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(© 2002 by Editora Atlas S.A. ors. 1. ed, 2002; 2, ed. 2003; 3. ed. 2009 i 4 apa; Roberto de Castro Pail = Composiedo: Set-up Time Artes Grificas Dados Internacionais de Catalogacéo na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, $B Brasil) Ferraz Junior, Tercio Sampaio. Estudos de filosofia do direito: reflexbes sobre o poder, a liberdade, a justiga eo direito / TTercio Sampaio Ferraz Junior. - 3. ed. - Séo Paulo: Atlas, 2009. Bibliografia. ISBN 978-85-224-5230.9 1. Diteito ~ Filosofia 2. Justica 3. Liberdade 4. Poder (Giéncias sociais) 1. Titulo. 1. ‘Titulo: Reflexdes sobre 0 poder, a liberdade, a justica e o direto, 02.222 cou-340,12 indices para eatilogo sistematico: 1. Diteito : Filosofia 340.12 1. Filosofia do direito 340.12 ‘TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - E proibida a reproduco total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violagio dos direitos de autor (Lei n® 9.610/98) é crime esta- belecido pelo artigo 184 do Cédigo Penal. 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Contudo, quando so captadas as condigdes de verdade de um enunciado sobre a justica, percebe-se que essas condicdes dependem dos componentes do enunciado, mas a referéncia desses componentes 36 se esclarece por forca da possivel contribuicdo deles para a verdade dos emunciados, Ou, como jé percebera Aristételes, sé no contexto de uma pro- posi¢go uma palavra tem uma referéncia, e sé af pode falar-se de verdade ou falsidade, donde se seguiria que a predicacao da justica a uma ago ou a uma situago estaria prisioneira das condigdes semnticas de um enunciado sobre a justiga. TO presente texto é uma glosa inspirada num artigo de Manuel G. Serrano (Verdad y com- petencia pragmética, publicado em Manuscrito.v. XVIII, n= 1, abr, 1995, p. 11 ss), procurando testender-the as andlises para o campo juridico, referente ao problema da justiga. Encontra-se anteriormente publicado em Direito e perspectivas juridicas, Revista dos Anais do I Congresso de iniciagdo Cientifioa da Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo, n- 1, dez.1996, p. 13-20. 282. Estudos de flosofia do dueito + Ferraz unior A versio filoséfico-lingiifstica desta teoria admite, pois, que a verdade é propriedade das proposicées, cuja correta atribuicdo se esclarece com outras proposigées. Em conseqiiéncia, qualquer pretensio verificadora da justica de um contetido empirico (uma aco, uma situacdo), que passe por sentimentos, individuais ou sociais, intuiges psiquicas, valoracées comuns, aceitagdes ou rejeigdes pessoais ou coletivas etc., s6 poderd confirmar-se ou negar-se A me- dida que deles se possa dizer que “é fato que”, isto é, & medida que se desenha numa proposigo. A contrapartida “tealista” desta teoria diria, ao contrétio, que a referéncia semantica é basicamente descritiva, isto é, que se pode ter acesso aqueles sentimentos etc. com independéncia das descricSes que deles se fagam. Sem adentrar nessa controvérsia (concepgao nominalistica ou ontolé- gica da lingua), parece interessante ir além das especulagées epistemolégicas relativas & conex4o entre consciéncia e realidade, para concentrar a andlise nas condig6es pragmaticas da comunicagao e nelas observar se existe alguma conexio de dependéncia com alguma nocéo de verdade, de tal modo que 0 conhecimento de um sujeito falante (orador) daquelas condigdes encontre um, onto de convergéncia delas num critério de competéncia universal. Nesta li- nha de andlise, por exemplo, Habermas desloca a consideraco veritativa dos significados para uma andlise das condigdes gerais do didlogo, fazendo com ‘que nocées pragmaticas do tipo “verdade intersubjetiva” ou “raza de validade” adquiram preeminéncia sobre a nocéo (semantica) de verdade. O problema, manifesto numa teoria da justia que traz este tipo (haber- masiano) de solugio (aceitabilidade racional como base de uma concep¢io universal da justica), conduz a algumas dificuldades conhecidas, convergentes na hipétese de que, para qualquer sujeito ou conjunto de sujeitos, haveria pro- posicdes independentes do seu juizo, Esta independéncia é que daria sentido final a um postulado de correspondéncia, pois nao teria pela crenca de um ou de varios no sentido da justica que se garantiria completamente a verdade do juizo. Contudo, deste modo, a universalidade de uma proposigao sobre a justi¢a nao seria alcancada por meio de uma imediata confrontagio, mas requereria a mediago de outras proposicées, o que conduziria a assercdo de uma primeira proposigao, cujos fundamentos estariam articulados numa competéncia prag- ‘miatica transcendental de todo e qualquer sujeito comunicativo. Entretanto, isto nao eliditia a persistente dualidade entre estas condigdes transcendentais e uma possibilidade de equivoco, por mais racionais que sejam aquelas: mesmo um acordo argumentativo ideal-transcendental entre os dialogantes exigiria alguma nocdo primitiva de justiga verdadeira, que levaria de volta a hipéteses Oascunse sobreajustica 283 semnticas de fundamento platénico, cuja nega¢do, por sua vez, restabelece os dilemas geradores dos diversos ceticismos. Assim, parece valer a pena, nestes termos, retomar a andlise pragmatica em face da sua dimensao semantica na elucidagdo de enunciados sobre a justiga. Mormente quando eles se referem a atos de falar que atam 0 emissor ‘a compromissos (por exemplo, promessas) ou que intentam dirigir a conduta de interlocutores (ordens), os quais nao tém condigées diretas de verdade, mas de satisfagao ou cumprimento (uma promessa nao é verdadeira ou falsa, mas é cumprida ou nao, ainda que a verificago de seu cumprimento possa ser feita por meio de uma proposigio extraida do contetido proposicional da promessa e asseverada em um tempo posterior & emissio da promessa: esta tiltima asseveragao obedecer a condiges de verdade —a promessa foi cumpri- da— mas isto no altera a situacdo da promessa ~ eu prometo ~ como posi¢ao nem verdadeira nem falsa; 0 mesmo vale para as normas). Consistindo em ordens os enunciados deste tipo, sera um equivoco dizer que uma norma ¢ justa se for possivel verificar se foi ou se serd provavelmente cumprida. Por outro lado, se as normas no sao enunciados veritativos, que significa a assergao de que normas so justas? Atos de falar so emissdes comunicativas cuja forga ilocutiva esta sempre presente. Qualquer ato de falar, sendo uma emissfo locutiva (Jodo fala; fala Joao!), traz consigo uma dimensio ilocutiva, identificavel por modalizadores pragmaticos (o tom de voz, os modos verbais - imperative, condicional ete. =, 0s referenciais analégicos - a palavra “oficial”, a “autoridade” emissora, 0 “cardter” legal). Fala-se, assim, de das dimensGes integrantes do ato de falar: relato ou contetido locutivo e cometimento ou relagio ilocutiva. Por meio do cometimento (ou forga ilocutiva) do ato de falar é possivel distinguir entre uma descricao ~ Joao fala — e uma prescri¢o — fala Jodo ~ cujos relatos (contetido locutivo) sao os mesmos. Uma possibilidade de tratar enunciados normativos como verdadeiros ou falsos, levando-se em conta as duuas dimensGes, estaria na hipétese de se atri- buir & sua relagio entre relato ¢ cometimento uma condicio veritativa, base para uma assercio sobre a sua justica ou injustica. Por exemplo, o modalizador pragmético diria uma verdade se a forga ilocutiva que atribui & fala integral (cometimento e relato) fosse correspondente a ela; a promessa é verdadeira se é uma promessa, e no uma ironia ou uma mentira, quando seria, neste {timo caso, falsa. No primeiro caso, por verificagdo, a promessa seria justa, no segundo, injusta. Contudo, nada garante que um emissor tenha sempre 284 ssudos de Masala do dato Fea Junior uma pretensio de validade com respeito a0 modalizador pragmitico, nao resultando claro de que maneira uma atribuigéo de condigées veritativas a uma emissfio do modalizador (cometimento) possa ocorrer mesmo quando 0 emissor ndo adquire um compromisso de responsabilidade sobre a verdade (nem hipotética) do que se supe que 0 modalizador “diga”. Ou seja, como seria possivel distinguir, universalmente, entre a promessa falsa (irénica) e a verdadeira (sincera), donde sua justiga ou injustiga? Uma saida para este problema seria voltar & hipétese habermasiana de uma competéncia prag- matica (transcendental) dos sujeitos falantes, que Ihe permitiria identificar a forga interlocutiva de um cometimento de ato de outrem, base mesma da possibilidade de fala como comunicaco, com o que se retornaria novamente A objecao antes mencionada. O que se deve ter em conta, nesse ponto, é que hé uma importante diferenca 1no emissor de uma fala do tipo: “prometo-lhe pagar o preco”, cuja andlise (eu Ihe prometo que eu pagarei o prego) mostra que um eu (0 primeiro) € uma unidade sintética de uma intenc#o comunicativa ¢ 0 outro, um eu objetivado, que tem cardter referencial. Segue-se dai que, embora o néio-cumprimento das condigées ilocutivas para os dois casos seja matéria empirica, o segundo eu pode estar submetido a condigées veritativas (iclentificacao do eu que paga, suas con: digées reais de possibilidade etc.), mas no o primeiro eu. Este tiltimo tem antes a ver com “infortiinios” que provocariam o defeito ou malogro do ato de falar (incompreensao, mal-entendidos). Por que nao submeter estes “infortinios” também a condigdes veritativas? Sucede que a existéncia de certas condigdes situacionais — veritativas (um certo estado de coisas), para que se verificasse a ocorréncia — verdadeira do infortinio (por exemplo, impossibilidade de o ‘outro perceber uma ironia, tomando o cometimento como sinceridade), nao é condigéo suficiente para afirmar a verdade da forca ilocutiva do cometimento do primeiro eu (eu prometo). Ou seja, o cometimento nao deixa de ser irénico se. enderecado nio percebe a ironia. Fica claro, pois, que 0 éxito ilocutivo (bom ou mau éxito, éxito defeituoso, malogrado ou atingido) ndo pode ser tratado como um andlogo da verdade. Segue que uma consideractio da justiga ou injustiga de uma promessa ou de uma norma exige uma outra dimensio de anélise pragmatica. Este mesmo problema tem uma outra importante aplicagao. Por exemplo, num sentido jurfdico, se uma sentenca (norma) condena alguém, a conde- nagio (enunciado) é um ato respaldado institucionalmente (€ valid) que contém também um ato assertivo: a afirmagao da culpa que fundamenta a O discus sobrea justia 285 sangfio imposta. Se 0 fato da culpa ndo se demonstra, dir-se-4 que a condena- do é injusta, base para um recurso processual. Mas a condenagao poderd ser considerada institucionalmente (conformidade legal e constitucional) vélida, ainda que seja falsa a afirmacio da culpa. Isto, obviamente, néo torna justa a condenagao. Ou seja, nem a validade do enunciado condenatério pode ser base para a imputagéo da injustica (0 éxito ilocutivo normativo ~ legalidade, constitucionalidade ~ nao pode ser base para a imputagao da justica) nem o {fato de ndo-demonstrabilidade da culpa (enunciado submetido a condi¢Ses veritativas) é condigio suficiente para a imputacéo da injustica (por exemplo, a condenagio, embora sem fundamento na culpa, pode ser tomada como justa num outro Ambito, o que explica a possibilidade de condenacées com base na chamada responsabilidade objetiva). Estas tiltimas observagdes obrigam que a andlise se detenha num exame mais detido dos cometimentos normativos, para quue se possa entender como cocorre em face deles a imputagéo da justica ou injustica. Para isto, distinga-se, inicialmente, entre defeito e malogro. Um ato defei- tuoso nfo é um ato malogrado. Se um mentiroso disser: amanha eu Ihe pago, este enunciado é defeituoso, mas ndo é malogrado. O defeito tem a ver com condigées de uso da lingua das quais se abusam (Austin), base para a percep¢ao inter-relacional da mentira. O malogro tem a ver com um sem sentido que frus- tra a comunicacao (como, por exemplo, na frase: no leia esta frase!). Assim, quando se refuta um enunciado, pode-se fazé-lo com base nas suas condigées veritativas (0 Sol é menor que a Lua) ou no malogro do cometimento (pode sair, querido, ndo se importe se eu ficar triste). O problema esta na refutacao de atos defeituosos, mas nao malogrados. Este é 0 caso de enunciados normativos, cujo bom éxito ilocutivo determina a propria realidade do fato que é seu relato: sonegar o imposto ¢ um ilfcito (6 proibido sonegar impostos). A enunciagao da proibicio, cujo éxito eria o fato correspondente ao contesido preposicional (que sonegar é ilicito), néo pode ser refutada por um malogro. Assim, se uma norma prescrever: “é abrigatério que mulheres trabalhem mais para receber 0 mesmo sakirio que os homens”, isto ¢orna o trabalho feminino normativamente tum “fato” menos valioso que o trabalho dos homens. Nao obstante, poder-se-ia dizer que o éxito ilocutivo traz um defeito que tem de ser analisado. Esta refutaclo peculiar é chave para entender se a imputagio da justiga. J4 se viu que a validade da norma nao implica sua justiga ou injustica. Nio obstante, é possivel afirmar-se que a qualificaco de justa ou injusta atribuivel a uma norma tem a ver com sua peculiar forma de refutacao. Ou seja, quan- 286. studs de flosohia do dete + eres Junior do se diz. que uma sentenga ¢ injusta, porque a afirmacio da culpa no foi demonstrada, 0 que se refuta nao a conexdo sentenca/culpa, mas a propria forca ilocutiva de sentenca: de certo modo esté-se a “revogé-la”. Esta “revoga- do” tem por base ndo um malogro, mas um defeito, isto é, condicdes de uso das quais se abusam! Em outras palavras, predicar de uma norma sua injustica tem a ver com 0 peculiar modo de enunciacio normativa cujo cometimento estabelece uma re- lagio autoridade/sujeito em que ao sujeito se admite reconhecer a autoridade, rejeitara autoridade, mas nao ignorar a autoridade. Do lado da autoridade, por sua vez, nesta possibilidade (desconhecer uma ignordncia do sujeito) repousa © éxito normativo. Assim, dizer de uma norma que ela é injusta é desconhe- cer-Ihe, ignorar-the a autoridade. Como, porém, essa refustago s6 ocorre por revogagio, a predicagio da injustiga é um outro ato normativo que “revoga” anorma, isto é, que ignora sua autoridade ou que a dectara ignordvel de uma forma diferente da revogacio da validade de uma norma por meio de uma outra norma valida. Qual a base da predicacio (normativa) da justica? Ou, de outra forma, de que condigdes de uso se abusam quando se declara injusta uma norma? Um abuso nas condicdes de uso se revela no cometimento normativo (relacdo de autoridade) quando ocorre uma perverséo do ato de falar. A possibilidade da perversio depende da eficdcia da realizacao do ato: sé por haver efetivamente asseverado uma promessa é que cabe a mentira. Do mesmo modo, a emissio de um diretivo para o comportamento pressupée no emissor condicées de exercicio potestativo de seu ato ilocutivo, de tal modo que, para afirmar-se como autoridade, nao se anule no enderecado sua condicio de sujeito (nor- matizagio como relacao do poder). Assim, se o enunciado normative anula 0 sujeito, destruindo o sentido unificador de seu préprio existir, dir-se-é que houve um abuso das condigées de exercicio potestativo de autoridade. Este ato seré defeituoso, embora nao seja malogrado (a norma injusta é valida). E a percep- cio da sua defeituasidade est na realizagao do ato de falar (sua eficacia) que denuncia a caréncia de poder do emissor pela caréncia de sentido existencial do sujeito-destinatério. Uma condenacao de alguém por sonegacao, quando sonegaciio nfio houve, nao ¢ injusta porque a sonegacao nao foi demonstrada, mas porque a eficdcia da condenagio pée a descoberto a insuportabilidade existencial da situac&o do condenado como sujeito. 0 que a declaragio da injustiga assevera nao é a falta de demonstragdo da culpa, mas a refutacio da Co iscuro sobre ajustign 287 prépria autoridade por uma revogacdio: embora valida, a relac&o autoridade/ sujeito ser desconhecida. Isto transfere a questiio dos enunciados sobre a justica para um problema de perversao ou abuso das condicdes de uso do poder, E, basicamente, para 0 pressuposto de que néo pode haver exercicio de poder na comunicacéo nor- mativa, se 0 emissor aniquila o sujeito. Nesta ldgica, aniquilar o sujeito significa 0 abuso basico das condigdes de uso do discurso normativo enquanto relagdo autoridade/sujeito. Esta relagao exige, da parte do emissor, a possibilidade de uma neutralizacdo, previamente garantida por outras normas (competéncia da autoridade), de um desconheci- mento por parte do sujeito (desconfirmacao da autoridade, portar-se discursi- vamente como se autoridade niio existisse). As condigées de uso da lingua no ato discursivo para que esta relactio (cometimento ou for¢a ilocutiva) esteja presente sao: 1. adiferenga, isto é, as partes so heterdlogas, uma fala em termos de uma imposicdo e a outra, de submissao; 2. 0 reconhecimento, isto 6, embora diferentes, os discursos sao reco- nhecidos mutuamente como tais. ‘A primeira condictio implica desigualdade. As partes se pdem em niveis distintos, mas complementares. O discurso da imposico exige o da submiss’io e vice-versa. Mesmo uma eventual desobediéncia (negagao da autoridade) pressupée a autoridade que se nega. Por sua vez, 0 cometimento ou forca ilocutiva da imposi¢&o, mesmo quando ameaga o sujeito (ameaca de sangio), ressupde o sujeito como desobediéncia que se nega. Por isso, quanto a segunda condigéo, deve haver um espago para a desobediéncia (disponibilidade de agao para sujeito) um espaco para a ameaga (disponibilidade de nao-concreti- zacéo da ameaca para a autoridade). Assim, sendo o discurso normativo um processo comunicativo, do lado da autoridade deve ele neutralizar o descrédito, a ignorancia do sujeito, mas no 0 préprio sujeito. E este pode desobedecer (ou negar - rejeitar a forga ilocutiva) mas nao pode neutraliz-la, agit como se ela nao existisse. Nesse sentido, a neutralizacéo, por parte da autoridade, de uma possivel desconfirmaciio do sujeito torna 0 discurso normative um discurso valido. ‘Nesta forma de cometimento (forca ilocutiva autoritativa), o defeito na fala ocorre quando o ato de falar, ao realizar-se, poe a descoberto a prépria relacao 288 Estos de fosofie do deste = Fenaz Junior — por exemplo, a autoridade, ao falar, pede, solicita e se justifica como tal (a autoridade que se justifica quebra a hierarquia do cometimento). Explicitar-se como autoridade enquanto discorre como autoridade mata a autoridade, pois se produz uma autofrustragao, uma espécie de contradic&o pragmatica (“obe- ‘cecam-me, porque se nao me obedecerem eu nao valho nada’). Este defeito produz um malogro, nao hd cometimento normativo, mas nao é assim que aparece o problema da justica. Este surge quando o discurso da autoridade produz a desejada neutralizagio ele tem bom éxito ~ e, ndo obstante, traz um peculiar defeito na sua emissao pelo abuso de suas condigées de uso. Abusa-se da primeira condigio (diferenga, heterologia) quando a desigual- dade (hierarquia) é rompida pela substituigio dos discursos distintos por um énico discurso que, no entanto, ndo chega a ser homdlogo, mas constitui uma perversio da homologia. Por exemplo: “reconhecemos que a sonegacio nao foi provada, mas deve-se reconhecer que nfo-acatamento da sentenca des- truird a autoridade”. Esta formula neutraliza nao o discurso desconfirmador do sujeito (ndo conhego da autoridade!), mas préprio sujeito (nfo importa se hd ou ndo hd sonegacao, o sujeito ser condenado). Nesse caso, a diferenca € rompida porque se age (0 emissor) como se o discurso fosse um tinico (per- versio homolégica: o discurso nao é um tinico porque todos falam a mesma Ungua — condigo do discurso verdadeiro ~ mas porque sé um tem condi¢des de falar: obedegam pelo sim ou pelo nao). Abusa-se da segunda condic&o (reconhecimento) porque a disponibilidade de aco do sujeito desaparece (fale 0 que falar, ele € punido). Nesse caso, a complementaridade de discursos heterogéneos é pervertida, pois néio ha aco e Teaco, mas apenas co-acio (0 emissor age pelo receptor que deixa de ter um espaco proprio numa imposicéio que é apenas um aniquilamento). A refutacao deste discurso normativo nao se d4 por seu malogro (a norma continua vilida, a sentenca serd executada validamente), mas pela dentincia da injustiga que “revoga” a forga ilocutiva da norma (relagio de autoridade) pelo abuso das condig6es de uso do discurso autoritativo (abuso de autoridade).

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