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XVI, cita uma das entradas do Diario de sucesos notables, de Antonio de Robles: Ne dia doze (de julho de 1668] morreu Antonio Calderén Benavides, natural do México, um dos mais singulares elérigas que teve esce areebispados além de ser um gal, de bela cara ¢ muito tico, dizia-se muito na época que se conservou viegem.* A Inquisigio queimou muito poucos hereges, mas foram intimeros os clérigos processados e condenados por seduzir suas figis. O relaxamento da moral sexual do povo mexicano segura- mente é heranga da Nova Espanha. Nao seria bom condené-la: seo machismo é uma tirania que ensombrece as relacbes entre 0 homem e a mulher, a liberdade erética as ilumina. 16. Dorothy Schons, “Some ob Doror , “Some obscure points in the life of sor Juana Inés de la Cruz’, Madern Philology, novembro, 1926 14 2. SILABAS AS ESTRELAS COMPONHAM, Tolerincia para com as perdig6es do apetite ¢ intran- sigencia em matéria de opinides e crencas; prodigalidade do cor- _po.esuas paixOes, rigor com a alma e seus clesvarios: nesse mi ‘do nasceu viveu Juana Ings. Mas como era ela ¢ como eram sua casa e gente? Sabemos pouquissimo sobre sua infa pouco ¢ 0 que ela prépria, sempre reticente, nos deixa vislum~ bar em sua Respuesta ao bispo de Puebla e em outros trechos de seus esctitos. Varias vezes alude ao seu génio risonho, vivaz e brincalhao. Castorena y Urstia clogia seu talento répido nas con- versas, sua habilidade dialética e a felicidade e graga de suas im- provisagses. Agudeza e donaire, foram esses 0s tragos que a dis- tinguiram na idade madura e que, na sua infancia, devem se ter ranifestado como fantasia e travessura. A Juana Inés adulta, en- tregue as suas elocubragées intelectuais, nos permite entrever outta, menina, abstraida em seus jogos infantis, ao mesmo tem- po sétia e apaixonada, amante de pular e cantar, mas também de uv as historietas das empregadas e as lendas dos velhos. Ao_ nais sonhadora que contrério de Santa Teresa, deve ter sido. m is reflexiva que sonhadora ‘Menina solitéria, menina que brinca sozinha, menina que se perde em st mesma. Sobretudo menina curiosa. Esse fui seu signo ¢ sua sina: a curiosidade. Curiosa sobre 0 mundo e si pré- pria, sobre o que acontece no mundo e dentro dela. A curiosida- de logo se transformou em paixio intelectual: O que 2 € Como 2 foram perguntas que ela repetiu durante toda a sua vida. Na ‘Respuesta a sor Filotea de la Cruz.ela lembra: 11s stavam em minha presenga duas meninas bincando com um pio, ¢ Togo que vio movimencoe figura, comeci, com esta minhaloucurs, a considrar ofc gra da forma esféia,ecomo durava o impulso jt immpresoc independence de sua causa Desde o principio a curiosidade intelectual foi sua grande paixio. Melhor dizendo, desde o princfpio ela foi a sublimagio da grande paixao. Na mesma Respuesta diz. que aos trés anos de idade conseguiu, néo sem enganos stiplicas, que a professora cde uma de suas irmas mais velhas lhe desse algumas ligdes. Tam- bém nos conta que no comia queijo porque the haviam dito guic isso deixava as pessoas abobadas; nela era maior “o desejo de saber que 0 de comer”. Aos seis ou sete anos jé sabia ler e escre- Foi quando lhe ocorreu pedir & sua mie que a mandasse & ssidade vestida de homem. Diante da previsivel negativa, se consolou estudando ¢ lendo na biblioteca do av6. Para aprender gramatica, cortava cinco ou seis dedos de cabelo e vol- ; | tava a cortéclos se, num prazo que ela mesma se fixava, nio hou- | | vesse aprendido a ligéo: nao lhe parecia que “estivesse vestida de || cabelos uma cabega tio desnuda de noticias” Nao € de estranhar que as lembrangas infantis de séror Juana, apesar de seu caréter fragmentério, tenham sido uma das bases da hipétese de sua ‘masculinidade’. Mas para com- preender cabalmente esses epis6dios ¢ preciso inseri-los no contexto geral de sua infincia, desde a constituicio fisica de Juana Inés até a composigio social e ps(quica de seu mundo. A menina em sua casa, os mais velhos e seus conflitos, as-irmas seus jogos, as babas e suas histérias, as docngas ¢ os trabalhos, os prazeres € 08 feriados, os altos e baixos de uma familia criolla numa fazenda no alto de uma montanha, nos limites da zona fria ¢ da zona quente, entre as fuligens do vulcio Popocatépetl ¢ os canaviais cropicais da planicie. E uma pena que s6ror Juana tenha sido extremamente reservada. Mal fala de sua familia em seu rclato autobiogréfico ¢ nada nos diz do que foi sem diivida a chave de sua situagéo psiquica: a natureza de setis vinculos com o triéngulo composto por sua mie e seus dois amantes. 116 ‘A separacio de seus pais € 0 surgimento de um novo amante, Diego Ruiz Lozano, deve tla afetado profundamence. ‘Assim, a primeira pergunta que devemos fazer é a seguinte: qual foi a natureza de sua relagéo com Pedro Manuel de Asbaje? Se € jimpossivel responder inteiramente essa pergunta, nfio o é dar luma resposta que tena certos tragos de verossimilhanga. nnheceu seu pai? Jé afirmei que a diivida ¢ ficeicia. Nao parece ve~ “Fossimil que Asbaje tenha vivido maritalmente, na mesma casa dos pais de Isabel, com ela e suas filhas. Seja como for, Juana Inés deixou de vé-lo, se & que chegou a conhecé-lo, quando sobreveio separagdo entre Pedro Manuel de Asbaj ¢ Isabel Ramirer. ‘Nao é provavel que o visse depois: € um fato concreto que Asbaje desapareceu inteiramente da vida de Isabel e suas filhas, A separagdo deve ter ocortido quando Juana Inés tinha cinco ou seis ‘anos, se no antes, Justifica minha hipétese este célculo simples Diego, o Jovem, o mais velho dos filhos de Ruiz Lozano, deve ter sido uns oito anos mais jovem que séror Juana, jé que a irma que nascera apés ele, Antonia, tinha dez menos que a pocta.' Dessa forma, provavelmente nasceu em 1656, ou seja, 0 ano em que morreu o avé de Juana Inés e em que foi enviada a Cidade do Mé- xico para viver com os Mata. O fato de quase nunca mencionar 0 pai é mais uma prova do abandono de Pedro Manuel de Asbaje. “Todas essas circunstincias me levam a acreditar que 0 vin- culo entre Juana Inés ¢ seu pai foi inexistente. Melhor dizendo, essa relacdo foi andloga & que nos une aos ausentes: uma relagéo imaginitia. As relagbes com os ausentes esto & mercé da nossa subjetividade: 0 ausente & uma projegio de nossos desejos, édios ¢ temores. Experimentamos a auséncia como vazio, mas é um vazio que preeuchemos com nossa imaginagio. Qual era a ima gem que fazia Juana Inés de seu pai? A projesio infantil da ima- gem paterna, em si mesma complexa, deve ter sido nela singu- larmente complicada e contradit6ria. Trés figuras se misturavarn, sem dtivida, em sua imagem da paternidade: a do pai biolégico, | Ammonia tnha catore anos quando seu pi pdiu, em 15 de detembro de 1672, seu ingreso no convent de San Jeénimo, aos cuidados de sor Juana, que aca- tava de completa vinte equato anos. Gf Enrique A. Cervantes, 2. cit iz Pedro Manuel de Asbaje; a do substituto ¢ rival, Diego Ruiz Lozano; ¢ a do avd, com quem viveu ea quem, quase segura- mente, considerava seu verdadeiro pai, Mas 0 avd morreu em 1656, quando ela tinha oito anos. Por outro lado, justamente por ser provavel que em sua casa se falasse pouco de Asbaje, ela e suas irmis sem duvida tinham uma idéia dessa figura fantéstica, J mulher, Juana Inés nunca falou dele a néo set de forma indi- reta e para se referir & sua estirpe basca, Seja como for, é imposs{- vel que a imagem lendéria do pai nao tenha estado tingida de rancor por set abandono. Rancor ¢, provavelmente, secteta e despeitada admiracio. E dificil que Juana Inés nfo soubesse que Pedro Manuel de Asbaje era um ausente que nunca voltaria. Muito bem, a ausén- cia definitiva, irrevogivel, é a dos mortos. Talvez, antes da morte fisica de Asbaje — ocortida antes de 1669, ou seja, antes de ves- tir o hébito —,? ela o tenha matado ¢ entertado simbolicamen- te, Matar em sonhos a quem queremos ¢ nos tenha deixado é uma compensagio freqiiente entre as criangas ¢ os apaixonados, Com isso quero dizer que o pai nao somente esteve ausente, mas foi um fantasma para Juana Inés. Seus poemas amorosos nunca giram em torno da presenca do amado, mas de uma imagem, forma fantéstica moldada pela meméria ou pelo desejo. A pessoa querida aparece como um ser esfumacado, uma sombra esculpi- da pela mente. As vezes, essa sombra ¢ a de um morto. Um exemplo notivel dessa diltima situacio sio as liras (213), com toda a justiga famosas, nas quais uma mulher chora a auséncia de seu marido defunto. Nesse pocma séror Juana representa papel da vitiva com uma conviccio que vai mais além da retérica barroca. O tema a fascinava: hé outro poema, algumas enclechas (78) néo menos apaixonadas que as liras, em que “expressa em expresses ainda mais vivas 0 sentimento de que padece uma amante de seu marido morto”. E indubitivel a ambigiiidade de seus sentimentos diante do fantasma de seu pai. O ausente era, se no um morto, um 2. Segundo se deduz do testamento de séror Juana (24 de fevereiro de 1669) Mas era verdad que Asbajetinha mortide? Nenhurn documento prova iss. us. desaparecido. Sua falta era motivo de nostalgia ¢ idealizagio: em nossa fantasia os ausentes se agigantam e se tornam heréis ou :monstros. Talvez seus sentimentos nao fossem de orgulho, mas de pena ¢ vergonha: como saber se ele fora um aventureito ou tum pobre diabo, um fidalgo libertino ou um sacerdote indigno? Em qualquer caso, a imagem que teve de seu pai, como eu ja disse, foi uma mistura de ressentimento, nostalgia e — por que iio? — secreta admiracio. Se, como dé a entender sua atitude, la 0 matou imaginariamente ¢ o entertou no siléncio, sta poe- sia 0 desenterrou, transfigurando os dois, ela ¢ ele: ela foi sua vitiva € ele, seu marido morto. Essa fantasia inverte, em seu pri- imcito momento, a situagio arquetipica que, segundo Freud seus seguidores, as criangas adoram diante de seus pais: matar simbolicamente o pai ou a mie para, também simbolicamente, substituf-los. No caso de Juana Inés, se é verdadeira minha su- posi¢do, a menina mata o pai, ndo a mie, e isso indica uma in- versio de sexo e de valores. Dupla transgressio — matar a ima- gem do pai assumir, assim, no a imagem da mie, mas a mas- culina. Essa ‘masculinizagio', porém, por sua ver, é negada num segundo movimento de sua vida psiquica: Juana Inés transforma 6 fantasma paterno no espectro de seu marido e ela se transfor ‘ma em viiva. Assim se realiza a identificacio com a mae — a verdadeira vitiva, embora nio legal, de Asbaje — e a ‘mas- culinizagio’ se transforma em ‘feminizagio’, Juana Inés substitui idealmente sua mac. Nova ambigiiidade: a substituisao se con- suma quando ela se torna freira. O convento nio € tentincia; é a via rumo & transmutagio: a freira é poeta. Pela poesia, ela ressus- cita 0s mortos ¢ os desposa. Como veremos mais adiante, um dos arquétipos da madre Juana, autora de poemas e pesas de te- atro, foi fis, a deusa egipcia que nao s6 é a mae universal das se- mentes, das plantas ¢ dos animais, como inventora da escritura, senhora dos signos. Existe, além disso, outra secreta e impressio- nante analogia entre a ‘vtiva’ Juana Inés e a deusa: Isis ressuscita © irmio-esposo Osiris e com ele se casa. A figura de [sis encarna uma dupla maternidade: a natural e a dos simbolos. A segunda transcende a primeira ¢ séror Juana nela se reconhece. Daf que também se tenha identificado com outras donzelas da Antigii- 119 dade, que transformam igualmente a maternidade natural em simbélica ou espiritual: pela poesia ou inspiragdo de um nume produzem poemas e profecias. Esse € 0 tema secreto de sua vida, coma me proponho s moxcatnee vo, E mal exrevo eta fe se, tenho que emendé-la: nao procuro saber, mas vi rar quem foi Juana Inés. , ' a Nao é facil conhecer os sentimentos que Ihe inspirava Diego Ruiz Lovano, Nio cram, crtamentc, menos compleos que os que sentia pelo fantasmagérico Asbaj. S6 que, se 2 nota distintiva de sua relagio com este tltimo foi a auséncia, a nota que a unia a Ruiz Lozano foi na verdade a contrdria: Asbaje era um espectro, Ruiz Lozano, um ser de carne e 0550. O novo amante deve ter sido visto por Juana Inés como um intruso € usurpador. Em sua micologia infantil as duas figuras antagéni- cas, mas complementares, em que cristalizou a virilidade foram 6 pai eo padrasto, 0 fantasma e o incruso. A primeira foi realida- de sem corpo, fumaca que se desfaz entre 08 dedos. O fantasma € intocével: a indiferenga do pai ausente culmina na inacessi- bilidade do espectro. A segunda foi sobretudo uma presengafisi- ca, um corpo estranho que ocupa e profana 0s espacos reservados 20 chefe da casa, Esses espagos so, Timultaneamente, xgrados © intimos: a poltrona da sala, a cabeceira da mesa, o leito conju- gal. A presenga estranha é a expressio palpivel do poder em sua forma mais desnuda eilegitima: a usurpacio ‘Aqui devo arriscar uma hipétese que, embora impossivel de verifcar, parece-me que possui uma forte dose de realidade: Ruiz Lozano “desempenhou uma funcio compensatéria na dialética da culpa e do castigo, A titania do padcasto foi a puni- fu pela morte sibdlica do pai. A virilidade fantasmagérica encarna em Ruiz Lozano, mas a forma corporal que assume € a dla agressio, Trata-se, outra vez, de uma imagem; 0 agressor nio €0 individuo real que foi Diego Ruiz Lozano, mas uma figura criada pelo sentimento de culpa de Juana Inés. vsnat tits rages rei extents ene lao pais. © nao devem ter sido assim tio ruins. Jd observei que em Diego Ruiz. Lozano deixou suas duas iter ‘Antonia, “ae anos, ¢ Inés, treze — no convento de San JerSnimo para “afasté- 120 Jas dos perigos do século” € para que “estejam na companhia da ‘madre Juana Inés de la Cruz, sua prima (sic)”. Em sua declara- Gio, Diego Ruiz Lozano comprometia-se a pagar sua alimenta- Gao ¢, “chegada a hora’, os trés mil pesos do dote de cada uma ‘Nenhuma das duas vestiu 0 habito. ‘Mas uma coisa sio as rela~ 6es reais de Juana Inés com Diego Ruiz Lozano, sobretudo na Rade madura, ¢ outra os ambiguos sentimentos e imagens que a mesma pessoa deve ter-lhe inspirado durante sua infancia, "A relagio entre as duas imagens da virilidade, o pai ¢ 0 pa- drasto, assume a forma da passividade ¢ da atividade. A passivi- dade do fantasma excita e redobra a atividade da imaginacao: a agressiva presenga do inteuso, por outro lado, provoca uma rea Go de imobilidade defensiva Juana Inés recua diante do padras- te se fecha em si mesma, Nesse movimento instintivo para dentro jé estio prefiguradas a cela de seu convento ¢ 2 solidéo centre os livros. Diante do fantasma do pai, Juana Inés solea sua fantasia, Nesse movimento pata fora jé est perfilada sua atitude dante do papel sobre 0 qual desenha, com letras, as figuras de Sous descjos e especulagies. Uma ¢ outra atitude, a do encolhi- mento e a da distensio, sio o germe do desmesurado crescimen- fo de suas faculdades mentais — 2 especulagéo e a imaginagio — frente as conporais. ‘O fantasma que ronda seus pensamentos ¢ o intruso que domina a casa sio figuras estreitamente ligadas & mie e, portan- to, a cla propria. A relagio com sua mie — a mais complexa diffcil de penetrar — deve tet sido determinada pela oposigto centre as duas imagens masculinas, a do fantasma ¢ a do intruso, ‘A mie compensa a auséncia nZo com a imaginagio, mas com outta presensa que nfo éa da usurpacio nem a da instabilidade, smas ada permanéncia e da firmeza. A mie encarna uma espécie de legitimidade, nao jurtdica mas terrena, carnal. Ea casa, a ter~ ra, Seus poderes se exercem num reino oposto aquele em que Juana Inés abre 0s seus: nao o mundo do sonho e seus espectros, nas o da realidade. A mae é a senhora da realidade. Talvez Juana Inés sentisse por ela uma espécie de repulsio amorosa, essa fasci- nacio que sentem &s vezes os temperamentos intelectuais © introvertidos pelas naturezas poderosamente animais, Uma fasci- 121. | \ t nnagZo que nao exclui 0 horror. Embora sua vida tenha sido a ne- gagdo da vida de sua mae, como nao perceber que se trata de uma homenagem obliqua? Para compreender a contraditéria re- lagao que quase seguramente uniu Juana Inés 4 mae — admira- Gio, cities, piedade, despeito —, é preciso ver como ela a viu quando era menina: no centro da casa, a0 mesmo tempo rainha e escindalo da sua familia. Mundo de paix6es fortes ¢ individuos feacos. Nessa constelacio afetiva, regida por ventos contritios, a mie ¢ 0 ima que atrai todas as vontades ¢ as neutraliza ou desen. cadeia: a senhora do raio e da calma. Juana Inés esté entre 0 fantasma do pai, a presenga do pa- drasto e a realidade, enorme, tertestre da mae. E uma realidade | que funde os opostos. Nao os funde espititualmente, mas fisica, carnalmente. A vida e obra de Juana Inés serd uma tentativa de transpor essa fusio carnal & esfera do espirito ¢ transmuté-la. Al- \ quimia na qual a arte serd fogo da tradigio. Em seus pocmas, a0 se referir as suas obras literdrias, fala com freqiiéncia de seus partos ¢ abortos; no Epinicio al conde de Gale (Epinicio ao conde de Galve) alude a pitonisa de Delfos em termos realmente ex- traordindrios: “Embora virgem, prenhe de conceitos divinos”. A imagem € um retrato da prépria séror Juana que, por sua vez, se apresenta como uma sublimacdo da figura materna. O concei tualismo the serve admiravelmente para esse género de parado- xos; gragas a eles se chega ao prodigio de que ‘frenética seja a cordura’. A eransgressio da ordem légica produz uma nova reali- dade espiritual, 0 conceito. Transgressio intelectual nio menos prodigiosa que a transgtessio carnal de sua mae. Séror Juana é solteira ¢ fértil como ela: uma concebe criaturas mortais, a outra, criaturas mentais, O outro vinculo com os poderes masculinos é representado pelo av6. Fo substituto do pai. Séror Juana conta na Respuesta sor Filotea de la Cruz que viveu, quando menina, com a mie e 0 av6. Pedro Ramirez passou os tiltimos anos de sua vida na fazen- da de Panoayiin; quando ele morreu, em 1656, quando Juana ti- nha oito anos, Isabel Ramfrez herdou a propriedade. A escola €m que Juana Inés aprendeu a ler e a escrever — “uma das que ‘chamam Amigas” — ficava em Amecameca, a uns dois ou trés 122 quilémetros de Panoayin. O avd era amante dos livros ¢ da cul- tura. O erudito livreiro Demetrio Garcia descobriu um exem- plar de uma antologia de poetas latinos de Octaviano de la Mirandola, editada em Lyon, em 1590 (lllustrium Poetarum Flo- re), O exemplar pertencera primciro a Pedro Ramirez.e depois a Juana Inés, Ermilo Abreu Gémez examinou o volume e diz que nna primeira pégina aparece a assinatura da poeta: “JHS de Juana Inés de la Cruz, a pior”, formula de auto-humilhagéo que tam- bém figura numa pagina do Libro de profésiones do convento de San JerSnimo: “Eu, a pior do mundo, Juana Inés de la Cruz”. Na capa aparece o nome de Ramfrez. Hi muitas anotagées feitas rio pela mesma mao: ‘quando menos duas pessoas as escreveram... As inscrigbes prineipais cdenunciam eurios(ssimas norfcias, umas eruditas e outras pessoais; pode-se concluit que seu aucor era versado em literatura clisica.. Por algumas anotagbes se descobre que otal Ramirez era casado e de posi fio socal. OutrasinscrigBes denunciam os anos em que o volume foi smanuseado (1646-1652), 0 que permite pensar que realmente pode cer pertencida ao av6 da feira..? ‘A antologia contém trechos de Virgilio, Ovidio, Horécio, Juvenal, Pérsio, Lucano, Seneca, Boécio, Plauto, Catulo, Mar- ial, Lucrécio, Propércio, Tibulo etc. A antologia latina de Mirandola (parente de Pico?) confirma o que a prépria s6ror Juana conta: 0 av6 tinha “livros variados” ¢ ela leu todos “sem que basassem castigos em cepecnes ara atrapalha”, Baa requcna confissio é preciosa: a relagio filial entre a menina € 0 tell assumiu a forma de uma iniiagéo intelectual ‘A figura do avé € ambigua: nfo s6 est4 no lugar do pai como mais além da masculinidade. Do mesmo modo que a pre- senga do estranho Ruiz Lozano acentua o cardter agressivo da vi- rilidade, a velhice do avé a transcende. © avd nio s6 & a com- pensagio pela auséncia do pai como representa a sublimacio da 3. Exmilo Abreu Gémer, Sor uama Inde la Cruz. Biblografay biblioteca, Mési- 0, 1934, 123 | I sexualidade masculina. E virilidade pacificada, sexualidade transcendida, A ambiglidade opera em ambas as direcoes, a po- sitiva ¢ a negativa: se a velhice diminui a virilidade, também a transmuta. O signo negativo torna-se positivo porque 0 av6 dono de um tesouro no menos valioso que a sexualidade viril: uma biblioteca. A viriidade é vida que concebe vida, mas vida sujeita a0 tempo € A morte. Ao contrério, os livros, também do signo masculino, nio envelhecem: sio tempo congelado, sexu: dade purificada dos acidentes do acontecer, o conceber ¢ 0 mor- ret. Eles sfo a resposta 8 fecundidade carnal da mae ¢ & sexuali- dade agressiva dos homens. Os livros do avé abriram-Ihe as portas de um mundo dife- rente do de sua casa, Um mundo no qual néo podiam entrar nem sua mde nem suas outras irmas: um mundo masculino. Re- into fechado & maiotia dos homens € no qual nem Diego Ruiz Lozano nem seu pai podiam penetrar. Mundo de elérigos, letea- dos ¢ anciaos onde desaparecia ou se transformava a agres- sividade da sexualidade masculina, A fungio dos livros era cripla: compensagio pela dupla falta original, a do nascimento ilegiti- mo e a auséncia do pais substituigio da presenga dominante do intruso Diego Ruiz, sexualidade agressiva que concebe criaturas mortais, pelos livros que sio sexualidade pacificada e depurada, tempo que jé nao transcorre nem envelhece, tempo que nio morre; sublimagdo da sexualidade viril por uma virilidade assextiada, desencarnada e ideal. A sublimagio pela cultura re- solvet transitoriamente seu conflito. O custo foi grande: as leas — 08 signos das coisas — substitufram as coisas. Desde entio yJxtana Inés vivew num mundo de signos e la prépria, segundo se |v@ em seus retratos, se transformou mais e mais num signo. O que diz esse signo? Essa &a pergunta que ela nio deixou de fazer acé sua morte € & qual este livro pretende dar uma resposta, ___O mundo dos livros é composto de eeitos no qual os obs- téculos materiais e as contingéncias cotidianas se afinam até eva- ppotarem quase que rotalmente. A verdadeira realidade, dizem os livros, sfo as idéias e as palavras que thes dio significado: a reali- dade é a linguagem. Juana Inés habita a casa da linguagem. Essa casa no estd povoada por homens e mulheres, mas por umas 124 criaturas mais reais, duradouras e consistentes que todas as reali- idades todos os seres de carne e osso: as idéias. A casa das idéias é estdvel, segura, sélida. Nesse mundo cambiante ¢ feroz, existe tum lugar inexpugnével: a biblioteca. Nela Juana Inés encontra io sé um refiigio como um espago que substitui a realidade da casa com seus conflitos e fantasmas. A decisio de vestir 0 hébito, anos mais tarde, fica mais compreenstvel se pensatmos nesse des- cobrimento infantil. O convento € 0 equivalente & biblioteca, ‘como ela dia entender em sua Respuesta 20 bispo de Puebla. Por sua ver, convento ¢ biblioteca s40 compensasio diante do pa- drasto € substituigio do pai. Por tiltimo, em seus significados afetivos sio homélogos, porque cela ¢ biblioteca fincam suas ralzes na mesma terra do desejo infantil. Nao ¢ por acaso que a matriz, também se chame claustro ‘materno, Ao se enclausurar, Juana Inés consuma o ‘encolhimen- 10’ a0 qual jd me referi mais de uma vez. E uma operagio de re~ toro & situagéo infantil, uma verdadeira clausura. A cela-biblio- teca é a concha materna e nela se fechar € voltar ao mundo de origem. O auto-erotismo infantil é o sucedaneo da situacio pré- natal paradisiaca na qual nao existe distingao entre o sujeito e 0 objeto. A leitura toma o lugar do auto-erotismo: a confusio en- «ce sujeito € objeto revive, transmutada, na passividade da leitu- ta, Nela o sujeito pode por fim se estender ¢ se balangar como um objeto; na leitura, o sujeito alternadamente se contempla € esquece de si préprio, se olha c ¢ olhado pelo que lé. Tempo rit- ico da cela e da biblioteca, tempo que revive o bergo ninado pela maré do existir. ‘A analogia entre a leitura e a situagio original nfo se de- tém nisso. Comecar a viver, crescer, é um processy dolorese: nos- sa vida se inicia como um desprendimento ¢ culmina num desarraigamento. No mundo pré-natal, desejo ¢ satisfacio sio uma sé coisa; 0 nascimento significa sua disjungéo € nisso con- siste o castigo de haver nascido. Nesse castigo comega também a consciéncia de set: sentimos nosso eu como sensagio de corte do outro, Mas existe uma substincia prodigiosa que faz cessar a dis- cérdia entre o desejo e a satisfagio: o leite materno. Nele o pra- rere a necessidade se conjugam. A lactincia atenua a distingao 125 entte 0 sujeito € 0 objeto. A unidade se restabelece e por um instante um € 0 outro. Numa imagem duplamente admiravel, por sua exatidio visual e por sua penetraséo espiritual, Hélderlin diz que 0 bebé pende do peito de sia mie como o fruto do galho. Assim é a crianga volta a ser de novo parte do corpo do qual foi arrancada. A substincia que cicattiza a fetida é co leite, a seiva materna. ‘As metéforas populares so de uma exatidao infalivel: se desejamos uma pessoa dizemos que ‘a devoramos com os olhos’. O deslocamento da boca aos olhos como drgios do desejo é uma das manifestagies do processo vital; a expressio ‘devorar com os olhos, por sua plasticidade e energia, é uma metéfora que nio sé evoca como convoca a situacao original. Por sua ver, a leitura é uma metéfora dessa metdfora — o leitor devora com os olhos 0 leite da sabedoria e restabelece, precariamente, na esfera da ima- ginagio ¢ do pensamento, a unidade rompida entre 0 sujcito ¢ 0 objeto, O leitor poe entre parénteses sua consciéncia ¢ se interna num mundo desconhecido. Vai em busca de si mesmo? Na ver- dade vai em busca do lugar do qual foi arrancado, Toda leitura, até a que termina em desacordo ou num bocejo, comega como uma tentativa de reconciliagao. Por mais évido de novidades que esteja 0 leitor, 0 que ele procura originalmente é reconheci- mento, 0 lugar de otigem. A leitura é uma metéfora dupla, Num de seus extremos, reproduz a situagZo infantil original: a escritura ¢ 0 leite mAgico com o qual pretendemos dissipar a separa entre o sujeito € 0 objeto, No outro extremo, abre diante de nds uma antiga e complexa analogia. Desde 0 prineipio do prine{pio o homem viu no céu estrelado um corpo vivo regado por rios de leite lu- minoso € igneo; a essa visio, que faz do cosmo um imenso corpo ferninino, junta-se outra: as estrelas e as constelagGes associam-se combinam-se no espago celeste ¢ assim tragam figuras, signos ¢ formas. O leite primordial transforma-se num vocabulétio, 0 céu estrelado numa linguagem. O leite estelar € destino ¢ as fi- guras que desenham 0s astros sio as da nossa historia. O leite & vida ¢ conhecimento. Velha como a astrologia, essa metéfora tem marcado a nossa civlizacio: signum é sinal celeste, constela- 126 io; também € sina — destino. Os signos sio sinas ¢ as frases aque escrevem as estrelas sio a histéria dos homens: os signos cextelars so o leite que tomamos no peito quando criangas ¢ ele contém tudo 0 que somos e seremos. Ler o céu ou seu duplo, a pagina: beber o lei édesfazer 0 né de nosso destino, mas um remédio contra nossa condigio; a leitura das estrelas nio dé a liberdade, mas 0 conhe- ccimento, Numa sociedade hierdrquica como a de s6ror Juana, na qual 0 nascimento nao sé outorgava nome e categoria, mas era também o fundamento da ordem social, o saber — o leite da sa- bedotia — representava um dos recursos mais seguros contra 0 inforcanio de um nascimento plebeu ou ilegitimo. Para Juana Inés a leitura teve, sem diivida, essa fungio reparadora: o saber al limpava de sua condigio de bastarda. Mais de uma ver deve ter Iembrado a infancia de Hércules e 0 estratagema de Jupiter para Ihe conceder a divindade completa. Num livro muito popular em sta época e que cla, tio interessada nos tratados de mitolo- gia, certamente leu ¢ relet — refico-me ao Teatro de los doses de Te gentilidad, do franciscano Baltasar de Vitoria — assim se ex- plica a origem da Via Lictea estelar nao como Hércules er ileitimo,e bastardo, por sr filho do deus Jipiter € de Alemena, mulher de Anfiiio, e por conseguinte minguada, pela metade, a divindade, ¢ onde algumna coisa falta, se diz ndo estar de todo cumprid, sim defeituosa (..) pois quis seu pa fazé-o legtimo © deus completo, inteiro,acrescentando-the a divindade que the fatava (..) epara contara Héreules no niimero dos deuses, sem que para isso Ihe faltasse coisa alguma, aguardou que um dis estivesse adormecida suua mulher juno e pedis deusa Palas que rowxesse 0 menino dorm do para que mamasse na adormecida deusa ¢ tomarido a eo peito ‘oto sossegadamente como era mise, acordow a deus e como visse 0 furto que se fata de seu leit, afastou-se muito brava ¢ ofendida, € como tirou o peito da boca do menino, derramou-se oleite pelo céa que, coulhando e congelando, formou a Via Lécea* 4.0 exemplar em meu poder do Teatro de lor dates de a gemildad (percenceu a don Vicente Riva Palacio que 0 obsequiow a me avé) & de 1673 (Madi), mas 127 i I A legitimasio de Hércules pelo furto de leite divino se re- produ na leieura que fazia Juana Inés dos livros de seu avé as e5- condidas dos familiares. ‘As goras do leite estelar sio sflabas que escrevem nosso des- tino, Nas sflabas dessas constelagées Santo Agostinho e Freud le- ram os signos do desejo e da aniquilacio: endeusamento do eu e fascinagio pelo nada, perdigo morte. Mas a leitura desses sig- nos nos di, se no a felicidade — nao podemos voltar a0 estado paradisfaco pré-natal nem ascender, como Hércules, & imortali- dade —, pelo menos a tinica liberdade a0 nosso aleance, a do autoconhecimento. Séror Juana Jé em sua cela-matriz-biblioteca ¢ essa leitura € uma liberacio de sua sina. A clausura transforma- se num universo de signos e o claustro abre-se para um espago sem fronteiras: 0 céu. Espaco palpitante e povoado de signos: as. constelagdes sio letras e as letras formam uma intrincada tede de caminhos e sendeitos, dédalos ¢ espirais. A leitura é peregrina- gio, um “ir em direcio a...” © leitor nao sé decifra as letras como caminha pelos sendeiros que a esctitura traga. Ao palmi- Ihé-los, sai do claustro que o encerra ¢ vaga pelos espacos livres. A leitura é liberdade € 0 leitor, a0 ler, reinventa aquilo que lé; participa assim da criagao universal. Ou como diz s6ror Juana numa frase resplandecente: “Sflabas las estrellas compogan” (“Si- labas as estrelas componham’). As estrelas compéem frases, mas € ela quem as escreve. O regresso 2 infincia resolve-se em transcendéncia da situacao infantil e 0 narcisismo dissolve-se na autocritica pelo conhecimento. A cela-biblioteca consuma a ii fancia e, a0 mesmo tempo, a exorciza ‘A imagem da biblioteca como refigio no qual se recolhe a afetividade de séror Juana Inés ¢ se solta sua atividade mental deve completar-se com outta, que diz respeito & vontade e ao ca- titer: a biblioteca é o lugar do tesouro. Todo tesouro tem seus guardides, seus dragées; todo tesouro esté encerrado num castelo cxistem edigdes anteriores. A primeita é de 1620 (0 primeico volume) e de 1623 (0 segundo). As fontes do relato de Vitoria sfo a mesmas que usot s6rot Juana em seu Neptuno alegéricee em outros escritos: Vicenza Cartatio, Petio Valeriana, Textos, Natal Cont ee 128 cou enterrado numa caverna. A imagem do tesouro convoca a fi- tra do herdi e suas facanbas. Proezas que sio violagées épicas € profanagées herSicas. Juana Inés deve tomar a fortaleza por assal- fo ese apoderar do conhecimento como os piratas de seu tempo saqueavam os galedes que capturavam. O conhecimento é trans- gxessio. Ela prOpria diz isso: Ié todos os livros sem que “bastem fs castigos para atrapalhar”, A transgressio é virlizagao: menina, ‘corta o cabelo ¢ quer se vestir de homem; jovem, neutraliza seu ‘exo sob 0s habitos da religiosa; adulta, identifica-se em seu poe- tna Primero suefo com o her6i Faetonte. Aparece, assim, com toda a clareza, a origem eminentemente social nao psicosso- rtica da virilizagaot que os livros sejam um bem proibido ¢ que se apoderar desse tesouro signifique uma transgressio sio cir- cunstincias impostas a Juana Inés nfo tanto pela biologia como pela indole da sociedade em que vive. A biblioteca ¢ um tesouro {ue consiste em livros feitos por homens, acumulados por eles por eles distribuidos. Para se apoderar desse saber acurmulado € preciso fazer 0 que fazem todos os ladrdes, sem excluir os herdis do mito: se disfarcar. A vitilidade é um disfarce imposto a Juana Inés pela sociedade ¢ a mesma coisa acontece com sua profissio de religiosa. A origem bastarda e a auséncia do pai a levam a bi- blioteca e esta ao convento. Confluem dessa forma as circunstin- cias intimas de ordem psicol6gica com as sociais. Seu destino & uma série de escolhas que a necessidade impée, mas que ela ado- ta com os olhos abertos. ‘Acescolha de Faetonte como modelo foi feita da mesma tra- ma na qual é imposs(vel distinguir entre o pessoal ¢ 0 social, a li- berdade e a fatalidade. Faetonte é, como ela, urn bastardo, filho de Apolo e da ninfa Climene. Mas 0 tema de sua hiousa ¢ « ten~ tativa de Faetonte de reparé-la com seu ato temeririo, que im- pressionou o poeta Villamediana, néo é 0 de s6ror Juana, embo- ra essa circunstdncia nao possa ter sido alheia & sua escolha do jovem herdi como arquétipo. Ela apaixona-se pela figura por ser ‘uma transposi¢a0, no mundo mitico, de sua situagio infantil ¢ também de sua vida inteira. O saber & ousadia, violéncia: a bi- blioteca transforma-se num espago aberto, como esse céu mental de seu grande poema, de cujas alturas se derruba 0 jovem sacr{- 129 lego fulminado por Zeus. O céu e seu homélogo: a pigina em que as letras do poema sio constelagdes se transformain ci cam. pos de batalha. A figura de Faeconte caindo das alturas, imagem de um dos momentos mais intensos ¢ menos abstratos de Primero suefo, é wma mevéfora da situacéo original — a ousadia ue atrai as admoestag6es dos mais velhos. A situagio repete-se no final de sua vida: essa mesma ousadia é a causa dos castigos dos superiores. O fantasma do avé reaparece em Apolo, Zeus ¢ seutraio nos rigores de Nunez de Miranda e de Aguiar y Seijas O saber como transgressio implica o castigo do saber. Para 2 maioria dos poetas espanhdis de sua época, Faetonte é um exem. plo de imprudénciae seu castigo. Para s6ror Juana este castigo & uuma consagracio. O céu do qual despenca Faetonte ¢ verbal: as estrofes de Primero such. Espago povoado de verbos, substantivos e adjeti- Vos, percotrido pelo movimento circular dos tropos e metéforas, espago imaginério da solido. Dupla solidao — a do leitor ¢ da mulher autodidata. Na Reppuesta ela se queixa uma e outra vezs estudou sozinha, nao teve professores, seus tinicos e mudos con. fidentes foram os livros. E podertamos acrescentar, os espelhos Sua poesia estd cheia de espelhos e dos itmaos dos espelhos, os Fetratos. Sim, espelhos ¢ retratos sio t6picos bartocos e aparecemm em todos os poetas da época; até 0 descomunal Polifemo songorino se olha retratado nas ‘neutralidades' do espelho mari- nho € se assombra: esse olho tinico em sua testa nublada ¢ 0 réprio Sol no centro do céu. Em Juana Inés a funcio dos espe- hos ¢ retratos é, a0 mesmo tempo, retérica ¢ simbdlica, A estéti- 2 dos espelhos ¢ para ela também uma filosofia e uma moral. O espelho ¢ 0 agente de eransmutagio do narcisismo infantil. Pas- sagem do anto-erotisimo & contemplasto de si prépria: por um Processo andlogo ao da leitura, que transforma a tealidade em signos, o espelho faz do corpo um simulacro de teflexos. Por obra do espelho, o corpo torna-se, simultaneamente, visivel ¢ intocivel. Triunfo dos olhos sobre o taro, Num segundo mo- ‘mento, a imagem do espelho transforma-se em objeto de conhe- cimento. Do erotismo a contemplagio e desta & critica — 0 es- pelho e seu duplo, o retrato, sfo um teatro onde se opera a me- 130 tamorfose do olhar em ne ‘Um saber que é, para a sensibilida- roca, um desenganado. 2 mes ae a Juana Inés se deleita na dialética entre @ rexrato € 0 modelo, a imagem do espelho © a orginal, a reali- dade ea apaténcia, A verdadeira realidade a da aparéncia. Uma ¢ outra so cépias da esséncia, mas a spartncia € mais real que a calidade porque é mais pura, quero dizer, menos sujeita a0 foe e * eontingénela, Contudo, existe um interlocutor vel mas elogtiente — que faz a critica da aparéncia:o tempo. O soneto sobre seu retrato, pintado com ‘falsos silogismos de co- res, € uma variacio de um tema galante e fiinebre: a coquete ea caveira. No centro da oposigo barroca entre a carne ¢ esquele- to, séror Juana introduz 20 pensamento: os reflexos do espelho séo também reflexées. Retratos e espelhos — oe especu- lativos. A transmutacio é radical, 0 corpo transforma-se numa seecia de reflexos resolvida num feixe de conceitos. Embora a cexséncia do mundo seja ideal, intelectual, as aparéncias flucuam na corrente temporal ¢ ncla desaparecem, O conccito no é nada mais que uma tltima reflexio sobre a vaidade das coisas ¢ do mundo. O conceito brilha por um momento sobre a pagina-espe- Iho e se desvanece: como tudo e todos, é tempo que se dissipa. Na sua infancia, jé estava trocado o destino de Juana Inés: © iblioteca da idade madura; a ¢ Primero suefio. a rendincia a0 casamento; a ce rebelifo contra a autoridade e até o argumento Nio defendo um rigido determinismo psicoldgico: ae a njungio entre 0 cardter e as circunstincias sociais, Essa con- junglo nfo exclu a liberdade, ainda que dentro de limites na verdade estreitos — somos os ctimplices, mas também os erfti- cos de nossa faalidade, A vida e obra de Juana Inés podem ser condensadas nesta frase: 0 conhecimento é uma transgressio co- metida por um her6i solititio que logo ser& castigado. Esse casti- 0 é, paradoxalmente, segundo veremos, sua gléria. Nio a gléria do conhecimento —~ negado aos mortais —, mas do ato de co- nhecer. A transgressio exige a masculinizasio; por sua vez, a masculinizagio se resolve na neutralizacio e esta, segundo jé vi- ‘mos, no regresso & feminilidade, Ultima vitéria: s6ror Juana ado- ta a mdxima neoplaténica — as almas nfo tém sexo. Na verda- 131 de, trata-se do mesmo proceso no qual Juana Inés passa da autocomiseragio ao autoconhecimento, do espelho ao livro e do livro & escritura. Voltas ¢ reviravoltas do destino: a dialética do desejo infantil, em suas cristalizagoes, represses e sublimagées abre-se na imagem da biblioteca e da cela. Abre-se e, como na figura do caracol, recolhe-se: Juana Inés constr6i sua casa espiral — sua obra — com a prépria substincia de sua vida. Cada volta é uma ascensio ao conhecimento e a encerra mais nela mesma. ‘A imagem do caracol termina por desvanecer: s6ror Juana esté sozinha na imensa esplanada de seu sonho hicido. A biblioteca desvanece como os obeliscos c as pirimides da quimérica paisa- ‘gem egipcia que evoca Primero sueii. 132 3. OS SACRIFICIOS DE JUANA INES Em Respuesta a sor Filotea de la Cruz ha uma lacuna: Juana Inés passa bruscamente de sua infincia ao seu ingresso no con- vento de San Jerénimo. E um salto de dez anos de sua vida. Dez anos decisivos: os de sua juventude na corte vice-reinal. Segundo 6 padre Calleja ela foi enviada & Cidade do México aos oito anos “para viver com um av6, ¢ li satisfez sua ansia de saber em uns poucos livros que achow na casa, que no tinham outra finalida~ de que a de ocupar espaco, como enfeites, em cima dos méveis da sala’. Séror Juana situa o episédio dos livros do avé antes de sua ida & Cidade do México e até destaca 0 fato dizendo que, como conseqiiéncia dessas leituras, quando chegou 2 capital to- dos “se admiravam nio tanto do talento quanto da meméria € conhecimento que tinha numa idade em que parecia mal ter tido tempo de aprender a falar”, Mas em alguma coisa coinci- dem séror Juana e Calleja: foi & Cidade do México ainda meni- na, quando tinha uns oito ou dez anos. Pedro Ramirez, 0 avd, morteu em 1656 ¢ sem diivida Juana Inés deixou a fazenda de Panoaydn pouco tempo depois. Em 1669, aos vinte e um anos de idade, entra para o convenco de San Jerénimo, vivendo cerca de uns doze anos sozinha, primeico com uns parentes e depois ‘na corte. Os familiares que acolheram Juana Inés na Cidade do México foram uma tia materna, dona Maria Ramirez, € seu ma- fido, Juan de Mata, homem de posses. Por que a enviaram & Cidade do México, longe de sua mae ¢ suas irmis? Estava sobrando em casa? Depois da morte de Pedro Ramirez um homem novo entrara na vida da filha Isabel: o capitio Diego Ruiz. Lozano. Como ja indiquei, 0 primeiro fi- Iho de Isabel Ramirez. de Diego Ruiz Lozano nasceu nesses anos. Talvez por isso Isabel tenha decidido enviar Juana Inés aos 133 i 4 Mata. Se minha hipdtese for exata, o ano de 1656 foi vital em. seu destino: sua ida & Cidade do México coincidiu com o desa- parecimento de seu avé e o aparecimento de seu meio-irmio Diego. Esses dois acontecimentos devem té-la marcado profun- damente. Nao ¢ impossivel, além disso, que a permanéncia de Juana Inés na fazenda de Panoayén nko fosse intciramente do agrado de Diego Ruiz Lozano, se é que este, depois da morte de Pedro Ramirez, vivia ali. Ignoramos se suas irmas mais velhas, Maria ¢ Josefa, também filhas de Asbaje, da mesma forma que Juana foram viver com outros parentes. Seja como for, 36 a morte de seu av6 e a presenga de um novo amante de sua mae podem cexplicar que, menina ainda, Juana Inés tenha vivide longe de sua casa, ‘encostada’ na casa de parentes ricos. Que tipo de vida levou na casa dos Mata? Quais eram seus afazeres? Nao sabemos. Por mais afetuosos que tenham sido seus tios e primos, muitas vezes deve ter se sentido sozinha. A soli- dio, de novo, apresenta-se como seu elemento natural, sua con- digo original — Juana Inés é uma planta que cresce numa terra de ninguém. Também é um destino: a solidio é a estrela — 0 signo, a sina — que guia seus passos. Seu caminhar pelo mundo um desprendimento dele € um incernar-se nela prépria. Du- rante 08 anos passados na casa dos Mata deve ter se consumado totalmente 0 processo psicoldgico de recolhimento em si mesma a que me referi anteriormente. Ao sentimento de estar sobrando em sua casa uniu-se quase certamente © mal-estar de set uma protegida, mais ainda, uma filha de criagio. Podemos imaginar que, se nao sofreu humilhacées — como saber? —, logo perce- beur que nao tinha lugar no mundo. O estudo, mais que o trato com seus parentes, foi outra vez o escudo contra 0s outros e con- tra si prépria. Por meio de Callcja sabemos que aprendeu latim em vinte licées e seu prolessor foi o bacharel Martin de Ollivas, a quem dedicou mais tarde um pomposo soneto acréstico no qual compara com nada menos que Arquimedes, Falei de solidio, no de isolamento. A vida de Juana Inés nna casa dos Mata estava longe de ser a de uma anacoreta; é pos- sivel estar sozinho no bulicio do mundo e esse, provavelmence, foi seu caso, O testemunho de Calleja é conclusive: 134 Espalhava-sea fama de habilidade nunca vista em to poucos anos; € a0 passo que avangava a idade, nela aumentavaa dsergfo pelos cuida- dos do estudo seu bem parecer com os de natureta soi ‘quis esa ver encerrartaneasutlera de espirivo em corpo que ainvejasse ia, que nfo muito, nem dissimular como avarenta tesouro tio rico escondido entre terra tosea, Os retratos ¢ a fama confirmam o que conta Calleja: Juana Inés nao s6 era discreca como linda. Nao destitufda de coqueteria, cla prépria se desereve na bela e culta dona Leonor, a heroina de sua comédia Los emperis de una casa (Os acrifcios de uma casa): Deciee que naci hermosa, presumo que es excusado, pcs lo aestiguan tus ojos yo prueban mis wabajos.* Leonor ¢ bela, discreta © pobre, exatamente como Juana Inés. Mas existe uma diferenca entre elas: Leonor vive com o pai, Juana Inés nao tem ninguém. Sua popularidade era uma faca de dois gumes, pois, como diz Calleja numa frase cutiosa, ela “cor- tia 0 risco de ser desgracada por ser discreta e, desgraca no me~ nor, de ser perseguida por ser bela". Seja porque seus parentes pensaram que na corte ela encontraria um lugar ou porque hi queriam a responsabilidade de cer em casa um prodigio tio fré- gil como Juana Inés — linda, virgem e desvalida 30 palicio vice-reinal e a apresentaram & recém-chegada vi “ha, dona Leonor Carreto, marquesa de Mancera. Juana Inés ‘Mata ¢ tinha dezessels quando chega- tam a0 México 0 novo vice-rei € a esposa (1664). A inteligéncia, “ageaga @ também, talvez, o desampazo da jovem impressionaram imediatamente a marquesa. Logo foi admitida em seu servico, “onde entrou’, diz Calleja, “com titulo de muito querida da se- hora vice-rainha’, * Dizerte que nasi bela/imagino que sejaescusado /pos isso cestemunham teus olhosle o provarn meus tabalhos (N. do. 135 A rapidez com que deixou a casa de seus tios e se colocow 20 setvigo da marquesa de Mancera confirma o que insinuci an- tes: sua situago era, no minimo, equivocada. © equivoco proce- dia nao s6 do fato de ser filha natural como de se ver obrigada — por razées que desconhecemos, mas podemos imaginar — a viver fora de sua casa, longe de sua mae e desconhecida por seu, pai. Claro, para decifrar inteiramente esse pequeno mistério, precisamos ter um conhecimento maior das circunstincias da fa- milia de Juana Inés. Tanto pelos documentos publicados por Dorothy Schons, Ramfrez. Espafia ¢ Cervantes como pelo teste- munho de Calleja, sabemos que Asbaje néo tinha recursos ¢ suas rés filhas dependeram, Inteiramente, if de Pedro Ra- tit depois de sua morte, de Isabel, a quem seu pai deixou para coda a vida’ 0 arrendamento da fazenda de Panoaysin. Ao ‘contidrio das filhas que teve com Ruiz Lozano, protegidas sem- pte por este, as de Asbaje no tiveram mais amparo que sua mie € 0s familiares desta. Sabemos, além disso, que antes de 1662, Beatriz, a mae de Isabel Ramicez, morrera. Talvez Juana Inés, ‘mais que uma testemunha indiscreta da vida de Isabel Ramirer, representava uma carga econdmica que esta nio podia suportar Nio é dificil acreditar que as razbes de nacureza econdmica te- nham sido as determinantes. Enfim, qualquer que tenha sido 0 motivo — citimes do amante ou escassez de recursos —, foi mui- to poderoso; de outro modo uma jovem da classe de Juana Inés no deixaria a casa de sua familia para ir morar em outra cidade com parentes, que por sua vez nao demoraram em se livrar dela. Don Antonio Sebastian de Toledo, marqués de Mancera, era_um politico ambicioso ¢ sagaz. Esteve muito ligado & rainha Mariana di Austria ¢ a ela deveu, em grande parce, sua longa e, 20 final, brilhance carteira. Sua mulher foi dama da rainha desde a chegada de Mariana a Madri e seu casamento com Felipe IV (1649). Sem ciivida sua origem alema lhe valeu o cargo: a farni- Ta ‘Carreto, como tantas outras da aristocracia madei- Tenlia de enta6, era germanica. Seu pai fora embaixador do im- petador da Austria e morrera em Madri, em 1651, no desem- penho de sua fungio. Seu irmao, Otén Enrique Carreto, marques de Grana, em 1680 voltou a representar seu pafs e foi embaixa- 136 dor do imperador Leopoldo I na corte de Carlos 1. © marqués de Mancera e 0 de Grana foram amigos e aliados nas incrigas politicas dessa época — os unia no s6 0 parentesco como 0s in- reresses comuns, ja que os dois pertenciam a faccao alema e hi am sofrido a hostilidade de don Juan José da Austria, 0 irmao pastardo de Carlos TI.’ Don Antonio Sebastién de Toledo aspira- wvaa Ser conselheiro de Estado e 0 vice-reinado da Nova Espanha era. um meio de conseguir esse posto. Assim, em 1664, jd com cingiienta e trés anos, conseguiut 0 cargo, ajudado sem duivida por sua mulher, que percencia 20 circulo aleméo de Mariana da Austria, No ano seguinte morreu Felipe IV e sua vitiva assumiu a regencia, Mancera governou a Nova Espanha durante a pri- vvanga de Nithard e seu sucessor, don Fernando de Valenzuela, 0 ‘Duende de Palacio. Foi um administrador habil e um vice-rei prudence, mas a crénica contemporinea dele lembra, mais que por suas qualidades politicas — tanto mais notéveis quando sabe~ mos que aqueles anos foram de grande desgoverno em Madi —, por uum ato de indiscreta obsequiosidade: em 1666 oferece & rainha uma caixa de filigrana que continha mil moedas de qua- tro pesos cada uma; Mariana apressou-se em cransferir esse pre- sente a0 seu conselheiro e primeito-ministro, o jesuita alemao Juan Everardo Nichard.? O incidence confirma que a monarquia cfetivamente 0 Estado como um patriménio pessoal, absoluta crenga que herdaram nossos governantes republicans. ‘Se Mancera era um astuto palaciano ¢ um hébil politico, Leonor Catreto era engenhosa, vivaz, altiva ¢ um tanto imperti nente. Seu itmao, o marqués de Grana, teve a dupla reputacio de ser inteligente ¢ obeso; cla ficou sé com a primeira caracterls- tica, Bra loira, bela e amante do fausto, como seu marido, O ca sal foi famoso por sua prodigalidade — mais com o dinheiro do Estado do que com recursos préprios —, e por isso 0 marqués de Mancera deixou um déficit no tesouro piiblico de mais de ccem mil pesos. Outro motivo de maledicéncia foi que chegavam sempre tarde aos servigos religiosos. Contudo, 0 marqués mos- Ff Duque de Maes, Vid y mined de Carls i, Madi, 1954 2. Duque de Maura, op it trou em sua carreira politica, da mesma forma que no México durante seus longos anos de palaciano madrilenho, sutileza, cau- tela ¢ uma capacidade pouco comum de sobreviver as mudangas ¢ transtornos politicos. ‘Também € notével a paixao que cle ¢ sua mulher revelaram plas letras. Leonor Carreto foi uma personalidade pouco comum, forma nio se teria interessado tanto por Juana Inés nem a teria protegid aneira tio decidida. Scu marido sentiu a mesma fascinagao ¢ muitos anos depois, jf em Madri, segundo conta Calleja, lembrava-se da jovem protegida de sua mulher. Juana Inés conquistou rapidamente o afeto de dona Leonor Carreto: “A senhora vice-rainha”, diz Calleja, “nao podia viver um instante sem sua Juana Inés". Fala-se que nessa relacao havia alguma coisa de amor materno. E improvivel: a vice-rainha ti- nha uma filha que se casou no México em 1673. Leonor tinha pouco mais de trinta anos quando chegou 3 Nova Espanha, e assim era mais velha que Juana Inés uns quinze anos. Mas nao foi tanto a diferenga de idade como a situagio desvalida da jovem criolla 0 que deve ter influenciado nos senti- mentos da marquesa, Apesar de Juana Inés nio ser orf, sta con- digo nao era muito diferente disso — era filha natural, fora de casa ¢ sem protecio paterna. Talver o afeto da vice-rainha tenha sido um composto no qual se misturavam 0 egoismo e a admira- io, a simpatia ea piedade. Juana Inés eta uma companhia agt dave, servigal e discreta; a essas consideragées utilitérias e mun- danas somava-se o assombro diante de um prodigio de intel géncia ¢ saber; ¢ ao assombro juntava-se a piedade que inspira uma jovem sozinha no mundo. Relagao entre superior ¢ inferior, protetora e protegida, as na qual esa presente a © reconhecimento do valor ie uma jovem excepcional. E. inegivel que os dons intelectuais de Juana Inés impressonaram a vice-rainha no menos vivamen- te que sua beleza, Calleja diz que seu serviso nao Ihe roubava tempo do estudo “porque preferia continuar falando com a vice- tainha’, Isso confirma que Carreto amava as letras e deve ter sido 3. Antonio de Robles, Diario de sceas notable, 138 ‘uma pessoa sensivel e fina, A literatura e a histéria nos deixaram testemunhos de amizades célebres masculinas cujo eixo foi a pai- xdo comum pelas idéias, artes ou ciéncias. Mas essa experiéncia, tuma das mais elevadas a que podemos aspirar, nao é uma exclu- sividade masculina: a relago que uniu essas duas mulheres, tin- gida de mtitua admiracao, foi uma dessas amizades espirituais. ‘Amizade impregnada — ao menos em suas expressbes escritas — de um exaltado platonismo misturado a homenagens de sub- missa delicadeza, Alianca estranha para nés, mas freqiiente na- quela época, entte os sentimentos de real gratido que deve ter sentido Juana Inés e a afinidade sentimental e espiritual, nto menos real, que unia as duas mulheres. Esses sentimentos de amizade se legitimavam, por assim dizer, gragas &s convengGes fi los6ficas e literérias herdadas do neoplatonismo renascentista Leonor Carteto influenciou a jovem amiga? Num dos trés sonetos fiinebres que escreveu por ocasiio da morte de sua pro- tetora, Juana Inés insinua que scus conselhos e sua amizade a aju- cdaram em suas primeiras tentativas poéticas: “Muera mi lira in- fausta en que influiste..” (“Morea minha lira infausta na qual in- fluist...") Como nos outros poemas dedicados a amizades femini- nas, existe nessas composicées um tom de paixfo ao mesmo tem- po obsequiosa ¢ contida. Nos sonetos a Laura — esse & 0 nome poético que deu Juana Inés 2 Leonor Carreto, em alusio a Petrarca ao plaronismo de seus sentimentos — os acentos, embora apai- xonados, so menos vivos c mais reservados do que nos poernas dedicados a Marfa Luisa de Gonzaga, a condessa de Paredes. Juana Inés viveu ao lado dos vice-reis entre os dezesseis ¢ vinte anos de idade. Sao 0s anos decisivos na vida das mulheres, sobretudo das mulheres daquela época, quando a precocidade era maior. A corte dos Mancera foi brilhante e no palicio havia muitos saraus, festas e ceriménias, Embora nao saibamos se suas obrigagbes junto 3 rainha Ihe davam liberdade para encontrar homens jovens de bom nivel, Calleja nos conta que a rodeavam “as lisonjas desta nao popular aura”. Nao se refere, claro, a ne~ nhum amor, mas scria absurdo descartar inteiramente os deva- neios e os amoricos. Sugerem essa possibilidade o cardter de 36- ror Juana Inés, sua jovialidade, seu gosto pelo mundo, 0 prazer 139 que obtinha e dava no trato social, seu narcisismo, enfim, essa coqueteria que nunca a abandonou de todo. Se como feeita foi dada aos prazeres mundanos, por que nio teria sido assim quan- dlo no estava presa aos votos religiosos? Em muitos poemas alu- de as festas ¢ bailes do palicio com um conhecimento que vein de experiéncia prépria, Um exemplo ¢ o romance onde “uma das senhoras de touca do palicio do vice-tei dé conta das sortes do ‘Ano Novo...” Nesse jogo cortesio se distribuiam por sorteio os cavalhieiros entre as damas, um acerto, diz séror Juana, no qual o gosto €a casualidade se davam as maos pucsala dama mésbell, aunque cualquiera le saga, lehabri desaliecual quiera*” Juana Inés deve ter entrado nesse jogo enquanto morou no paldcio. Igual expetiéncia de galanteria revelam outros esctitos seus: as letras para serem cantadas e dancadas, as cedondilhas, as seguidilhas, as endechas, os bilhetes, os sainetes e as comédias. Em seu preficio ao volume IV das Obras completas, a0 exa- minar o teatto profano da poeta, Alberto G. Salceda se detém com pertinéncia num dos sainetes representados na estréia de Los empeitos de wna casa. O subticulo do sainete € De palacio e ncle os personagens, chamados ‘entes de palicio’, disputam um prémio um pouco estranho: nio o favor das damas, mas seu me- nosprezo.* Salceda pensa que se trata de um tipo de apéndice a um hipotético ‘tratado do amor’ disperso nas obras de séror Juana. O sainete, acrescenta esse eriticn, nin trata.“do amor pro- priamente dito, mas de um simulacro, curioso e muito préprio de seu tempo, ¢ que foi conhecido com a designagao de galan- teio de paldcio”. Na verdade, o sainete no & uma excegio: temas ¢€ motivos afins aparecem em muitos outros poems. * pois & dama mais bela/embora sia qualquer uma the sir qual quer (N. do‘), 4. Bie uma reveladorarelagio entre esa iia ¢a dos "Favaree negativs de Noso Senhor” exposta na parte final de sua erica 20 Setmfo do Mandato do padre Vieira. Tras de dois exemplos do amor desse culo pelo paradon e comceta 140 Para dar uma idéia do que eram os galanteios de paldcio, Salceda cita uma longa descrigio do duque de Maura.’ Quase cudo 0 que diz 0 historiador espanhol sobre a corte real de Ma- dri é aplicdvel & corte vice-reinal do México. Desde a época de Felipe IV, quando por fim se estabeleceu definitivamente a sede real em Madri, generalizou-se a prética, entre a nobreza espa- nhola, de mandar as filhas das grandes familias corte como da- ‘mas da rainha, As jovens moravam nos altos do palicio, partici- pavam ativamente da vida da corte € estavam presentes em todas as suas procissbes, recepgGes, bailes, estas e ceriménias. Nada mais natural que se estabelecessem relagbes eréticas entre as da- mas da rainha e os cortesios. Sé que, como escusseavam no concutsovatonil os sltciros ovens, que serviam longe da corte ot no haviam ainda adquirido hierarquia para fte- qlenti-la, 0s cass estives ou movedigos que se untavam, separavam, centrecruzavar ot intercambiavam sem parareram em gral de casado esoltia Essas relagées se “travavam por consentimento miituo” e, claro esté, se desfaziam no momento em que as damas da rainha mudavam de condiggo e se casavam. ‘A deserigio do duque de Maura merece algumas refle- xGes. Os galanteios de paldcio eram uma excesio a regra geral Essa titima prescrevia que os casamentos fossem acertados pe- las familias do noivo e da noiva; as consideracées sociais e eco- némicas eram as prioritdrias, no a vontade nem a paixio dos desposados. As relacGes eréticas — dominio da subjetividade € de poténcias indiferentes e também contrérias aos interesses ¢ hierarquias sociais — s6 podiam manifestar-se fora do casa- mento e como uma ruptura da ordem social. O consentimento s6 operava na vida livre dos solteiros e, no caso das jovens no- bres, nos galanteios de paldcio. Esse costume é um novo exem- plo da natureza do amor no Ocidente, extraordinitia invengao de nossa civilizagao. 5. Duque de Maura, op. ct 141 10, a idéia do amor no Ocidente esteve instituicao que descreve 6 duque de € outra coisa senao uma variante dessa regra univer- sal. A wansgressio do século XVII se manifestava dentro dos ca- nais estritos. Um era social: esses jogos erdticos eram 0 terreno dos cortesios. Ouro se refers a0 sexo dos protagonistas — havia uma diferenca bisica entre o que se permitia aos homens ¢ 3s mulheres. Essa diferenga estava determinada pela fisiologia, pois havia o perigo de que as jovens tivessem filhos dessas unides pré- maritais. A liberdade dos solteiros era quase irtestrita e daf a abundancia de bastardos; por outro lado, os galanteios das jo- vens nobres quase nunca tinham filhos como conseqtiéncia,seja porque a unio sexual nio se consumasse por intciro ou porque se acudia a priticas como o coitus interruptus e, em segredo, 0 aborto, Os galanteios de paldcio eram uma instituigéo que, si- multinea ¢ contraditoriamente, estimulava a liberdade erdtica € limitaya sua realizagio. Mas a contradicio era mais profunda: de tum lado, se fomentavam e, tacitamente, se aprovavam as infra- ges; de ourro, levantava-se um obsticulo insuperdvel & sua lega- lizagio. Os galas das damas eram casados e, pottanto, no caso de proctiagio, nfo se Ihes podia exigit a reparagao usual nesses ca- sos: 0 casamento, Natureza di sgalizava a transgres consagiava. (O8 Galanteios de paldcio sio um momento da histéria do crotismo do Ocidente. © cédigo da cortesia esté intimamente ligado ao da galanceria; ambos sao tentativas de regular, no espa- «0 fechado do palicio, o jogo das paixdes, sem afogé-las e limi- tando, até onde for possivel, os estragos de sua violéncia. A ori- gem da cortesiae da galanteria esta em Provenga: ali floresceu a ita Sociedade cortesi do Ocidente. Provenga elaborou, in- iada pelo erotismo drabe, a0 mesmo tempo que uma filo- sofia e uma fisica do amor, um cédigo erético: 0 amor corte s galanteios de paldcio reproduzem, embora de um modo { mais frivolo, a telagao das damas e dos trovadores dos séculos } XII ¢ XIIL. Ao reproduzi-la, a invertem: em Provenga as damas, cram casadas e 05 galas, solteiros. Essa diferenga é reveladora: Provenga exaltou a mulher, devolveu-the certa liberdade e a colo- costume: nao le- 142 Bo | cou numa situagio de relativa autonomia diante dos homens das insticuigbes masculinas, A derrota de Provenca e da heresia citara foi também a do amor cortés. Nas fogueitas acesas por Simén de Montfort ¢ pelos inquisidores dominicanos a Igreja catélica queimou, a0 mesmo tempo, os hereges albigenses e ali- berdade feminina. Essa diferenga entre os galanteios de paldcio e 0 amor cortés nao anula a semelhanga essencial: numa e outra so- ciedade esto presentes as duas caracter(sticas essenciais que dis- tinguem 0 exotismo ocidental de todos os outros, a transgressio €-2 idealizagio, Relacio fora do casamento ¢ unio sexual no ‘onsumada, 0 que pelo menos nfo produ filhos. Intensa eroti- zagio da vida social — as ceriménias e festas giram em torno do ceixo das relagées ilfcitas entre damas e galas — e, a0 mesmo tempo, sublimagio da paixio erética O platonismo insere-se de modo natural nesse contexto S0- cial: o amor ascende do corpo & alma — ¢ as almas, como séror Juana nio se cansa de repetir, nao tém sexo. Em sua origem, 0 ‘amor ocidental foi de maneira predominante homossexual. Pen- ‘so, claro esté, em Atenas e em Plato, que foi o primeiro a dar dignidade filoséfica e espiritual ao amor ao transformé-lo numa escala de conhecimento e forma de contemplacéo. Entre os poe- tas alexandrinos e romanos, criadores em propor¢io nio menor que Platio ¢ 05 fildsofos do mito € conceito do amor, a paixio crética é fundamentalmente heterossexual — embora também conhega a bissexualidade — e esté ligada aos citimes, quer dizer, 20 arbitrio da pessoa amada. Os poetas descobriram uma coisa que Platao ignorou: a liberdade da pessoa amada. A razio 6, pro- vavelmente, de ordem histérica: Alexandria ¢ sobretudo em sma, as mulheres das classes altas Conheceram uma liberdade e ‘auronomia — juridica, econdmica, social e erdtica — siveis em Arenas. Para Platéo a pessoa amada, até mesmo ‘em sua forma mais elevada, é um objeto, seja de prazer ou de contemplagio espiritual; para Catulo ¢ Propércio a pessoa ama- da é antes de tudo uma liberdade, um ser humano com o qual ‘stabelecemos uma relagio dificil e na qual nossa liberdade tam- bém se exercita e se compromete, Para Plato o amor € conheci- ‘mento; para os poetas, reconhecimento. 143 ‘A Antiguidade nos legou as duas notas centrais de nossa idéia do amor: amamos o corpo de uma pessoa, mas também e sobretudo sua alma; ¢ esa pessoa, por ser uma alma nica, é um ser livre € ndéo um objeto. A origem do amor tinico est4 nessa idéia da alma individual que reside em cada corpo. A hist6ria do amor esté indissoluvelmente ligada & histéria da alma, Ao desco- brir a alma — “essa gota de sangue estrangeiro na cultura gre- 2”, como diz Rohde —, 0s fildsofos descobriram o amor: 0s se- res humanos sio tinicos porque seu corpo é a casa (ou 0 cétcete) de uma alma, essa chama imortal. Para o mundo antigo a mu- Iher era um objeto ou uma fungio — cortesi, mie, pitonisa, O platonismo e sobretudo a poesia erética de Catulo e Propércio transformaram decisivamente a relago amorosa a0 transformat o objeto erdtico em um suj to com alma, isto é em uma pessoa possuidora de livre-arbiero. A imaginasio poética formulou, pela primeira vez, um dos ccnigmi i fastinado © Ocidenie e sido o tema de nossos ppoemas, romances, comédias ¢ tragédias: 0 amor é uma estranha combinacio de fatalidade e liberdade. Pelo poder de um filtro ou de outra magica qualquer que paralisa nossa vontade ou a muda, podemos apaixonar-nos por um ser indigno e até perver- 50, como uma ¢ outra vez diz Catulo. Assim, o problema da existéncia do mal e de sua terrivel atracio aparece também no amor, por mais escandaloso que isso parega a Dlatio © seus discf- pulos. Se o amor como fatalidade nos coloca diante do mistério do mal e do sofrimento — por que amamos nossa perdicao? —, © amor como liberdade nos depara com outro mistério nfo me- nos tertfvel: a transmutacio do sujeito em abjeto e a deste em sujeito. De novo: no amor procuramos nao tanto o conhecimen- to, como queria Plato, mas 0 reconhecimento — ao escolher 0 objeto de nosso amor, queremos que cle também nos escolha. A dialética da escolha erética faz do objeto um sujeito, ¢ ao inver- s0, O amor propée-se um impossivel, mas esse impossivel € a condigao do amor: fazer do vocé um eu e do eu um voc. Os frabes receberam a heranga platOnica, a reinsericam na mistica sufi e a transmitiram aos provengais. Pelos herdeiros de Provenga — Cavalcanti, Dante, Petrarca — essa concepgao che- 144 gaa Florenga neoplaténica dos Médici, onde, reformulada, se transformaré no alimento espiritual de todos os grandes poetas € romancistas modernos. O amor é uma experiéncia espiritual para n6s, os homens do Ocidente; mais ainda, é um caminho ‘que nos conduz.& contemplacio das esséncias ou & unio com a vverdadeira realidade. Por isso no é sin6nimo de procriagio, mas uma transgressio — também uma sublimagio — da ordem so- cial tal como a encarnam 0 casamento ¢ a familia. Embora origi- nada no corpo ¢ indissoluvelmente a ele ligado, a esséncia do amor ¢ espiritual. ‘Todos esses conceitos, tal como foram reclaborados pelo neoplatonismo renascentista e pela poesia ¢ pelo teatro hispini- co dos séculos XVI e XVII, reaparecem nos escritos de séror Juana, Por exemplo, o ideal do amor como uma paixo espiritual quic transcende os sexs ja Se encontia fas epistolas de Marsilio “Ficino aos seus amigos. Sob essa perspectiva parecerio menos es- tranhos para os leitores modernos os apaixonados poemas de Juana Inés a Maria Luisa de Gonzaga, condessa de Paredes. Embora inspirados numa filosofia do amor que remonta a Provenga, os galanteios de palacio estavam destinados, mais que a ilustrar uma idéia do amor, a introduzir um pouco de ordem numa sociedade fechada na qual individuos de ambos os sexos eram obrigados a conviver com certa intimidade. Mais que uma ideologia do amor, era um cédigo de convivéncia erética. \ fungio dos galanteios de paldcio & parte do que se podia cha- ‘mar de higiene passional da sociedade, De certo modo as insti- tuigdes dessa indole eram (e sio) a contrapartida e 0 comple- mento da prostituigéo. Todos os ritos eréticos sio sexualidade socializada; os galanteios de palécio eram sexualidade transfor- mada ém teatro: balé passional, ceriménia sexual que evocava as evolugies dos paves reais, da mesma forma que 0s torneios eram uma metifora dos combates entre os cervos. Os torneios correspondem & sociedade feudal em sua época final; o8 galan- ieios de paldcio representam o mundo da sociedade cortesi dos séculos XVII ¢ XVIII. Num caso, alegoria do combate erético; no outro, danga dos astros € planetas masculinos e femininos em torno do rei-sol. 145 Saeuaiianaitiiemes| Durante todo o rempo em que foi dama da vice-rainha, Juana Inés participou desses ritos mundanos; antes de transformé-los em conceitos de seus poemas, foram experiéncias vidas por ela. Aqui convém eliminar outro dos erros nos quais, incorreram muitos de seus biégrafos: sua condigio de dama da vice-rainha nio Ihe podia oferecer uma possibilidade de casa- mento, Os Mata a colocaram no palécio vice-reinal seja porque guetiam se livear da responsabilidade que significava té-la em casa ou pata que Juana Ins se refinasse na corte, em hipstese al- guma para que se casasse, O casamento estava excluido porque 10 gals quase sempre eram casadas, Além disso e sobretudo, os ccasamentos se acertavam entre os cheles das familias e o eixo das nnegociagoes eta uma coisa que nfo tinha Juana Inés: um dote, posigio, no a situagio, A primeira se deve aos métitos préprios: beleza, discrigio, elegincia; a segunda pertence as hierarquias s0- ciais: nome, categoria, fortuna. A primeira é passageira; a segun- da se inscreve na ordem imutével da sociedade cortesi. Juana Inés se movia com rapidez nos torvelhinhos palacianos ¢ logo passou a ser um dos seus centros. Essa preeminéncia nao 36 se deve a qualidades como, me atrevo a dizer, a uma das caracte- risticas menos simpéticas de seu cardter: seu gosto pelas bajulagdes e sua predilesio plas nada discretas adulagées dos poderosos. Essa infeliz.inclinagao é, além disso, uma nova prova de seu narcisismo e sua coqueteria; também, de sua inseguranga psiquica. Por sua vez, essa inseguranga fincava suas raizes em suas circunstincias sociais: a irregularidade de seu nascimento, a falta de recursos e, sobretudo ¢ mais decisivamente, a auséncia de familia. Se é verdade que a adlulagie Mlorcace as suciedades hiierérquicas, também o é que os aduladores sio recrutados entre aqueles que nao tém um lugar fixo na sociedade. 7 Suas artes diplométicas, sua beleza, vivacidade e seu jeito naturalmente risonho néo explicam inteicamente o segredo de sua populatidade. A inteligéncia ¢ 0 saber foram as chaves que Ihe abtiram as portas da sociedade vice-teinal. Desde muito jo- vern revelou extraordinéria mestria para versificar. Seus dois pri- \meitos poemas datados,escritos em seus anos cortesios, antes de 146 7. professat, quando tinha uns dezoito anos, surpreendem pela ra ea seguranga do trago. Eu me refiro a0 sone- to fiinebre em homenagem a Felipe IV (1666) ¢ 0 dedicado 20 presbitero Diego de la Ribera (1667). Nos Empeos de una casa clase retrata no relato que faz-dona Leonor: Inclinéme alos estudios desde mis primeros aos ‘on tan ardientes desvelos, con tanansiosos cuidados, que teduje a tiempo breve fatigas de mucho espacio. Conmuté el tiempo, industries allointenso del trabajo, ddemodo queen breve tiempo cracl admirable blanco de codas las atenciones, deral modo, quellegaron avenerar como infiso Jo que fue adquitio lauro Era de mi patria toda objeto venerado deaquellasadoraciones que Forma el comin aplauso; y como lo que deca, fuese bueno o fuese malo, nicl rostrolo desluca, rill dessraba el garbo, legs la supersticion populara empefo tanto, queya adoraban deidad clidolo que formaron. Vol la Fama parera, dliscuriéreinos extafios, 6. Niimeros 185 €202, 147 t yenla distancia segura credits informes fils. Lapasin e puso anceojos detan engafiosos grados, «que amis moderadas prendas agrandaban los amafios* E notivel, & parte a vaidade que revelam esses versos, a lu- cide de séror Juana diante da fama e seus feitigos amb{guos: o home € © renome sio a0 mesmo tempo béncio ¢ condenasio. Esse tema é um dos cixos da Respuesta a sor Filotea de la Cruz ¢ aparece também em alguns de seus melhores sonetos ¢ roman- ces. Calleja relata um curioso episédio que corrobora 0 que diz séror Juana de si prdpria. Embora o relato de Calleja parega ser ‘uma transposicio do episédio do menino Jesus diante dos dou- tores do templo, possui um valor indicativo até mesmo se, em parte, assemelhe-se a uma piedosa invengio. ‘O marqués de Mancera lembrou-se sempre de Juana Inés, € muitos anos depois de ter deixado 0 México contou a Calleja que... bem, & melhor transcrever o que diz o jesuita: ( senhor marqués de Mancera, que hoje vive e viva muitos anos — CClleja escreva isso em 1700, cinco anos depois da morte de s6r0r uae nna —, contou-me duas vezes que, tendo grande admirago por Juana nds, a0 nla ver canta varedade de noticias (.) quissaber sess sabedoria to admirsvel era infusa ou adquita ou aici no-narara, rewni wm *Ineineime aos estdos/desde os meus primeitos anoslom ti ardentes deve loseom to ansiososcuidados, que reduzia tempo brevefadiga de muito e pavo/Comuteio tempo, industriassao intenso do eabalhoJde modo que em breve tempofers o admicivelalvo/de todas a aengSen/de el modo, que che- sgaram/a yenerar como infuso/o que foi adquirido laurel ra de minha péecia toda objeto venerado/daquelas adorasBes/que formam o comum aplausosfe «como o que dizia/fosse bom ou fosse mau.tnem 0 rosto 0 deslutia/nem 0 desirava 0 garboJchegou a supersi¢io/popular a empenho tantoJque j ado- ravam a deidadefo dolo que formaram.JVoou 2 Fama Fladra/dscoreeeinos cettanhos.Je na distincia segura/screditou informe falsos/A paixio colocou Sauloa/de tio enganososgraus/que das minhas moderadas prendas/auments- vam o tamanho (N. do 148, liam seu palicio quantos homens professavam letras na Universidade e ‘na Cidade do México. O miimero de todos chegaria a quarenta € nas profisséeseram vitos, como tedlogos,esctvies, flésofos, matemsticos, historiadores, potas, humanists mio poucos dos que por alusivo gra- ‘cjo chamamos‘terelios, que sem ter cursudo por destino fculdades, ‘om seu muio talento e alguma aplicagio, costumam fier, nfo.em Eo, _muito bom jen de tudo (..) Coneorreram, pois, no da determinado a0 certame de io euriosa admiragio; testemunha 0 senhor marques, que info cabe em humano juito acreditar no que viu, pois dia que a maneira de wm goleto real —trastado as palavras de Sua Exceléncia— se defende- ria de alguns barguinhos gue sobre els investiram, asim se desembaragava uaa Inds das perguntas,argumente ¢réplicas que tanto, cada toma em sua clase, the propuseram. Que estudo, que entendimento, discurso ¢ me- séria seria mister para isso? Calleja conclui dizendo que Juana Inés confirmara em uma de suas cartas que era verdade o que lhe contara 0 marqués de Mancera. ‘Nese momento, justamente quando seu saber ¢ talento conquistam a admiragio dos doutos e cortesios, adulada por ser linda e discreta, aos dezenove anos de idade entra como noviga no convento de San José de las Carmelitas Descalzas. A Ordem era severa ¢ Juana Inés, assustada, regressa logo depois ao mundo. Seus bidgrafos catdlicos afirmam que desitiu por razbes de sate, mas nfo existe um tinico texto ou documento que prove essa su- posisio, salvo uma alusio, na verdade vaga, do padre Oviedo, 0 bidgrafo de Nufiex de Mirada, Trata-se, outra ver, de uma lenda piedosa. A verdade é que Juana Inés nao quis ou no péde supor- tar a aspereza da rege. Calleja omite esse episédio ¢ se nao fosse por Luis Gonadlez Obregén — outro dos pesquisadores que nos permitiram avangar no conhecimento de sua vida — ainda igno- rarfamos que esteve trés meses nas Carmelitas. Se o rigor da regra a desanimou, nao a fez mudar de idéia: um ano e meio mais tar- sem duvidar e pensar muito, ela professou definitivamen- yaa numa ordem conhecida pela lassitude e brandura ina. Em 24 de fevereiro de 1669, vestiu 0 habito no de San Jerdnimo. Ta fazer vince um anos. 149 4. A PROFISSAO Todos os que se aproximaram da figura de séror Juana fize- ram a mesma pergunta: por que, quando nada em sua vida era indicio de uma vocagio religiosa c ela estava rodeada da admira- fo geral, abandona a corte ¢ se encerra num convento? As res- postas sio tio variadas quanto os intérpretes. Uma delas, a mais popular, consiste em atribuir a decisio de Juana Inés a um amor infeliz. A hipdtese do desengano amoroso compreende uma gama muito ica de interpretagées: 0 amado morreu; o amado era inacesstvel, seja pela pobreza de Juana Inés, por sua origem bastarda ou por outra razo semelhante; 0 amado era um ser in- digno, vulgar; 0 amado a abandonou, Todas essas suposigées € outras da mesma natureza sio variances do velho tema romanti- co do Obstéculo. E um dos ingredientes — melhor dizendo, € 0 ingrediente — da imagem tradicional do amor. A idéia do amor. como Transgressio corresponde necessariamente, como seu com- plemento, «do amor tomo Obstaculo, Essa interpreracéo da de- [cisto-de séror Juana foi um equivoco sentimental que imediata- mente se transformou num erro critico: ler com olhos romanti- cos um texto barroco, Nenhum de seus contemporincos leu seus poemas como um documento. Essa interpretacao aparece pela primeira vez nas paginas entusidsticas que dedicou & sua obra Marcelino Menéndez Pelayo. Depois das incompreensées dos séculos XVIII ¢ XIX, 0 juizo do critico espanhol foi uma brithante tevalotizagio; a0 tocar o tema dos poemas amorosos, ele opinow que era “dificil que deixasse de amar e ser amada”, Chéver inven- tou uma Juana Inés plena de um amor puro ¢ espiritual por um homem indigno; ao ver que seu amado a queria com um afeto ‘mais terreno, renunciou e fez os votos de freira. Juana Inés de 150 Ezequiel A. Chéver, com norério esquecimento do desenfado re- alista de alguns sonetos ¢ romances, mais que uma mulher é uma casta enteléquia, habitada pelo génio cutelar da Faculdade de Altos Estudos ao comesar o século. Alberto G. Salceda acre- dita que ¢ posstvel extrair um tratado de amor dos escritos de s6- ror Juana — coisa perfeitamente ccrta — esse tratado reflete sua expetitncia vital: neste caso trata-se mais de uma suposicio. Segundo Salceda a leitura dos poemas de tema erético, dispostos conforme uma ordem de sua invengio, nos daria a chave de sua vida amorosa durante os anos em que viveu na corte. E por que nfo depois, no convento? Os amores de freiras nao eram desco- nhecidos... A histéria que imagina Salceda é convencional: 0 p meiro amor foi Silvio, sujeito indigno e do qual ela se afasta; aparece entio Fabio, o grande amor. Mas ele morre e daé saem as endechas e liras em que Juana canta a seu esposo morto. (Es- poso na acepcio de noivo.) A hipétese ¢ gratuita e ingénua. Nio cotresponde &s idéias de s6ror Juana sobre o amor, mas as de Salceda. impossivel, alegam muitos criticos, que Juana Inés tenha vivido na agitacéo da corte cinco anos — os mais impression‘ veis da vida de uma mulher, quando seu ser inteiro se abre aos sentidos ¢ 0s sentidos se abrem a0 mundo exterior — ¢ tenha _saida ilesa, Eu jé disse que seria absurdo descartar a possibilida- de de escindalos ¢ amorices, E provavel que se tenha apaixonado ow que tenha acreditado, como acontece nessa idade, estar apai- xonada, Mas é imposstvel que esses amores, infelizes ou nao, profundos ou frivolos, tenham sido a causa de sua profissio de f. (Os casamentos se arranjavam entre as familias € nos enlaces eram determinantes nao a vontade dos jovens esposos, mas as conside- ragGes sociais e materiais. Apaixonada ou nao, Juana Inés no ti- nha dote nem mesmo familia. Quem era ¢ onde estava seu pai? E os galanteios de paldcio? Esses jogos, como jé vimos, nao sé tinham por finalidade o casamento como, a rigor, o exclufam. A indole desses jogos, ceriménias de iniciagio erética, no sentido de ‘titos de transite’, tampouco era muito propicia ao que cha- mamos hoje de amor romantico. O testemunho de uma das passagens autobiogréficas de Los empeftos de una casa talvex me 151 poupe de uma longa demonstragio. Por meio de dona Leonor, Juana Inés descreve indirecamente sua situagao na corte: Entre esos aplausos yo, con la atencién zozobrando entre anta muchedumbre, sin hallr seguro blanco, no acertaba aamaraalguno, vigndome amada de tantos. Sin temor en los concutsos defendlia mi recato «on peligrs del peligro yon el daio dl dato. Con unaafable modestia igualando el agassjo, uitaba lo general, lo sospechosoal agrado.* ‘A descricio de Juana Inés nao pode ser mais franca e con- firma o que eu disse sobre os mocurs do palécio vice-reinal. Em nenhum momento fala de casamento ou evoca sequer essa possi- bilidade; seu jogo se reduz a ‘defender seu recato’. Um jogo peri- goso porque consiste néo em recusat inteiramente, mas recusar atisando 0 fogo. A natureza dos galanteios de paldcio torna duvi- dosa a existéncia de um grande amor infeliz. Também a natureza psicoldgica de Juana Inés vai contra essa hipétese. Nao devemos esquecer, além de seu extremo intelectualismo — adverso-a vida conjugal —, sua atitude diante de homens e mulheres. Os pri- meiros, em seus poemas, séo fantasmas, sombras sem corpo; as segundas, presengas reais. Escrevi, em meu pequeno ensaio de 1950, que se “fosse excessivo falar de homossexualidade, nao 0 “ Enure estes aplausos eu,/com a atengio sogobrandofentce tanta mulkidso,! sem char seguro alvo,/ndo acertava a amar alguém/vendo-me amada de tantos./ Sem remor nos concursos/defendia meu recatalcom perigas da perigole cam o ano do dano.iCor uma afivel medésia igualando a homenagem,ftirava do tgerallo lado suspeito do agrado (N. do T), 152 seria advertir que ela prépria nfo ocultava a ambigitidade de seus sentimentos”. Sobre isso é dificilimo ter uma idéia clara. Deve-se ter em conta a condigao da mulher em seu século e em seu meio. Nao se colerava que uma jovem solteita, sobretudo nas condig6es peculiares de Juana Inés, exibisse em puiblico seu amor por um homem sem perder imediacamente seu crédito € bom nome; ao contratio, sim, parece I{cita a amizade amorosa entre pessoas do sexo feminino desde que fossem de categoria elevada ¢ seus sentimentos, ideais. | O argumento fundado nas tendéncias profundas de seu ca- | sdcet pode parecer gratuito e até fantéstico. Esclareco apenas que | aexisténcia de tendéncias reprimidas ¢ sublimadas, ignoradas ou no por ela prépria, nao exclui a possibilidade de amor e amo- ricos com um homem ou muitos. Outra vez percebo em sétor Juana uma ambiguidade em sua relacio com algumas amigas, | mas essas inclinag6es, tal como foram expressadas em seus poe- { mas, no sio sindnimos de lesbianismo, mas de sentimentos mais complexos. Gide dizia: “S6 urna mancira simples de consi- i derar os sentimentos faz acreditar que existam sentimentos sim- ples”. A inegivel atragio que sentiu por algumas mulheres pod. ter sido uma sublimagao de uma impossivel paixéo por um ho- mem, que sua condigZo de freira Ihe proibia. Mas em seus anos de dama da vice-rainha, néo poderia ter tido uma paixio por al- guns dos senhores que feeqitentavam a corte e suas festas? Jé afi mei que, embora me pareca duvidosa a existéncia dessa paixio, nao a descarto inteiramente. Nao é impossivel que Juana Inés se tenha apaixonado enquanto viveu no palicio, mas esse amor, fe- liz ow infeliz, néo pode ter eido a causa de sua profissio de £é, Ela estava incapacitada para o casamento pela falta de dote, pai e nome. Por que nao aceitar o que ela prépria nos diz, ow seja, que no sentia inclinagio pelo estado matrimonial? Deve-se distin- guir com cuidado, como se fazia na sua época, amor e casamen- to. Tendemos a confundi-los, enquanto que para Juana Inés seu século eram coisas diferentes. Um amor, em sua situagio, nfo podia levé-la a0 casamento. Além da falta de dote e pai ha- via outro impedimento: sua nula vocagio para o casamento. Te- mos que aceitar sua confidéncia. Séror Juana pertencia a uma 153 classe de mulheres que, se podem eviti-lo, fogem do estado ma- trimonial. A Antiguidade nos deixou dois arquétipos femininos, Vénus ¢ Diana. £ claro que a personalidade de Juana Inés estava mais préxima da segunda que da primeira — Diana nao é a deusa do casamento, mas da vida casta e solitéria dos cagadores. Tudo isso confirma o que jé indiquei antes, ou seja, a existéncia real ou suposta de um amor ou virios nfo pode ter sido a causa decerminante de sua decisio. HE outro argumento, ndo menos decisive: que documen- tos temos? Nao existe nenhuma carca nem algum outro indicio que pudesse ser uma prova vilida desse grande amor. Nenhum dos contemporaneos de s6ror Juana sequer insinuow a existéncia de um amor incégnito. A esse respeito, como é natural, o silén- cio da poeta € absoluto. Também 0 € 0 de Calleja, E verdade que hé poemas amorosos. Séo muitos e alguns bastante intensos. To: dos revelam um perfeito conhecimento do que poderfamos cha- mar de dialética do amor: citimes, rompimentos, auséncias, es- quecimentos, correspondéncia. Duas razées me impedem de aceitar 0 testemunho dos poemas. A primeira: desconhecemos as datas desses romances, endechas e sonetos. A segunda: a poesia dessa época nao é confessional. A sinceridade era um valor para 08 romanticos e o € para os modernos; nao o foi para os poetas do século XVII. A poesia barroca apresenta a0 leitor esquemas | | arquetipicos do amor das paixées, mas ele no deve nem pode U inferir que esses textos possuam um valor confessional. © conhecimento erético que revelam os poemas ¢ as co- médias de s6ror Juana é, tanto ou mais que o resultado de uma experiéncia, um saber codificado pela tradicéo: uma retérica, uma casuistica ¢ até uma légica. Justamente por isso se pode fazer um tratado do amor com os poemas de s6ror Juana — sfo conceitos e arquétipos, nao confissoes. E verdade que em vérios poemas hé certos destaques que parecem chegar perto de uma confissio, Em geral, trata-se de poemas nio de amor, mas de solide ¢ nos quais o tema do desengano — entre estdico ctistio — € predominante. O com sensual, apaixonado, dire- to, no est4 nos poemas de amor, mas, quase sempre, nos de amizade amorosa dedicados a Lysi ¢ outras amigas, como essa 1s4 encantadora Belilla de umas endechas inesquectveis (71). Co- incidéncia ou velada homenagem — Belilla é 0 nome de sua protegida, sua sobrinha, a novica Isabel Marfa de San José, fi- tha natural como ela, a quem recolheu ainda menina e deixa, depois de morca, a quantia de dois mil pesos em outro que ti- nha depositados no convento. Entre os poemas de amor as coisas divinas — Méndez Plancarte os chama, impropriamente, de mfsticos — existe um romance (56) que contém versos que muitos criticos consideram uma verdadeira confissio Yo meacuerdo, oh nunca fuer! que he quetido en otro tiempo lo que pasé delocura ylo que excedié de extremo; ‘Mas como eraamor bastard, y de contrarios compussto, fue ficil desvanecese de achaque desu ser mesmo Em seguida, s6ror Juana compara esse amor feito de con- trdtios com o divino. Esses versos so impressionantes e eu me inclin: a vé-los como uma auténtica confissio, mas tenho uma diivida: nao se trataria de uma variance de um dos arquéti- pos da poesia religiosa da época? O tema é tradicional ¢ a ma- neira de traté-lo também. Por isso, como testemunho de um amor, seu valor € duvidoso. Pfandl o utilizou para provar que, ‘embora Juana Inés, obscuramente, tivera consciéncia de seu con flico psicolégico, néo péde transcender “sua situacio-Edipo”. Aquilo que quis “em outra época e passou de loucura’, aquilo que “era amor bastardo e de contrétios composto”, nao é, segun- do 0 critico alemio, mais que uma maneira de aludir & imagem paterna — Juana Inés “se considera no lugar da mae”. * Eu me lembro, oh nunca fose/que quis em outro tempafo que passou de lou- curafe o que excedeu de extremo:/Mas como era amor bastardo,/e de contré- ios compost! foi Feil desvanecer-seldo achaque do se ser mesma (N. do T), 155 Dario Puccini pensa que esse poema “tem o caréter de uma profissio de fé e nao faz outra coisa senio percorrer o itineritio de outros célebres caminhos de perfigao, nos quais da representacio do méximo amot humano se passa a0 do méximo amor divino”. Com efeito, 0 amor humano é muitas vezes, na poesia mistica, 0 ppasso obtigatério na diregio do amor divino, com a ressalva deci- siva de que em séror Juana nio existe transe mistico. Contudo, Puccini, como eu, duvida: ele parece perceber uma espécie de am- bigitidade entre a profissio do amor a Deus, tema do poema, 0 surgimento sibito de uma lembranga. Oscilagao entre a ficcéo aque exige o género ea confissio de alguma coisa vivida. Sinto que essa interpretagio é na verdade frégil: nao se baseia em nenhum dado real, s6 numa impressio, Nao é suficiente? O romance intei- ro me desconcerta — ha fragmentos acentuadamente teolégicos, outros, que se ajustam 20 padrio dos versos de amor a lo divino e outros, ainda, em que o acento ¢ as expressGes parecem de um po- ema de amor profano. £ estranho: Vossler considerou esse roman- ce “quase prosaico e irdnico”. Nao entendo essa opinio, pois nfo vyejo nada irdnico nem prosaico nesse poema, mas uma mistura inquietante de erotismo profano, amor sagrado e escoléstica Mais adiante Puccini {@ literalmente a expresso ‘amor bas- tardo’ do quarteto seguinte e pensa que s6ror Juana alude & sua origem ifegitima. Reaparece 0 Obstéculo numa de suas manifes- tages prediletas: a bastardia. A interpretagéo de Méndez Plancarte ¢ mais fiel ao sentido do poema e & linguagem da épo- cae da propria s6ror Juana: “Amor bastardo nfo por ser ilicito ou desordenado, mas porque frente ao Divino todo amor parece baixo...” Além disso, por que e para que séror Juana aludiria aqui & sua bastardia, ela que nunca a menciona? Em suma, nem sequer nesse poema podemos afirmar com certeza que estamos diance de uma histéria pessoal vivida. Seus poemas erdticos so ilustragGes de uma metafisica, estética e retérica que vem da poesia provengal e de Dante, sio recolhidas por Petrarca e inspi- ram aos poetas do Renascimento e da Idade Barroca. A maioria dos criticos cat6licos pensa que Juana Inés esco- lheu a vida religiosa por auténtica vocagio, quer dizer, porque 156 ouviu o chamado de Deus. E evidente que Juana Inés era uma catdlica sincera, Nao esta em jogo sua ortodoxia. Mas esquecer que nessa época a vida religiosa era uma ocupacio como as ou- tras seria esquecer muito. 3s estavam cheios de Iheres que haviam vestido habito nao por responder a um cha- “mado divi as 86 por consideragoes ¢ necessidades munda- ‘has; seu caso_nio era distinto dos das jovens que hoje procuram uma carreira que a0 mesmo tempo thes dé sustento econdmico ¢ ‘espeitabilidade social. A vida religiosa, no século XVII, era uma profissio, Isso néo implicava nem descrenca nem falta de teligito —-a maioria dos clérigos freiras eram catdlicos sinceros e mo- destos funciondtios da Igreja. As mulheres vestiam os habitos porque, seja por acertos familiares, falta de fortuna ou qualquer outta razio, nao podiam casar-se; também as que estavam so7i- nnhas no mundo e sem um apoio masculino. O convento era uma conveniéncia. Mas nem todas podiam professar para abracat a vida monidstica era preciso ter um dote € pertencer a uma familia conhecida. A ceriménia da tomada dos votos possufa solenidade — os padrinhos, os convidados, a isica, as flores. As mulheres pobres — vitivas, ris, abandona- das — refugiavam-se nos ‘recolhimentos’ fundados nas principais cidades pela Igreja e por alguns ricos caridosos. O bispo de Puebla, Manuel Ferndndez de Santa Cruz, fundow duas casas para “muitas mulheres pobres que desejavam guardar intacta a flor de sua pureza (.,), mas temiam, timidas, perdé-la ou por serem mui to pobres ou belas...”! Na biografia de outco benfeitor podemos ofsmo e a grandeza ler 0 seguinte elogio: “Nao se pode negar oh da obra de enclausurar mulheres que, (...) no podendo entrar nos mosteiros, choravam no século em manifescos perigos (..)”* ‘Vestir 0 habito era uma solugio corrente naquela época. O caso de séror Juana nao foi excepcional: em sua prépria familia, além de sua sobrinha Isabel Maria de San José, duas das filhas de sua -meia-irma também professaram no San Jerénimo. [Miguel de Totes, Dechade de principe elec, Puebla, 1716 2.Gieado por Dorothy Schons, em “Some obscure points in the life of sor Juana Inds de la Cruz", 1926 Nada na vida anterior de Juana Inés revela uma particular ‘igao religiosa. Durante os anos em que foi dama da a ela S€ distifiguiu no por sua devo¢io, mas por sua beleza, seu talento e saber. Tampouco, e deve-se dizer isso, mos- trou excessiva devogao durante os vinte e seis anos que passou no San Jerénimo. Nesse sentido, a reconvengao de Fernandez de Santa Cruz ¢ as reprimendas, muito mais severas, de Niifiez de Miranda, eram justificadas. O préprio Calleja nfo tem outro re- médio a nao ser reconhecer, mesmo contra a vontade, 0 jeito té- pido de séror Juana: “Vinte e seis anos viveu na Religio sem os retiros a que obriga o estrondoso e bom nome de extética, mas com o cumprimento substancial a que obriga 0 estado de reli- giosa...” O padre Oviedo vai mais longe e relata que constance- mente scu confessor, Niifiez de Miranda, a aconselhava que de- dicasse menos tempo “A publicidade ¢ continuadas correspon- dencias de palavras e por escrito com os de fora...” A Respuesta a sor Filotea de la Cruz corrobota 0 dito por Calleja e por Oviedo. Com tudo 0 que acabo de expor, por raz6es mais Faceis de entender do que de justificar, a maioria dos riticos catélicos considera a decisio de Juana Inés de tomar os votos a expresso de um conflito psiquico de indole espiritual que se resolveu uma auténtica rendincia 20 mundo, A questio € central porque estd intimamente ligada a outro enigma de sua vida: a crise de ‘seus anos finais. Robert Ricard ¢ 0 critico que com maior rigor ¢ cocréncia sustentou a hipétese da vocacio religiosa. Para o histo- riador francés, 0 caso de séror Juana é semelhante ao de Pascal: do mesmo modo que, em sua primeira conversio, Pascal aban- dona uma carreira mundana para ascender °s order do espiito’, s6ror Juana deixa a corte vice-reinal com um afi de conhecer; em sua segunda conversio, Pascal renuncia & ciéncia para ingressar ‘na ordem da caridade’ e séror Juana renuncia ao conhecimento por amor a Deus. Ricard incorre nesse erro de raciocinio que se chama petigio de principio — para provar que houve uma pri- meira conversio, dé por consumada a existéncia de uma segun- da, Na verdade, a rentincia ao saber, ao fim de sua vida, nio foi um ato voluntétio; foi, a bem da verdade, como veremos mais adiante, uma humilhagio imposta pelas autoridades eclesiésticas 158 T depois de um combate de mais de dois anos. Quanto a ‘primei- sa conversio’, Juana Inés, a0 contrério de Pascal, nao podia re- rnunciar a uma carreira mundana que néo sozinha e desvalida E impossivel conhecer estado de animo de Juana Inés durante 0s anos imediatamente anteriores & tomada de votos ‘Mas nao seria impossfvel tratar de reconstrui esse momento ¢ cencrever as razdes que precipitaram sua decisio. A obra Los empenos de una casa pode dar-nos, de novo, alguma luz. A situa- gio de dona Leonor, tal como aparece na primeira jornada, é juma transposicao da de Juana Inés na corte: linda, discreta, cul- ta transformada no ‘admirdvel alvo de todas as atengées’. Juana Inés e Leonor sio pobres e as duas meio érfis. Aqui se rompe a simetria —a Leonor Ihe falta a mie, Juana nao tem pai. Essa di- ferenga marca a direc oposta que tomario suas vidas. Juana Inés vive sem a protegao de um homem; Leonor é amparada por seu pai ¢, quando sua honra periga, este nao vacila em exigir re~ paragio pelo casamento ou com sangue. Fiéis a seus destinos si- metticamente opostos, Leonor casa e Juana Inés vai para um convento. A auséncia do pai teria sido assim tio determinante ou a comédia de séror Juana, mais que uma transposigio de sua vida, € uma projecio de seus desejos e de suas obsessbes? Na situagio de Juana Inés durante aqueles anos, vejo trés circunstancias basicas e permanentes ao lado de outras que, em- bora transitérias, no final nao foram menos decisivas. As circuns- a. Bra uma jovem tncias basicas sio a bastardia, a pobreza e a auséncia do pai. Nenhuma delas pode ter sido a causa da tomada de votos, mas todas contribuiram paderosamente para essa resalucio. H4, além disso, uma certa hierarquia nas causas. A menos importan- te foi, talvez, a bastardia, que nfo impediu que nenhuma de suas irmas se casasse. Embora a pobreza fosse um obstéculo maior, nem por isso era insuperdvel, como mostra, outra ve2, 0 exemplo de suas irmas. Contudo, existe um contraste liquido ¢ certo entre a sorte das filhas de Diego Ruiz Lozano, homem de posses, e as do fantasmagérico Pedro Manuel de Asbaje: Inés Ruiz Lozano casa com um médico da Universidade e sua irma Antonia com um fazendeiro; Marfa ¢ Josefa de Asbaje, abando- 189 nadas por seus maridos, vivem vidas irregulares e tém filhos de diferentes homens. Pedro Manuel de Asbaje era um nome; Diego Ruiz Lozano, uma presenga real. Seu testamento o revela ‘como um patriarca amante de seus filhos ¢ zeloso com sua fa- zenda, Quando suas filhas se aproximam da puberdade, ele as afasta da mie e as coloca no convento de San Jerénimo, sob os cuidados da meia-irma Juana Inés. Mais tarde, ele casa as filhas ‘com homens de bom nivel. A diferenca entre a condicao das fi- Ihas de Ruiz. Lozano ¢ a das de Asbaje deve ter impressionado Juana Inés. E compreensivel que os exemplos de sua mic ¢ suas ‘duas irmas tenham atemorizado Juana — ento era isso que es- perava uma mulher sozinha no mundo? Com mais realismo que seus biégrafos modernos, 0 padre Calleja expe sucintamence sua classificagio: “O bom rosto de uma mulher pobre é uma pa- rede a ra qual nfo existe teimoso que no queira deixar No testamento de séror Juana (23 de fevereiro de 1669) h4 uma passagem comovente. Nesses documentos as novigas re- rnunciavam aos seus bens, e Juana Inés diz: Declaro ter em poder de dona Isabel Ramee, minba me, dents e qua renta pesos de our comum em reais, cuja quantidade me deu e me doou capitto don Juan Sentis de Chavarrla: declare isso como meus bens, Era essa toda a sua fortuna. E quem era aquele capitio que Ihe preseneou ees pesos e que relagio tinha ele com Juana Inés cou outras mulheres de sua familia? Nenhuma. Como Velézquer de la Cadena, era um homem rico e caridoso, Na “he aoe historiador Rubio Mafé dedicou & fundacio de colégios € insti tuigdes de ensino durante o perfodo vice-reinal, aparece a figurs do capitéo Chavarria, cavalheiro da Ordem de Santiago, como o generoso benfeitor do Colégio de San Gregorio, estabelecido pe~ los jesuitas para a educagio da nobreza indigena.? Rubio Mahé cita 0 relato de Berganzo: “Comovido pelas vozes harmoniosas e Sg Tie Matti clea de rio de a Bp hci cand vg de ne pt ‘See Oia pal ce wont Men 98 GCE ON 160 iam jnocentes dos pequeninos indiozinhos que entoavam cintioos de Jouvor na igreja de Nuestra Sefiora de Loreto", que servia de ca- pela ao Colégio, o capitio Chavarria decidiu entrega tinea ¢ Quatro mil pesos 20 seu confessor, o padre Anconio Nifiez de Miranda, para “remediar a pentiria em que vivia San Gregorio”.* Chavarria fer outras doagées, tanto para obras pias como cducativas, todas por meio de seu diretor espiritual, 0 jesuita Niifer de Miranda, entre elas, a de sua fazenda de San José de Geulman, para “sustento dos padres-linguas”, como enti se di- via, do proprio colégio. A mengio de Chavarrla no testamento de s6ror Juana confirma o dito pelo padre Oviedo sobre a inter- vencio decisiva de Niiier de Miranda. O jesufta ado s6 liqui- ow os escriipulos morais de Juana Inés como obteve os donati- tos materiais que exigia um ato como a profissio de fe Enquanto viveu no palicio, Juana Inés deve, muitas vezes, ter feito esta reflexio: nao tenho fortuna, nem nome, nem pai. Era dama da vice-rainha, mas os vice-reis duravam poucos anos tem seus cargos € iam embora para ndo mais voltar. Depois dos marqueses de Mancera, 0 que aconteceria e quem viria? Voltar om os Mata ¢ viver de arrimo com essa rica familia? Seré que a aceitariam de volta? Além disso, como esquecer que Juan Mata a colocara no pakicio, se no para dela se livrar, pelo menos com propésito de que, dona de seus préprios recursos, ela abrisse seu taminho no mundo? Quando Juana Inés, depois de passar trés meses sob a austera regra das carmelitas, muda de opinido ¢ vbandona o convento, nio volta & sua casa nem & dos Mata, mas to palicio, 2 lado da marquesa de Mancera. Isso indica que sua Minken casa era o palicio. Casa proviséria ¢ a qual teria, win dia, {que deixar quando os Mancera fossem embora ‘Uma e outia ver suas reflexes devem té-la conduzido a0 mesmo lugar: is portas do mosteiro. Sua protetora, Leonor Carreto, provavelmente a animou a tomar essa decisio, © fato de que ela e seu matido tenham assistido & badalada cerim@nia GA Toacede Rubio Mahé & 0 capitulo de Manuel Berganto no Diceonariowni- aaa de historia e geografta (México, 1853) consagrado aos colégios de San Teo ySan Pablo, San Gregorio y San ksfnso 161 de vestir 0 habito € um indicio de gue favoreciam 0 projeto e de que, provavelmente, o facilitaram. A influéncia dos Mancera de- vyemnos acrescentat a de outras pessoas que a rodeavam: quem, nesse meio, podia achar légico ou cruel que uma jovem de vince anos, bonita ¢ desvalida, se fechasse num convento? Nao sei se ela pensou em outra circunstincia — nfo era ficil entrar para um convento e, se Juana Inés nfo tivesse passado esses anos no palicio vice-reinal, talvez.néo teria encontrado um padrinho que Ihe bancasse 0 dote. Podemos até afirmar, sem muito exagero, que o palicio foi o e:caldo rumo ao convento. Talvez seus familia- res a tenham deixado com a vice-rainha tendo em mente que, por meio de sua protegio e suas relagées, Juanda enconcraria um padrinho € um benfeitor. ‘A pessoa que com maior empenko, sagacidade ¢ autoridade a impulsionou, dissipando seus temores ¢ suas duividas, foi o pa- dre Antonio Niitez. de Miranda. Homem de cultura teolégica, professor de filosofia e membro do tribunal da Inquisicio, o jesul- ta Niifiez de Miranda era o confessor dos vice-reis e, assim, diz Oviedo, “entrando com fieqiigncia no palicio (..) se oferecet a ajudé-la no que pudesse”. Nufiez de Miranda fora teitor do famo- so colégio de San Pedro y San Pablo e tinha a reputacio de set um grande pregador. Esses merecimentos e seu cargo no Santo Officio ihe haviam dado notoriedade, Sua especialidade eram as religio- sas. Visitava com freqiiéncia os conventos, era diretor espiritual de smuitas fieiras ¢ para elas escrevera uma catilha. A sua influéncia se deve, seguramente, que Pedro Velézquez de la Cadena, homem de posses, pagasse o dote de Juana Inés (er8s mil pesos, soma éon- rivel e superior As que suas meio-irmas levaram aos seus mat dos & época do casamento). O padre Oviedo alude com entusias- ‘mo a essa habilidade de Nufier de Miranda: Fram inimeros os dotes que negocio eas que se sjustaram com se tx lento edilgénca para asegurar, com eles, a muitas donaelas pobre, con- sagrando-as como Esposas de Cristo no sagradoretieo dos daustrs? 5-Juan de Ovied ‘podee Antonio Ni ida ejemplar, heroics vreudesy apolce mintterio del venerable de Miranda, dela Compafia de Jess... México, 1702. 162 O proprio Oviedo diz que, desde que conheceu Juana Inés, padre Nitiiez mostrara interesse por seul caso. Esse 2elo foi tio extremo, ¢ as relagbes entre a freira jerénima ¢ 0 jesuita tio pro- Jongadas ¢ complexas, que Oviedo dedica, para descrevé-as, um capitulo inteiro de sua biografia de Nutiez, Nessas paginas pro- cura eximi-lo das culpas que muitos Ihe atributram, entre elas, 0 excessivo rigor com que tratou Juana e que 0 levou até a the proi- bir o exercicio da poesia ¢ o cultivo das letras. Por outro lado, Oviedo acusa Juana Inés de ingrata, presungosa ¢ rebelde. O tom polémico dessas passagens é revelador ¢ mostra que jd na- quela época se falava das petseguigoes que entristeceram os tt mos anos de séror Juana. Q tema das infelizes relagées da freira jerénima com a hierarquia eclesidsti “anticlericalismo derno, como disseram Méndez Plancarte € (Os € tim teimia que vern da prdpria época de séror Juana. A ruptura entre a freira e seu diretor de consciéncia foi cruel ¢ ain- da mais cruel foi a reconciliacio, que ela sé conseguiu com a submisséo. Mas na época em que Juana Inés, antes de fazer os ‘yotos, vacilava e se perguntava se eram compativeis suas paixées intelectuais com os deveres religiosos, Nuifier eliminou seus es- riipulos e a animou; nio foi rigoroso, mas paternal, condescen- dente ¢ nada inflexivel. Os pescadores de almas sio temiveis por- que também sao sedutores. Oviedo conta que quando Juana Inés por fim decidiu professar, a alegria de Niifez foi tal que ele pa- goua festa, convidou do é uma invengio do ‘o mais alto ilustre das hierarquiaseclesdsticae secular, as sagradas reli- ides c « nobreza do México, «ele préprio, A vésperas dos voras, se pos acompor de suas mos as lumindrias Os trechos da Respuesta a sor Filotea de la Cruz telativos & tomada dos votos si0 memoriveis por seu cardter elusivo € reti- cente, Séror Juana diz sem dizer, com um gesto apaga o que dis- se e, 20 apagar, volta a dizé-lo. Vale a pena reproduzir esse longo sinuoso parigrafo, apesar de jd ter sido citadlo tantas vezes: .Juan de Oviedo, op. cit 163 Fiz-me rcigiosa porque, embora soubesse que esa condigio tinha mui- tas coisas (flo das acessrias, nfo das formals) epugnantes a0 meu remperamento, contudo, para a rotal negagio que possula ao matri- moni, ‘menos desproporcionado e o mais decente que podia es- colher ern matéria da seguranga que desejava para minha salvagio: ¢ por isso cederam a todas as pequenas impertinéncias do meu catiter querer viversozinha; no querer ter ocupaclo obrigatéria que atrapa- eae eee impedisse 0 sossegado silencio de meus livros, Para uma total compreensio dessa declaragéo devemos ter em mente duas circunstincias: quem escreve é uma freita, ¢ €5- creve a um bispo, seu superior, para se defender de certos ata- ‘ques ¢ justficar sua paixio pelas letras profanas. E. preciso is © trecho transcrito no contexto geral da Respuesta: sua paixéo congénita pelo saber. A declaracao de séror Juana tem duas par- tes: na primeira, ela se refere a azo principal que a levou a pro- fessar; na segunda, alude 4s incompatibilidades entre sua voca- ‘Gio intelectual ¢ a vida numa comunidade religiosa. Em outta parte deste livro eu me ocuparci desse tiltimo aspecto. Quanto 20 primeico, séror Juana afirma que, com respeito ao fim mais importante, ou seja, sua salvacio, estado religioso “era o menos desproporcionado ¢ o mais decente que podia escolher”, Procla- ‘ma assim a primazia, perfeitamente ortodoxa, dos fins espirituais sobre os temporais: estamos neste mundo para nos salvar e ga- nhar a gléria. Mas sua decisio de escolher 0 convento esté su- bordinada a uma cliusula que rege todo o pardigeafo: “Para a to- tal negagao que tinha ao matriminio”. Essa declaragao ¢ 0 cixo da Respuesta. E nao sé desse escrito como de sua vida inteira. Séror Juana nao ignora que existem outras vias de salvacio ¢, entre las, para as mulheres, 2 mais comum e normal é a do casamen- to. Nao para ela. Assim, a decisio de professar esté subordinada € € conseqiiéncia de uma outra anterior: a negacio do estado matrimonial. Nao hé a menor mengio a0 chamado de Deus _nem a, vocacio espiritual: com extraordindria franqueza, séror Juana expe uma decisio racional: jd que no quer casat, 0 con- € a opsio mais decente para garantir sua salvacio. O ideal “teria sido 0 casamento; o indecente, o estado de soltcira no ‘mundo, que a teria exposto, como diz Calleja, a ser parede bran- imarichada pelos homens. A escolha de Juana Inés no foi 0 resultado de uma crise espiritual nem de um desgosto senti- ‘mental. Foi uma decisio sensata, coerente com a moral da época ‘E-eom os usos € as convicgées de dia classe. O convento nio era scala em direcéo a Deus, mas refigio de uma mulher que esta- ‘wasozinha no mundo. ‘Até agora examinei as rardes negativas, por assim dizer, que talvez tenham levado Juana Inés a vestir 0 habito. Essas conside- ‘ag6es foram, segundo vimos, estritamente mundanas, inspira- das em preocupagées de ordem tanto material como social e moral. A palavra que define essas preocupagbes no ¢ santidade, mas decéncia. Porém € impossivel teduir sua lecisio a essas ra- zBes, Sabemos que duvidou muito e que até mesmo, uma vex decidida, ficou assustada com a dureza das regras carmelitas e abandonou 0 convento. Os argumentos ¢ conselhos de Néfiex tanto como a brandura das regras das jer6nimas acabaram por persuadi-la, Mas essa série de motivos razoiiveis apoiava-se em alguma coisa mais profunda: sua negagdo do casamento, Esse € 0 fandamento vital de sua atitude, Foi sincera quando escreveu essa frase? Ou com isso 36 queria ocultar que as perspectivas de tum bom casamento, para uma jovem em sua situagio, eram na verdade duvidosas, melhor entZo 0 claustro do que seguir a sorte de suas duas irmas? Séror Juana nem sempre falou a verdade — ‘uma e outra vez, por exemplo, afiemou que cra filha legitima —, mas nesse caso nao temos por que duvidar de sua sinceridade, Seus interesses € paixdes eram coincidentes. Tudo 0 que sabemos dela e nos diz sua obra corrobora seu escasso interesse pela insti- tuiggo matrimonial. F facil imagind-la na corte € no claustro, dangando numa sala ou cantando no coro, conversando no jat- dim ou num locut6rio; sabemos que conheceu, aproveitou ¢ pa ddeceu as paixdes da gléria literdria, da amizade amorosa ¢, talvez, as do préprio amor... Podemos imagind-la em uma casa com marido e filhos? or que essa negacio do casamento? E absurdo pensar que cla sentia uma clara aversio 20s homens ¢ uma igualmente clara va 165 “s8culo XVI preferéncia pelas mulheres. De um lado, mesmo que essa supo- sicdo fosse correta, naqueles anos de plena juventude nio € certo que ela tivesse consciéncia de suas verdadeiras inclinagoes; de outro, salvo se lhe atribuissemos uma libertinagem mental mais prdpria de uma heroina de Diderot que de uma jovem novo-his- pittica de sua idade e sua categoria social, podia ela friamente escolher como refiigio um estabelecimento habitado exclusiva- mente por pessoas do sexo que, supostamente, a atrafa. Nao: a frase indica, como jd afirmei outras vezes, pouca ou nenhuma aptidao para a vida doméstica, Em nosso século mais e mais mulheres, sem renunciar a vida amorosa, preferem nao casar. No iss0 era inimaginavel; fora do matriménio somenite ‘Travia dois caminhos: a Vida das irmis de Juana Inés (no iielhor “dos casos) ou o mosteiro. Destaco, uma vez mais, que a palavra Caiamento, no século XVI, a nao ser nas comédias, nao signifi- cava amor, mas a vida das casadas, tal como a descrevia idealmente frei Luis de Granada ou satiricamente Quevedo. Além dessa repugnincia & vida doméstica — seria por causa do que viu quando menina e adolescente? — é inécuo trarar de sa- ber quais eram seus verdadeiros sentimentos sexuais. Ela tam- bém nio os sabia, A negasio do mattiménio esté ligada a outra causa, que me parece decisiva. Desde 0 principio, desde os anos em que lia as escondidas os livros de seu av6, sobre ela trabalharam a trans- posisio e a tansmutagio de suas inclinagées: o amor ao saber é a outra face, a positiva, de sua negagio do casamento. Nao quer casar porque quer saber. Ama 0 saber. Sobre os motivos-de sua repugniincia ao estado matrimonial, Juana é evasiva; ao contrd- rio, expande-se com uma efusio nfo isenta de coqueteria quar do fala de sua ansia de conhecer. O processo de masculinizagio confunde-se com o de aprendizado: para saber é preciso ser ho- mem ou parecer sé-lo. A idéia de se disfargar de homem, cortar ©-cabelo, enfim, neutralizar sua sexualidade sob o habito de frei- *2, sio sublimagdes ou, melhor dizendo, tradugées de seu desejo — quer apoderar-se dos valores masculinos porque quer ser como um homem. Esse como é a ponte e, simultaneamente, o signo da distancia insalvavel. Por isso, num segundo momento do proces- | | | | | 166 | so, destréi a ponte, volta-se contra os homens, defende as mu- Iheres ¢ antecipa o feminismo moderno. Sob o ponto de vista psicossomético, a ‘masculinidade’ de stot Juana me parece uma fantasia de alguns criticos modernos. ‘Mas nio do ponto de vista psicolégico, social ¢ histérico. Os va- ores de seu mundo eram masculinos. Menina, quis disfargar-se de homem para deles se apoderar; mulher, extremou a divisto platénica entre a alma e 0 corpo para afirmar que a primeira é neutra. O estado religioso foi a neutralizagio de sua sexualidade corporal e a liberacio e transmutagio de sua libido. Em sua hie- rarquia de valores o conhecimento vinha antes que o sexo porque sé pelo conhecimento ela podia neutralizar ou transcender seu sexo. Sejam quais tenham sido as causas psicolégicas de sua ati- tude, toda a sua vida esteve movida pela vontade de penetrar no mundo do saber: um mundo masculino. Negagio do casamento, amor ao saber, masculinizagio, neutralizario: tudo isso se resolve numa palavra ndo menos po- derosa, solidéo. Imposta pelo mundo, ela transformou a soli- dao em destino accito ¢ também escolhido. Primeiro, menina sozinha perdida entre os adultos; depois, jovem solitéria na confusio do século. Fechou-se num convento nao pata rezat € ;ntar com suas irmas, mas para viver sozinha com ela mesma, Errou: trocou bulicio do mundo pelo do claustro. Mas em 1669 0 convento Ihe parecia a solugio de seu dilemma; se seu destino eram as letras, nao podia ser nem letrada casada nem lecrada solteita. Podia, isso sim, ser freira letrada. A contradi- géo entre sua vocagio intelectual e a vida no seio de uma co- munidade religiosa, embara por ela prevista — segundo lem- bra com uma ponta de amargura na Respuesta —, surgiut mais tarde, Devo acrescentar que, se quis estar sozinha, néo quis vi- ver isolada. Amou sempre a comunicacio intelectual ¢ esse fa- tor — viver em continua correspondéncia com 0 exterior — foi ‘0 que mais Ihe censurou Niifiez de Miranda. Sozinha mas nfo solitéria, s6ror Juana viveu no e com seu mundo, A mesma coi- sa acontece com o que chamei, nao de forma muito exata, de sua ‘masculinidade’ — convive com a mais intensa feminilida- de. Se existe um temperamento feminino, no sentido mais 167 poe arrcbatador da palavra, esse & 0 de sdror Juana, Sua figura nos fascina porque nela, sem jamais se fundir de forma total, se ‘cruzam as oposiges mais extremas. Talvez nisso resida o segre- do de sua estranha perenidade — poucos seres estio tao vivos como ela esta depois de séculos de enterrada Em_1667 entrou como novia nas Carmelitas Descaleas ¢ em poucos meses abandonou 0 convento arrependida. Voltou a se arrepender de sua segunda e definitiva escolha? E imposstvel “saber isso. Alguns de seus poemas revelam aspereza, anguistia, falta de animo, mas nao encontramos afinal a mesma coisa cm obras de outros poetas que viveram no mundo? Queixou-se ela das chateac6es de suas companheiras de convento, mas nao teria estado exposta is mais intolersveis intromissbes se tivesse ficado nna corte? A decisio de tornar-se freira foi, em suas circunstin- _cias, a melhor ¢, quiem sabe, a tinica que podia tomar. Contudo, deve ter tido momentos de diivida e desfalecimento. Mais de uma ver. deve ter lamentado estar atada a uma resolucdo irtevo- gavel. Nés, os modernos, acostumados a mudar de atividade ¢ situagio, nao podemos entender de forma cabal o que significa uma deciséo que nos obriga para toda a vida. Esse € 0 assunto de uum soneto revelador (149). O itulo descreve muito bem o card- ter tertfvel, por sua condigio inapelével, de decisées como a que ela tomou: Encarece de animosidad la eleccién de estado durable basta la muerte (Encarece de animosidade a escobha de estado durd- vel até a morte). O cema da gléria na derrota — simbolizado como em Primero suefio pela figura de Faetonte, seu her6i tutelar — funde-se com o da irrefredvel nostalgia pelo que poderia ter sido € nao foi sua vida. Com lucidez.e melancolia a poeta exalta 0 Animo que a fez escolher uma condigo que s6 termina com a chegada da morte. Mas lhe parece que teria sido mais elevado ¢ heréico, mesmo correndo o risco de ser fulminada, pegar as ré- eas do carro do Sol e viver sob a intempétie: Silos riesgos del mar considera, rninguno se embarcar: si antes viera bien su peligro, nadie se atreviera nial bravo toro osado provocara 168 Sidelfogoso bruto ponderara la friadesbocada en la cartera af jinete prudente, nunca hubiera quien con disereta mano lo enfienara. Pero si hubiera alguno tan osado que, no obstante el peligro, al mismo Apolo duisiese gobemar con atrevida ‘mano el ripido carro en uzbafado, todo lo hicera,y no tomara silo estado que ha de er toda la vida* * Se os sscos do mar considerase/ninguém embateati; se antes vssefbem seu Perigo ninguém se atreverignem ao brave touro ousado provocar Se do fogo- se bruto ponderassela firia desbocada na corridafo jinete prudent, nunca te- Jace com disereta mio o freasse/Mas se houvessealguém tio ousadof «que, aperar do perigo, a0 proprio Apolo/qusesse goveenar com atrevidalmao 0 pido carro em luz banhado,/tudo fria,e nfo tomatia sozinholestado que seri pats roda a vida (N. do). 169

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