha, por 1ss0 mesmo, uma duragio. Esta complexidade inerente a histéria da ciéncia esta esbogada no trabalho sucinto de John Henry. Torna-se claro para o iettor como se consir6i uma nova disciplina, necessariamente mu far, que exige do esiudioso um conhectmento que rompe as barreiras espect cas de cada area. Impossivel compreender-se a racionalidade proposta cigncia moderna sem que se leve em conta o pensamento mégico, as influéncias religiosas, politicas ¢ sociais, sem que se considere valores como a beleza, a harmonia, a economia ou 0 equilibrio de um discurso ctentifico, atributos que passam ao largo do método que a Ciéncia Moderna propoe. HENRIQUE LINS DE BARROS 1 A REVOLUGAO CIENTIFICA E A HISTORIOGRAFIA DA CIENCIA Revolugio cientffica € 0 nome dado pelos historiadores da ciéncia 20 periodo da histénia européia em que, de maneira inquestionavel, os fundamentos conceituais, metodolégicos e institucionais da ciéncia moderna foram assentados pela primeira vez. O perfodo preciso em questo varia segundo o hustoriador, mas em geral afirma-se que 0 foco principal foi o século XVil, com periodos variados de montagem do cenario no século XVI ¢ de consolidagao no século XVill. De maneira similar, a natureza precisa da revolugo, suas origens, causas, campos de batalha e resultados variam muito de autor para autor. Tal flexibi- lidade de interpretagao indica claramente que a revolucdo cientifica é sobretudo uma categoria conceitual do historiador. Mas 0 fato de a revolucao cientifica ser uma expresso de conveniéneia para historia- dores nio significa que ela seja um mero produto de sua imaginacao sem nenhuma base na realidade hist6rica. E facil perceber que o conhecimento do mundo natural era muito diferente em 1700 do que fora em 1500. Durante esse periodo, mu- dangas extremamente significativas ¢ de grande alcance produziram-se em todos os aspectos da cultura européia ligados & natureza do mundo fisico e ao modo como ele deveria ser estudado, analisado ¢ repre- sentado, e muitos desses desenvolvimentos continuam desempenhando papel importante na ciéncia moderna. Podemos considerar, portanto, que 0 conceito de revolusao cientifica designa um processo muito real de mudanga basica. Se quisermos compreender a natureza e as causas dessas mudangas, devemos tentar definir exatamente quais eram as questées fundamentais para os antigos pensadores, as alteragdes mais significativas que eles operaram quanto a modos de pensar, as modi- ficagées mais claras ocorndas em sua organizagio social, as mudancas de maior aleance em sua pritica cientifica e as implicagdes das descobertas e invengdes mais expressivas. Nao precisamos nos deter, ‘a A Revouugio Cientines contudo, em discussdes sobre a data imicial correta, © upo preciso de revolugio que se deu ou a melhor maneita de definir mudanga revo- juciondria em ciéneta, Fazé-lo seria supor erroneamente que um mero termo de referéneia conveniente para uma ampla gama de mudangas sociais ¢ intelectuais relevantes apreende de algum modo a suposta esséncia dessas mudangas (32; 170). A reificagiio da revolucao, como uma revoluco, deu origem, no entanto, a. um importante debate historiogréfico que continua em curso, Varios histortadores sustentaram que 0 proprio conceito de uma re- volugao no inicio da ciéneia moderna, com sua implicagdo de ruptura radical com o passado, é imprdprio ou equivocado. A questio depende inteiramente, & claro, dos crilérios que se venha a usar para circuns- crever o debate. O consenso atual parece ser que, embora tenha sido exagerada no passado, a visio “continufsta” do desenvolvimento cientifico permanece valida por apontar os muttos e varios anteceden- tes de desenvolvimenios postertores detectaveis no perfodo medieval [139]. Ali onde a Idade Média pode ser apresentada outrora como um perfodo de esterilidade e esiagnagio cientifica, podemos ver hoje, gragas ao excelente trabalho de historiadores continufstas, os feitos de pensadores medievais, em particular nos campos da astronomia & cosmologia, éptica. cinematica ¢ outras ciéncias mateméticas, bem como no desenvolvimento da nogio de leis naturals ¢ do método expertmentat (41; 42; 173}. ‘Ademais, a historiogratia continufsta desempenhow um importante papel ao chamar a atengio dos historiadores da ciéncia para os perigos do chamado whiggismo (ver glossirio). Ha na hist6ria da ciéneva uma tendéneia a langar sobre o passado um olhar determinado pelo que ‘mais tarde se julgou ser mportante. Julgar o passado em funcio do presente é ser whiggista. Nas primeiras décadas da formacio da disciplina, era comum que um historiador da ciéncia selecionasse, digamos, da obra de Galileu ou da de Kepler, aqueles aspectos que eram ou que podiam ser mais facitmente levados a parecer antecipagoes diretas da ciéncia que hoje prevalece. A hist6ria resultante, muitas vezes, no passava de uma tamentavel distoreiio do modo como as corsas ram. Mas a propria nocao de revolugio c a. € Facil ver. incorpora algo de bastante wluggista. A cigncia daqueia época fot revolucionaria porque, 20 contrario da cignera anterior, assemelhou-se ssim pensamos. E quase como se quiséssemos dizer ndo A HISTORIOGRAPIA DA CiRNCIA ts Num certo sentido esse tipo de whiggismo ainda prospera na histéria da ciéneia. A raison d’étre da historia da ciéncia é, essenci mente, procurar compreender por que ¢ como a ciéncia veio a se tornar uma presenga to domimante em nossa cultura [161]. Assim sendo, toda a nossa histéria é voltada para o presente. Por isso, embora o repiidio vigoroso a0 whiggismo tenha se tornado hoje uma senha que € preciso pronunciar para ganhar acesso as fileiras dos estudiosos sétios, © whiggismo se esconde em todos nés [98]. O eminente historiador do intelecto, Richard H. Popkin, certa vez anunciow espi- tuosamente que pretendia estudar as razdes por que “um dos maiores tedlogos antitrimitarios do século XVI”, Isaac Newton (1642-1727), teria reservado parte de seu tempo para escrever obras sobre ciéncia natural [169]. Por que qualifico isto de espirituoso? Porque me parece impossivel Ievar a sério a sugestilo de que a importancia hist6rica de Newton deriva de sua reputagdo como tedlogo. Nessa medida, tenho meu proprio whiggismo. Acredito que estudamos Newton por ele ter dado contribuigdes to excepcionais & nossa cultura cientffica. Nada mais acerca desse homem fascinante pode apresentar tamanho inte- esse. continuismo, contudo, pode ser visto, pelo menos até certo ponto, como um antidoto para as tendéncias whiggistas, porque tende a ser um olhar voltado para trés e nao inerentemente voltado para a frente, A tentativa de ver Galileu (1564-1642) como um tedrico do impetus de nossos dias €, em esséncia, menos whiggista que a de apresenté-lo como alguém que prefigurou a imércia newtoniana, © deveria nos remeter & sugestio de Herbert Butterfield (antes de se tomar ele proprio um historiador whig a0 escrever um livro sobre a revolucio cientifica! (98: 58}) de que tentassemos “ver a vida com ‘05 olhos de outro século que nao 0 nosso” [citado em 98: 48]. Hoye praticamente todos os historiadores da ciéncia tentam evitar formas declaradas de whiggismo, sejam cles revoluciomistas ou continufstas, mas parece seguro dizer que os lunstorradores da [dade Média estiveram entre os primeiros a mostrar 0 caminho [41; 42; 55). Outro indicador de que © conceito de revolugao cientifica é inerentemente whiggista é a propria palavra “cientifica” © uso que hoje fazemos da palavra “citncia” for cunhado no século XIX esiritamente falando, “ciéncia” no nosso sentido era algo que néio existia no perfodo moderno inicial. Falar como se existisse, como venho fazendo, é uma distorcdio obviamente whiggista, Parte de nosso objetivo, a0 considerar 0 desenvolvimento histérico do que concebe- te A Revolugho ClenTiFica mos como ciéncia, deveria ser compreender como 0 proprio conceito “ciéncia” surgiu; se falamos sobre “ciéncia” como se isso sempre tuvesse existido, estamos apenas evitando a questio. Bem, se nfo havia nenhuma “ciéncia” no tempo da revolucao cientifica, havia 0 qué? Havia algo chamado “ filosofia natural”, que pretendia descrever e explicar 0 sistema do mundo em sua totalidade. Havia uma série de tradig6es discrplinares tecnicamente desenvolvidas, seja fundadas na matematica, como a astronomia, a Sptica, a mecaimica ea cinematica e 0 que era chamado de mistea, mas que verfamos como um estido muito mais matemético baseado em prinefpios de razdes € outros aspectos de proporgio [30; 34]; ou fundadas na medicina, como a anatomia, a fisiologia e a farmacologia (76; 77; 101; 165; 226}. Por fim, havia uma série de artes préticas, como a navegagio, a cartografia, a fortificacdo, a mineragio, a metalurgia e a cirurgta (193: 225-7; 136]. A relacdo entre essas disciplinas técnica € a filosofia natural requer uma elucidagio cuidadosa, e trabalho nessa firea prossegue [80; 81]. ‘Algumas das pesquisas mais interessantes em histéria da ciéncia empenharam-se em mostrar como interagdes cambiantes entre as dis- ciplinas espectalizadas e a filosofia natural deram origem, por inter médio de praticantes em ambos os campos, ndo 6 a novos desenvol- vimentos no conhecimento e na pritica, como a algo que parece mais proximo de nossa demarcacio atual das disciplinas cientfficas, ou mais diretamente relacionadas a ela. O esforco de Galileu para reunir a cinematica e a filosofia natural resultou no que ele chamou de a nova cigneia do movimento, que os histonadores ainda véem como um passo decisivo rumo a teorias subseqiientes [205]. Da mesma maneira, a nova e extremamente influente filosofia natural de René Descartes (1596-1650). a filosofia mecanica, foi estabelecida a partir de suas tentativas de fundar a filosofia natural sobre as certezas do raciocinio, geométrico [88]; e a nova filosofia natural de Newton baseou-se, como mostrava © titulo de seu livro, em principios matematicos [80}. O desenvoivimento das teorias atomistas da maténia nasceu pelo menos arte dos esforcos de fil6sofos naturais de formacao médica em ar a filosofia natural de Anistoteles de modo a explicar o conhe- cimento empfrico dos quimicos {63}. A nova filosofia experimental, desenvolvida na Inglaterra no final do sécuto XVit por Robert Boyle (1627-91) e outros, pretendia demarcar novas fronteiras disciplinares em tomo da filosofia natural correta, ¢ excluir o que fora anteriormente constderado pritica correta [201] A Hietonioanaria oa citncin we A partir disto, deveria estar claro que, em se tratando do periodo , © uso da expresso “filosofia natural”, em vez de , esti longe de ser ideal. As duas expresses nada tém de equivalentes. Uma das coisas que revolugio cientifica tem de revolu- cionaria é precisamente 0 fato de que, a0 longo de todo o perfodo, a filosofia natural estava se transformando a ponto de se tornar irreco- nhecivel, e se tornando mais préxima de nosso conceit de ciéncia. Mesmo assim, a expressio filosofia natural era a mars utilizada na época para designar uma compreensio do mundo fisico. Assim, ul e “cigncia” como se fossem equivalente tendo em mente, em ambos os casos, nada mais que o esforgo para compreender, descrever ou explicar 0s modos de funcionamento do mundo fisico (usaret também as formas adjetivadas, “filoséfico natu- ral” e “cientifico” de maneira correspondente). Espero que nenhum desses anacronismos se mostre demasiado confuso, E possivel reconhecer um certo whiggismo nas razdes que nos levam a considerar a hist6ria da ciéncia sem permitir, no entanto, que ele invada nossas narrativas hist6ricas. Nosso objetivo como historia- dores nfo deveria ser impor nossas idéias, mas buscar uma compreen- so tZo completa quanto possivel do contexto da época. Por exemplo, se desejamos compreender a reagao da época a um pequeno livro como ictus (Mensagem das estrelas, 1610), de Galiteu, em que ele apresentou as descobertas que fizera virando o recém-inventado telescépio para o céu noturo, € 6bvio que nao podemos simplesmente ler texto de Galiieu (82]. Tampouco sera suficiente nos familian zarmos com a astronomia e a cosmologia técnicas de seu tempo. O fato de que alguns dos contempordneos de Galileu se recusaram a olhar por seu telesc6pio, por exemplo, € bem conhecido. Por que eles, reagiram desse modo? Obviamente nao por causa de quaiquer detalhe técnico astronémico (220). Uma compreensao das implicagdes do texto de Galileu também é relevante. Um leitor da época teria reagido de maneiras diferentes a uma obra que provavelmente nao teria qualquer impacto além de sua érea tmediata ¢ a outra que podia ser vista como contrariando nao s6 a astronomia e a cosmologia dominantes como também a filosofia natural mais ampla e a crenga religiosa. Uma explicacdo realmente completa exigiria também algum conhecimento do conceito entao vigente sobre Galileu: sua reputagao, sua motivagao presumida ou percebida, a imparctalidade que era possivel the atribu no que ele dizia, € assim por diante [13; cf., para consideragdes semelhantes sobre outros pensadores, 201; 200; 198]. Evidentemente, 18 A Revowughe ClENTIFICA no ha limites definidos para um empreendimento desse tipo, razdo por que nenhum historiador isolado pode ter a dltuma palavra em qualquer tpico. E sempre possivel assinalar mais alguina coisa no pano de fundo da questio, algo que pode ser relevante para nossa tentativa de reconstruir © passado. ‘© empenho por uma contextualizagio cada vez mais rica pode ser visto, portanto, como a forga propulsora da atual historiografia da ciéneta. O contextualismo pode ser considerado 0 resultado de um ccletismo que combinou abordagens a hist6ria da ciéncia antes vistas como opostas. A disciplina da historia da ciéncia estava fendida pela guerra entre internalistas © exteralistas (c.1930-59). Supostamente, 05 internalistas teriam acreditado que a ciéncta, ou talvez uma sub- disciplina individual dentro da ciéncia, era um sistema de pensamento auto-suliciente, auto-regulador ¢ desenvolvido em conformdade com sua légica interna propria. O extemnalista, por outro lado, acreditaria que 0 desenvolvimento da ciéncia era determinado pelo contexto sociopolitico ou socioeconémico do qual ela emergiu. Na verdade, nenhuma das duas posigdes parece ter tido sua validade ou viabilidade demonstradas [199: 345-51], e ndio demorou para que uma abordagem declaradamente celética se impusesse (¢. 1960). De fato, essa aborda- gem eclética ainda é dominante, 0 que significa na prética que quase todos os trabalhos recentes podem ser situados em algum ponto de um espectro que varia gradualmente do mais intemalista (e.g. 55; 63] alé 0 mats externalista (e.g. 161; 125]. Mas os novos ecléucos, 20 contriirio dos externalistas, reconhecem que os jufzos cientificos sobre resultados experimentais ou analiticos pertinentes, ou sobre a teoria correta, por vezes sé podem ser compreendidos em termes da tradigio técnica em cujo seio desempenham um papel, nao podendo ser isolados de consideragdes sociais mais amplas. Isso, contudo, nao é 0 mesmo que internalismo, uma vez que os historiadores ecléticos da ciéneia sustentariam (ou suporiam) que em tais casos a tradigao técnica é ela propria um fenémeno socialmente construido, ou culturalmente deter- minado, © que © trabalho no interior da tradigéo afetado pelas interagBes sociais entre os especialistas relevantes [199: 352-3; 193; nportante a notar acerca da historiografia da ciéneia & ago cada vez mais rica tem sido a principal de seus praticantes ha algumas décadas. O resul- tado é uma subdiseiplina da hisi6ria que tem um florescimento préprio, e que, de maneira mais geral, vem: dando uma importante contribuigao para nossa compreenso do como e do por que a ciéncia s¢ tornou um aspecto to poderoso da cultura ocidental, Neste esforco geral para compreender a dominancia cultural da ciéncia, as andlises da revolugéo cientifica desempenham um papet importante. Mas, ao considerarmos essas anélises, é importante ter sempre em mente as complexas ques- tes hustoriogréficas que ajudaram a moldé-las. 2 O METODO CIENTIFICO desenvolvimento c a fixagio da metodologia caracteristica da ciéncia sempre foram considerados constitutivos da revolugao cientifica, A.C. Crombie tentou mostrar que as ongens de pelo menos um elemento basico dessa metodologia, o experimentalismo, podiam ser situadas no século xii! [41; 42], mas o consenso historiografico vem se oponda jaramente a cle (139: 361]. Da mesma maneira, embora houvesse j@ncias matematicas 0 longo de todo o perfodo medieval, reconhe- ce-se em geral que 0 perfodo da revolugao cientifica assistiu 2 uma mudanga drastica nas concepgics da andlise matematica da natureza ena atitudes com relagdo a ela. Neste capitulo analisare:, um de cada vez, esses dois importantes componentes do método cientifico. 1) A MATEMATIZAGAO DA REPRESENTAGAO DO MUNDO A “matematizagao da natureza”, que foi considerada um elemento importante da revolugio cientifica, em geral cra atribuida a uma formidavel mudanga no sistema metafisico que endossava todos os conceitos do mundo fisico, introduzindo maneitas “platénicas” ou “pitagéricas” de ver o mundo em substituigdo a metafisica antstotélica da filosofia natural medieval. Trabalhos recentes mostraram que essa dia cra inadequada por varias razdes © propuseram uma explicagao alternativa para as mudangas de atitude com relagdo & matemética [107; 12; 238]. Em palavras simples, a revolucdo cientifica viu substituigo de uma atitude predominantemente instrumentalista para com a anjlisc matemética por uma perspectiva mais realista. Os instrumentalistas acreditavam que as teorias derivadas da matemética cram propostas de maneira apenas hipotética, para facilitar célculos ¢ predigdes mateméticos. O realismo, em contraposi¢ao, insistia em que a anélise matemética revelava como a coisas deveriam ser; se os célculos funcionavam, devia ser porque a teoria proposta era verda- deira, ou muito aproximadamente verdadeira [107: 140]. © novo realismo pode ser visto em operagao na astronomia de Nicolau Copérnico (1473-1543). A astronomia, uma das chamadas ciéneias “mistas”, sempre consistira de uma parte matemética e uma fisica. Essencialmente, isso significava que 0 astronomo tinha de conciliar as estruturas mateméticas putativas, que Ihe forneciam os meios de calcular movimentos planetérios e outros movimentos ce- lestes, com as exigéncias da cosmologia e da fisica aristotélicas. Embora 0 grande sintetrzador da astronomia matematica da Grécia antiga, Claudio Ptolomen (90-168 d.C.), tivesse sido um realista, seu stema astronémico fora considerado cada vez, mais, ao longo da Idade Média, um sistema hipotético que, embora fornecendo uma base para o cAlculo, era incompatvel com o sistema eristotélico. O resultado foi uma separacio cas partes matematica e fisica da astronoraia [238]. Enquanto a cosmologia de Aristételes era um encaixe homocén- trico preciso de esferas celestes em que 56 movimentos circulares uniformes podiam ter lugar, a astronomia matemtica ptolomatca tinha planetas que se moviam num epiciclo, cujo centro inscreve um cfrculo (0 deferente) no centro da esfera planetétia, de modo a explicar parcialmente variagdes na velocidade © no brilho do plancta ¢ 0 movimento reirégrado” deste (perfodo em que o planeta se move na diregiio oposta a de seu progresso usual). Apesar desses estratagemas, nfo era possivel chegar ao ajuste exigido com as observagdes a nio ser supondo-se também que o epiciclo se movia com movimento uniforme apenas com relagao a um ponto excéntrico, nio com relagio a0 centro do deferente, ou com relagdo & Terra, Embora tais movi- mentos uniformes em torno do que era chamado 0 ponto “equante” pudessem ser facilmente definidos em termos mateméticos, nfo estava claro em absoluto que tipo de mecanismo poderia explicé-los. De Fato, era axiomatico na fistca aristotélica que todos os movimentos celestes eam movimentos naturais, nio-compelidos, ¢ que a tendéncia natural dos corpos celestes era mover-se uniformemente, em circulos perfeitos [135; 43; 60; 168} A astronomia ptolomaica via-se cercada também por dificuldades mais pragmiticas. A mais embatagosamente flagrante, no final do + Qautorrefere-se 20 mo aparente sto da Terra) dos plantas. (N.R.) 22 A Revowugho Crenrizicn século XV, era talvez sua incapacidade de fixar uma data para a Péscoa com precisao” Copémico empenhou-se em resolver esse @ outros problemas praticos, mas for muito além ao propor seu novo sistema de astronomia em que 0 Sol substitufa a Terra como o corpo central 2 cuja volta os planetas, agora incluindo a Terra, giravam. Houve uma tendéncia a ver Copérnico nfio como uma figura de fato revolucionéria na hist6ria da ciéncia, mas antes como um pensador essencialmente conservador. Para Thomas Kuhn, por exemplo, Co- pémico escreveu “mais a feitura de uma revoluczo que um texto revoluciondrio” [135: 135; ver também 32: 123-5), Para os que gostam de redigir inventénios, certamente é facil dar a Copémnico uma feicao conservadora, Ele guardou seu livro por cerca de trinta anos antes de se deixar convencer a publicd-lo, Fez poucas observacdes astrondmicas (nao for nenhum defensor revolucionario do empirismo); ndo se pro- nunciou acerca da condicio das esferas celestes (hesitava entre vé-las como esferas s6lidas, cristalinas, em que os planetas esto inctustados, ou meros construtos geométricos [mas ver 238: 112-6}: continuou a acreditar numa esfera finita de astros fixos, embora sua teoria exigisse que ela fosse muito maior que antes [43: 99-0]. Além disso, recusou-se a empregar o ponto equante ptolomaico sob a alegagio extremamente conservadora de que ele violava o antigo preceito ce que os movi- mentos celestes devem ser uniformes e perfertamente circulares, mas em outras circunstncias usou as técnicas mateméticas ptoiomaicas {excéntricos € epiciclos) e até mesmo epiciclos sobre epiciclos para resolver alguns problemas [60; 135]. Mats ainda, voltou-se para pen~ sadores da Anuigiiidade em busca de precedentes para a teoria de uma Tetra em movimento, encontrando-os em varios autores pitagéricos 1135}. Apesar disso, como Robert $. Westman mostrou, Copérnico ainda deve ser considerado um inovador radical na astronomia ¢ na formacio de um novo papel para o astrénomo — um fildsofo natural [238} Pois, enquanto Andreas Osiander (1498-1552), um pastor luterano que acompanhou a impressio de De revolutionibus, incumbiu-se (sem permissio) de acrescentar um preffcio andnimo em que negava a capacidade do astronomo de chegar a conclusdes verdadeiras sobre a natureza real do céu, Copérnico deixou muito claro, em seu proprio + A determnagio da data da Piscos, estoncial na culture medieval, esta diretamente relacionadas a determinagio Jo inicio das estagOes ¢ a claboragio do ealendsrio, (N.R.) © matove crenrieice 22 Prefacio, que repudiava por completo a abordagem instrumentalista Uma vez que seu sistema heliostético explicava todas as observagées, celestes com tanta preciso quanto 0 de Ptolomen, el mesmo tempo o componente anual inexplicado do movimento de cada planeta (que é obviamente uma transferéncia do movimento da Terra) © fornecendo um meio Facil e certo de precisar a ordem dos planetas {arbitréria em Ptolomeu) ¢ as distincias que os separam do Sol, Copérmico acreditava que seu sistema devia ser considerado fisica- mente verdadeiro. Assim, Copémico nio sé ps a Terra em movimento contra todos os ensinamentos da fisica aristotélica, as Sagradas Escri turas e 0 senso comum, como o fez com base em fundamentos que a maiona de seus contemporiineos teria julgado ilegitimos. Por mais contrério que 0 movimento da Terra possa parecer & filosofia natural, Copémico insistiu, cle deve ser verdadeiro porque a matemdtica 0 exige. Isso foi revolucionario. A pergunta imediata a fazer é por que Copérnico teria dado um Passo {do corajoso. E evidente que nio podemos responder a essa pergunta referindo-nos a uma nica causa, mas podemos apontar varios fatores determinantes que devem ser todos considerados em nossas conclusdes. Questoes técnicas no podem ser negligenciadas, mas tampouco sto capazes de fornecer toda a resposta. Fosse qual fosse seu valor como astronomo e matematico, Copérnico poderia ter se contentado em apresentar sua teoria hipoteticamente, como Osiander quis mostra-la, Parece claro que Copérnico deveria ser visto como membro de uma tendéncia mais ampla entre os praticantes da mate- matica, ¢ talvez de um punhado de humanistas simpatizantes, a elevar seu status intelectual e social [238; 12] Os fatores que contribustam para estimular essa tendéncia foram variados ¢ complexes, mas incluem 2 recuperacao de textos matemé- cos da Grécia antiga por eruditos humanistas, que forneceram novos meios para a formulacdo de exigéncias quanto 2 unidade da matema- tica. sua utilidade e sua certeza como meio de estabelecer a verdade [12]. Houve também um sucessivo enfraquecimento da filosofia na- tural aristotélica dominante que incentivou vis6es alternativas nfo sé (no Ambito das universidades) como também de icantes da matemitica, fisica e outros campos [12; 13; 64; 137], permitindo-Ihes escapar das restrigSes impostas pelo sistema umver- sitério, por exemplo, em que uma hierarquia estrita de disciplinas ¢ subdisciplinas situava as ciéncias mateméticas mistas abaixo da fisica. 2a A Revotughe crewrinicn ‘Mesmo assim, seria errado supor que Copérnico fot tao-somente impelido por tats mudancas. Ao insistir na verdade fisica de sua teoria quando seus fundamentos para tanto eram inteiramente matemiticos, ele estava contribuindo de maneira significativa para o triunfo final desse movimento ainda inseguro, nao simplesmente tendo um desem- penho notvel em seu seio, Isso fica claro quando consideramos que a maioria dos astrénomos usava o sistema de Copérnico apenas como um meio para calcular posigdes planetérias. As pesquisas de Robert S. Westman o Ievaram a concluir que na Europa somente dez pensa- dores aceitaram a verdade fisica da teoria de Copémico antes de 1600 (238: 136]. Curiosamente, apenas dois deles trabalharam a vida toda como académicos dentro do sistema untversitério, e ambos eram alemies luteranos influenciados por importantes reformas pedagégicas introduzidas pelo emiente tedlogo luterano Philip Melanchthon (1497-1560) (238: 120-1} A histéria subseqiiente da matematizagao da representagao do mundo mostra a recorréncia do mesmo tema crucial. Os inovadores importantes estavam todos interessados no status epistemolégico da matematica. Considere-se, por exemplo, 0 astrénomo dinamarqués Tycho Brahe (1546-1601), que pode ser considerado o melhor astrd- nomo observacional de sua época. Tycho, como Copémico, estava livee das restrigdes da hierarquia disciplinar da umiversidade ¢, na condigao de nobre, nao tinha, ao contrério de Copérnico, a necessidade de obter patronato e apoio. Reyeitando o movimento da Terra, desen- volveu para substitui-io uma soltigdo conciliat6ria entre Copérnico & Ptolomeu em que todos os planetas se moviam em circulos em torno do Sol, ao passo que este descrevia circulos em tomo de uma Terra estacionaria. Isto deixa bastante evidente que Tycho era um matema- tico realista, mas foi quando ele publicou os restitados de suas observagdes de uma estrela nova em 1573 (evidentemente o que hoje chamamos de supernova") e de cometas em 1588 que seu trabalho gerou controvérsia entre filésofos naturais pela primeira vez [43: 37-46; 215}. A estrela nova causava problemas para 0 aristotelismo + As estrelas nfo so ebjetes imutavers: elas possuen fori. Pode-se notar que esirelas com masso inferior a [a4 e inferior a cinco vezes a massa do Sol morrem catssiroficamente, produzindo unia explosio que. em algumas situagdes, pode ser vista laramente da Terra. Esse processo ¢ o surgimento de uma supernova. Tycho Brahe Dbservou 9 surgimento de uma supemava na coasielacio de Casstopsia. (NLR) © Merop0 CienriFico 25 tradicional na medida em que se supunha que o céu era perferto e nio sujeito a mudangas. Esses problemas foram ampliados quando Tycho conseguiu demonstrar que os cometas, observados em 1577, 1580 1585, eram fendmenos superlunares, um cometa estando pelo menos seis vezes mais distante da Terra que a Lua. Anteriormente, de acordo com a doutrina aristotélica, cometas ¢ meteoros eram considerados fenémenos atmosféricos (razio por que, alids, até hoje usamos a alavra meteorologia para 0 estudo do clima), mas Tycho provou que Go era assim. Avancando ainda mais no territério da filosofia natural ele mostrou que a trajetéria de um cometa o conduzia pelo céu de tal modo que ele rompia necessariamente a doutrina das esferas cristali- nas. Dali em diante os planetas teriam de voar independentemente pelo espaco. Isso teria profundas implicagdes. Uma coisa € conceber movimentos celestes em termos de esferas que giram em volta de seus ixos — movimentos que ndo envolvem nenhuma mudanca de lugar (lembre-se: a “esfera de Marte”, por exempio, refere-se a uma esfera que envolve por completo o centro do sistema do mundo, o qual gira sobre um eixo carregando consigo 0 marcador visfvel, Marte); outra, muito diferente, é ter de considerar os planetas corpos independentes, que se movern efetivamente ao longo das vastas distincias do espaco. Enquanto se podia dizer que € da natureza de uma esfera girar em torno de si mesma sem necessidade de uma forga propulsora, os movimentos continuos de planetas livremente méveis pareciam exigir algo mais em matéria de explicagio. Johannes Kepler (1571-1630), sem divida o mator astronomo copernicano, estava tio preocupado com o direito do astrénomo de ser considerado um filésofo natural que fez. disso o tema dominante de uma defesa formal de Tycho (numa disputa de prioridade) que fora obrigado a escrever para assegurar o patronato de Tycho [126]. Além disso, parece verdadeiro afirmar que Kepler jamais teria dado suas prdprias contribuigées & astronomia néo fosse por seu realismo mate- mitico € sua convicedo de que o astrénomo deve também ser um fildsofo natural. Em sua Astronomia nova de 1609 ele nao sé revelou que os planetas seguiam trajetérias elfpticas em torno do Sol (que esté situado em um dos focos da elipse) e que a velocidade do planeta vVariava continuamente, aumentando & medida que cle se aproximava do Sol, diminuindo quando se afastava, mas propés também uma explicagao fisica para esses movimentos. Na verdade, 0 titulo completo de sua obra indicava ser ela “‘baseada numa teoria de causas” para fornecer uma “fisica celeste” (Astronomia nova aitiologetos, seu 26 A Revowughe Clenririce physica coelestis). Inspirando-se em parte na filosofia magnética de ‘William Gilbert (1540-1603) ¢ em parte na tradigo neoplaténica da metafisica da luz (intimamente ligada & tradigao matemitica da 6ptica geométrica), Kepler sugeriu que os planctas, entre os quais a Terra, deviam ter algo semelhante a um cixo magnético que os mantinha continuamente orientados do mesmo modo no espago ¢ que podiam produzir fases alternadas em que cram atraidos ou repelidos pelo Sol (se imaginarmos 0 Sol como um monopolo magnético). Kepler insistiu, no entanto, que o magnetismo devia ser visto apenas como um exemplo do upo de forga que poderia estar envolvido, ¢ recorreu também 2 uz do Sol como um outro andlogo do tipo de coisa que linha em mente (134: 185-224]. Pesquisas recentes revelaram que Kepler acabou por se convencer da verdade das trajet6rias elipticas porque elas admitiam esse tipo de explicagio fisica. Ble conseguru encontrar vérios esquemas geométticos aliernativos que seriam igualmente capazes de explicar as observagdes de Tycho, mas sua busca de causas fisicas para explicar a geometria 0 levou ao que hoje conhiecemos como suas duas primeiras is do movimento planetario” [209; 71; 134; 41). Um importante aspecto das mudangas nas teorias astronémicas de Copémico a Kepler for a crescente compreensio de que a divisdo aristotélica rigorosa entre fenémenos sublunares e supralunares, ou cclestes (segundo a qual, por exemplo, todos os movimentos naturais abaixo da esfera da Lua cram retilineos, ao passo que os movimentos naturais no eéu eram sempre citculares) deixara de ser defensavel. Ao remover a Terra do centro do universo, Copérnico harmonizou as nogdes de “em cima” e “embaixo” que definiam essencialmente os movimentos naturais sublunares. Além disso, a dissolugio das esferas celestes eliminou 0 mecanismo classico para a explicago do movi- mento dos planetas (em geral atribufdo a uma forga propulsora trans- mitida por friegdo de uma esfera cristalina para a seguinte [138]) ¢ exigit uma nova explicagio. Esse desafio foi enfrentado no s6 por Kepler mas também por William Gilbert, Galileu [205], Giovanni Borelli (1608-79) (134], Isaac Beeckman (1588-1637), Descartes ¢ muitos outros (2; 233], até que os Principtos matemdticos da filosofia + A primeara ler de Kepler diz: os planetas giram em orbitas clipticas com 0 Sol em um dos focos. A segunda let di: os planelas varrem Areas iguais em (empos 1gUdis, ou sea, jo proximos a0 Sol, a velocidad orbital € maior do que quando se encontram 1c, em um mesmo intervalo de tempo, oFaio que une o planeta 0 Sol define a mesma Srea. (N.R.) natural de Newton ganharam aceitago geral como a soluga0 correta (233: 236: 100}. Mas 0 novo uso da matematica para explicar, e no apenas descrever, os modos de funcionamento do mundo fisico nao ficou confinado aos assuntos celestes. Por forga do crescimento do comércio, do inicio da colonizagio e do impulso concomitante 4 exploragio, técnicas mateméticas préticas como a navegacio, o levantamento topogrifico € a cartografia passaram a ser vistas como muito mais importantes, atraindo o interesse de eminentes intelectuais e permitin- do a alguns humildes praticantes elevar seu status social ¢ intelectual (9; 10; 40}. A ciéncia matematica da mecdnica (terrestre), que podia set subdividida em estética, hidrostética e cinematica, também sofreu mudangas notiveis durante esse perfodo. Para compreender essas mudangas devemos, mais uma vez, considerar desenvolvimentos téc- nicos juntamente com alteragdes importantes no papel social dos maiemdticos. Inovagées nas operagdes militares, em particular a in- ventiva resposta ao cerco por canhdes, o bastido resistente & artilharia © varios projetos de engenharia civil como a recuperagio de terras, construgao de canais ou mesmo o simples levantamento topogréfico para propésitos fiscais, foram vistos como cansas importantes nfo s6 do status mais elevado dos matematicos nos primetros tempos da Europa moderna, mas também do maior interesse pela matemética demonstrado por membros da nobreza [12; 137; 131]. Mudangas na natureza e na estrutura das cortes reais numa Europa de Estados cada vez mais absolutistas também deram ao mathematicus ‘oportunidades mais amplas de fazer sentir sua presenga. O matemético que conseguia impressionar o principe com sua produgao de mirabilia, méquinas ou cenérios para espeticulos teatrais e outros aperfeigoa- mentos da imagem do principe podia elevar-se acima daqueles envol- vidos apenas na administragdo do Estado. Esses mateméticos, dada sua posigao na corte, podiam facilmente desprezar a distingdo hierér- quica entre mateméticos e filésofos naturais existente no sistema universitério. Assim, Giambattista Benedetti (1530-90) péde deixar seit posto de mathematicus na corte do duque Ottavio Farnese em Parma para se tornar fil6sofo do duque de Sabdia em Tarim. Assim também, enquanto continuou sendo professor universiténio, Galilew foi um mathematcus mal remunerado, mas quando negociou sua posigio na corte de Cosimo de Medici, pode pedir, e receber, o titulo de fildsofo [12; 13; of. 156]. 28 A Revowughe CIENTIFICA As descobertas humanistas do Renascimento ¢ a edigdo das obras, de Arquimedes, Pappus, Héron de Alexandria © de uma série de questoes mecnicas que foram erroneamente atribufdas a Aristéreles, também cstimularam, ou tornaram possivel, uma atitude mats ousada por parte dos que possufam a pericia matematica necessiria para dar um uso pratico a essas obras. Cada vez mais, ao longo de século XVI, vemos matemiticos envolvidos com mecinica terrestre que ndo se satisfaziam em apresentar seu trabalho como meramente descritivo ou subserviente a uma filosofia natural aristotélica tradicional que parecia cada vez mais fraca. Na obra de homens como Simon Stevin (1548- 1620) nos Pafses Baixos ¢ Nicolo Tartaglia (1500-57) na Italia (55; 131; 47), a separagio entre teoria e pratica, imposta pelos professores universitérios de filosofia natural, for repetidamente declarada insus- tentavel. Evidentemente a maior figura nesse movimento é Galileu Galilei, cuja passagem de frustrado mathematicus no sistema universitarto para fildsofo natural na corte de Cosimo de Medici deve ser agora entendida como tendo sido compelida pela natureza de sua ambigdo cientifica e produzido, por sua vez, um efeito visivel no conteédo de sua obra cientifica {13}. Embora Galileu seja famoso sobretudo por sua defesa da teoria copernicana, seu interesse inicial voltava-se para a mecdnica terrestre, em particular a cinemética. Como muitos de seus contem- porineos, estava insatisfeito com a explicagio aristotélica do movi- mento ¢ empenhou-se na busca de uma teoria melhor. No curso de sua carreira, sua explicagio da queda livre, por exemplo, o fez passar de um mero refinamento da crenga de Anistételes de que os corpos caem em velocidades proporcionais a seu peso & compreensio de que a aceleragio na queda livre é uma constante (num vacuo) para todos 08 corpos. Ele também foi capaz de provar a trajet6ria parabélica dos projéteis, admitindo, a0 contrério de Aristételes, que o movimento natural de um corpo (sua queda livre) ocorria independentemente dos movimentos forgados, nilo naturais, a que era submetido. Para Aris- tételes um projétil viajava numa linha reta na diregio em que era langado, até que a causa de seu movimento attificial cessasse, © somente entdo passaria a viajar rumo a Terra numa linha reta descen- dente sob o movimento natural da queda. Mostrou-se que a trajetéria parabélica de Galileu derivou de uma ago combinada desses dois movimentos (natural e artificial) (59; 204; 99: cap. 4}. A afirmagio de que dois movimentos podiam ocorrer ao mesmo tempo também ajudou Galileu a responder a varias objegdes & teoria copernicana, © mérooe cieNTiFice 29 Uma bola que se deixasse cair verticalmente de uma torre, ele insistiu, Zo cairia longe do oeste da torre, j4 que a Terra em rotagao se moveria rumo ao oeste durante a descida da bola, A bola tombada permaneceria perto da torre porque jé teria 0 mesmo componente de movimento circular que a prépria torre e tudo mais sobre a Terra possuem. ‘Outra das teorias do movimento de Galileu foi desenvolvida na tentativa de explicar os movimentos da Terra em torno do Sol. Como um copernicano inveterado que desejava se demonstrat um filésofo natural, Galileu se props a explicar de que modo um corpo como a Terra, que pesa um mimero incalculével de toneladas, podia ser mantido em movimento perpétuo. Essa era uma grande dificuldade para a teoria copernicana. Segundo Anstoteles, tudo que se move é movido por alguma coisa. Entdo, o que é que faz.a Terra girar? Kepler, como vimos, tentou derivar uma forga motora por analogia com 0 magnetismo ¢ a luz; Galileu simplesmente negou o pressuposto aris- totélico de que 0 movimento requeria uma causa continua. Numa passagem brilhante de seu Didlogo sobre os dois matores sistemas do mundo (1632), Galileu afirmou que, enquanto num plano inclinado sem atritos uma bola sem irregularidades se acelerard continuamente a medida que se move pelo declive abaixo, num plano perfeitamente horizontal essa bola ndo tenderd nem a ganhar nem a perder velocidade. Portanto, uma vez posta em movimento num plano horizontal, a bola continuaria a rolar indefinidamente com a mesma veloctdade. Mas um plano horizontal, nesse contexto, significa um plano cujas partes mantém-se a igual distancia do centro da Terra, o que poderia de fato ser uma esfera que, se aumentada, envolveria toda a Terra. Assim, Galileu péde supor que, do mesmo modo como uma bola de bronze se moveria perpetuamente em torn da Terra num circulo perfeito, também a prépria Terra poderia se mover perpetuamente em torno do Sol. E claro que este raciocinio seria solapado por completo por qualquer sugestdo de que os planetas no se movem em circulos perfeitos e sim em elipses, nas quais eles de fato se aproximam e se afastam do Sol, nilo surpreendendo, portanto, que Galileu nunca parega ter dado qualquer atengao séria as conclusdes astrondmicas de Kepler. Os Dots matores sistemas do mundo a que se refere 0 titulo de seu grande livro eram o ptolomaico ¢ 0 copernicano. Galileu também excluiu o sistema conciliatério de Tycho, embora ‘© mesmo fosse perfeitamente compativel com as varias descobertas astronémicas que ele proprio fizera anteriormente com 0 recém-in- ventado telescdpio. Em seu Siderius nuncius, de 1610, Galilew apre- 20 A RevoLugio Crentiricn sentou provas que Ihe permitiam afirmar que a Lua era exatamente como a Terra em composigio (com montanhas, vales, mares etc.), © rio um corpo qualilativamente diferente composto de um quinto elemento sobrenatural (ou quinta-esséncia) cujo movimento natural era mover-se num circulo. A implicaciio era clara: se a Lua podia se mover em torno da Terra, ainda que fosse Feita de toncladas de terra ¢ Agua, por que nfo podia a propria Terra mover-se em torno do Sol? 0 fendmeno da luz cinzenta, que cle viu iluminar debilmente 0 lado escuro da Lua, mostrava que a Terra nio diferia dos planetas por sua caréncia de luz. As lvas de Jupiter que ele descobriu sugeriam ser possivel que cada planeta, no somente a Terra, tivesse sua(s) pro- pria(s) Iua(s) ¢ fosse capaz de se mover pelo espaco sem as perder. E a descoberta de incontaveis estrelas invisfveis a olho nu deu crédito 2 sugestéo pos-copernicana de que as esticias fixas nZo estavam confinadas a uma esfera e sim espalliadas por todo o universo infinito. Essas descobertas, ¢ posteriormente a das manchas solares, prejudi- caram os preceitos aristotélicos de maneira irremedidvel, mas nem clas, nem a descoberta adicional de que Vénus mostrava fases, como a Lua, causaram qualquer dano ao sistema de Tycho. 1u foi, sem diivida, um pensador versdtil e eriativo, mas as pesquisas mostraram a importancia que os trabalhos de seus prede- cessores tiveram para ele, quer fossem seus contemporaneos mais velhos entre 0s mathematic!, homens como Tartaglia ou Guidobaldo del Monte (1545-1607), pensadores medievais como os que desenvol- veram as teorias do impetus para explicar 0 movimento dos projétets, ou professores do Collegio Romano jesuita [224]. Também se sabe que nio havia nada de novo em seu modus operandi, que era essen- mente aquele dos outros mathematict, combinando anélises mate- madticas e pesquisas experimentais (205; cf. 10). Nao obstante, Galileu foi um convincente divulgador de suas préprias idéias e um magnifico veiculador de idéias técnicas. Suas obras mais relevantes, publicadas ‘em ialiano € nic no latim dos eruditos, logo foram traduzidas para outras linguas européias. Talvez sua maior contribuigio para o desen- volvimento da ciéncia tenha sido, como Gary Hatfield afirmou recen- temente, sua exemplificagao da utilidade ¢ do sucesso da abordagem matemética & natureza [107- 139]. Em seus escritos, Galileu ensina repetidamente por meio de exemplos, mostrando como a pratica ma- temética pode nos ajudar a compreender a natureza do mundo, mesmo naqueles casos em que a adequagio entre a anilise matematica © @ realidade fisica € apenas aproximada, sendo 2 matemdtica baseada numa circunstancia idealizada, irealizavel. Outra importante contribuigdo para a matematizagio da filosofia natural fo: dada pelos jesuftas com suas vigorosas atividades pedagé- gicas. A matemética desempenhava um papel importante no chamado Ratio studiorum (Ordem de estudos) que adotavam. Os jesuftas reve- lavam a importéncia que atribufam & matemética ao ensind-la junta- mente com a fisica, ou a metafisica, seja no pentiltimo ou no dlumo ano de seu curso (e nio como uma matéria preliminar, ensinada num nivel muito baixo) [109: 10) exagerar a relevancia da pedagogia jesuita, e a atitude em relagtio & matemética propagada em suas faculdades, embora fosse indubitavelmente uma expresstio da tendéncia geral que estivemos descrevendo, nio pode ter deixado de reforgar a importancta da matematica pata a compreen- so do mundo nas mentes dos estudantes, Pelo menos dois famosos alunos dos jesuftas deram suas proprias e influentes contribuigdes para a matematizagao da representago do mundo: Marin Mersenne (1588-1648) e René Descartes. Marin Mer- senne tornou-se frade da Ordem dos Minimos em 161 e, com 0 incentivo de sua ordem, dedicou a vida ao trabalho intelectual em apoio sua fé. Mersenne foi levado por suas crencas religiosas a negat © pressuposto fundamental do aristotelismo de que causas fisicas podiam ser conhecidas com seguranga. Isso equivalia a afirmar que a humanidade era capaz de penetrar a esséncia de uma coisa e, portanto, era igual a Deus. Mersenne, contudo, nao era cético. Via a matemitica como 0 tipo mais verdadeiro de conhecimento, a tnica forma de conhecimento humano que podia aspirar a ser igual ao conhecimento divino [47]. Mersenne desempenhou ativo papel na difusdo de suas idéias ¢ das de outros matematicos, porém for ainda mais ativo no cultivo e manutengao de uma ampla correspondéncia com intelectuais de destaque por toda a Europa. Como no podia deixar de ser, procurava pessoas de pensamento semelhante ao seu e atuava como importante fonte de informagdo junto 2 cada uma delas, comunicando trabalhos em andamento as partes interessadas. Ao faz6-lo, & claro, dificilmente podia deixar de comumcar seus préprios ideais ¢ sua crenga fundamental na importéncia da matematica para a filosofia, Em nossos dias, Descartes € conhecido sobretudo como filésofo, mas no estigio inicial de sua carreira ele foi um matemético, traba- Ihando com misica, éptica e mecdnica. Na verdade, seu famoso Discurso do método de 1637 (em que propds aquele que € 0 mais famoso de todos os argumentos filoséficos, Cogito, ergo sum — Penso, logo existo) for ‘ado como o prefacio de irs exercicios em fis! matemética (sobre a let do seno da refragio, a causa do arco-itis sobre 0 modo de representar problemas algébricos abstratos em termos espaciais ou geométricos) que pretendiam exemplificar 0 poder ¢ a exatidiio desse método [88; 89; 207; 83]. O método de Descartes conduziu a uma nova metafisica, que forneceu a base para um novo sistema da fisica, a qual, por sua vez-se tornou a mais influente das novas filosofias “mec&nicas” (ver Capitulo 4). Seu sistema final, embora fizesse menos uso da matematica, sendo muito mais especu- lativo e qualitativo, foi sem divida desenvolvido a partir do empenho inicial em conhecer o mundo fisico em termos matematicos. Oelenco de personalidades que desempenhou um papel importante ha matematizagao da filosofia natural poderia ser Facilmente ampliado. Galileu de fato fandou uma escola de seguidores que levaram adiante seu trabalho em fisica matematica; homens como Bonaventura Cava- lieri (1598-1647), Evangelista Torricelli (1608-47) e Borelli [194]. Os Pafses Baixos forneceram solo fértil para a matemética superior [36]. Isaac Beeckman deixou um exempio notavel de como usar a matemé- tica na filosofia natural. Embora nao tenha publicado nada, sua obra chegou ao conhecimento de outros por intermédio de Mersenne, ou por conhecimento pessoal. Ele foi uma influéncia imicial particular- mente importante para Descartes [89]. A fisica matemética atingiu seu pice nos Pafses Baixos com Christiaan Huygens (1629-95), que é apresentado com demasiada freqtiéneia como importante precursor de Isaac Newton (porque seu desenvolvimento do conceito de fora centrifuga deixou claro que 0 movimento numa trajetéria curva, como a dos planetas, exige a acdo constante de uma forga, abrindo assim caminho para a afirmagao newtoniana da inércia retilinea e a rejei¢ao de idéias persistentes, derivadas em tiluma andlise de Galileu, de que © movimento num circulo também pode continuar indefinidamente), Mas Huygens pode set visto, de maneira menos whiggista, como aquele que primeito adaptou e refinou a filosofia mecanicista de Descartes que Ihe parecera carente de fundamentos tanto matematicos quanto metodol6gicos, ¢ aquele que desenvolveu posteriormente uma filosofia mecanicista em oposigdo a0 que considerava a filosofia ndo-mecanica de Newton (244; 233). Os Principios matemaucos de filosofia natural (1687) de Isaac Newton podem ser vistos como 0 ponto culminante da matematizagio da representagdo do mundo. Obra famosa sobretudo por estabelecer que os planetas continuam girando em toro do Sol em conseqtiéncia da mesma forga que faz uma mag cair no chao, 0 Principia mathe- matica fox muito mais além disso. Demonstrou matematicamente a verdade das leis de Kepler sobre © movimento planetério © iniciou a teoria lunar e cometéria moderna. Mostrou a utilidade da matematica pata uma compreensio dos reimos tanto celeste quanto terreno e, por fim, refutou a distingdo aristotética entre ffsica sublunar ¢ superlunar, As leis do movimento de Newton suplantaram as de Descartes formaram a base de uma compreensiio completa do comportamento de corpos em colisio (incluindo as colisdes obliquas, que haviam derrotado Descartes por completo). Newton for capaz de lidar com pleno éxito com a questio da forga centrifuga e de dar os primeiros Passos rumo a compreenstio dos movimentos dos corpos em fluidos resistentes. Este iiltimo esforco the permitiu desenvoiver uma teoria da actistica em que a velocidade do som vaniava com a pressio e a densidade do meio através do qual ele passava, Em um desenvolvi- mento de importincia crucial para a filosofia mecdnica, que ele © a maioria de seus contempordneos endossavam, demonstrou matemati- camente como efeitos macroscépicos observivers podiam ser expli- cados em termos de fenémenos microseépicos (79; 100; 233; 236] ‘A publicagdo dos Principia de Newton assinala a conclusio da tend@ncia & matematizacio da filosofia natural iniciada no século XVI. Mas talvez seja verdade que fazemos esse juiz0 sobre os Principia porque Newton, 20 contrario de Galileu ou de Descartes, péde dispor de uma matemitica e de uma fisica substancialmente corretas. O préprio Newton nfo precisou justificar a abordagem matemitica; pode supor com seguranga que havia um piiblico para seu livro que, mesmo que no conseguisse acompanhar sua matemética, no duvidava da validade da mesma para a compreensio do funcionamento do mundo [80]. Embora seu livro tenha enfrentado algumas criticas violentas, nao se levanton um murmiirio sequer contra ele sob esse aspecto. A batatha j4 havia sido ganha, e, em certo sentido, a histéria jé se completara antes que Newton pisasse no paico. Certamente, no final do século XVII, o matemitico era visto no como um mero subordinado do fil6sofo natural, mas como um membro da elite intelectual Esse fato é notavelmente ilustrado pela mé acolhida dada & afir- magio de Robert Hooke (1635-1703) de que Newton tomara dele 0 principal principio da mecanica celeste. Sem diivida € verdade que, numa troca de cartas em 1679, Hooke disse a Newton ser capaz de explicar as leis de Kepler para 0 movimento planetério mediante a 3a A Revotugho CrewtiFicn suposig¢ao de uma dinica forga atrativa rumo ao Sol que operava no planeta em movimento tangencial. Chegou até a indicar que se deve considerar que a forga varia inversamente 20 quadrado da distincia entre o Sol co pianeta. Sabe-se também que antes desse intercAmbio Newton tentava descrever movimentos celestes, de maneira tipicamen- tc cartestana, em termos de um equilfbrio entre duas forgas: uma forga centrifuga causada pela revolugéo em toro do centro ea forca centripeta da gravidade. Newton adotou os pressupostos de Hooke nos Principia (236: 382-8], mas quando este pediu algum reconhecimento de que The fornecera essa idéia, Newton se opds veementemente & nogio implicita de que os matemdticos “nao passam de calculadores improdutivos ¢ burros de carga” a servigo do homem de idéias. Hooke encontrou um ou dots defensores em seu circulo de amigos, mas a maioria naquele momento, ¢ todos depors, parecem ter descartado sua 1déia como trivial se comparada a elaborago por Newton da mate- mética precisa envolvida. “A descoberta foi de Newton”, insistiu 0 historiador R.S. Westfall, ““c nenhuma pessoa informada questiona 150 seriamente” [236: 448-52]. A mensagem parece clara: 0 verda- deiro filésofo natural é também um matemético. No tratamento dado a Hooke, portanto, vemos um exemplo precoce do tipo de atitude reverente em relagdo aos fisicos mateméticos que ainda hoje vigora. Esse é om si mesmo urn legado importante desse aspecto da revolucao cientifica. Nosso objetivo aqui é simplesmente explicar a revolugfo cienti- fica, e vimos como a ascensao da abordagem matemdtica na busca de comprecnsio do mundo natural desde 0 século XVI até o final do século XVII distingue esse periodo do que se passou anteriormente, resultando em algumas mudancas espantosas na conceituagao da fisica Isto no é em absoluto, contudo, uma hist6ria adequada dos primérdios da moderna ciéncia fisica, muito menos da matemética. Ha varios elementos importantes que mal mencionamos. Teria sido possivel contar uma histéria similar concentrando-se mais no desenvolvimento da Optica geométrica (177; 183] ou até em teorias da miisica ¢ da harmonia (um interesse, em maior ou menor grau, de Galileu, Kepler, Beeckman, Descartes, Mersenne, Hooke, Huygens e Newton, bem como de outros que nfo discutimos) (34; 30; 58: cap. 2; 59: cap. 1 210). E hé muitos nomes que poderiamos ter citado: de Gemma Frisius (1508-55) a Blaise Pascal (1623-62), de Egnazio Danti (1536-86) a Pierre de Fermat (1601-65), de Roberval (1602-75) a Leibniz (1646- 1716). Ignoramos numerosos t6picos: 0 prinefpio de conservagio de um vetor, a conservagio do momentum, a matemética dos indivis{vers € 0 desenvoivimento do célculo. Cada um destes, pessoas ou t6picos, fe muito mais, contribufram de maneira importante para a revolugio cientifica, e um estudo detalhado de qualquer um deles forneceria maior corroborago ndo apenas para o papel da matematizagio da natureza na revolugZo cientfica, como para a importaneia do contexto social na compreensio desse processo. 1) © METODO EXPERIMENTAL A ascensio da matemética acompanhou a ascenstio dos matemticos: a abordagem matemitica A compreensdo da natureza tornou-se mars persuasiva A medida que o matemético tornou-se mais digno de crédito. © matemitico comegou a adquirir o crédito cognitivo previamente reservado a0 fildsofo natural. Um dos modos como os mateméticos adquiriram esse novo crédito for a afirmagéo da certeza do conheci mento matemético [127; 12]. Essas afirmagées, porém, eram faci ‘mente contestadas, em particular se a matemética estivesse sendo usada para declarar algo implausivel, como, digamos, o movimento da Terra, Afinal de contas, a matematica era um sistema artificialmente cons- trufdo, e a certeza de suas afirmagGes era condicional: se vocé aceita certos axiomas outros preceitos, entiio tem de aceitar as varias conclusdes que se seguem de maneira demonstrével. Mas por que deveriam 0s axiomas € outros preliminates estar relacionados de alguma forma com 0 mundo fisico? Por exemplo, como pode a sugestio de que uma quantidade negativa multiplicada por outra quantidade negativa fornece sempre uma quantidade positiva ter al- guia relevancia para o modo como as coisas realmente slo? ‘Além disso, na tradi¢o escoléstico-aristotélica dominante, as afirmagées confidveis da filosofia natural eram baseadas em verdades da experiéncia consideradas evidentes, inegaveis. As afirmagées ma- tematicas, no entanto, ém uma dbvia tendéncia a serem tudo, menos evidentes. Sabe-se que Thomas Hobbes (1588-1679) ficou fascinado peia geometria euciidiana ao ver um dos teoremas de Euclides pela primeira vez e se impressionar ndo com sua verdade Obvia, mas com sua aparente impossibilidade. Para poder estabelecer a validade de sua abordagem a uma compresnsiio do mundo, 0s matemiticos tiveram de estabelecer novos critérios de concordancia, novos principios de justificacao [50]. 38 A Revowughe cienririca Assim, os praticantes da matemética’ passaram a dar importantes contribuigdes para a nova tendéncia a0 experimentalismo, pois um dos tragos caracteristicos da revolugfo cieniifica € a substtuigio da experiéncia” evidente por si mesma que formava a base da filosofia natural escoldstica por uma nogio de conhecimento demonstrado por experimentos especificamente concebidos para esse propésito. Como uma prova matemética, o resultado final do experimento poderia perfestamente ser connecimento contra-mtuitivo Infelizmente, a natureza precisa do papel das ciéncias matematicas nna formulago do método experimental ainda nfo fo: eluetdada pela pesquisa hisiGrica, embora haja virios estudos extremamente sugesti- vos {9: 10; 50; 59: 138; 205]. Parece bastante claro, no entanto, que 08 praticantes da matemética desempenharam um papel importante no estabelecimento do método experimental Uma maneira de entender a conexio entre a matemética ¢ 0 experimentalismo é pela hist6ria dos instrumentos cientificos. Antes da tevolugio cientifica, os tnicos instrumentos em uso eram esferas armilares, astrolabios, quadrantes e mais um ou dois instrumentos Usados exclusivamente por astrénomos. Nos séculos XVI e XVII, con. tudo, uma série muito maior de instramentos matemélticos entrou em uso para facilitar a resolugo de problemas em todos os ramos da disciplina matemética. Mas esse mesmo perfodo viu também © desen- volvimento dos primeiros insteumentos da filosofia natural; isto instrumentos destinados a descobrit novas verdades sobre a natureza do mundo. Entre eles, os principais foram o telescépio e o mieroscépio, © barémetro e a bomba de ar, 0 termdmetro e, mais tarde, vérias maquinas elétricas (219; 9; 104). Sem diivida é significative que 0 telescdpio, um novo invento usado comerciaimente, tenha se tornado pela primeira vez. um instrumento de filosofia natural nas mios de Galileu, um praticante da matemética que nutria uma apzixonada ambigo de ser reconhecido como filésofo natural. O telescépio gali- teano pode ser visto como uma extensdo daqueles instrumentos astro- nOmicos anteriores que permitiram a Tycho Brahe estabelecer que @ estrela nova era uma estrela nova e que os planetas também cram fermo “ praticantes da matemstica” para evidenciar que categorias como imatemico fico, eens et, so recenes ta hstna da clo. Na presente aduyfo adoxamos mniferentemente or vanos tems, sempre tend em mente os limes histories. © Merope CiENTiFICS a7 fendmenos celestes, no atmosféneos. O telescépio tornou-se um instrumento cientifico 4 medida que se integrou aos propésitos dos astrOnomos, ¢ ao fazé-lo tornou mais facil para os astrénomos passarem 4 ser fildsofos naturais, pronunciando-se acerca da natureza real do céu [220]. E razoavel admiur, portanto, que for a tradigdo matematica que forneceu 0 primeiro estimulo para o uso de instrumentos na pesquisa cientifica. Como sugeriu J.A. Bennett, parece haver uma clara ptogressiio do instramento matemético como a marca registrada do matemdtico para o instrumento cientifico como a caracteristica distin- tiva do cientista moderno [9; cf. 220]. ‘As ciéncias mateméticas sempre se dedicaram a0 conhecimento prético, Util, e 05 praticantes em geral tinham orientaggo empirista, testando a aplicagio de suas técmicas matemiticas a0 mundo real. Talvez seja nas tentativas de usar a descoberta da variagio magnética como meio de determinar em que longitude se esté no mar que isso possa ser visto com maior clareza. A posi¢ao de um navio ao norte ‘ou a0 sul do equador era facilmente determinavel tendo por referéncia © Sol ou as estrelas, mas a determinagio de sua posigao a leste ou a este de um dado ponto de referéncia resistira a todos os esforgos. Quando se percebeu que a agutha de uma biissola se orienta nao para 6 polo norte geogrifico mas para um ponto fixo (que mais tarde se descobriu variar em posicio) a alguma distancia do pSlo, isso pareceu fornecer uma possfvel solugio para o problema. Em todos esses esforgos foi necessério confrontar célculos com as observagdes de marinheiros €, em varios casos significativos, estudos empiricos de magnetos ¢ de seu comportamento também desempenharam impor tante papel nas investigagdes [9; 245; 225]. Parece que os praticantes mateméticos empreendiam esse tipo de prova empfrica de seu trabalho quase rotineiramente. Em vista disto, parece muito provavel que a tradigao matematica deva ser encarada, como Bennett insistiu, como uma fonte importante do méiodo experimental na ciéncia do século XVI. Se a expansio da exploragao além-mar, do comércto ¢ da coloni- zagao no Renascimento exigiram aperfeigoamentos na navegacio & fem outro aspectos matemiticos da geografia, essa nfo fo a tinica esfera em que artesios habilidosos puderam dar contribuigdes de que intelectuais com formacao universitaria ndo eram capazes. A maior importancia da mineragio e da metalurgia na economia européia do século XVI gerou um crescente interesse por tais matérias entre homens de nivel intelectual mais elevado. Esse interesse se evidencia em dois livros influentes, De la pirotechnia (1540), de Vanoccio Biringuccio (1480-c.1539) © De re merallica (1555), de Georg Agricola. Essas obras ilustravam claramente a relevancia do conhecimento artesanal para uma compreensdo da natureza do mundo € reforgavam os ensi- namentos de pedagogos humanistas, como Juan Luis Vives (1492- 1540), que defendiam o estudo dos segredos das artes € offcios. Blas enfatizavam também a importancia da experiéncia na fundago do conhecimento, A crescente consciéncia do conhecimento mais pratico dos artesios de elite for considerada um fator importante no desen- volvimento do método experimental. Bernard Palissy (1510-90), um oleiro muito admirado que tentou descobrir por si mesmo, por ensa1o © erro, o segredo dos utensflios de ferro esmaitado chineses, ministrou palestras piblicas em Paris sobre agricultura, mineralogia e geologia © publicou Discours adnurables (1580), didlogos em que a supe- nondade da“ prética” era exaitada em detrimento da limitada “teoria’ A tradigao matemitica nao fo: a unica fonte histérnca de uma aborda- gem experimental 8 compreensao da natureza. Houve também varios desenvolvimentos expressivos em anatomia e fisioiogia. Na Univer- sidade de Padua, por exemplo, houve uma ruptura revolucionéria com métodos anteriores de ensino da anatomia nas escolas de medicina com a designagio, em 1537, de André Vesélio (1514-64), um sdbio de Formagio humanista que também cra um dissector muito habil [76, 162]. Vesdlio ensinava anatomia enquanto fazia suas dissccagées (0 mais usual era que 0 professor lesse uma autoridade antiga, Galeno, enquanto um ctrurgiao fazia a dissecagio), ¢ provou-se imensamente estimado entre 05 estudantes de medicina. Além disso, seu excelente livro, De humant corpors fabrica. de 1543, era ao mesmo tempo um manual de anatomia ¢ um manual prético magnificamente ilustrado sobre como dissecar. Vesélio ainda teve 0 cuidado Ge acrescentar um prefacio em que deplorava a separagio entre a cirurgia (na época uma radigio artesanal) ¢ a medicina. Em conseqiiéncia, a anatomia vesa- liana veio a ser considerada, pelo menos por alguns, “o fundamento de toda a medicina”, ¢ por algum tempo ameacou substituir a filosofia natural em sua posigao de centro da educagdo médica (226; 22}. Consta que Vesilio teria descoberto duzentos erros nos escritos anatémicos de Galeno, ¢ 0 mais importante deles, sua descoberta de que a parede que separa os ventriculos direito ¢ esquerdo no interior do coragao ni era perfurada, ameagou toda a fisiologia galémca (162), Embora o proprio Vesilio nao tenhia do além disso em seus estudos do coragZo, seus sucessores em Pédua fizeram algumas descobertas pertinentes. Realdus Columbus (1510-59) prop6s a teoria da circulagio pulmonar (segundo a qual o sangue passava do ventriculo direito do coragio para 0 esquerdo atravessando os pulmées, e nao se filtrando por supostas perfuragdes na parede muscular que os separa), enquanto Hieronymus Fabricius (1533-1619) descobriu nas veias maiores das pernas valvulas que, como William Harvey (1578-1657) compreendeu mais tarde, permitiam que 0 sangue flufsse somente ramo ao coragio. Harvey esteve em Padua de 1600 a 1602 ¢ foi instrufdo por Fabricius no que Andrew Cunningham chamou de o “projeto Aristé- teles” — um esforgo conjugado para adquirir um verdadeiro conhe- cimento causal das partes, ou Srgdos, dos animais ¢ de sua geracio, e assim elevar 0 interesse pelas coisas vivas da condiggo de histéna ‘natural (descritiva) A de filosofia natural (prescritiva) [445 ef. 77}. Em seu retorno & Inglaterra, Jevou adiante essa tradigo paduana mediante 0 estudo da geracao de animais ¢ do movimento do coragio ¢ do sangue. A pesquisa nesta Gltima matéria levou-o & descoberta da circulagio sangiifnea. Em seu De moto cordis et sanguinis (1628), Harvey nao somente concebeu algumas técnicas experimentais enge- nhosas porém simples, como também langou mao do conhecimento artesanal de agougueiros e magarefes (foi capaz de explicar por que eles cortam uma artéria para escoar todo o sangue do corpo ¢ por que, quando isso nio ¢ feito, as artérias estardo vazias apés a morte mas as veias estario cheias de sanguc). Pesquisas cuidadosas nos permitem ver agora que Harvey niio estava “A frente de seu tempo”, um pensador moderno em roupagem do século Xvil, Enquanto a maiorra dos anatomistas da época restringia seu estudo a0 homem, o “projeto Aristételes” de Padua era mais amplo, buscando compreender a forma e a fungio de partes dos sistemas animais de maneira mais geral. Em conseqiigncia, Harvey myestigou 0s movimentos do coragao e do sangue em outros amimais além do homem. Em decorréncia disso, pdde efetuar experimentos de vivissecgdo — algo jamais cogitado pela maioria dos anatomistas. Muitas das descobertas de Harvey foram feitas porque ele realizava experiéncias como um aristotélico de Pédua, Além disso, por forga de seu vitalismo, seu modo de pensar era muito diferente do de um bidlogo modemno [45). Ele estava convencido de que 0 sangue continha algum principio “que corresponde ao elemento dos astros” que seria o 40 4 Revotugho ClewTinica Drincipto da vida e da alma dentro dele [165; 101]. Além disso, embora Gurante sua carreira tenha mudado de idéia quanto @ ser 0 coragéo on © Propno sangue a sede original da vida, nunca duvidou de que o sistema coragao-sangue era auto-suficiente © no necessitava de ne- hum outro principio, como 0 ar vindo dos pulmdes, para restauré-to. Pode-se ver como um sinal seguro da confiabilidade das demons. rages experimentais de Harvey 0 fato de sua teoria ter sido aceita Por outros com notavel rapidez (embora ela tenha encontrado, é claro, vigorosa oposigio por parte de alguns grupos [240; 77]. Isso é ainda ais notave! dado 0 fato de que cla minava por completo a fisiologia galénica sem propor nenhum novo sistema para substitui-ia, Serta de esperar que a descoberta de Harvey acarretasse um colapso do sistema galénico de terapéutica, que era tao intmamente ligado a fisiologia, mas isso nao aconteceu. © sistema galénico de terapéutica, em razao de seu sucesso pratico no tratamento das doengas (é preciso ter em mente que ele vinha proporcionando uma boa vida aos clinicos hé séculos), permaneceu notaveimente intocado pelas inovages de Har- vey, embora durante um curto perfodo, na década de 1660, tenham sido realizados em Londres © Panis alguns experimentos perigosos com transfusto de sangue ¢ injegdes (75] No entanto, a fistologia tornou-se © foco de importantes investi- gagdes experimentais. Os papéis dos pulmées ¢ da respiragio, do figado e do sistema nervoso, que Harvey deixara inexplicados, foram apenas alguns dos principais focos de pesquisa. Talvez o programa harveyano de pesquisa experimental tenha sido mais rico na Inglaterra, florescendo do final aa década de 1630 até meados da década de 1670 ¢ envolvendo figuras influentes como George Ent (1604-89), Nathaniel Highmore (1613-85), Thomas Willis (1621-75), Christopher Wren (1632-1723), Robert Hooke, Robert Boyle e Richard Lower (1631-91) (75]. Mas sua influéncia se estendeu ao continente, moldando a pes quisa © o ensino experimental subseqiientes nas escolas de medicina on Também na hist6ria natural ocorreram desenvolvimentos revolu- Ctondtios. Humanistas do Renascimento como Otto Brunfels (c, 1489- 1534), Leonard Fuchs (1501-66) ¢ Gaspard Bauhin (1541-1613) em- penharam-se em ampliar os levantamentos enciclopédicos dos mundos das plantas © dos animais da Anugitidade, fornecidos por Arist6teles, Teofrasto, Plimo € Dioscérides de modo a levar em conta espécies do norte da Europa, ou das Américas, desconhecidas dos antigos. A Gificuldade de reconnecer as descrigées antigas conferia grande im- (© Metove Cienririco portancia 8 identificagio precisa, © « maquina impressora mostrou-se de extrema utiligage ao ilustar os noves eatflagos. A smportinci esses novos textos uniformement itstrads nfo pode set exagerada: eles representavam um imenso aperfeigoamento em relagdo 205 her Danis e bestiéios manuscritos da Tdade Média, em que a8 iustragées, quando existam, eram pouco relists, ja porque eram copradas (com frequéncia de modo muito tosco) de uma versfo anterior por um hhomem habilitado como escriba, nio como desenlista, ov porgue sua Tungio no era retaar a ealidade, mas o papel simbdlieo da enatura no folclore (assim, pelicanos eram mostrados ferindo de beracamn 7 © peito para alimentar os filbotes com o proprio sangve), A busca pelo realism em iustragées feitas por artesios competentes © que, 20 contro das ilustragées decoratvas mais formalizadas dos (abalhos anteriores, susitava a comparagio com espécimes reais, eforeav® a mensagem explicit dos textos de que 1 experiénea pessoal era um juia mais confidvel que aautoridade,além da mensagem rmplicita de gue artesios competentes tinham algo a oferecer na bus ompreensao do mundo real (6; 53: 725 208]. Se passou 2 haver mator realismo nas iustrages, houve um aumento correspondente no que poderiamos chamar de naturalism dos textos. As grandes eneclopédias do stra natural do Renasc- mento, em especial a Histor naturalium (1551-8) de Conrad Gesner (1516-65), em quatre volames, © os treze volumes sobre diferentes tipos de animais pblicados por Ulisse Aldrovandi (1522-1605), tr- tavam no apenas de fates comuns sobre os hébios ¢ a natureza dos animais que discatiam, mas dos sgniieadonambélicos ae os esos possufam para os antigos ou para diferentes pow poca. Assim sendo, essas histérias naturais inclufam no verbete relatr scimalfouos os adagies,provérbies, abulas, relatos Dblicas e ots folciores sabre o animal. Ao que pareca, para bisonadores naturals como GesnereAldrovandi et nformasdes ram evans pars ma mpreensio do préprio animal, sua natur ancia. S Cents ara crea bv acon de qo ods sx vaies oka miriades de signiicados incontiveis conexSes com outa coisas. fossem elas ouos amass, plantas, mneras, corps celests,numeros ou até artefalos manufaturados pelo homem, como moedas ov amu: letos. Somente pols listagem de tudo que era conhecido ou dito sobre o ational todas 550s supostas ccnexdee poderiam ser revelades, Mas esse po grandioso de histéria natural, que parece ter clarasHigagoes com a visio mégica do mundo tradicional segundo a qua coisas esto conectadas numa Grande Cadeia do Ser, possuindo cor- respondéncias com outros elos da cadeia, dew lugar no século XVII a um Upo inteiramente naturalista de hist6ria natural. Frente @ animais e plantas do novo mundo, que nao unham quaisquer associagdes ou similitudes para a cultura do velho mundo, nenhuma significagao simbélica de qualquer tipo, os historiadores naturais produziram en- ciclopédias que apresentavam todas as criaturas, tanto do novo mundo quanto do velho, em termos mais factuais. Nao h4 divida de que os usos culinarios e medicinais das plantas e dos animais ainda podiam figurar como parte da hist6ria natural que faziam, mas Alo o seu uso na doutrinagao moral (8; 72]. A motivagao social que ocasionott essa mudanga no trabatho em 4a natural for essencialmente dupla. Em primeiro lugar ela pode ser vista como uma extensio das preecupagSes humanistas do Renas- cimento com a superioridade moral da vita activa em relagio a vida contemplativa, abarcando tanto disciplinas Geis para o Estado, como a tica, o direito, a politica ¢ a retérica, quanto um conhecimento tt pragmitico da natureza, Mostrava-se nessas obras que o conhecimento da histéria natural era dtil no comércio, na agricultura, na culinénia, na medicina © em varias outras areas que serviam ao bem piiblico tanto quanto a filosofia moral do humanismo civico (37; 72; 212 175]. Um aspecto importante da obra do principal propagandista do experimentalismo, Francis Bacon (1561-1626), foi ter codificado e formalizado as bases da autoridade filosGfica da hist6ria natural, elevando a logica indutiva acima da dedutiva em seu New Organow (1620) — proposta para substituir a i6gtca do Organon de Arist6teles. resultado for que naturalistas como John Ray (1627-1705) puderam ver seu trabalho como uma contribuigao para “uma filosofia solida- mente construida sobre uma base de experiment” (1690) [175] Em segundo ugar, a histéria natural era vista como um meio de exibir as maravilhosas sabedoria, arte e benevoléncia do Criador. Desse ponto de vista, a hist6ria natural podia ir muito além das preocupagoes antropocéntricas da vita activa e considerar criaturas que pareciam no ter nenhum valor medicinal, culindtio ov comercial [6: 16; 53] O resultado dessa énfase religiosa for que botdnicos e zodlogos pude- ram reivindicar um crédito intelectual maior que aquele geralmente conferido & disciplina meramente descritiva da histéria natural, O historador natural lia © segundo livro de Deus, 0 livro da Criagao, para suplementar a leitura das Eserituras pelos tedlogos: © impulso religioso em ditegao & histéria natural parece ter sido dominante nos novos estudos que usavam os mzrosc6pios simples ou compostos desenvolvidos a partir de cerca de 1625. Jan Swammerdam (1637-80), um notdvel microscopista ¢ anatomista comparativo, que demonstrou por dissecaco que as asas da futura borboleta estavam presentes na lagarta (refutando assim as crengas aristotélicas na amor- fia dos insetos © em scu desenvolvimento por total_metamorfose), acreditava que @ anatomia de um piolho tevelava “o Dedo Todo-po- deroso de Deus” (37: 56}. Antoni van Leeuwenhoek (1632-1723), 0 descobridor dos protozoarios e das bactérias, foi também impelido por preocupacées fisico-teol6gicas [167]. Era possivel, contudo, usar 0 microsc6pio para quest6es mais pragméticas. Enquanto Swammerdam eserevia Ephemert vita (1675), um livro sobre a efemérida, ¢ 0 revestia de evocagies escatol6gicas, Marcello Malpighi (1628-94) optara an- teriormente por escrever sobre 0 mais vendével bicho-da-seda, Dis- sertatio de bombyce (1669) Malpighi empregou 0 microscép1o de mancira particularmente proficua ao estuaar a sutil estrutura dos tragos anatémicos. Descobriu as conexdes capilares entre as arténas ¢ as veias, confirmando assim a teoria da circulagao [i]. E no entanto, em 1692, dois anos antes de sua morte, seu colega Robert Hooke, outrora microscopista, declarou que apenas Lecuwenhoek continuava a fazer trabalhos sérios com 0 novo instrumento [241]. Pelo menos em parte, a razio por que o microscépio nao se tornou to essenctal para os estudos anatémicos quanto o telesc6pio para os estudos astrondmicos foi sua incapacidade de se impor entre os praticantes médicos. O poder do telescépio de dar maior precisio 8 astronomia posicional garantia sua utilidade, mas © conhecimento da estrutura invisivel de drgios em nada contribuia para melhorar a eficdcra de um sistema médico baseado essenciaimente no estudo e tratamento de sintomas de doengas. O microseépio podia sem diivida ter sido usado por alguns por “diversdo passatempo”, como Hooke sugeriu, mas para ter um impacto real precisava ser aceito por praticantes nas disciplinas relevantes. O que ocorreu, ao contrario, foi que clinicos eminentes, como Thomas Sydenham (1624-89) e John Locke (1632-1704) rejeitaram seu uso (242; 241]. Outra fonte importante do método experimental 6 encontrada na tra- digo quimica ou alquimica. A alquimia no se tornou experimental de repente na revolucio cientifica — sempre fora uma atividade experimental. © que aconteccu na revolugdo cientifica for que 0 aa A Revotusho Ciewriricn experimentalismo alquimico comecou a se fazer notar entre filésofos nalurais, clinicos e outros intelectuais que jé comegavam a se famni- arizar com os ensinamentos da experiéncia gragas a desenvolvimen- tos nas ciéncias mateméticas, na histéria natural, na anatomia e na medicina. A principal influéncia 1solada for © paracelsismo, uma filosofia que podia assumir muitas formas mas que sempre exaltava a utilidade da quimica pratica para a medicina e para uma compreensio mais ampla do mundo natural (0 macrocosmo) e do homem (0 microcosmo). Fungado por um suigo stinerante autodidata que adotou 0 nome de Paracelso (c.1493-1541), essa filosofia quimica e novo sistema de medicina tornaram-se tio mfluentes que passou a ser impossivel Ignori-los [178; 53]. Mas Paracelso nfo foi apenas um vigoroso divulgador do experimentalismo, seu sistema médico era genuinamen- te inovador e, embora dividisse as fileiras dos praticantes médicos, varios bons resultados terapéuticos pareciam aponté-lo como um ex- pressivo aperfeigoamento em relagio A medicina tradicional, pelo menos em alguns aspectos. A medida que novos medicamentos qui- micamente preparados foram tomando lugar ao lado de plantas medi- cinais nas farmacopéias oficiais de toda a Europa, a validade co empiismo foi parecendo cada vez. mais irrefutavel [51; 54; 229] © paraceisismo conquistou muitos adeptos e alguns deles — como Gui de la Brosse (ff. (630), fundador do Jardin des Plantes em Paris; ‘Thomas Muffet (1553-1604), 0 entomologista cuja filha é eternamente apavorada por uma aranha numa rima infantil; 0 elinico e filésofo da medicina, Peter Severinus (1540-1602) € Francis Bacon — desenvol- vyeram suas prdprias versbes de sua filosofia quimica e se mostraram influentes por mérito préprio [178; 51; 176}. Mas talvez 0 maior de todos eles tenha sido Joan Baptista van Helmont (1579-1644), um nobre flamengo que faz jus a um rétulo préprio, helmontismo [166]. Historiadores da ciéncia anteriores tenderam a se prender aos aspectos quantitativos de algumas das experiéncias de Hetmont (na mais famosa delas, ele pesou um vaso, terra ¢ um salgueiro jovem antes e depois de cinco anos de rega, € conclu que 0 maior peso da drvore — 74 quilos — era devido unicamente 2 4gua), a0 mesmo tempo em que mostravam uma irtitagio whiggista com sua postura magico-religiosa demasiado dbvia, Permanece 0 fato, no entanto, de que ele for um pensador extremamente influente em seu préprio tempo como um dos principals representantes da nova abordagem experimental a uma compreensio do mundo. Exerceu, por exemplo, importante influéncia vo dos fil6sofos experimentais sobre Robert Boyle, 0 mais representa (28). Afirmou-se muitas vezes que a ascensao do método experimental estimuiou diretamente a formagio de grupos de colaboragio que reuntram fildsofos e priticos das varias ciéncias naturais em associa- {ges mais ou menos formais, como a Accademia de] Cimento (fundada em 1657), a Royal Society de Londres (1660) ou a Académie Royale des Sciences (1666) de Panis [163; 16; 152; 118; 96}. O pressuposto subjacente a essas afirmagbes € que o método experimental exige esforgo conjunto, e certamente essa exigéncia foi explicitada por Francis Bacon, cija instituigfo cientifica deal, conhecida como Casa de Salomfo, descrita em seu ut6pico New Atlantis (obra inacabada, mas publicada postumamente em 1627), foi reconhecida como a inspiragao por tras tanto da Royal Society quanto da Académie des Sciences [116; 96]. Além disso, as mais eminentes e bem-sucedidas dessas associagées, a Royal Society ¢ a Académie des Sciences, podem ser vistas como originarias de agrupamentos menos formais de pen- sadores de tendéncia experimental, como os grupos de Oxford & Londres que figuram na pré-histéria da Royal Society [116; 228], ou a Academia de Montmor e os subseqilentes encontros sob 0 patrocinio de Metchisédecn Thévenot (1620-92) que tiveram papel proeminente entre as cauisas imediatas da decisfio de Colbert de fundar a Académie [16; 163]. Pesquisas recentes sugerem que isso fornece apenas parte da explicagdo para o stibito aparecimento de sociedades cientificas du- rante a revolugio cientifica, James E. McClellan chamou atengao para © fato de que a formagio de sociedades doutas parece ter sido uma caracterfstica importante do Renascimento do conhecimento em geral, indo muito além dos confins das ciéncias naturals para abarcar 2 filosofia, a literatura, a hist6ria c alé a teologia. Parece que tais sociedades se desenvolveram como arenas para trabalhos avangados, inovadores. Em suma, eram proto-institutos de pesquisa, numa época em que as universidades eram apenas organizagées de ensino [142]. Dado esse pano de fundo geral, ndo surpreende muito que as varias sociedades cientificas tenham tido diferentes origens. E claro que a natureza especffica do patrocinio que recebiam mevitavelmente mol- dava as sociedades e 0 tipo de trabalho que realizavam [212; 152; 141]. Vérias das diferencas mais marcantes entre a Royal Society ¢ a ‘Académie, por exemplo, podem ser atribufdas ao Fato de que a primeira 46 A RevoLugio ClenriFicn era uma organizagao independente em termos econdmicos de membros interessados, a0 passo que a segunda era um grupo de elite cuidado- samente selecionado, cada membro recebendo um salario como ser- vidor da Coroa [118; 116; 96]. A necessidade em que se via a Royal Society de recrutar novos associados contribuintes significava que a imagem de ciéne1a cooperativa baconiana que ela projetava era ne- cessariamente um tanto mais frouxa que a visio mais elitista da Académie. A Royal Society precisava msistir na validade das contri- buigdes amadoras, 2 Académic era deliberadamente um corpo mais sional (96; 116]. Permanece claro, contudo, que as soctedades Ficas, a correspondéncia entusidstica de seus membros ¢ suas publicagdes (como Saggi di narurali espertenze, da Accademia del Cimento, langado uma tinica vez em 1667, ou as regulares Philosoph- ical Transactions of the Royal Society. a partir de 1665) [163] fizeram muito para promover 0 novo métode empirico de praticar a ciéncia e estabelecer verdades filoséfico-naturais. Até bem recentemente os historiadores accitavam sem questionar as crfticas com que alguns reformadores cientificos desqualificavam as universidades de seu tempo. Mas agora o equilibrio esté sendo restabelecido. Certamente havia muita inércia no sistema universitario, 0s curriculos oficiais demoravam a mudar, assim como os métodos de ensino, mas, apesar disso, amplos indfcios sugerem que, pelo menos em certas umiversidades, a despeito do curriculo, ensinavam-se as mais Fecentes idéias sobre © mundo natural ¢ 0 método crentifico [86; 69} A esinita observancia de fronteiras disciplinares entre a matemitica ¢ natural em certas untversidades contribuiu claramente, como para a fria acolhida dada & teorta copernicana e para a decisi0 privado como fildsofo natural em vez de continuar sendo um humilde professor numa universidade (238; 13]. Mas o status intelectual dos matemiticos elevou-se no Ambito da untversidade exatamente como se elevou aos olhos dos nobres patro- nos, A importéncia da matemética cra exaliada nas universidades is em que as reformas pedagdgicas de Melanchthon prevaleceram |, © Ratio studiorum dos jesuitas também enaltecia a matemética {50; 109; 138], como o fizeram as reformas pedagégicas propostas pelo humanista Peter Ramus (1515-72), que for influente nos Paises Baixos [86]. Em geral, o maior reconhecimento da utilidade da ma- tematica deu lugar a aperfeigoamentos ea maiores oportunidades de lectoni-la em toda a Europa [191; 86: 69] © Mérane Ciewrinico a Até certo ponto, a abordagem experimental a uma compreensio do mundo fisico sempre for promovida nas faculdades de medicina. As universidades italianas, Montpellier na Franca e até a tradiciona- Ifssima Faculdade de Medicina de Paris exigiam que seus alunos estudassem aspectos préticos da medicina passando por uma espécie de aprendizado junto a praticantes locais, enquanto empreendiam seus estudos mais teéricos na universidade. A partir do século XVI as escolas de medicina foram as primeiras a abrigar varias instalagGes essenciais para a promogao da ciéncia fundada na observagio e empirica: anfi- leatros de anatomia, jardins botdnicos e, em alguns casos, laboratérios quimicos. Ainda que a revolugao da mecnica celeste ¢ terrestre possa ter se produzido em grande parte fora das universidades, a revolucao nas ciéncias da vida teve lugar quase que inteiramente num contexto universitério [191]. As faculdades de medicina tomaram-se os locais privilegiados para a propagaco das Gltimas idéias em filosofia natural © para 0 acesso a instrumentos novos ¢ extremamente caros como microscépios, telescépios ¢ bombas de ar. O cartesianismo substituin © aristotelismo em varias universidades dos Paises Baixos, enquanto a Filosofia qufmica paracelsista e outras foram absorvidas nos curr culos de algumas universidades alemas [86; 156]. No entanto, se seria um erro menosprezar o papel das universt- dades na revolugao cientffica, também € importante nao exagera-lo. E preciso ter em mente que, durante todo esse periodo, a funcio da untversidade cra ensinar, Os locais onde se fazia a nova pesquisa eram as academias da corte, a Royal Academy ou a residéncia particular de um individuo dedicado, fosse um abastado fidalgo como Tycho Brahe ‘ou Robert Boyle, ou um perseguidor mats humilde do conhecimento, como Andreas Libavius (1560-1616) ou Antoni van Leeuwenhock [86: 252; 72; 105; 197). Parece razodvel supor, portanto, que desenvolvimentos aproximada- mente contemporaneos nas ciéncias matemdticas, na hist6ria natural, na fisiologia ¢ anatomra, na quimica, e um desenvolvimento conco: mitante na instrumentagdo, tiveram todos um papel na promocio do empirismo nessa época. E claro também que uma maior consciéncia do poder do método experimental deu ensejo a novas interagoes entre homens de ciéncia, 0 que estimulou mais investigagio empirica e, Sucessivamente, deu lugar a uma formalizago da associaglo em academtas ou sociedades cientificas. Todos esses desenvolvimentos foram estimulados por mudangas nas cortes prineipescas € nas uni- aa A RevoLugio Clewririca versidades ¢ as reforcaram, por sua vez. Um resultado genérico foi a radical alteragao da crenca na confiabilidade do conhecimento produ- zido pela experiéncia. Desse modo, 0 novo método experimental tomou-se um trago caracteristico da revolugdo cientffica, _ Mas isso ¢ explicar a ascensiio do experimentalismo como uma prilica rotineira aceita na invesugagio da natureza, 0 que nao ¢ exatamente 0 mesmo que explicar a origem hist6rica do que poderia- mos chamar de o método experimental. O que em geral se designa hoje por“ método experimental” & um procedimento artificial efetuado num laboratnio pata testar uma hipétese muito especifica dentro de uma estrutura tedrica considerada confidvel. Ele dependerd, provavel- mente, do uso de um equipamento especial. em muitos casos projetado ¢ feito para esse experimento especifico. Sera também concebido de modo a excluir, tanto quanto possfvel, todas as demais varidveis exceto 4 que esta sendo testada. Sera, pelo menos em principio, infinitamente replicdvel, de tal modo que os resultados possam ser verificados intimeras vezes, ou que o efetto possa ser demonstrado a novos espectadores. E precisamente esse “ método experimental” que permite hoje aos cientistas reivindicar sua imensa autoridade cognitiva. E evidente, no entanto, que de modo algum a totalidade dos ctentistas pode incorporar esse método a seu trabalho (considerem-se aqueles que trabalham nas ciéncias classificatérias da botdnica e da zoologia, por exempto). Além disso, os sociélogos da cigncia mostra- ram diversas vezes que cientistas que, em principio, poderiam se adequar as demandas desse método, na pritica nfio o fazem (ainda que retrospectivamente possam afirmar que o fizeram). Filésofos da ciéncia, ademais, com freqiiéncia se viram forgados a reconhecer a impossibilidade de se tragar a demarcagdo entre ciéncia ¢ nfo-ciéncia com base numa metodologia caracteristica. Além disso, nfo € preciso muita pesquisa histérica para mostrar que falar de um método expe- rimental tinico, facilmente caracterizado, é uma grande leviandade. O método experimental de Harvey nao foi como o de Galileu, e nenhum dos dois se assemelhava a0 defendido por Bacon, ou ao adotado por Robert Boyle. Sendo assim, como se explica que haja uma concepgao Wo forte de algo chamado o método expernmental, concepgio que presta tilo excelente servigo ret6rico na promogio da autoridade inte- Iectual da cigncia? Alguns trabalhos recentes em hist6ria da ciéncia mostraram 0 quanto a pesquisa histérica pode ser vafiosa na busca de uma resposta para essa questo, propiciando a0 mesmo tempo uma compreensio mais precisa da emergéncia histérica do experimentalis- mo. Em um estudo detathado das tentativas de jesuitas como Christoph Clavius (1537-1612), Orazio Grasst (c. 1590-1654) ¢ outros de elevar o status da matematica, Peter Dear mostrou que as dificuldades insciais surgiram do fato de que as assergdes de conhecimento produzidas matematicamente no eram verdadeiras por si mesmas {50}. O ideal de ciéncia na tradigao aristotélica baseava-se na forma dos silogismos ISgicos, mas as premissas, os pontos de partida sobre os quais 0 raciocinio era fundado, tinham de ser verdades incontroversas, evi- dentes, que ninguém relutaria em aceitar. Isso era problematico no caso das ciéncias mateméticas. Na astronomia, por exemplo, havia verdades evidentes, como a de que o Sol nasce e se pde, mas as velocidades dos planetas, seus movimentos retrdgrados ¢ numerosos outros problemas s6 poderiam ser resolvidos por cbservagdes espe cializadas, Da mesma maneira, em éptica, muitos fendmenos 56 po- diam ser evidenciados por meio de manipulag6es expertmentais com equipamento especial. Para se dar as ciéncias matematicas 0 status de filosofia natural aristotélica, era preciso que essas observagbes produ- zidas artificialmente viessem a parecer evidentes para um ntimero maior de pessoas. Embora houvesse alguns casos de realizagio de experimentos em lugares puiblicos (como a queda de pesos do alto de torres de igreja), o meio mais eficaz de tornar os experimentos “pU- blicos” era o desenvolvimento de novas maneiras de descrevé-los na literatura publicada. O modelo corrente de descri¢ao fora tomado dos manuais de geometria, © leitor era instrufdo sobre como montar 0 cenério experimental e conduzir 0 experimento, € depois informado sobre 0 que resultaria. Tornou-se usual afirmar que aquele experimento fora previamente repetido varias vezes, e muitas vezes levado a cabo diante de varias testemunhas abalizadas, cujos nomes eram citados. ‘Dear retracou a influéneia desses desenvolvimentos sobre 0 tipo caracteristico de ciéncia experimental que se fazia no continente europeu, muito diferente da filosofia experimental tal como realizada nna Inglaterra [48; 50: cap. 7]. Quando Blaise Pascal, por exemplo, Gescrevia um experimento, apresentava-o na forma de uma afirmagio universal sobre 0 modo como as coisas acontecem. Se voce fizer isto, isto e isto, entio aconteceré isto. Robert Boyle, um luminar entre os fildsofos experimentais ingleses, opunha-se frontaimente a tal coisa. Parecia-Ihe um relatério do que deve acontecer, supondo-se que as suposigdes de Pascal eram corretas, Como Bacon, Boyle acreditava 50. A Revowugio CienTinica ser sempre possivel montar um experimento que parecesse confirmar as idéias preconcebidas do expertmentador. O método experimental que dominava na Ingiaterra, promovido por Boyle e por um grupo preeminente da Royal Society, destinava-se meramente, assim eles afirmavam, a estabelecer matérias de fato. Por isso, afirmava-se que © método inglés era tsento de quaisquer tendenciosidades introduzidas por idéias tedricas preconcebidas, Foi no trabalho de Steven Shapin e Simon Schaffer que a énfase retrica no que era “factual” na filosofia natural inglesa fot eviden- ciada com maior clareza [201]. Em seu importante estudo sobre os esforgos de Boyle para estabelecer a filosofia experimental como um meio de determinar a verdade e sanar toda controvérsia na filosofia natural, Shapin ¢ Schaffer mostraram como Boyle e pensadores de idéias semelhantes na Royal Society insistiam que em seus experi- mentos estavam exclusivamente interessados em estabelecer 0 que realmente extstia, nfo em interpretar seus achados de acordo com uma dentre varias eorias alternativas. As investigagées de Boyle com a recém-inventada bomba de ar ndo pretendiam, por exemplo, decidir entre as teorias dos que acreditavam na possibilidade do espago vazio © as daqueles que no acreditavam, mas simplesmente estabelecer a elasticidade do ar. A insisténcia retdrica no cariter factual de suas conclus6es experimentais levou os experimentadores ingleses a apre- sentar seus experimentos como eventos hist6ricos reais. Isso deu lugar ao desenvolvimento de um nova maneira de descrever experimentos, de modo a dar ao iettor a impressio de que ele estava Ii. O objetivo disso era muluplicar as testemunhas do evento real, transformando-as em “testemunhas virtuais”. Essa era uma maneira de contornar 0 problema do testemunho: por que se acreditaria nesses relatos? As testemunhas virtuais eram levadas a sentir que sabiam tanto sobre 0 Cenirio e o procedimento experimentais que elas proprias os testemu- nhavam efetivamente. Outras vezes, fazia-se apelo a0 mimero de testemunhas reats, em geral numa reunidio da Royal Society, ultrapas- sando de longe as exigéncias dos procedimentos legais, das testemunhas, upicamente cavalherros que falavam e agiam de maneira livre e tmparcial [201; 200; 197} A tentativa de substituir a autoridade que se conferia a abordagem A filosofia natural mediante a silogistica aristotélica por experimentos io foi um exercfcio abstrato em epistemologra. A natureza Supostamente evidente por st mesma das premissas que davam & stotélica tradicional sua autondade tinha de ser M4 GUS T © Mérove cienririco st substitufda, Experimentos, como a matemitica, nfo silo evidentes por ‘si mesmos. Para se convencer de sua verdade vocé tem de saber 0 que esté fazendo, ou acertd-los com base na fé. Uma vez que era impossivel para Boyle ou Pascal transformar todas as pessoas em experimenta~ dores, como era impossivel que todo mundo se tornasse matematico, cles se concentraram em enfatizar a confiabilidade de suas afirmacoes. Mas aque se devem as diferencas entre 0 experimentalismo continental ¢ 0 de tipo inglés? ; Dear propde uma explicaedo fundada em diferengas religiosas. Os catélicos continentais ainda acreditavam na ocorréncia de milagres, a0 passo que os protestantes ingleses afirmavam que a era dos milagres passara e por isso nenhuma milagre genuino se produziria agora. Dear vé, como um corolario dessas crencas, uma crenga catélica na ordem fixa, uma ordem suyeita & Jet da natureza que pode ser violada por um evento hustérico nico (um milagre). Nesse contexto, uma descrigao de um expenmento tinico nJo tem sentido (€ simplesmente mas um exemplo da ordem da natureza), mas uma afirmagao universal sobre, digamos, a pressio do ar, realmente revela algo sobre a oraem da natureza. Na Inglaterra protestante, no hd necessidaae da crenga numa ordem fixa da natureza para fornecer um padrio que permita deci © que € milagrozo, porque milagres nao acontecem. Assim, exper mentos tintcos so significattvos, contribuindo para uma compreensio mais precisa do modo como as coisas vém a ser, a0 passo que uma afirmago universal nfo tem sentido porque se base!a no que a maior Gos protestantes ingleses considera o falso pressuposto de que as coisas néo podeniam ser de outra maneira (os véicuos tém de existir, ou as partes mindsculas dos corpos tém de ser indivisiveis, ou semelhantes) [48; 50; cap. 7; ef. 110; 112} F ‘Shapin e Schaffer, em contrapartida, explicam as Enfases da metodologia da Royal Society a partir da histéria conturbada da sociedade inglesa no século XVIl e a persistente necessidade, apds a restauragdo do monarca, de garantit a estabilizagio ¢ a paz. Boyle © seus colegas acreditavam que ao se concentrar na determmagao do que realmente existia estavam fornecendo meios para 0 encerramento das controvérsias na filosofia natural, Todos podiam concordar quanto 20s fatos, mesmo que nao pudessem concordar quanto A divisibilidade infinita da materia. A comunidade untda dos fildsofos naturais podia assim contriburr para o estabelecimento da ordem na sociedade; a Tegitimagao de seu método na e pela filosofia natural significava que ele podia ser usado para estipular regras para a produgdo do conheci- s2 A RevoLugio Clenrinien iento auténtico pra lidar com controvésas em outa ess, como g polities © a regio. 0 mélodo expenmenta ingles apresentavanse como um meio de getar ¢ manter 0 eonsenso numa comunidade comandada sem uma autondade atbtrna (201: 341) cae AUgBMHS 88 ttepretagdes de Deas, Shapine Schafer sio is- cuties mas su irbalo nos jude muito #compreener anatureza Breese do “modo expenmental” na Inglaterra do seco XVI, em Contraste com aquele mais spice do contents, Além disso, cles forecem materais valiosos para nos ajuda’ a entender o poder do Inttodo experimental na constugio a eignea moderna. Com Sha lam, ind hoje uma tendéi Go método expenmental nao enige nenhuma explicagao, al soa Sbvia fuperiordade a nossos olhes, em relaglo a outros modos de gerar conhecimento. A andlise hstica que fazem mostra que de ato nossa ‘iso atual da validade © ds eieécia do expermentalismo tem suns igens, Como 0 prdprio método experimental, em varias estratégia sociais, politicas ¢ ret6ricas usadas no periods moderno oa varios propésitos locais, histéricos. al para 3 A MAGIA E AS ORIGENS DA CIENCIA MODERNA ‘Outras importantes fontes do empirismo da revolugao cientifica seriam encontradas na tradigao magica, e é possivel ver a agao dessas influén- cias em varias areas. Elas merecem ser consideradas separadamente faqui, no entanto, porque geraram considerdve] debate historiogrifico (222; 39). Varios historiadores da ciéncia recusaram-se a aceitar que algo que thes patecia to irracional pudesse ter tido algum impacto nna busca eminentemente racional da ciéncia. Seus argumentos parecem fundados em mero preconceito, ou numa incapacidade de compreender 2 riqueza e a complexidade da tradigao magica. ‘A recuperagao, no Renascimento, de textos antigos que estimula- ram tantas outras éreas da vida intelectual resultou num renovado desabrochar das tradiges magicas. O florescimento da magia deveu muito, sem divida, redescoberta de antigos escritos neoplaténicos, contre os quais os textos atribuidos a Hermes Trismegisto (embora hoje se concorde em geral que Frances Yates e seus seguidores exageraram muito a influéncia da chamada tradigio hermética [39]), mas esté claro hoje que ele ocorreu também em grande parte devido a novas tendén- cias surgidas no seo do aristotelismo renascentista. Os princfpios em que a teoria medieval das interagdes magicas se baseava derivavam, inevitavelmente, do aristotelismo escoldstico. Durante 0 Renascimento varios fildsofos aristotélicos, como Giovanni Pico della Mirandola (1463-94) e Pietro Pomponazz: (1462-1525), depuraram os aspectos mais naturalistas da tradigfio magica (em que os efeitos magicos eram causados pela exploragio das propriedades naturais, porém ocultas, das coisas), a0 passo que fildsofos de tendéncia neoplatOnica, como Marsilio Ficino (1433-99) e Tommaso Campanella (1568-1638), de- senvolveram uma forma mais espirttual ou demonfaca de magia [38]. Para compreender o papel da magia na revolugio cientifica € importante observar a existéncia da chamada magia natural, sem 53 54 A Revouugke Clentirien divida 9 aspecto dominante da tradigao magica. A magia natural fundava-se no pressuposto de que certas coisas tinham poderes escon- didos, ou octitos, de afetar outras corsas e assim realizar fendmenos nexplicaveis. O sucesso de um mago natural dependia de um profundo conhecimento dos corpos, ¢ do modo como estes agem uns sobre os outros, de modo a ocasionar o resultado deseyado [38; 111; 230]. Repetidamente vemos magos naturais do Renascimento insistir que sua forma de magia nllo dependia de nada além do conhecimento da natureza, a tal ponto que um historiador recente sugeriu que deverfa- mos denomimar esse upo de pensamento “ naturalismo renascentista” para distingui-lo do que ele concebe como verdadeira magia {114}. Em um sentido muito real, porém, a separagio dos elementos nat dos outros aspectos da magia foi precisamente 0 que se realizou durante a revolugéo cientifica. A fustéria da magia a partir do século XVII fot a hist6ria do que restou a essa tradicS0 depots que elementos fundamentais da magia natural haviam sido absorvidos na Filosofia natural. Ademais, para nés a magia lida com o sobrenatural, mas aos olhos dos primeiros pensadores modernos seus efeitos depen- m da manipulagao de objetos e processos naturais. Para eles apenas Deus podia produzir eventos sobrenaturais. Até 0 demondlogo, a0 invocar um deménio — talvez 0 proprio Satands — para fazer seu pedido, s6 esperava que o deménio fosse capaz de atuar como um mago natural extremamente profictente, usando os poderes ocultos naturats dos objetos para ocasionar eventos desejados [25; 38; 114]. Se a magia natural desapareceu de nossa concepeao de magia, for precisamente porque 0s aspectos mais fundamentais da tradigo esto agora absorvidos na visio cientifica do mundo. Em outras palavras, a visio cientifica do mundo se desenvolveu, pelo menos em parte, a partir de um casamento da filosofia natural com a tradi¢ao pragmitica © empinica da magia natural © pragmatismo da magra ¢ Sbvio. A finalidade do mago é sempre ‘ocasionar algum resultado desejado, seja para seu préprio beneficio ‘ou para o de um patrono ow cliente [39; 214]. O empirismo da magia pode nos parecer mais surpreendente; no entanto, ele & parte integrante da magia natural, De que outra maneira poderia o mago aprender sobre 08 poderes ocultos que tem um corpo de afetar outro? Os menos ligentes poderiam se valer da semiologia: lendo os sinais, ou asst- naturas, que Deus imprimu para nos permitir ler o liveo da natureza (um exemplo favorito dos historadores € a noz, cuja estrutura se assemelha a do cérebro no interior do cramo, num claro sinal de Deus de que pode ser usada para curar doengas do cétebro). Os mais cuidadosos verificariam as coisas por si mesmos (embora, na pratica, os magos naturais tendessem a se apoiar fortemente nas afirmagées tradicionais da literatura magica; se alguma coisa 6 menctonada em mais de um ou dois livros, deve ser valida! [38)). ‘A relevncia da magia para a reforma das idéias relativas & maneira correta de se compreender 0 mundo natural pode ser vista no fato de que, por mais surpreendente que possa parecer, a tecnologia esteve inextricavelmente unida & magia ao longo de toda a Idade Média ¢ Renascimento (61; 62]. Isso nfo significa que 0 iniciado acreditava que as maquinas eram operadas por deménios interiores (Jembremos: supunha-se que a magia operava por meios naturais). A elaboragio de dispositivos mecanicos para produzir efeitos maravilhosos era considerada a mera exploragio dos poderes ocultos porém naturals das coisas e, portanto, a esfera do magico [61; 216]. Além disso, em razio dos intimos lagos entre a mecanica e a matemética, esse tipo de exploragio de mecamsmos era freqiientemente chamado de “magia matemética”. Assim a magia tornou-se associada também & abordagem matemitica da compreensdo do mundo fisico (62; 111; 29; 68]. Posto isto, porém, é necessério ter extremo cuidado ao avaliar em que medida exata se afirmava que a matemética revelava os segredos da natureza. E claro, por exemplo, que o carater significativo dos niimeros queria dizer coisas diferentes para pensadores diferentes. Johannes Kepler, astrénomo matemético completo que era, pode ser visto também como profundamente influenciado pela tradigao magica da numerologia. Sabe-se que um importante estimulo para seu trabalho em cosmologia foi sua tentativa de responder por que havia somente seis planetas. Nao se tratava de uma questio cientifica; 0 que cle buscavaera compreender o que 0 niimero seis tinha de tio significativo para que Deus 0 tivesse usado, e nenhum outro, para set 0 nimero dos planetas. Mas hi uma imensa diferena entre a questio numero- logica de Kepler e 0 modo como ele procurou a resposta e, digamos, © tipo de numerologia que Robert Fludd praticou. Fludd (1574-1637) foi um prolifico autor de obras de magia do tipo mats mfstico. Kepler ceriticou Fludd, afirmando que as razSes numéricas presentes no céu que ele discutir. em seu Utriusque cosmi historia (1617-21, Historia de ambos os cosmos — Fludd referia-se 20 macrocosmo ¢ 0 micro- cosmo) eram meros simbolos que ele inventara para servir a seus propésitos poéticos e ret6rices. Kepler insistit que os ntimeros e as razSes numéricas em que ele proprio estava interessado eram tragos 56 A Revowucho Clenrinica verdadeiros do mundo fisico. Em outras palavras, os mimeros que Fludd usava seriam impingidos a0 eéu por sua propria fantasta, 20 asso que Kepler usaria apenas nimeros que era possivel verificar serem parte integrante no sistema real (39; 71; 53: 99}. Contudo, distancia assim estabelecida por Kepler entre ele proprio e Fludd nao deveria ser vista como uma rejeigio das tradigdes mégicas, mas come uma reafirmagio da magia natural valida, Quando Francis Bacon escreveu que “Hé uma grande diferenga enise os Idolee ou meme humana e as ldéias da mente Divina”, poderia estar falando por Kepler, © pelo que disse em seguida fica claro que, nao obstante, ele acreditava gue a Criagdo de Deus exibia sinais de sua importineia e utilidade para 0 genero humano: “Isto é, entre certos dogmas vazios eas Verdadeiras assinaturas e marcas impostas as obras da criagdo tal como encontrada na natureza” [eitado em 8: 323) Em consequncia, é importante observar que a determinagio das harmonias ceiestes que Kepler efetuou usando as observagées extre~ mamente precisas de Tycho Brahe Ihe permitiu provar, para sua prépria satisfagdo, que havia somente seis planetas porque Deus criot 0 tuniverso segundo um “arquéupo geométrico”. Deus separou os pla. elas uns dos outros, convenceu-se Kepler, encaixando-os alternada- mente com cada um dos cinco chamados s6lidos platénicos. A parti. dade desses s6lidos & serem definidos pelos principios da geo. ‘metria euctidiana como os énicos corpos tridimensionais de seu tipo. Nao € possfvel fazer nenhum outro s6lide fechado com todas as faces iguais. Assim, como Deus inscreveu um cubo dentro da esfera de Sawurno, tocando a esfera com seus otto Angulos, e depois usou esse cubo para demarcar a esfera de Jipiter, de tal modo que essa esfera tocasse cada face do cubo, e procedet de maneira anéloga com 0 tetraedro entre Jdpiter © Marte, e assim por diante, a criagao. dos planetas tinha de parar em seis, s4 que nao restavam solidos que Deus udesse usar [71; 134]. O uso que Kepler fez da matemétiea fo: muito diferente do de Fludd, mas dificilmente se pode dizer que ele nio estava mergulhado na tradigto migica neoplaténica. ____A magia natural, que, como William Eamon assinalou, fot a cigncia cortesi” por exceléncia [62: 225]. floresceu nas cortes da Europa particularmente na primeira parte do perfodo (64; 65; 154: 155), Pode-se afirmar que as mais antigas academias cortesds que se anteressaram pelo conhecimento natural foram instituidas para promo. ver a magia natural, Por exemplo, a0 fundar a Accademia dei Lincei (Academia dos Linces), Federico Cesi (1585-1630) inspirou-te na A MAGIA © AS ORIGENS OA CIENCIA MODERNA discussio desenvolvida por Giambattista Della Porta (1540-1615), no prefécio de seu sucinto Magia naturalis (1589), sobre a necessidade de se observar a natureza com olhos de lince de modo a tirar proveito das coisas naturais [62: 229-33]. Nas universidades, a astrologia sem- pre teve presenga bastamte importante, sobretudo nas faculdades de medicina [214], mas nos séculos XVI e XVHI outros aspectos da tradigo magica se fizeram senur, em particular, outros aspectos da magia ¢ da alquimia mateméticas inspiraram teorias médicas [68; 154]. A renga magica nas assinaturas ¢ nas correspondéncias entre diferentes degraus da escada da criagao foi vista como um estimulo notivel para a observagio e o registro cuidadosos de mimerais, plantas e animars [175: cap. 8; 64: 245-6; 8]. Nem mesmo 05 novos instrumentos da filosofia natural escapam & contaminagdo de antecedentes magicos. Truques enganosos com lentes ¢ espelhos sempre estiveram entre as mais assombrosas artes do magico natural, c o telescépio © 0 micros- cépto, quando introduzidos pela primeira vez ao estudo da natureza, foram tratados com extrema cautela pela maioria dos filésofos naturais [219: 220; 104]. Parece inegdvel que as tradigdes magicas desempenharam um importante papel na grande transformagio da filosofia natural esco- 14stica na nova filosofia natural da revolugao cientifica, mais empirica, de uso mais prético. Contudo, os detalhes precisos do modo como alguns aspectos da tradigio magica foram absorvidos ¢ outros rejei- tados por compieto nfo sfo nada claros. Supostamente, parte da historia foi ditada pela crescente percepgio entre patronos e praticantes de quais cram os métodos mais eficazes, de quais pressupostos subjacen- tes apontavam o caminho para as conclusdes mais frutfferas, e assim por diante. Como a magia sempre tivera uma mé imagem publica, derivada sobretudo do predomfnio da fraude entre os pretensos magos fe dos ataques incessantes da Igreja, parecia sensato aos fildsofos naturais reformadores somar suas préprias vozes & condenagio da magia, a0 mesmo tempo em que extrafam da tradi¢Zo o que reconhe- ciam como ttl. Parte dessa atitude pode ser vista, por exemplo, quando Seth Ward (1617-89) discutiu com John Webster (1610-82) em 1654 sobre a auséncia da magia no currfcuio universitério. Ward rejeitou ‘magia como um “embuste ¢ uma impostura” que engana “com a falsa aparéncia de virtudes especificas © de Assinaturas celestes ocultas" mas imediatamente insistiu que “As descobertes das Sinfonias da natureza ¢ das regras para a aplicagdo de causas agentes ¢ materiais 8 produgio de efeitos é a verdadeira Magia natural, ¢ 0 fim humano so A RevoLugho Cientirica geral de todas as investigagoes filoséficas” [52: 228-9]. Talvez 0 melhor exemplo dessa duplicidade em relagdo & magra seja Francis Bacon, que, enquanto sorvia grande parte da inspiragio para seu novo método da tradigo magica e desenvolvia o que foi qualificado de uma “cosmologia semiparacelsista”, conseguiu) se afastar da magia difa- mando-a mais do que qualquer um [176; 180]. Ao definir 0 objetivo da academia filos6fica tdealizada, 0 ponto central de seu ut6pico New Arlanis, Bacon usou a prépria linguagem do mago natural: “O Fim de nossa Fundagio € 0 conhecimento das Causas e movimentos se- eretos das coisas: ¢ a ampliagao dos limites do Império Humano a execugio de todas as coisas possiveis”, ¢ extraiu livremente de fontes magicas grande parte do material de sua obra enciclopédica Syiva /varum (1627). Suas criticas deixam claro que ele via muitas falhas na abordagem magica, mas é inegavel que sua propria obra for enor~ memente influenciada pela tradigao magica [180]. As tradigBes menores do paracelsismo (51; 54; 229], helmonusmo [166] e fiiosofias quimicas secundénias tiveram destinos semethantes. Varnias das idéias paracelsistas foram absorvidas pela medicina domi- nante, remédios quimicos apareceram nas farmacopéias oficiais, mas © proprio Paraceiso e seus seguidores eram freqiientemente difamados. Por causa do radicalismo de sua ruptura com a medicina galénica tradicional, Paracelso passou a ser visto como 0 Lutero da medicina, mas isso significava que o paraceisismo nfo podia ser adotado de maneira leviana. O galenismo estava entrincheirado nas escolas de medicina ¢ as autoridades sancionadoras, as congregagdes dos médi- cos, exigiam galenismo ortodoxo dos praticantes licenciados. Da mes- ma forma que 0 aristotelismo, o galemismo era visto como mais um. aspecto da auloridade tradicional e, conseqiientemente, a adesio a0 Paracelsismo podia ser vista como um sinal de subversio. Nao ha diivida de que o paracelsismo floresceu em sociedades laceradas por conflitos religiosos ¢ politicos. Na Franca do final do século xv1, 0 paracelsismo foi estimulado pelos protestantes huguenotes; no infcio do século XVII ele floresceu nos Estados alemaes protestantes, em particulara Boémia, antes que ela fosse esmagada pelo sacro imperador romano, Fernando If, em suas tentativas de reimplantar 0 catolicismo [178; 54]. Em seguida, 0 paracelsismo floresceu na Inglaterra sob 0 poder parlamentar quando 0 Colégio dos Médicos era visto como 0 “Palicio Real de Medicina Galénica”, e Galeno como um tirano da medicina a ser deposto como Carlos 1 (178; 228: 35; 149; 174]. Como inevitavel, dadas suas afiliagdes radicais, 0 paracelsismo entrou em declinio na Inglaterra apés a Restauragio, embora tenha conseguido deixar sua marca na prética da medicina. Somente um estudo meticu- oso das mudangas na farmacopéia ¢ na prética médica pode revelar que elementos do paraceisismo ¢ de outras filosofias quimicas come- garam a aparecer no lado “‘cientifico” das fronteiras recém-erguidas pela revolugao cientifica, enquanto outros permaneceram nas trevas extertores, Além disso, somente um estudo que leve em conta 0 pano de fundo social, religioso e politico pode explicar por que as fronteiras foram erguidas onde foram. Nesse meio tempo, contudo, parece in- teiramente justificado observar que a tradigao magica desempenhou um importante papel no estabelecimento de atitudes empiricas © prag- méticas em relagio ao conhecimento natural. Mas isso ainda ndo é o fim da historia. A influéncia magica néo ficou confinada a assuntos gerais, metodolégicos. Em alguns casos € possfvel mostrar que iovagées conceituais consideraveis deveram muito a modos de pensar mégicos. E nao se trata de movacdes meramente marginais. E poss{vel ver concepgdes magicas desempe- thando um papel importante no pensamento de vérios pensadores preeminentes. Deixando de lado os filésofos quimicos que dispensam ‘qualquer argumentagao, a lista teria de imcluir William Gilbert, Johan- nes Kepler, Robert Boyle ¢ Isaac Newton. Consideremos William Gilbert, cujas ivestigagSes experimentais, do magnetismo foram consideradas fundamentats. Edgar Zilsel ¢ J.A. Bennett (245; 9] destacam a importincia socioeconémica da biissola magnética ¢ das investigas&es pragmaticamente inspiradas feitas pelos navegadores, marinheiros ¢ outros como um importante estimulo para as investigagdes de Gilbert e uma das principais fontes de seu método. Porém, mesmo uma leitura superficial do De magnete (1600) de Gilbert € suficiente para revelar sua abordagem animista e magica & natareza do mundo, Para Gilbert a Terra era um corpo vivo, capaz de se mover da mesma maneira que um imi — sempre visto como o exemplo supremo de um objeto magico — podia se mover (ele estava escre- vendo com um propésito copernicano: buscando explicar 0 movimento da Terra), Muitos de seus experimentos buscavam estabelecer os movimentos espontaneos dos ims no intuito de mostrar que, por isso, eram dotados de almas. Chegou até a sugerir (e a influéncia platénica é clara aqui) que a alma magnética era superior & alma humana, por nfo ser, como esta, to freqlientemente iludida pelos sentidos. Expe- rimentos subseqiientes foram concebidos para provar que a prépria Terra era um imi gigante, a partir do que tornou-se facil concluir que 60 A RevoLUGhe CleTiRICA a Terra tinha uma alma (sendo portanto capaz de se mover por si mesma). nes Kepler adaptou as idéias de Gilbert em sua obra fisica- New Astronomy (1609), recorrendo a algo semelhante a forga ‘magnéuca para explicar 0s movimentos dos planetas em torno do So mas em outros escritos seus as tradigdes magicas se mostram muit mais dominantes em seu pensamento. J4 nos referimos @ tentativa de Kepler de explicar por que havia somente seis planetas, mas ele se empenhou também em saber por que os planetas estavam situados onde estavam. Isso era entgmatico para Kepler, pois os planetas ngo apresentavam um padrio evidente de disposigéo quando deveriam estar, digamos, dispostos a intervalos iguais. Por incrivel que parega, © arquétipo geométrico de Kepler, em que ele encaixava 0s cinco s6lidos platénicos entre cada uma das esferas planetdrias, forneceu de fato uma resposta notavelmente precisa para essa pergunta. Os sélidos platénicos no apenas determinavam que sé podia haver seis planctas (porque nem Deus seria capaz de fazer outro sélido fechado com todas, as faces iguais), como previam os espagamentos que o astrénomo copernicano podia estabelecer mediante célculos geométricos — ou que se aproximavam muito disso [71]. Kepler tampouco abandonou © arquétipo geométrico, fundado na nogio de esferas planetérias, apés sua descoberta das érbitas elipticas. Para explicar por que Deus teria usado elipses em vez de circulos (ou esferas), ele recorreu a tradicao pitagérica © neoplaténica das harmonias celestes. Planetas que se movessem om circulos a uma velocidade imutavel s6 poderiam gerar tons Gnicos, ele raciocnou, mas um planeta que se movesse numa elipse a uma velocidade que vanasse regularmente geraria uma varie- dade de notas. Na tentativa de descobrir as notas exatas geradas por cada um dos planetas, Kepler usov as precisas observagdes de Tycho para determinar, entre outras coisas, as velocidades dos planetas quan- do mais préximos ¢ mais afastados do Sol. A chamada terceira lei do movimento planetério de Kepler, que fornecen uma relagiio exata entre © tempo que um planeta leva para concluir um circuito completo do céu € a distncia média que o separa do Sol, permitiu-Ihe retornar a seu arquétipo geométrico. AS distincias médias que separam os pia- netas do Sol forneceram um conjunto de cfrculos (ou esferas) cujo encaixe entre os sélidos platOnicos pode mais uma vez ser demons- trado. Espantosamente, mesmo com as observagées planetinas de Tycho (no mutto diferentes das atuais), a precisio do encaixe era A MAGIA EAS ORIGENE OA CIENCIA MODENA 6 notavel. Nao é surpreendente que Kepler acreditasse ter descoberto 0 plano que Deus usara a0 criar 0 cosmo [71: cap. 5; 14; 210), # possivel ver a mesma tradi¢ao pitagdrica ou neoplatonica de harmonias césmicas nos escritos de Isaac Newton, Em alguns rascu- hos manuscritos que Newton compds para inclusio numa segunda edigao abandonada dos Principia mathematica, n6s 0 verios entre gando-se a especulages mégico-religiosas sobre um conhecimento esotérico da gravitacio universal entre os antigos seguidores de Pitd- goras (que, alids, era visto como uma figura capital na genealogia da ‘magia; o emblema de sua confraria, supostamente escolhido em razd0 da sutileza matematica de todas as suas linhas se dividirem na chamada razio Aurea, era 0 pentagrama, que se tornou um famoso simbolo do mago). A doutrina pitagérica da harmonia das esferas, simbolizada por meio de Apolo, 0 deus-sol, com uma lira de sete cordas, indicava, segundo. Newton, sua crenga de que o Sol atrai os planetas segundo a lei do inverso do quadrado da distincia [144: 166). O esboco completo da a impressao de que Newton estava convencido da impor- tancia numerol6gica do niimero sete, e esta no é a nica passagem de seus escritos em que o ntimero sete desempenna um papel relevante. Sua discussio sobre as cores do espectro, tanto no primeiro artigo que enviou A Royal Society (1675) quanto na Opticks (1704), traga uma analogia precisa entre as cores € as sete notas da oitava. Newton chegou até a afirmar que experimentos repetidos, em que as posig&es das cores projetadas eram assinaladas em folhas de papel, mostraram a concordancia entre as distancias assim marcadas € as posigdes necessdrias para transpor um monoc6rdio de comprimento correspon- dente para produzir as notas da escala diat6nica. Em suas conferéncias nio-publicadas sobre Gptica, no entanto, descobrimos que Newton primeiro mediu as distancias entre cinco cores para em seguida acres- centar 0 laranja ¢ anil (92]. Pode-se dizer que, quando as criangas aprendem as sefe cores do arco-iris na escola, esto prestando uma inadvertida homenagem no a0 método experimental de Newton, mas i sua crenga nas harmonias césmicas. Newton foi também um alquimista. Por muito tempo desprezada pelos historiadores como irrelevante para uma compreensio de seus esforgos cientificos, sua alquimia foi vista mais recentemente como um elemento importante de seu pensamento sobre a natureza da matéria, Betty Jo Dobbs e R.S. Westfall inststiram em que a disposi¢&o de Newton a permitir que seu sistema de fisica dependesse de forgas ocultas de atragio e repulséo que operavam entre as particulas da 2 A REvoLUGRO ClENTIFICA matéria provinha de sua familiardade com modos de pensamento alquimicos (56; 237]. For assinalado, contudo, que Newton s6 teria passado a confier nessas forgas, capazes de operar através do espago vazio, depois que Robert Hooke Ihe sugeriu, em 1679, que as leis do movimento planetério de Kepler podiam ser explicaaas em fungaio do movimento linear de um planeta curvado numa elipse por uma forca atrativa em diregio ao Sol, a qual variaria inversamente ao quadrado da distincia entre Sol e planeta (ver Capitulo 2. i) [31]. Como Newton jé era um adepto da alquimia havia murtos anos, parece mpossivel hegar a importéncia da sugestio de Hooke, especialmente & luz de uma recente afirmagio de que, para compreender 0 pensamento do préprio Hooke sobre essa questio, nfo precisamos olhar além do cendrio dominante na filosofia natural inglesa na época [110]. Mas se nfo é possivel dizer que a alquimia foi a mspiragao primordial da crenga de Newton em forgas ocultas, é possivel ver que cla afetou profundamente outros aspectos de seu pensamento cientt- fico. Desde seu primeiro “Hypothesis of Light”. enviado & Royal Society em 1675, até as especulativas “Indagagdes” que acrescentou a sucessivas edigdes da Oprica (3* edigio 1717), Newton claramente fez uso de concepges alquimicas sobre a auvidade da luz e sua capacidade de interagir com a matéria e The conferir atividade. Se tomou aidéia de uma forga oculta da gravidade de alguma outra fonte, suas especulagdes sobre principios alivos na matéria, um dos quais poderia ter sido a causa da gravidade, parecem provir diretamente da {radig&o alquimica {57]. Nao ha também como escapar do fato de que a gravidade de Newton era uma forga oculta, capaz de atuar & distancia através de vastas extensdes de espago. Mesmo que nao tenha emergido das pesquisas alquimicas de Newton, esse conceito atesta a importincia das tradigdes magicas em seu pensamento [56; 237} © contemporineo mais velho de Newton, Robert Boyle, certa~ mente 0 fildsofo natural mais respeitado na Inglaterra em seu tempo [201; 200; 120}, era também um alquimista praticante € € possivel perceber que a teoria subjacente a sua alquimia moldou alguns dos detathes da filosofia natural pela qual ele é reverenciado. A filosofia corpuscular de Boyle, que for vista como derivando em iltima andlise da filosofia da Descartes, ou de Pierre Gassendi (1592-1655), 0 res- taurador do atomismo antigo, € em diversos aspectos muito mats proxima de uma tradigao alquimica particular, originada sobretudo de Swnma perfections, obra falsamente atribuida ao alquimista drabe ‘conhecido como Geber [159]. Outros aspectos de sua filosofia natural podem ser entendidos como provenientes de caracteristicas mais co- muns da tradigao alquimica [171; 27], € outros ainda da filosofia quimica de Joan Baptista van Heimont [28]. © ressurgimento da tradigo magica natural no Renascimento dev & revolucio cientifica outra contribuigio de importancia decisiva. Uma das principais premissas da mégica natural era que alguns (se ndo todos) corpos tém poderes ocultos capazes de atuar sobre alguns ou todos os demais corpos. Qualidades ocultas tipicas, reconhecidas por todos, eram as diferentes influéncias dos planetas, 0 magnetismo ¢ a capacidade de certos minerais, plantas e até animais de curar varias doengas. Esses poderes eram chamados ocultos por serem insensiveis; nao podemos perceber 0 poder magnético por meio dos nossos senti- dos, s6 sabemos de sua existéncia por scus efeitos; no podemos compreender por observagio como 0 ruibarbo purga o intestino, mas no ha como duvidar de sua eficdcia, No aristotelismo escolistico tradicional tais qualidades ocultas constitufam certo embarago; era dificil acomodar causas insensfveis numa filosofia natural baseada na explicagio em termos de causas evidentes. © filésofo escolistico ficava satisfeito se conseguisse explicar mudangas em termos das qualidades manifestas do calor, do frio, da umidade e da secura; 0 recurso a qualidades ocultas parecia uma admissdo de derrota intelec- tual (121; 153]. Na tradigdo médica, contudo, em que freqlientemente se reconhe- cia que os poderes das drogas nio podiam ser explicados em fungio de suas propriedades manifestas, as qualidades ocultas eram invocadas de maneira muito mais rotineira [153; 38]. Com a répida expansio do saber sobre a flora c a fauna que foi uma caracteristica do desabrochar da hist6ria natural ¢ fundada na observagao, e com o desenvolvimento de remédios e outros avangos no conhecimento quimico, toda uma nova area de qualidades ocultas foi aberta. Magicos naturais aristoté- licos, como Giovanni Pico e Pomponazzi, e aristotélicos reformadores posteriores, como Girolamo Fracastoro (c.1478-1553) e Daniel Sennert (1572-1637) buscaram meios de conciliar essas qualidades ocultas com a filosofia natural aristotélica. Houve duas abordagens principais. de causagio natural que, embora insensivel, ndo fosse ininteligivel (exemplos inclufam espiritos sutis emanantes ou as ages de efliivios particulados invisivelmente pequenos). Em segundo lugar, enfatizar a realidade daquelas qualida- des ocultas chamando a atengio para a realidade empiricamente ine- Em primeiro lugar, sugerir algum m ea A RevoLugio CieNTinica gavel de seus efeitos. Este for outro importante estimulo para a investigago empirica da natureza (121; 153; 38]. Essas idéias iriam frutificar na nova filosofia natural da revolugio lentifica. Quando Francis Bacon expressou sua conhecida rejegio da légica dedutiva do silogismo em favor da iSgica indutiva, ele estava exaltando a I6gica implicita, se nao explicita, da tradigao magica natural [111]. A distingdo escoldstica entre qualidades manifestas ocultas foi efetivamente descartada pelo método de Bacon de coletar ieos e registré-los em “quadros de ocorréncias” (Bacon acreditava que somente uma coleta pré-tedrica de fatos brutos poderia garantir que a explicaco de um fen6meno natural nao seria prejulgada, ou prejudicada) [145]. Incidentes que envolviam calor (para os esco- ldsticos, uma qualidade manifesta) ¢ incidentes que eavolviam mag- ismo (qualidade oculta tfpica) deviam ser tratados da mesma ma- ;, 0 resultado era que o calor deixava de parecer manifesto (sendo considerado por Bacon um movimento “expansive, restrito” das par- ticulas dos corpos), © © magnetismo nao parccia mais ininteligivel que © calor (121; 153]. Embora Bacon nunca tenha conseguido articular completamente seu novo método, ele for capaz de convencer alguns dos filésofos naturais da geragéo subseqiiente (particularmente entre seus compa- triotas) de que 0 método experimental podia ser usado para sancionar (0 uso de qualidades ocultas em explicagées cientfficas [110; 112]. A chamada “filosofia experimental”, tal como desenvolvida na Ingla- terra, permitia 0 uso de fendmenos fisicos inexplicados, contanto que seus cfeitos pudessem ser evidenciados por meios experimentais. Boyle ¢ Hooke muitas vezes explicaram fendmenos pneumaticos em termos da “‘clasticidade” do ar. Evitavam nipéteses sobre a causa dos esforgos auto-expansivos do ar, contentando-se em insistir na sua realidade, tal como evidenciada por efeitos na bomba de ar {110; 201} Essa mesma tradigao baconiana pode ser vista na confiante refutagao, por Newton, da acusagio (feita por Leibniz) de que seu principio de gravitagio cra uma “qualidade oculta escoléstica”. Para Newton a gravidade, embora sua causa permanecesse oculta, podia ser conside- rada uma qualidade manifesta, por causa da experiéncia diéna que temos dela e devido & andlise matemética precisa que ele fizera de suas operagées (110; 112]. Das duas respostas dadas pelos magos naturais Renascimento & proliferagio, ocorrida na época, de qu: que hes parecam ser uma conseqiiéncia de desenvolvimentos na A MAGIA € Ag OnGENS DA ClENCIA MoDENNA os hist6na natural, na quimica e outras artes, os fildsofos naturais ngleses concentram-se sem diivida na linha da ratificago experimental. No continente europeu, contudo, a énfase recais muito mais na tentativa de encontrar explicagSes causais nteligiveis para 0 modus operandi insensive! das qualidades ocultas. Pata compreender essa diferenga de @nfase, devemos voitar os olhos para diferengas no pano de fundo social e politico. Enquanto varias hipéteses sobre causas inteligiveis subjacentes ocasionaram apenas controvérsia ¢ conflito na filosofia natural, 0 método de Bacon de coletar fatos para estabelecer empiri- camente a realidade de qualidaces ocultas pode se mostrar dil aos objetivos conciliatérios de Boyle e outros, que buscavam apresentar uma filosofia natural capaz de sanar divergéncias ¢ receber assenti- mento geral. Pode-se considerar, portanto, que esse aspecto da tradiclio magica natural se ajusta as ambigdes reformadoras de caréter filos6- fico, religioso e, por fim, politico de Boyle e de ingleses contempo- raneos de pensamento assemelhado, descritas por Steven Shapin, Simon Schaffer e outros [201; 203; 243; 46]. Além disso, é possive! encontrar as origens do mesmo tipo de motivagao conciliatéria na filosofia natural inglesa no inicio do século [112] ‘Mais uma vez, entéo, podemos ver que o método experimental, ¢ certamente sua versio inglesa, com sua énfase na coleta de fatos baconiana e sua rejei¢lo declarada da teorizagio especulativa, é pro- veniente em grande medida da tradigiio magica natural. De maneira jemclhante, a forma alternativa dos magicos naturais de adaptar q\ lidades ocultas 8 filosofia natural, por meios supostamente insensiveis mas ffsicos, pode ser considerada influente no desenvolvimento dos novos sistemas da filosofia mecdnica [121; 153], outro trago marcante da revolugio cientifica que consideramos no préximo capitulo. 4 A FILOSOFIA MECANICA losofia natural ¢ as disciplinas mateméticas passaram por consi deréveis reformas durante © Renascimento; porém, algo mais foi necessério antes que 0 arisiotelismo escolistico dominante pudesse ser substituido. A filosofia natural escolstica era um sistema completo, aparentemente capaz de dar conta da maior parte das questdes relativas a0 mundo fisico. O aristotelismo que formava © amago do sistema estava perfeitamente entrosado com a astronomia ptolomaica e a medicina galénica. Além disso, fundava-se numa metafisica coerente © vigorosa c, gragas a0 trabalho realizado por Tomas de Aquino © outros mestres da Igreja desde o século Xt, era considerado um servo” da “rainha das eiéncias”, a teologia. A unidade essencial da abordagem & natureza do mundo fisico, do macrocosme ao microcos- mo, era vista como uma prova inabalével da verdade do sistema Durante 0 Renascimento essa unidade comegou a se romper, mas a tendéncia geral entre os intelectuais era remendar o velho sistema manter-se fie! a ele. Ser um filésofo natural, afinal de contas, era estar de posse de uma chave para a resposta de todas as questes acerca do mundo fisico. O resultado, contudo, foi uma proliferagio de aristote- lismos: toda uma série de refinamentos, reelaboragées ¢ reinterpreta~ ges — muitas vezes engenhosos — da escolistica tradicional que visavam dar lugar aos dltimos achados e as Gitimas modas do cam; do pensamento [192] oe ‘Se muitos estavam claramente satisfeitos com esse estado de coisas, havia outros que queriam mais. Para eles, 0 que se exigia era um novo sistema de filosofia, capaz de substituir o sistema aristotélico pox completo, Algumastentaivas concorentes de produzi tal sstema foram desenvolvidas, mas em geral pareceram aos contemporaneos verses da “filosofia mecfnica”. No final do século a filosofia meca- nica subsuituira efetivamente 0 aristotelismo escoldstico como a nova chave para a compreensio de todos os aspectos do mundo fisico, da propagagio da luz A gerago dos animais, da pneumatica & respiragao, Ga quimica & astronomia, A filosofia meciniea marca uma ruplura calegérica com o passado ¢ sela a revolugio cientifica. Tim suas formas mais estritas a filosofia mecdnica caracterizou-se fundamentalmente por um conjunto limitado de princfpios explanats- nos. Todos os fendmenos deviam ser explicados a partir de conceitos empregacios na disciplina matemética da mecanica: forma, tamanho, quantidade e movimento. A ldgica desse tipo de explicagio tendia a Conduzir a uma teoria de causagfo restrita, concebida apenas em termos de aco de contato. A filosofia meciniea via o functonamento do mundo natural por analogia com © maquinismo: a mudanga era oca~ sionada (e podia ser explicada) pelos engates entre 0s corpos, como as rodas dentadas de um reldgio, ov por impacto e transferéneia de movimento de um corpo para outro. Explicagdes com base em prin- Cfpios animados ¢ justificagdes teol6gicas (em que 0 comportamento de alguma coisa era explicado por referéncta a sua suposta finalidade: pot que uma bolota cresce? Porque sua finalidade é tornar-se um Carvalho para prover a humanidade de madeira) eram rejeitadas. Fazia-se uma distingdo entre 0 que era visto como as verdadeias propriedades dos cotpos (tamanho e forma, movimento ow repouso) © qualidades metamente secundirias, causadas pelas primeiras, come cor, gosto, odor, calor ou frieza e assim por diamte £55; 235). E significative que as qualidades manifesias do aristotelismo sejam Teduzidas & condigao de qualidades secundérias, causadas pelos mo- vimentos das particulas invisivelmente pequenas vistas como consti tuintes dos corpos grandes. De maneira similar, qualidades ocultas so explicadas pelo recurso a prinefpios mecdnicos. A distingio aristotélica entre qualidades ocultas e manifestas deixa de ser importante na filosofia mecdnica, uma vez que todas as explicagBes recorrem fun- damentalmente a movimentos ¢ interagdes de particulas insensiveis (121; 153]. Tsso nos traz A ditima caracteristica importante da filosofia meca- nica: ela se fundava na suposigio de que os corpos eram constituidos por dtomos ou corpasculos invisivelmente pequenos. Nao surpreende ‘que uma das prineipais fontes de mspiragao por trds da formagie dos noves sistemas de filosofia mecAnica fosse o ressurgimento das filo~ sofias atomistas antigas de Demécnito e, mais especialmente, de Epr ‘curo. De fato, um dos mais importantes sistemas de filosofia mecinica, (© de Pierre Gassendi, fundava-se em suas tentativas de reconstruir a

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