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TEOLOGIA SISTEMATICA INTRODUGAG Capiruto I SOBRE 0 METODO § 1. Teologia, uma Ciéncia Em toda ciéncia ha dois fatores: fatos e idéias; ou, os fatos e a mente. Ciéncia é mais que conhecimento, Conhecimento é a persuasao do que é verdadeiro sobre evidéncia adequada. Os fatos da astronomia, da quimica ou da histéria, porém, nao constituem a ciéncia dessas dreas do conhecimento. Tampouco o mero atranjo ordenado dos fatos equivale a ciéncia. Os fatos histéricos postos em ordem cronoldgica sfio meros anais. A filosofia da historia pressupde que esses fatos esto compreendidos em suas relagdes causais, Em cada area, o homem de ciéncia presume entender as leis pelas quais os fatos da experiéncia so determinados; de modo que ele nGo sé conhece o passado, mas pode predizer o futuro. O astrénomo pode predizer a posigao relativa dos corpos celestes por muitos séculos vindouros. O quimico pode dizer com certeza qual seré 0 efeito de determinadas composigdes quimicas. Se, pois, a teologia é uma ciéncia, entao ela deve incluir algo mais do que o mero conhecimento de fatos. Deve abranger uma exibig&o da relago interna desses fatos, um com 0 outro, e cada um com 0 todo. Deve ser capaz de demonstrar que, se um for admitido, os outros nao podem ser negados. A Biblia é um sistema teoldgico nao mais que a natureza é um sistema quimico ou mecni- co, Encontramos na natureza os fatos que 0 quimico ou 0 filésofo mecAnico tem a examinar, ¢ 4 luz deles poder verificar as leis pelas quais so determinados. E assim a Biblia contém as verdades que o tedlogo precisa coligir, autenticar, organizar e demonstrar em sua relagdo natu- ral umas com as outras, Isso constitui a diferenga entre a teologia biblica ea teologia sistema- tica, A funco da primeira ¢ asseverar'e declarar os fatos da Escritura, A fungao da segunda é tomar esses fatos, determinar sua relag%o entre si e com as outras verdades cognatas, bem como vindicd-las e mostrar sua harmonia e consisténcia. Essa nao é uma tarefa facil, nem de somenos importancia. Necessidade de Sistema na Teologia Naturalmente pode-se perguntar por que nfo tomar as verdades como Deus considerou proprio reveld-las, e nto poupar-nos do trabalho de demonstrar sua relagao e harmonia? A resposta a essa pergunta 6, em primeiro lugar, que isso nao pode ser feito. Tal é a constituigdo da mente humana que ela nao consegue empreender a sistematizagao e concili- acdo dos fatos que ela propria admite ser verdadeiros. Em nenhuma esfera do conhecimento os homens tém ficado satisfeitos com a posse de uma massa de fatos indigestos. E dos estu- diosos da Biblia tampouco se pode esperar que fiquem satisfeitos. Portanto, existe uma ne- cessidade para construir sistemas teoldgicos. Disso a histéria da Igreja oferece abundante prova, Em todas as épocas, ¢ entre todas as denominagdes, tém-se produzido tais sistemas. 2 TEOLOGIA SISTEMATICA Em segundo lugar, tem sido obtido, portanto, conhecimento de um tipo muito mais elevado do que por mero actimulo de fatos isolados, Por exemplo, uma coisa é saber que os oceanos, os continentes, as ilhas, as montanhas ¢ os rios existem na face da terra; outra muito mais elevada & conhecer as causas que t¢m determinado a distribuigdo de terrae 4gua na superficie de nosso globo; a configuragiio da terra; os efeitos dessa configuragdio sobre o clima, sobre as espécies de plantas e animais, sobre o comércio, a civilizagdo e o destino das nagdes. E identificando essas causas que a geografia emergiu de uma colegao de fatos para uma ciéncia altamente importante e elevada. De igual modo, sem o conhecimento das leis de atragéio e movimento, a astronomia seria uma confusa e ininteligivel colegao de fatos. O que é verdadeiro em relagioa outras ciéncias é verdadeiro em relagio a teologia. Nao podemos saber 0 que Deus revelouem sua Palavra a menos que entendamos, pelo menos numa medida plausivel, a relagiio em que as verdades dispersas nela compreendidas mantém umas com as outras, Solucionar o problema concernente a pessoa de Cristo, isto ¢, ajustar ¢ produzir um arranjo harmonioso de todos os fatos que a Biblia ensina sobre esse tema, custou a Igreja séculos de estudo ¢ controvérsia. Em terceiro lugar, néio temos escolha nessa matéria. Se desempenharmos nosso dever como mestres e defensores da verdade, devemos envidar esforgos em trazer todos os fatos da revela- go a uma ordem sistematica e a uma relacZo miitua. Somente assim podemos satisfatoriamen- te exibir suas verdades, defendé-las das objegdes ou apresenta-las para que se disseminem, na plenitude de sua forca, na mente dos homens. Em quarto lugar, essa evidentemente é a vontade de Deus. Ele nao ensina astronomia nem quimica aos homens, mas lhes fomnece os fatos dos quais essas ciéncias so construidas. Tampouco cle nos ensina teologia sistematica, mas nos exibe na Biblia as verdades que, apropriadamente entendidas e organizadas, constituem a ciéncia da teologia. Como os fatos da natureza se acham todos relacionados ¢ determinados pelas leis fisicas, da mesma forma os fatos da Biblia se acham todos relacionados e determinados pela natureza de Deus ¢ de suas criaturas. E como ele quer que os homens estudem suas obras e descubram sua portentosa relagiio orginica e harmoniosa combi- nagio, assim sua vontade é que estudemos sua Palavra, e aprendamos que, como os astros, suas verdades niio sao pontos isolados, mas sistemas, ciclos ¢ epiciclos, numa infindavel harmonia e grandeza. Além de tudo isso, embora as Escrituras nao contenham um sistema de teologia como um todo, temos nas Epistolas do Novo Testamento porges desse sistema a ser elaborado por nossas maos. Elas so nossa autoridade e guia. § 2. O Método Teoldgico Toda ciéncia tem seu préprio método, determinado por sua natureza peculiar, Essa é uma questio de tanta importancia que foi algada a uma se¢ao distinta, A literatura moderna é rica de obras sobre Metodologia, isto é, sobre a ciéncia do método, Elas sfio designadas para determinar os principios que devem controlar as investigagées cientificas, Se uma pessoa adota um falso método, ela é semelhante a alguém que toma uma estrada errada que jamais a levaré a seu destino. Os dois grandes métodos abrangentes sio 0 a priori e 0 a posteriori. Um argumenta da causa para 0 efeito; 0 outro, do efeito para a causa. O primeiro foi por séculos aplicado até mesmo & investigagao da natureza. Homens buscaram determinar quais fatos da natureza devem provir das leis da mente ou de pretensas leis necessarias. Mesmo em nossos proprios dias temos tido Cosmogonias Racionais, as quais empreenderam cons- METODO ESPECULATIVO 3 truir uma teoria do universo desde a natureza do ser absoluto ¢ seus modos necessarios de desenvolvimento. Cada um sabe quanto custa estabelecer 0 método de indugao sobre uma base firme e garantir 0 reconhecimento geral de sua autoridade. Segundo esse método, co- megamos por coletar fatos bem estabelecidos, c a partir deles inferir as leis gerais que deter- minam sua ocorréncia, A luz do fato de que os corpos caem para o centro da terra, tem-se inferido a lei geral de gravitagdo, a qual somos autorizados a aplicar muito além dos limites da experiéncia real. Esse método indutivo se fundamenta em dois principios: Primeiro, que ha leis da natureza (forgas) que s&o as causas proximas do fendmeno natural. Segundo, que essas leis so uniformes; de modo que temos certeza de que as mesmas causas, sob as mes- mas circunstancias, produzirio os mesmos efeitos. Pode haver diversidade de opinifio quan- to a natureza dessas leis. Pode-se pressupor serem elas forgas inerentes 4 matéria; ou podem ser consideradas modos inyaridveis da operagao divina; mas em qualquer evento deve haver alguma causa para o fendmeno que percebemos a nossa volta, ¢ essa causa deve ser invari- vel e permanente. Todas as ciéncias indutivas se acham fundamentadas nesses principios; e por meio deles as investigagdes dos filésofos naturalistas sfo guiadas. O mesmo princtpio se aplica A metafisica e a fisica; 4 psicologia e ciéncia natural. A mente tem suas leis bem como sua matéria, ¢ essas leis, embora de uma espécie diferente, sio tdo permanentes como aquelas do mundo externo. Os métodos que se tém aplicado ao estudo da teologia sfio demasiadamente numerosos para serem considerados separadamente. Podem, talvez, ser reduzidos a trés classes gerais: primei- ra, A Especulativa; segunda, A Mistica; terceira, A Indutiva, Esses termos estiio, contudo, longe de ser precisos, S40 usados pela necessidade de melhor designar os trés métodos gerais da investigag&o teolégica que tém prevalecido na Igreja. § 3. O Método Especulativo A especulagao pressupée, de uma maneira a priori, determinados principios, e a luz desses principios procura determinar o que é € o que deve ser. A especulagao decide sobre toda a verdade, ou determina o que é verdadeiro a partir das leis da mente, ou dos axiomas envolvidos na constituigao do principio imaginativo dentro de nds, A este topico devem refe- rir-se todos os sistemas que se fundamentam em quaisquer pressupostos filoséficos a priori. Hf trés formas gerais nas quais este método especulativo tem sido aplicado a teologia. Forma Deista e Racionalista 1. A primeira é aquela que rejeita qualquer outra fonte de conhecimento das coisas divinas que se encontra na natureza e na constitui¢do da mente humana. Ela pressupde determinados axiomas metafisicos e morais, e deles desenvolvem-se todas as verdades que se propdem ad- mitir, A essa classe pertencem os escritores deistas ¢ estritamente racionalistas das geragdes passadas ¢ presentes. Forma Dogmitica 2, A segunda é 0 método adotado por aqueles que admitem uma revelagao divina supernatural 4 TEOLOGIA SISTEMATICA e admitem que tal revelagio esta contida nas Escrituras cristas, mas reduzem todas as doutri- nas assim reveladas as formas de algum sistema filoséfico. Isso foi feito por muitos dos pais que se empenharam em exaltar m{cott em yvGat, isto é, a fé do povo comum em filosofia para oerudito, Esse foi também, em maior ou menor grau, o método do catedratico, e encontra uma ilustrag&o mesmo no “Cur Deus Homo” de Anselmo, pai da teologia escolastica. Ultimamente Wolf aplicou a filosofia de Leibnitz 4 explicagio e 4 demonstragio das doutrinas da revelagao. Diz ele: “A Escritura serve como auxilio a teologia natural. Ela mune a teologia natural com proposigdes que devem ser demonstradas; por conseqiiéncia, o filsofo é obrigado nfo a inven- tar, mas a demonstrar”.! Este método ainda esta em voga. Os homens langam certos principios, chamados axiomas, ou primeiras verdades da razao, ¢ deles deduzem as doutrinas da religido por meio de um método de argumento tio rigido e inclemente como aquele de Euclides. Isso € feito as -vezes inteiramente para a ruina das doutrinas biblicas e das mais intimas convicgdes morais nao s6 dos cristos, mas de toda a massa do género humano. Nao se permite A consciéncia murmurar na presenga do soberbo entendimento. E no espirito do mesmo meétodo que a antiga doutrina escolastica do realismo se arvorou fundamento das doutrinas biblicas do pecado original e da redengao. Ea esse método, que o um tanto ambiguo termo Dogmatismo tem sido aplicado, visto que tenta conciliar as doutrinas da Escritura com a raz%o ¢ repousar sua autoridade na evidéncia racional. O resultado desse método tem sido perenemente transformar, até onde é possivel, a féem conhecimento e, para alcancar tal propésito, as doutrinas da Biblia tém sido indefinidamente modi- ficadas. Espera-se que os homens creiam nao na autoridade de Deus, mas na autoridade da razao. Transcendentalistas 3. Em terceiro lugar, e preeminentemente, os modernos transcendentalistas se dedicam ao método especulativo. No sentido amplo da palavra, so racionalistas, visto que nao admitem uma fonte mais elevada da verdade além da razdio. Mas, por terem a razio como algo muito diferente daquilo que é considerado pelos racionalistas ordindrios, as duas classes esto na pratica muito separadas. Os transcendentalistas também diferem essencialmente dos dogmatistas. Os ultimos admitem uma revelagdo externa, supernatural e autoritativa. Reconhecem que as verdades que nao podem ser descobertas pela raziio humana se toram por esse meio conheci- das. Sustentam, porém, que essas doutrinas, quando conhecidas, podem ser demonstradas como verdadeiras mediante os principios da razio. Esforcam-se por fazer uma demonstragao,inde- pendente das doutrinas biblicas da Trindade, da Encarnagao, da Redeng&o, tanto quanto da imortalidade da alma e de um estado futuro de retribuigao. Os transcendentalistas no admitem nenhuma outra revelagao autoritativa além daquela encontrada no homem e no desenvolvi- mento histérico da raga. Toda a verdade precisa descoberta e estabelecida por um processo do pensamento, Caso se admita que a Biblia contém verdade, que seja sé até o ponto em que ela coincide com os ensinos da filosofia. A mesma concessio é feita livremente no tocante ags escritos dos sdbios pagiios. A teologia de Daub, por exemplo, nada mais é do que a filosofia de Schelling. Isto é, ela ensina simplesmente 0 que aquela filosofia ensina concernente a Deus, ao homem, ao pecado, a redengio e ao estado futuro. Marheinecke e Strauss encontram hegelianismo na Biblia, ¢ portanto admitem que até ai a Biblia ensina a verdade. Rosenkranz, filésofo da ' Theol. Nat,, Prolegg. § 22; Frankfurt and Leipzig 1736, vol. 1. p. 22.

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