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Coordenador Editorial de Edueagio ‘Valdemar Sguissardi Conselho Editorial de Eduengio José Cerchi Fusari Marcos Antonio Lorieri ‘Marcos Cezar de Freitas ‘Marli André Pedro Goergen ‘Terezinha Azerédo Rios Vitor Henrique Paro Dados Internaclonais de Catalogagéo na Publi (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasi (cir) Pacheco, Jost Augusto Evcrtoscunrculares / José Augusto Pacheco. — So Paulo Cortez, 2005, Biblogratia, ISBN 85-249-11565 1. Curticuos Avaliagho 2, Currculos - Aspects socials 3 Curriculos = Desenvolvimento 4. Cusriculos ~ Pesquisas 5.Curriculos~ Planejamento 1. Titulo, 05-5330 cops indices para catélogo sistemitico: 1. Bacrtescurrculres * Fducagto 375, José Augusto Pacheco ESCRITOS CURRICULARES Sater ” pxtwasonoKo ser aplicados e disseminados a partir da consideragao da sua validade cientifica."" Na linha do que foi preconizado, a organica do Ministério da Edu- cagao consagra a existéncia da Direcgao Geral de Inovacao e de Desen- volvimento Curricular com fungées especificas* na educagio pré-esco- lar e nos ensinos basico (fundamental) e secundétio (médio) 40, Ct, Pacer n? 2/2000 do Conselho Nacional de Educa [Proposta de Reorganizacio CCureeular no Ensino Bisco. 41,CE art. 14%, Decreto-le n? 208, de 17 de outubro de 2002, i O que se entende por Curriculo? 1. Dicionarizagao do termo O termo curriculo foi dicionarizado, pela primeira vez, em 1663, com © sentido de um curso, em especial um curso regular de estudos numa escola ou numa universidade;' sentido este que se impée no vocabuldrio educacional: ‘A defini do dicionicio tora evidente que, por volta da meiade do século XIX 0 uso comum da palavra,significando apenas um curso de estudos, estava mais ou menos eslabeleco e era aplicado rotineiramente ‘io s6 As disciplines estudadas nas escolas politenicas enas universida- des, mas também aos niveis pré-universitiroe dé instrusto? Embora se localize, por vezes, a origem do termo na antiguidade cléssica, 0 certo & que a realidade escolar sempre coexistiu com a realida- de curricular, principalmente quando a escola se institucionalizou numa 1. Ck, dentre outros, Stenhouse, 1964; Jackson, 1982 e Kemmis, 1988. Este iltimo escreve {que “a palavra curiculo, camo term téenico em educac, faz parte de um processoexpectico «da educagso da Universidade de Glasgow, alargando-se a partir do seu uso escoots eda trans- formagio da educagdo na Escécia a uma utlzagao generalizada” (Kemuis, 1988, p32) 2 Jackson, 1992, p 5 » etnasoneco construgio cultural com fins sécio-econémicos. Porém, a palavra curri- culo é de origem recente e aparece com o significado de organizagao do tensino, querendo dizer o mesmo que disciplina, Interessante é a especula~ ‘0 de Goodson® ao associar, baseando-se em ideias de Hamilton, a emer- géncia do curriculo ao Calvinisme: Hamilton acredita que o sentido de disciplina ou de ordem estrutural que foi absorvido pelo curriculo veio nao tanto de fontes cléssicas, mas antes, das ideias de Joao Calvino (1509-1568). A medida que os seguidores de Calvino foram ganhando ascendente politico e teol6gico, nos finais do século XVI, na Suica, Escécia e Holanda, a ideia de disciplina — a verda- deiza esséncia do calvinismo — comecou a simbolizar os prineipios inter nos ¢ a maquinaria externa do governo civil e da conduta pessoal. De acordo com esta perspectiva, existe uma relagdo homéloga entre 0 curri- culo e a disciplina; 0 primeiro estava para a prética educativa calvinista como a segunda para a pritica social desta corrente de pensamento. Na perspectiva religiosa de Calvino, a vida seria uma corrida ou tum trilho de corridas. Dai que ele se tivesse “apropriado do termo curriculum (talvez retirado de Cicero) — uma pista de corridas seme- Ihante & do Circus Maximus — para descrever a traject6ria, o percurso, a forma de vida que os seus seguidores deveriam prosseguir”.* Enquanto expressio de um projecto de escolarizagio, 0 conceito de curriculo tem sofrido, ao longo dos tempos, uma erosio natural que 0 tem transportado desde uma concepcdo restrita de plano de instrugao até uma concepgio aberta de projecto de formacio, no contexto de uma dada organizacio. ‘Tem contribuido para esta erosdo semantica, visivel na polissemia do termo e nos divergentes significados que as escolas de pensamento ‘curricular lhe atribuem, o interesse crescente pelas quest6es escolares ¢ a utilizagio, nem sempre correcta, de um conceito utilizado com duas tra- digées diferentes. ‘Na primeira — representante de uma perspectiva técnica de conce- era escola e a formacio, e com inicio formal na Idade Média, pelo ensi- no do Trivium e Quadrivium — define-se curriculo no plano formal de organizar a aprendizagem num contexto organizacional, previamente {Goodson 2001p. 61 44 Doll 2008, p13. planificado, a partir de finalidades e com a determinagio de condutas formais precisas, através da formulagdo de objectives. Inserem-se nesta tradigéo as definigdes que apontam para o curriculo como o conjunto de contetidos a ensinar (organizados por disciplinas, temas, éreas de estu- do) e como o plano de acco pedagégica, fundamentado e implementa- do num sistema tecnol6gico. Nesta perspectiva, ¢ utilizando as concepgdes curriculares de Gimeno, 0 curriculo exprime o sentido de uma stimula de exigéncias académicas, decorrentes do tradicionalismo académico das disciplinas que constituem a alma curricular, ¢ transforma-se num legado tecnolégico e oficientista. Assim, as definig6es propostas por Tyler, Good, Belth, Phenix, Taba, Johnson, e D’Hainaut,* dentre outros, reduzem o curriculo a uma inten- «do prescritiva, situada no plano do que deve ocorrer ou do que tem que ser feito, de uma formacao antecipadamente determinada em termos de resultados de aprendizagem, geralmente traduzida num plano de estu- dos, ou num programa, muito estruturado e organizado na base de objectivos-contetidos-actividades-avaliagio e de acordo com a natureza das disciplinas. CO curriculo representa, com efeito, algo de muito planificado’ e que depois sera implementado na base do cumprimento das intengdes pre- vistas, constituindo os objectives, que expressam a antecipacdo de resul- tados, e os contetidos a ensinar os aspectos fundamentais para a sua definigao. Nessa perspectiva, falar de curriculo ou falar de programa repre- senta uma mesma realidade, aparecendo, sobretudo na tradigéo franc6fona, como sinénimos, evidenciada nesta definigao de D’Hainaut!* Um curriculo é um plano de acgio pedagégica muito mais largo que um_ programa de ensino [..] que compreende, em geral, no somente progra- ‘mas, para as diferentes matérias, mas também uma definigdo das finalida- ds da educagio pretendida. 5. Gimeno, 1988 6. Connley ¢ Lantz 1991. 7. "Por curricula entendemos a experincias planificadas que se ofereem aos alunos sob a tutela da escola” (Wheeler, 1967, p15) 8. DHalnaut, 198, p21 ” retwasonceto Essa tradigdo entronca no pensamento curricular de Bobbitt (1918, 1922, 1924). Em The curriculum afirma? A palavra latina curriculum refere-se ao percurso de uma carreira ou carreira em si — um lugar de feitos ou uma série de feitos. Aplicada & educagio, & aquela série de coisas que as criangas e os jovens sm de fazer e experimentar, de modo a desenvolverem capacidades para fazerem a8 coi- sas bem, para conseguirem resolver os problemas da vida adulta e sezem ‘© que os adultos devem ser em todos os aspectos (Grifado do autor). O tradicionalismo da concepgio de Bobbitt reside, grosso modo, na fungio técnica que orienta a educasao e que resume do seguinte modo, na obra How fo make « curriculum:® “A educacao é essencialmente para a vida adulta, nao para a vida infantil. A sua responsabilidade fundamen- tal é preparar pata os cinquenta anos de vida adulta e nao para os vinte anos de infancia e adolescéncia”, E por isso que Bobbitt" ndo s6 define curriculo de dois modos: 6 todo o leque de experiéncias, sejam estas dirigidas ou no, que visam 0 desdobramento das capacidades do individuo; ou € a série de experién- cas instrutivas conscientemente dirigidas que as escolas usam para com- pletar e aperfeicoar 0 desdobramento, mas também propée os objectivos como elementos estruturantes do pro- cesso educativo: quando 0 curriculo é definido como incluindo tanto experiéncias dirigi- das como ndo-dirigidas, entdo os seus objectivos s30 todo o leque de capa- cidades humanas, habitos, sistemas de conhecimento, etc,, que cada indi- viduo deve processar. Assim, Bobbit" resume a nogao de curriculo as actividades e expe- rigncias que circunscreve, na forma de uma engenbaria curricular, a 821 objectives, pertencentes a 10 dimensdes:"* 9, Bobbit, 1918, p. 42 10. Bobbitt, 1924.8 1. Bobbitt, 1918p. 43 12 Idem biden, p. 13 Bobbitt, 1924, p44 ‘Uk Bisasdimensdes propostas:itercomunicago socal: fine isa eficiénciae cd ania; relagSes e contacts sociais gerais; cupagio de tempos lives; eficincia mental ‘samscamonats » A educagio € 0 proceso de crescimento na direcglo certa. Os abjectivos do as metas do crescimento. As actividades e experiéncias do aluno io (8 passos que completam a sua jornada em direccio a estas metas. As actividades e experiéncias so 0 eurriculo, Na tradicao técnica, curriculo significa o conjunto de todas as expe- riéncias planificadas no ambito da escolarizacio dos alunos, vinculando-se a aprendizagem a planos de instrucdo que predeterminam os resultados ¢ valorizam os fundamentos de uma psicologia de natureza comporta- mentalista. Na segunda tradigfo, iliada numa perspectiva pratica e emancipa- téria de inter-relacio dos diversas contextos de decisio, define-se curriculo como um projecto que resulta nao s6 do plano das intengoes, bem como do plano da sua realizagao no seio de uma estrutura organizacional. # assim que as definigbes propostas por Schwab, Smith e colabora- dores, Foshay, Rugg, Caswell, Stenhouse, Gimeno, Zabalza e Kemmis, denire outros, apontam para o curriculo quer como 0 conjunto das expe- riéncias educativas vividas pelos alunos, dentro do contexto escolar, de- pendentes de intengdes prévias, quer como um propésito bastante flexi- vel, que permanece aberto e dependente das condigées da sua aplicacao. A definigao de Stenhouse™ expressa bem esta tradicio: “Um curriculo 6 ‘uma tentativa de comunicar os prinefpios e aspectos essenciais de um propésito educativo, de modo que permanega aberto a uma discussio critica e possa ser efectivamente realizado”. Quer dizer, pois, que nao se conceituaré curriculo como um plano, totalmente previsto ou prescritivo, mas como um todo organizado em fungao de propésitos educativos e de saberes, atitueles, crengas e valores que 0s intervenientes curriculares trazem consigo e que realizam no con- texto das experiéncias e dos processos de aprendizagem formais e/ou. informais, A construgio do curriculo depende, por conseguinte, do significa- do da experiéncia que se torna na pedra angular da educagao e que é uma das ideias estruturantes da Escola Progressista norte-americana, que actividades e atitudes religoses; exponsabilidades parents; actividades priticas nSo espe- Cializadas; actividades ocupacionas. 15 Stenhouse, 1984, p. 28, ” pxtmasiomoKco tem em Dewey tum dos seus principais inspiradores, ou da Escola Nova europeia. Na procura de uma definigdo que ultrapasse o primeito significado de plano/ programa, o conceito de curriculo relaciona-se com as expe- rigncias educativas que constituem o roteiro de aprendizagem institu ionalizada do aluno. Impera, nesse tiltimo caso, a perspectiva curricular anglo-saxénica em que curriculo é conceituado de forma abrangente, englobando as decisdes tanto em nivel de estruturas politicas como em. nivel de estruturas escolares. ‘Academicamente, essas duas tradigdes sao formas distintas de con- ceptualizar curriculo, mas ndo podem ser aceites como realidades dis- tintas e dicot6micas de uma mesma pritica. Sobre essa questdo, refere Goodlad:"* “Ge alguém desejar definir curricula como um curso de estudos, a ideia & legitima — e ndo 6, certamente, bizarra. Comecemos por af e vejamos onde rnos leva. Se alguém desejar comegar com o curriculo como ‘as experién- cias dos alunos’, vejamos onde isto nos leva. Nao comecemos, porém, por rejeltar todas as definicées e por procurar somente substituir uma outra que apenas reflicta uma perspectiva diferente. Podemos aperceber-nos rapidamente de quio curta é a distancia que percorremos”. 2. O complexo e o ambiguo como tragos definidores do curriculo Se nao existe uma verdadeira e tinica definigao de curriculo que aglutine todas as ideias acerca da estruturagdo das actividades educati- vvas, admitir-se-4 que o curriculo se define, essencialmente, pela sua com- plexidade e ambiguidade. Trata-se de um conceito que nao tem um sen- tido univoco, pois se situa “na diversidade de fungdes e de conceitos em fungio das perspectivas que se adoptam o que vem a traduzir-se, por ve-~ zes, em alguma imprecisio acerca da natureza e ambito do curriculo”.” 16. Goodlad, 1979, apud Jackson, 1952, p. 1. V7. Ribeiro, 1950, p11 ssonesceu ns 8 O lexema curriculo, proveniente do étimo latino currere (significa caminho, jornada, trajectoria, percurso a seguir), encerra duas ideias principais: uma de sequéncia ordenada, outra de nogdo de totalidade de estudos. Devido a sua natureza e dimensio pouco consensual, qualquer ten- tativa de definir curriculo converte-se numa tarefa ardua, problemética e conflitual. Alids, cada definigao nao é neutral, sendo que nos define & situa em relagao a esse campo. Insistir numa definicéo abrangente de curriculo poder-se-é tornar extemporaneo e negativo, dado que, apesar da recente emergéncia do curriculo como campo de estudos e como co- nhecimento especializado, ainda nao existe um acordo totalmente gene- ralizado sobre o que verdadeiramente significa Dentro desta complexidade do que significa defini curriculo, qual- quer tentativa de sistematizagao passa, necessariamente, pela observa- ao e interrogagao destes dualismos: o curriculo deve propor 0 que se deve ensinar ou aquilo que os alunos devem aprender? O curriculo é 0 ‘que se deve ensinar e aprender ou é também o que se ensina e aprende na pratica? O curriculo é o que se deve ensinar e aprender ou inclui também a metodologia (as estratégias, métodos) e os processos de ensi- no? O curriculo € algo especificado, delimitado e acabado que logo se aplica ou € de igual modo algo aberto que se delimita no proprio proces- so de aplicacao?* Respondendo a estas questdes, que expressam uma série de inter rogagdes, pode dizer-se que jamais se acharé uma resposta definitiva, visto que a conceituacdo de curriculo & problematica e nao existe A sua volta um consenso. Porém, esse seré um dos aspectos positivos do pen- samento curricular, remetendo os especialistas para uma problematiza- ‘cdo cada vez mais intensa e proficua. Existe, porém, consenso — o que permite falar de um campo epistemol6gico especifico— quanto ao objecto de estudo, que é de natureza pratica e ligado & educagio, e quanto A ‘metodologia, que é de natureza interdisciplinar, no quadro das ciéncias sociais ¢ humanas. Com efeito, responder & questo “o que é 0 Curriculo?”, e parafra- seando Grundy,” sera como responder a esta questéo: “o que é 0 fute- 18, Contreras, 1990 19, Grundy, 1987. x retaaironco bol?”. Sendo a resposta dificil, pela diversidade de argumentos e cren- «as, mais complexo se tornara se perguntarmos: como é aceite o resulta- do de um jogo de futebol?” Neste caso, curriculo é também uma forma concreta de olhar para 0 conhecimento e para as aprendizagens construidas no contexto duma organizagio de formagio. Perante 0s resultados de relat6rios internacio- nais, de exames nacionais e de listas de seriagao de escolas, por exemplo, serd que perspectivamos do mesmo modo 0 curriculo? Tanto 0 futebol como o curriculo dependem dos contextos em que se situam e das pessoas que neles intervém. Para lé das intengdes, existem os interesses e as forcas que se movem a sua volta. Quer dizer: 0 curriculo uma interseccio de praticas diversas, funcionando como um sistema no «qual se integram varios subsistemas2* E responder a “O que € 0 curriculo?” 6 algo que nos levaré & identficacao dos contextos, actores e intengdes. 3. Curriculo como intersecgdo de praticas: elementos do sistema curricular Esta ideia de interdependéncia de préticas que se inter-relacionam ese cofbem mutuamente ¢ esta ideia de abrangimento de decisdes, des- de as estruturas politicas até as estruturas escolares, existe num duplo sentido: por um lado, um sistema que coordena varios subsistemas (de participacao social e de controlo, politico /administrativo, de inovacao, de produgao de contetidos, de produgao de materiais e recursos, técni co/pedagégico); por outro, um subsistema doutros sistemas (politico, educativo, econémico, social, cultural... Neste sentido, toda proposta curricular € uma construgao social historicizada, dependente de irwime- 108 condicionalismos e de conflituosos interesses. Pode ver-se também o curriculo numa dimensio politica da educa- fo, ou seja, como um instrumento de escolarizagao, que reflecte as rela- 20, A assangSo dos resultados de um jogo de futebol jamais pode ter uma fundamentagio ‘éeniea, pois 0 pessoal 6 crucial nessa andlise. Recordee, @ esse propésite, © modo como os deptos portugueses pessoalizaam o Furo 2008, nfo encontrando qualquer lpica para oresl- ‘ado da final com a Grécia 21, Gimeno, 1988. ssowescoouns ” ses escola/sociedade e interesses individuais/interesses de grupo e interesses politicos /interesses ideol6gicos. Para Gimeno,” e numa primeira sintese do que efectivamente repre- senia, ocurriculo significa o seguinte: 6a expressdo da fungdo socializadora da escola; é um instrumento imprescindivel para compreender a pratica pedaggica; esté estreitamente relacionado com o contetido da profissio- nnalidade dos docentes; é um ponto em que se intercruzam componentes € decis6es muito diversas (pedagégicas, politicas, administrativas, de con- trolo sobre o sistema escolar, de inovacio pedagégica); é um ponto central de referéncia para a melhoria da qualidade de ensino. Pesem as diferentes perspectivas e 0s diversos dualismos, curriculo define-se como um projecto, cujo proceso de construgdo e desenvolvi- ‘mento ¢ interactivo e abarca varias dimens6es, implicando unidade, con- tinuidade e interdependéncia entre 0 que se decide em nivel de pla- no normativo, ou oficial, e em nivel de plano real, ou do processo de ensino-aprendizagem. Mais ainda, o curriculo é uma pritica pedagégica que resulta da interacao e confluéncia de varias estruturas (politicas/ administrativas, econémicas culturais, sociais, escolares...) na base das, quais existem interesses concretos ¢ responsabilidades compartilhadas. Apesar da polissemia do termo e dos intimeros significados que pode ter dentro do sistema escolar, o curriculo é um instrumento de for- ‘magdo, com um propésito bem definido e que, tal como uma moeda, apresenta uma dupla face: a das intengdes, ou do seu valor declarado, ¢ a da realidade, ou do seu valor efectivo, que adquire no contexto de uma estrutura organizacional. Assim, o curriculo pode desvalorizar-se, pode ser cerceado na sua intencionatidade sempre que entre no jogo especula- tivo, cujas regras nem sempre so explicitas, principalmente na confli- tualidade social das reformas educativas e curriculares. Nesse sentido, estdo construidas as duas definigSes de curriculo presentes nos documentos da reforma do sistema educativo da década de 1980, que transcrevemos, nao pela pertinéncia académica, mas pela originalidade de aparecerem pela primeira vez em documentos orienta- dores e em normativos oriundos do Ministério da Educagao: Occurriculo constitu [...] o modo de traduzir a ligagio da teoria educativa a pratica pedagégica. Mas porque a primeira se situa no plano das ideias 22. dem ibider, p36 * stuasonoK a segunda no plano da realidade, tal ligagio tem que ser concebida com ‘uma grande dose de pragmatismo, procurando optimizar-se 0 que pode ser face ao que deveria ser” © termo curriculo é geralmente entendido ou em sentido restrito ou em. sentido lato. Em sentido restrito, 0 curriculo constituido pelo conjunto das actividades lectivas, ficando fora dele todas as actividades nao-lectivas ainda que reconhecidamente de grande interesse educative, Em sentido lato, 0 curriculo coincide com 0 conjunto de actividades (Jectivas e nao. lectivas) programadas pela Escola, de cardcter obrigatério, facultativo ou livre. O entendimento que a CRSE tem do curriculo, para os efeitos do presente programa, é 0 que correspondle ao sentido lato [..] 0 objectivo é conseguir com um tal programa educativo completo e integrado, a forma- ‘fo integral e a realizagao pessoal dos educandos.* Nos projectos de revisao curricular, que culminam em 2001, com a publicagao dos decretos-lei de reorganizacio, o curriculo, na sua verten- te nacional, ou seja, marcadamente administrativa, é assim definido:® [.-Lentende-se por curriculo nacional o conjunto de aprendizagens e com- peténcias a desenvolver pelos alunos a0 longo do ensino bisico, de acor- do com os objectives consagrados na Lei de Bases do Sistema Educativo para este nivel de ensino, expresso em orientacSes aprovadas pelo Minis- ‘ro da Educagao, tomando por referéncia os desenhos curriculares anexos a0 presente decreto-lei™ Igual orientacio, de base nacional, é proposta no Brasil com os Para- ‘metros Curriculares Nacionais, conforme se pode ler nas suas bases legais:”” Enno contexto da Educacio Basica que a Lei n® 9394/96 determina a cons- trugio dos curriculos, no Ensino Fundamental e Médio, “com uma Base ‘Nacional Comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e es tabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas caracte- risticas regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clien- 23.Ck. Comissio de Reforma do Sistema Eauctivo, 1988, Documentos Peparatris Ip. 193 24, Cl. Comissio de Reforma do Sistema Educative, 1988, Proposta global de reorma, Relatrio final, p97, 25. Igual definigSo ¢ dada para a revisso curricular do Ensino Secundétio. Cf. Decretole 74, de 21 de mango de 200, at. 26. Ci art. do Decreto ein 6/2001 27. wwewsmec.goubr (Acesso em: jan. 2005) srscnmraes » tela” (Art. 26). A Base Nacional Comum contém em sia dimensio de pre- pparagao para o prosseguimento de estudos e, como tal, deve caminhar no sentido de que a construcio de competéncias ¢ habilidades bisicas, e no 0 actimulo de esquemas resolutivos pré-estabelecidos, seja o objetivo do proceso de aprendizagem, 4, Para além da definicao Acerca da definigao de curriculo, Jackson” argumenta que se trata de um termo impreciso, devido a diversidade de posigdes. Todavia, essa confusao terminoligica deve ser analisada no dificil percurso da cons- trugdo epistemolégica, com a existéncia de diferentes perspectivas, tal como acontece em qualquer campo de estudos: Para comegar, Jackson refere que “tanto o estado das coisas” como “o esta- do de espitito recorrente” do campo hoje em dia despertam confusio, cembora possamos chamar a atengio para 0 facto de a clareza da dissezta- ‘fo de Jackson minar essa asser¢ao. Realmente o campo est complicado, ‘muito mais complicado do que alguma vez foi. Nao o achamos confuso. Se considerarmos 0 campo como estando num determinado estidio de desenvolvimento, ou seja, num estidio préximo do seu primeizo paradig- ‘ma nos anos 70, e se avaliarmos as fontes disciplinares e as fungées do saber no campo curricular que tem sido desenvolvido desde os anos 70, ligado ao saber anterior aos anos 70, entio a imagem que emerge do cam- po € bastante clara: a complexidade do campo contemporineo nio é de negar. Claro que a clareza e a complexidade nao sio mutuamente exclust- vas, Partilhamos a visio de Jackson: “deixemos que a nossa escrita seja to dificil como tem de ser para passar a sua mensagem de forma perfeita® Nese aspecto, devemos reconhecer que a fragmentagao do campo curricular compreender-se-é, preferencialmente, pela inexisténcia de um. consenso no sobre o que significa, mas do que deve veicular e do modo como deve ser organizado. ‘A questao da definigdo do termo curriculo néo se torna numa tarefa prioritéria, pois jamais uma definigao contribuira para a existéncia de um. 28. Jackson, 1992 29. Pinar el al, 1995, p. 25. « pstavaromcico ensamento comum sobre uma realidade, construida na multiplicidade de praticas concorrentes para uma mesma finalidade: a educagio dos su- jeitos em funcio de percursos de aprendizagem. Mas quem define estes percursos? F uma das principais interrogagdes em torno do curriculo. Em consequéncia, o curriculo deve ser questionado “como um cam- Po que representa um esforco profissional”®" de diversos especialistas* ‘com perspectivas diferentes quanto a concepgao, desenvolvimento ¢ ava- liagdo de um projecto de formacéo. Olhando para a contemporaneidade, constatamos que 0 campo curricular pode voltar a ser declarado moribundo ou mesmo morto na sua tentativa de explicar os argumentos e de propor os caminhos para a organizagao dos projectos de formacao. E agora no vamos invocar a excessiva teorizacao, em detrimento da deliberacéo pragmitica, mas a crescente descaracterizacao motivada pela procura de novas identidades delineadas na obsessio da radicalizacéo da particularidade, dando ori- ‘gem ao que pode set denominado portfoliagto curricular: a pulverizacao das identidades curriculares como reaccéo ao dominio do paradigma tyleriano. £ o que reconhece Pinar: “como resultado da reconceptualiza- 0, 0 campo passou de uma unidade paradigmtica —o rationale tyleriano para o particularismo — os varios discursos contemporaneos. A situia- fo de hoje em dia é de particularismos e até mesmo de fragmentacio". Perante tanto particularismo jé nao sabemos se 0 curriculista é um profissional comprometido com a compreensio e orientagao das prati- «as educativas ou, pelo contratio, se se tornou num especialista da teoria da linguagem, da teoria geral de sistemas e da psicandlise. A procura das fronteiras da transgressio epistemol6gica, na qual o curriculo pretende acompanhar as ciéncias da educaco, quando estas tém como objecto de estudo os fenémenos nao educativos, contribui, assim, de forma decisi- va para a pluralizacio excessiva dos discursos curriculares. Neste mo- ‘mento, 0 campo curricular percorre © mesmo sentido daquele que con- duziu ao enraizamento educativo do paradigma da racionalidade técni- cae que esté na base do distanciamento entre a teoria ea pritica curricula- res, Quando a prética curricular é dissecada nas suas intimeras e contra- Jackson, 1982, p20. Si. Jackson, 1982, p20, refere os seguints espcialistas curiculares dacisores curricula ‘es; pariipantes no desenvolvimento curricula, corstrtores do currculo; valiacores cur cules; gestorescurrculares; coordenadorescurriculares; consultores curriculares, 32. Pina, 1988, p. 12. soscumnes “ ditérias identidades, como se 0 curriculo abarcasse tudo 0 que é educa- tivo, ndo estaremos, de igual modo, a desviar a nossa atencéo daquilo que 0 curriculo significa e em rela¢ao ao qual se imp6e um conjunto de decisdes compartilhadas? Se, de facto, pretendermos fazer do curriculo um pensamento que aborde seriamente as questdes da pratica, nao poderemos ignorar as se- guintes deliberagdes curriculares:* Epistemologicamente. O que deve contar como conhecimento? Como saber fazer? Devemos tomar uma posigdo comportamental e uma posi- do que divida o conhecimento eo saber fazer em Areas cognitivas, afectivas e psicomotoras, ou precisamos de uma imagem menos reduto- 1a.e mais integrada do conhecimento e da mente, uma imagem que sa- liente o conhecimento como proceso? Politicamente. Quem deve controlar a selec¢ao e distribuigao do co- mhecimento? Por meio de que instituigdes? Economicamente. Como 0 controlo do conhecimento é ligado a dis- tribuigdo existente e desigual de poder, bens e servigos na sociedade? eologicamente, Qual é 0 conhecimento de maior valor? A quem per tence esse conhecimento? Teenicamente. Como se pode colocar o conhecimento curricular a0 alcance dos alunos? Esteticamente. Como ligamos 0 conhecimento curricular a biografia € as ideias pessoais do aluno? Em que medida agimos “com astticia” como construtores do curriculo e professores ao fazé-lo? De uma forma coerente e justa em termos educacionais? Que nogdes de conduta moral ede comunidade servem de suporte ao modo como alunos e professores fo tratados? . Historicamente. Que tradig6es j4 existem no campo que nos ajudem, a responder a estas questies? De que outros recursos precisamos para ir mais além? Em sintese, a resposta & questio “o que se entende por curriculo?” & ‘uma misao, por um lado, complexa porque existe uma grande diversida- de no pensamento curricular e, por outro, fil, na medida em que o currf- culo é um projecto de formagao (envolvendo contetidos, valores/atitudes © experiéncias), cuja construgdo se faz a partir de uma multiplicidade de 33. Beyer e Apple, 1988, p.5. 8 tuaono réticas inter-relacionadas através de deliberagdes tomadas nos contextos social, cultural (¢ também politico e ideol6gico) e econémico (Fig. 1) Figura 1 Matriz de construgio do curticulo Cultura Economia Sociedade Contexidos Valores Experiencas | A maturidade do campo curricularjé afastou definitivamente a ideia bizarra de Rugg® quando, em 1936, disse que o curticulo era “uma pala- vvra académica feia, desajeitada”, nao podendo dizer-se que seja um ter- ‘mo vago e indeterminado. Digamos que curriculo nao é meramente um. plano, um programa, um cursus, uma pista de corrida para os aprenden- tes. Curriculo é também um projecto, uma praxis sobre um conhecimen- to controlado, por um lado, “no contexto social em que o conhecimento Econcebido e produzido” e, por outro, no modo “como esse conhecimen- to 6 traduzido para ser utilizado num determinado meio educative” 8 A dicionarizagao do termo curriculo em Portugal, nos dias de hoje,* tem revelado sobretudo a ideia tradicional de programa, ndo incluindo as va- rias nogbes” que tem vindo a adquitrir pelas suas praticas de construcdo. 34. Apud Jackson, 1992p. 5 35. Goodson, 200, p. 61-62 36, No Diciondro de Lingua Portuguesa Contemporinet, da Academia das Citncias de Us- boa, 200, curiculo tem os sentidos de: “Aco ou resultado de core, camino mals cto que ‘outro, pequene carrera; conjunto de indicacbes que integram o percurso escolar ou proislo ral de alguém;conjunto de matérias ou disiplinas escoares que fazem parte de um curso, de ‘um ciclo de studs [1 rea curricular”. No Diciondro de Lingua Portugues (7), Porto Ea tora, 1994, curricula é “Atalho, curso, pequena carrira; sucess dos facto que marca cults ral e profissionalmente a careira de uma pesto relato sumaio esrito dessesfacox” ¢ no Grande Dicimdrio da Lingua Portugues, 18.04, Bertrand, 1978, significa: “Acto de correr caro, aalho, pequens carrera. 87, Bstas nogdes esto consagradas, por exemplo, no Dicionrio de Metalinguagens da Didectica, Porto Baitora, 2000 CEA 2 O que se entende por Desenvolvimento Curricular? 1, Nogdo de Desenvolvimento Curricular Com pertinéncia, Kliebard! afirma que “nao hé nada raro e miste- rioso sobre o desenvolvimento do curriculo, nem requer um elevado grau de especializacao técnica nem esté reservado exclusivamente aos consa- grados, mas representa, sem diivida, uma questo muito complexa”. As concepgies de curriculo como um plano de acco pedagégica, ou como um produto que se destina a obtencao de resultados de apren- dizagem organizados no ambito da escola, pressupdem um proceso di- vidido em trés momentos principais: elaboracio, implementacéo e ava- liagao, tudo se conjugando numa racionalizagao dos meios em funcao dos objectivos e dos resultados, originando a chamada consciéncia tecno- Igica ou racionalidade técnica?. Quando se perspectiva 0 curriculo como um projecto resultante de uma racionalidade prética, rejeita-se a compartimentagao entre os trés momentos anteriormente referidos, ¢ corolariamente a divisdo de traba- 1. Klebard, 1985p. 227 2. Ideas de Henry Giroux e Donald Schon, respectivamente. Cf. Pacheco, 200, p. 63

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