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Tzvetan Todorov O JARDIM IMPERFEITO Duss grandes opyéesenfentam-se mais desde os sofstas gregos: segundo os Antigas 68 | valores seriam dados (pela natureza, por Deus) segundo os Modemos, proviriam da vontade he ‘sna. O fato de nde serem naturais iio significa, orém, que os valores sejam arbitrérios, E isso «que, entre os Mademnos, pretendem os humanists, esse recusam a consderar © homem, com fae am os Antigos, como um ser em que destino & clr Sejm inseparéveis, da mesma forma que nfo se deixam encerrar na altemativa do naturalismo e do relativismo, E este o objeto central deste novo livto de Tzvetan Todoroy, o rfc literéro fran- és que se torou famoso na década de 60 com sua tsodugdo os textos do Formalismo russo ¢ mais de Jakobson e Bakhtin, ¢ que se tem afirmado hoje, cada vex mas, como um estudioso Jas Humanidades, autor de livros sobre posta, narratologia,retGrica,ética, meméria, democracia , muito procuradas pelos estudantes univers- tios po sew estilo claro e ddtico, Entre suas dl imas obras destacame-se A Critica do Séeulo Vine 1 Visdo Pessoal; As Morais da Historia; arde as ob Uma Tragédia Francesa: Cenas da Guerra Civil, Verdo de 1944 ¢ este O Jardim Imperfeto que, juntamente com estudos sobre Jean-Jacques Rousseau, Montaigne e Benjamin Constant, é re sultado de seu imeresse de algumas décadas pelo humanismo frances UST Reitor Viee-reivar ea Dictorprstinte Presidente Viee-presidente Diretore Edivorial Divetora Comercial Diretor Adminisiativo Budiwres-assstentes LUNIVERSIDADE DESKO PAULO Adolpho José Mel lio Nogueira da Cruz EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO, io Martins Filho CCOMISSAO EDITORIAL, Joss Mindtin Laura de Mello ¢ Souza Baasilio Jodo Sallam Junior Carlos Alberto Barbosa Dantas Carlas Augusto Monteiro Franco Maria Lajolo Guitherme Leite da Silva Dias Plinio Martins Fitho Silvana Biral Ivete Silva Silvio Porfirio Corado Marten Vizentin (Carla Fernanda Fontana ‘Marcos Bernariat 0 PENSAMENTO HUMANISTA NA FRANCA ‘Tradugio de Mary Amazonas Leite de Barros ee Copyright © 1998 by Etons Graset & Pasquele ‘Titulo do original em francés: Le jardin imparfait: La pensée humaniste en France Ficha Catalogria elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas ‘Todorov, Tavetan, 1939+ (© Jardim Imperfeito: © pensamento humanista na Franga / ‘Tevetan Todorov ; tradugio Mary Amazonas Leite de Barros, ~ Sio Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2005. ‘224 p.; 15.5 x 23 em (Ponta ; 19) “Teaduglo de: Le jardin imparfait : la pensée humaniste en France, 1998, Inclui bibliografia€ indice remissivo ISDN 85-314-0819-9 1. Humanismo 2. Filosofia Francesa I. Titulo. I, Titulo: 0 pen- samento humanista na Franga. Il. Série. cDD-144.0944 a ee Direito em lingua portuguesa reservados & ‘Edusp ~ Faitora da Universidade de Sao Paulo ‘Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa 3, 374 6 andae ~ Ed, da Antiga Reitoria ~ Cidade Universitria (05508900 ~ Sio Paulo ~ $P = Brasil ‘Divisio Comercial: tel. (x11) 3091-4008 / 3091-4150 SSAC (Oxxt 1) 3091-2911 — Fax (Oxxt) 3091-4151 ‘A meus amigos fildsofos, Luc e André SUMARIO ..O Pacto Ignorado. O Jogo das Quatro Familias Os Conservadores adeia Rompida Cientistas Individualista: ‘amilia Humanista las de Famtlias ho” e “Ingenuidade” .. ou Artificial . Humanismo na Histéria A Declaragio de Autonomia ontaigne Bai eae ac 4. Viver S6 A Epoca dos Individuos .. Elogio da Solidio .. 94, Rousseau Juiz de Jean-Jacques - 96 O Desejo de Independéncia 101 Vida Ativa e Vida Contemplativa 5. As Vias do Amor ... A Impossivel Substituicio. O Amor-desejo .. O Amor-alegria sess Individuo como Fim Amar o Imperfeito Amor ¢ Humanismo 109 110 112 M7 . 9 123 126 6. O Individuo: Pluralidade e Universalidade = 129 O Homem, Diverso e Ondulante.... sesnnaes 130 A Forma Mestra 131 135 138 . 140 142 147 149 152 155 158 163 163 . 168 170 O Individuo como Fim (Bis)... Um Ser Unico Eu e os Outros... A Humana Con 7. A Escolha dos Valores As Artes de Viver Individualistas .. Sabedoria de Montaigne .. Honestidade de La Rochefoucauld .. Estetismo de Baudelaire 8. Uma Moral Feita para a Humanidadi A Terceira Via A Dupla Existéncia Defesa da Moral Critica da Moral Crista. 174 Consciéneia e Razio 178 Dever ¢ Deleite.. . 181 Frigil Felicidade . 185 9. A Necessidade de Entusiasmo . 187 Reinado do Interesse? 187 Interesse € Sentimento . 189 O Homem Descentrado . 192 Moral ¢ Religit . 197 Moral e Verdade . 199 Epflogo. A Aposta Humanista . 203 Bibliografia 213 indice Onomistico 217 sesthiiin we Be __O primeiro pacto foi proposto pelo diabo a Jesus. Depois de obrigé-lo a juar durante quarenta dias no deserto, ele o fez. ver, num s6 instante, todos os os da terra. Ele lhe disse entio: Tudo isso depende de meu poder. Estou, contudo, pronto a cedé-lo a ti. $6 pego em troca um Ginico pequeno gesto: que tu reconhegas como mestre; se 0 fizeres, caber-te-4 reinar. Mas Jesus respondeu: (0 quero esse poder, pois $6 quero servir a Deus, ¢ seu reino nao é deste mundo. recusou, portanto, o pacto. Seus sucessores acabaram todavia por accité-lo; de Constantino a Luis XVI, durante mais de catorze séculos, cuidaram de rei- ir sobre os reinos do diabo. Um vidente russo, algum tempo depois, pretendeu Jesus, tendo um dia voltado & terra, foi duramente repreendido pelo Grande quisidor por sua recusa: os homens sio fracos, teria dito ele, a f€ em Deus nao ta, a Lei de Deus vale mais. © segundo pacto foi proposto, no século XV, por um enviado do diabo, ist6feles, a um homem ambicioso e orgulhoso, magico, necroméntico e pres- itador, que se chamava Johann (ou talvez, Georg) Fausto e que tentava pene trar nos segredos da vida e da morte. JA que és curioso, disse-Ihe o enviado do diabo, eu te proponho um negécio: terds acesso a todo o saber do mundo, nenhum enigma resistird a ti; ndo ignoras com certeza que 0 saber conduz. ao poder. Em troca, nao te pego para fazer uma grande declaragao de submissio, exijo uma sO coisa, é verdade que um pouco especial: ao cabo de vinte € quatro anos (mas ‘inte e quatro anos custa a passar! correrias até o risco de ndo viver tanto assim), ‘tu me pertencerds inteiramente, de corpo e alma. Diferentemente de Jesus, Fausto aceitou os termos do contrato. Desfrutou, portanto, de um saber infinito e foi n T2VETAN TODOROV cereado de admiragio unainime. Mas conta-se que, durante os tiltimos anos do pacto, ele tommou-se magante, nao saindo de casa e niio se interessando mais por nenhum segredo; ele rezava para que o diabo 0 esquecesse. Ora, 0 diabo nao 0 esqueceu ¢, no dia em que 0 contrato se expirava, veio buscar Fausto, que langava em vaio gritos de horror. O tercciro pacto data da mesma época aproximadamente daquele de Faus- to; mas ele tem uma particularidade: & que sua existéncia nfo foi revelada no momento em que entrou em vigor. A astticia do diabo consistiu dessa vez em deixar que a parte contratante, o Homem modemo, ignorasse 0 contrato; em dei- Xé-lo acreditar que cle obtinha novas vantagens gragas a seus pr6prios esforgos, ¢ que ni teria jamais de pagar. Dessa vez, o que o diabo oferecia nao era mais 0 poder, nem o saber, mas 0 querer. © Homem moderno teria a possibilidade de querer livremente, de adquirir 0 dominio de sua prépria vontade e de levar a vida 4 sua maneira, O diabo ocultava o prego da liberdade para que homem tomasse gosto por ela e niio mais quisesse renunciar-lhe em seguida — que se visse pois na obrigagio de quitar sua divida. © Homem moderno ~ 0 homem da Renascenga, homem das Luzes ~ levou tempo para se dar conta da extensiio do que ele podia adquirir. Alguns dle seus representantes s6 pediram a liberdade de organizar sua vida pessoal em fungaio de seus gostos. Eles teriam o dircito de escolher uma vida junto aos seres pelos quais sentissem afeto, em vez. de seguir as leis do sangue ou as da cidade, ou ainda as ordens de seus pais. Eles poderiam também escolher livremente scu local de resi- déncia: que a vontade e nao 0 acaso decida sobre 0 cenério de sua vida! Em seguida, outros dentre seus representantes acharam esse gozo da liberdade dema- siado doce para admitir que fosse restrito apenas aos sentimentos. Pediram entio que a razio fosse liberada por sua vez: que no tivesse mais a obrigagio de reco- nhecer a autoridade da tradigao conduzida pela memoria dos homens. A trad podia continuar a reinar sobre os negécios da cidade ou sobre 0 comércio com Deus; mas a razdio devia ser livre para constatar 0 verdadeiro e o falso. $6 era entio declarado certo 0 saber ao qual se chegara pelas luzes naturais da razio. Assim nasceu a ciéncia puramente humana, totalmente diferente da onisciéncia do doutor Fausto. Tendo provado dessas duas liberdades — as de se submeter apenas a suas prOprias afeigées, & sua prépria razdio -, 0 Homem moderno foi tentado por uma nova extensiio do campo da vontade. Restava-Ihe com efeito assumir 0 vasto dominio de suas agdes piblicas. Somente seria agora declarada moral uma agtio realizada com liberdade, pela forga de sua vontade (6 0 que ele ia chamar sua responsabilidad); somente seria julgado legitimo 0 regime poli- tico escolhido pela vontade de seus stiditos ~ denominado, este, “democra- cia”. Mais nenhum dominio eseaparia entio & intervengo da vontade, que poderia gozar de sua liberdade em qualquer circunstancia. Durante esse tem- Po = dois séculos inteiros ~ o diabo nao tinha ainda revelado que um dia ele cobraria sua divida. OJARDIM IMPERFEITO ba ‘No decorrer desses dois séculos, a conquista da liberdade era da algada de nens estudiosos, de pensadores que encerravam seus raciocinios nas paginas livros. Uma mudanga sobreveio na segunda metade do século XVII, ‘alguns homens de ago, descontentes com o estado do mundo a sua volta, n conhecimento das idéias ocultas nos livros e decidiram expd-las. Julga~ elos os novos principios descobertos por scus ancestrais © quiseram viver ordo com eles mais que contemplé-los em espirito. A Revolugio Americana lugdio Francesa foram acompanhadas niio apenas (no caso da primeira) Declaragio de Independéncia, mas também de uma Declaragio de auto- jamais anunciada a luz do dia, isto &, da adesio ao principio segundo o | nenhuma instancia é superior vontade dos homens: vontade dos povos, di individuos. oO San nea entio, que 0 Homem nfoderno havia mordido sufici- inte bem seu anzol e escolheu esse momento para anunciar que um pacto istia e que era preciso comegar a pagar por suas generosidades passadas. Antes esmo do fim desse século XVII, ¢ sobretudo em numerosas ocasides depois, continuow a apresentar sua fatura. Nao quis entretanto aparecer em pessoa, s preferiu inspirar alguns sombrios profetas, aos quais deu por missio revelar homens o montante que teriam de regrar. Se queres manter a liberdade, disse- esses profetas a seu contemporfineo, terds de saldar um triplo prego, separan- e primeiro de teu Deus, em seguida de teu proximo e finalmente de ti mesmo. Nada de Deus: nio ters nenhuma razdo para crer que exista um ser acima i, uma entidade cujo valor seria superior ao de tua propria vidas nao terdis mais is nem valores: serais um “materialista”. Nada de préximo: os outros homens, lado e niio mais acima de ti, continuario a existir, é claro, mas nfo contaro tis para ti. Teu circulo se restringi rimeiro a teus jeonhecicos em cea familia imediata, para se limitar enfim a ti mesmo; serds um “individualista’ tards entio agarrar-te a teu ego, mas este seri por sua vez,ameagado de desto- to. Serds atravessado por correntes sobre as quais nao terds nenhum domi- creris decidir, escolher e querer livremente, quando na verdade essas forgas rdneas 0 fardo em teu lugar, de modo que perderds as vantagens que te ram justificar todos esses sacrifcios. Esse ego ser apenas uma colegio clita de pulses, uma dispersio ao infinito; sera um ser alienado e inautén- “tico, ndio merecendo mais ser chamado de “sujeito”. Quando os homens moderos (aos quais se juntaram, pouco a pouco, as mulheres modernas) ouviram, através dessas sombrias profecias, o amincio do to de que eram parte recebedora, eles se dividiram, Nao conseguiram entrarem eordo sobre a conduta a adotar diante do que Ihes parecia ora uma adverténcia, ‘ora uma ameaga, ¢ as vezes uma maldigao. Desde a revelacdo do contrato, os que - dio.a conhecer suas opinides em pablico, estudiosos, escritores, homens politicos ‘0U filésofos, se dividiram em varias grandes familias, segundo as respostas que _quiseram Ihes dar. Essas familias de espfritos existem ainda hoje, ainda que os eru- s € as adoges tenham confundido um pouco 0 quadro. Zamentos, as defecg “ Taveraw TODOROV A primeira familia, a mais facil de identificar, retine os que pensam que 0 diabo tem razdo: que o prego da liberdade inclui na verdade Deus, a sociedade © ego; que esse prego é demasiado elevado; e que é, portanto, preferivel renun. ciar & liberdade. Mais exatamente, os membros dessa familia ndo preconizam a volta pura e simples a sociedade antiga, pois véem perfeitamente que o mundo A volta deles mudou e que tal retomo implicaria esse mesmo exercicio de liber. dade e de vontade que, além do mais, reprovam; mas eles lamentam 0 estado de coisas anterior ¢ tentam preservar-Ihe os vestigios, opondo-se a0 mesmo tempo as demandas de uma modernidade mais radical. Essa familia é a dos conserva- dores: os que desejariam viver no mundo novo valendo-se de valores antigos. As outras familias, reduzidas aqui ao niimero de trés, t8m como trago comum aceitar e aprovar 0 advento da modernidade; 6 a razio pela qual se pode Por vezes confundi-las. Contudo, os tragos que as separam niio siio menos es- senciais; por isso suas reagdes aos desafios do diabo ni serio de modo algum semelhantes. Essas familias modernas so as dos humanistas, dos individualis- tas e dos cientistas. Quando os cientistas ouvem as pretensdes do diabo, afastam-nas sem pes- tanejar: niio se preocupe, replicam eles, nao haverd prego a pagar pois nunca hou- ve liberdade. Ou melhor: a nica verdadeira liberdade é a do saber. Gragas as capacidades humanas de observagio e de raciocfnio, gragas, portanto, a cine: Puramente humana, € possivel perscrutar todos os segredos da natureza e da bi: {6ria. Ora, quem tem o saber tem o poder, como ji descobrira Fausto: a ciéncia conduz.2 técnica; se dominam-se as leis do mundo existente, pode-se também trans- formé-lo. Quanto ao querer, ¢ pondo de lado a vontade de conhecer, sua liberdade € bem limitada: os homens sio conduzidos, & sua revelia, por leis biolégicas ¢ hi {6ricas, © que eles tomam como sua liberdade & apenas, no mais das vezes, sua ignorancia. Os préprios valores em que pretendem se inspirar para orientar suas ages decorrem no essencial dessas leis inelutveis do mundo. Se Deus, a socie- dade e 0 ego participam da identidade humana, nada poderd extrai-los dela; se n‘io © fazem, nio haverd nada a lamentar. Em ambos os casos, o diabo deve retornar de mios vazias, A reagiio dos individualistas, membros da segunda familia resolutamente moderna, é bem diferente; ela consiste em dizer: os senhores acreditam que nossa liberdade acarreta a perda de Deus, da sociedade e do ego? Mas para nds isso no € uma perda, é uma liberagio suplementar. A descrigao que fazem de nosso esti. do € justa, mas, mais do que nos aborrecermos (ou, pior, de querermos voltar atrds), vamos nos empenhar em agir de modo a torné-la ainda maior. Que 0 ho- mem se afirme em sua soliddo essencial, em sua liberdade de todo constrangi- mento moral, em sua dispersao ilimitada! Que ele afirme sua vontade de poder, due sitva ao préprio interesse: © maior bem para ele advira dat, e & s6 isso que Conta. Em vez. de se desolar com ele, é preciso soltar gritos de alegria. O que os Senhores descrevem como uma doenca (ou como a contrapartida dolorosa de um Pacto ignorado) é na realidade o inicio de uma festa (0 JARDIM IMPERFEITO 1s Para os cientistas, niio hé prego a pagar pela liberdade, pois nao hé liberda- de, no sentido em que a entendemos habitualmente, mas apenas um novo domt- nio da natureza e da hist6ria, fundado no saber. Para os individualistas, no hé prego a pagar pois 0 que se perdeu nao merece que se lamente e nos sentimos muito bem sem valores comuns, sem elos sociais incOmodos, sem ego estavel ¢ coerente. Os humanistas, tiltima grande familia, pensam ao contririo que a liber- dade existe e que ela é preciosa, mas apreciam ao mesmo tempo esses bens que So os valores partilhados, a vida com 0s outros homens ou 0 ego que se conside- 1a como responsdvel por seus atos; querem, portanto, continuar a desfrutar da liberdade sem ter de pagar seu prego. Os humanistas levam a sério diabo, mas no admitem que tenha sido conclufdo um pacto com ele, langando- Ihe por sua vez um desafio. Em nossa parte do mundo, viveros ainda hoje sob 0 risco das ameagas do diabo. Encarecemos nossa liberdade mas receamos ter de permanecer num mun- do sem ideais nem valores comuns, uma sociedade de massa povoada de solitii- 4s que no mais conhecem o amor; tememos secretamente, e sempre sem o saber, a petda de nossa identidade. Esses temores € esses questionamentos sio sempre 68 nossos. Para enfrenté-los, escolhi voltar-me para a hist6ria do pensamento. Lembrando-me do andio encarapitado nos ombros dos gigantes, eu quis, para me defender dessas ameagas, chamar em meu auxilio o pensamento dos autores des- sa época um pouco distante, durante a qual s¢ teria concluido o pacto ignorado; contar de algum modo o romance da invengo da modernidade, com seus grandes personagens: suas aventuras, seus conflios, suas aliangas. Creio, mais particular mente, que uma das familias de espiritos modernos, a dos humanistas, poder nos, ajudar, melhor que todas as outras, a pensar nossa condigio presente e a superar suas dificuldades. Esse livro Ihes & por essa raziio dedicado, termo “humanista” tem varios sentidos, mas pode-se dizer em primeira aproximagdo que ele se refere 3s doutrinas segundo as quais 6 homem & 0 ponto de partida e 0 ponto de chegada das ages humanas; sfio doutrinas “antropo tricas”, como outras so teocéntricas, como outras ainda poem nesse lugar cen- tral a natureza ou as tradigdes. O substantivo figura, talvez pela primeira vez em francés, numa pdgina de Montaigne em que este serve-se dele para caracterizar sua propria prética, por oposigdo & dos tedlogos. Sem recusar de modo algum a estes tiltimos 0 direito ao respeito, muito menos & existéncia, ele prefere separar 0s dois dominios e reservar aos “humanistas” um novo campo, constituido pelas atividades ou “fantasias” simplesmente humanas, pelos eseritos “puramente hu- manos”; estes concernem aos temas que sao “matéria de opinido, no matéria de £6" ¢ eles os tratam “de uma maneira leiga, ndo clerical” (Essais, 1, 56, 322- 323*). A especificidade dos negécios humanos (por contraste com os que se refe- rem a Deus) est, portanto, no ponto de partida da doutrina humanista, mesmo * As referencias complete fguram no final ds aba. Os ndmers entre colcetes enviam spins do presente vr, 6 TaveTAN TODOROV que no se reduza a ela; ver-se-do seus outros ingredientes aparecerem no decor- rer da presente investigaco. Essa escolha inicial nao significa, como também se verd, que se conceda ao homem uma estima incondicional: o proprio Montaigne jamais se esquece que a vida humana é destinada a permanecer um “jardim im- perfeito” (I, 20, 89). Para levar esta investigagzio a bom termo, eu me impus limites no tempo € no espago. Esses humanistas, tomo-os por assim dizer exclusivamente na tradigao francesa (uma delimitagao arbitrdria, mas necessdria). Por sua vez, os textos que li néo pertencem a época contemporanea. E que o pensamento dos autores que fundaram a doutrina nao foi renovado radicalmente no decorrer dos Gltimos 150 anos; muito pelo contririo, ele me pareceu mais rico ¢ nuanga- do que a vulgata “humanista”, tal como se pode entrever no discurso comum de hoje. O humanismo € a ideologia subjacente aos Estados democriticos mo- dernos; mas essa mesma onipresenga o torna invis(vel ou insosso. Por esse motivo, enquanto presentemente todo mundo € pouco ou muito “humanista”, a doutrina em estado nascente pode ainda nos surprecnder ¢ nos iluminar, Pare- ceu-me que esses autores classicos tinham de certo modo dado a réplica aos ‘sombrios profetas” antes mesmo que a profecia tenha sido formulada, nfo se limitando ao mesmo tempo, é claro, a uma tinica resposta. O pensamento humanista que examino passou por trés tempos fortes, que silo o Renascimento, o século das Luzes e o dia seguinte & Revolugio. Trés auto- res os encarnam: Montaigne, que produz uma primeira versio coerente da doutri. na; Rousseau, em quem ela atinge seu pleno desabrochar; e Benjamin Constant, que saberd pensar o mundo recém-saido da reviravolta revoluciondiria. E, portan- to, para eles que me voltarei, antes de mais nada, para buscar em sua obra as ferramentas de pensamento que podem tornar a servir hoje. Este livro participa a sua maneira da hist6ria do pensamento. Falo em pen- samento ¢ nio em filosofia: 0 campo de um é bem mais vasto, mais préximo d prética, menos técnico que o da outra. As familias de espirito que eu identifico silo “ideol6gicas” mais que filos6ficas: cada uma delas é um agregado de idéias politicas © morais, de hipdteses antropolégicas ¢ psicol6gicas, que participam da filosofia mas nao se limitam a ela. Decidindo desse modo estudar o pensa- mento em si mesmo, j4 me comprometo com a familia humanista, pois 0 pensa- mento niio mereceria ser examinado separadamente se no fosse livre, em vez de ser 0 produto mecinico da comunidade cultural, da classe social, do momen- to hist6rico ou entiio das necessidades biol6gicas da espécie. Devo ainda esclarecer que 0 que me interessa em primeiro lugar nio é re- constituir uma vez mais 0 pensamento de Montaigne, Rousseau, Constant ¢ outros; ‘mas, tentandlo ler atentamente esses autores, servir-me deles igualmente para cons- truir um modelo do pensamento humanista, o que se chama por vezes um “tipo ideal”. Meu objeto de conhecimento niio é a “Renascenga”, nem as “Luzes”, nem 0 “Romantismo”, mas o pensamento moderno em sua divers idade, com o huma- hhismo em seu centro, tal como ele se manifestou em cada uma dessas épocas. Em ‘OJARDIM IMPERFEITO a palavras, meu projeto é tipolégico mais do que hist6rico, ainda que esteja nncido de que as tinicas tipologias titeis sio as que a hist6ria nos faz conhe- Pela mesma raziio, renunciei de vez « toda preocupagiio com a exaustividade prendo, na maior parte do tempo, nao & primeira formulagio de um pensa- to, mas antes Aquela que julgo ser a mais forte ou a mais cloqiiente. Esses esclarecimentos sfio ainda mais necessitios pelo fato de o estabeleci- to da doutrina humanista ndio fazer parte, nem sempre em todo caso, do pro~ consciente desses autores. E meditando sobre objetos diversos, por vezes até inte afastados do meu, tais como o si ou 0 mundo, 0 espitito das leis ou os incfpios de politica, que cles estabelecem como que de passagem os limites se novo pensamento. Eles subentendem 0 humanismo mais que 0 afirmam. ou, portanto, levado a desviar seus raciocinios de sua destinagao primitiva, cui- indo 20 mesmo tempo de nao conduzir esses desvios até a traigao. O uso ao qual destino os autores do passado € responsavel pela maneira mo 05 leio, um didlogo com a hist6ria antes que uma hist6ria no sentido restri- . Aspiro a compreender seu pensamento, a desdobrar-Ihe o sentido, muito mais ue a explicé-lo remontando a suas causas ou restituindo seu contexto original. e desejo de ir a jusante em vez de a montante ¢ de permanecer apenas no nio das idéias nao implica que a escolha inversa seria a meus olhos ilegiti- ; simplesmente, ele nao faz parte de meu projeto atual. Nao hi anacronismo em fazer participar os textos do passado num debate snte? Talvez, mas tratar-se-ia entio de um “paradoxo do eritico”, e mesmo todo historiador, que estaria no prOprio ponto de partida de sua atividade, is esse crftico, esse historiador se dirige sempre a seus contemporiineos ¢ nio § de scu autor, O estrabismo constitutive do comentirio 0 condena a bordejar cessantemente de um diflogo ao outro: aquele com seu autor, aquele com seu tor; o equilfbrio ao qual ele aspira é apenas uma aposta. Além disso, os pr6- ios pensadores do passado visavam ao mesmo tempo ao presente ¢ i eternida- Com o risco de descontentar tanto os puros historiadores como os puros JSlogos, persisto entio em acreditar que o passado pode nos ajudar a pensar presente, Apoiando-me assim na histéria do pensamento para fazer avangar minha ‘épria reflexdo, prossigo (¢ talvez, na parte que me cabe, termino) uma p quisa iniciada em 1979, que me levara a publicar, em 1989, Nés ¢ os Outros, ‘uma obra em que j4 eram evocados outros temas humanistas, notadamente o da Lniversalidade; esses dois livros so, portanto, em certos aspectos, complementares. vonlenperree O JOGO DAS QUATRO FAMILIAS Operou-se uma revolugao no espfrito dos europeus - uma revolugio lenta, is levou varios séculos, que conduziu ao estabelecimento do mundo maderno. tomé-la em sua maior generalidade, pode-se descrevé-la como a passagem ‘um mundo, cuja estrutura e leis sto para cada membro da sociedade um dado io e imutivel, para um mundo cuja natureza e cujas normas ele proprio pode eobrir e defini. O membro da sociedade antiga aprende progressivamente lugar Ihe esti reservado no universo, ¢ a sabedoria o conduz a aceité-lo; 0 itante da sociedade contemporinea ndo rejeita tudo 0 que Ihe foi transmitido la tradigo, mas quer conhecer 0 mundo por scus préprios meios ¢ exige que riodos inteiros de sua existéncia sejam regidos por prineipios escolhidos por Nem todos os elementos de sua vida so mais dados inteiramente de ante- alguns deles so desejados. Antes dessa revolugao, uma ago é declarada justa e digna de ser louvada or estar de acordo com a natureza (tanto a do universo como a do homem) ou tio com a vontade divina, Essas duas justificativas podem entrar em conflito de entre Atenas ¢ Jerusalém); mas ambas exigem que o ser humano seja sub- etido a uma instincia que Ihe é externa: a natureza assim como Deus lhe sfio {veis apenas pela sabedoria ou pela religiio comuns, portanto, por uma tra io aceita e transmitida por sua sociedade, sem que ele jamais tenha sido con- ultado. O universo que ele habita, inclusive suas leis humanas, estd baseado num res sobre o qual esse homem particular ndio tem ascendéncia alguma. A revo- Igo consiste em afirmar que a melhor justificativa de um ato, a que o torna mais imo, provém do préprio homem: de sua vontade, de sua razdo, de seus senti- 20 T2VETAN TODOROV mentos. O centro de gravidade passa, aqui, do cosmos para 0 anthropos, do mun- do objetivo ao querer subjetivo; o ser humano no se submete a uma ordem que Ihe € exterior, mas quer fundar pessoalmente essa ordem. O movimento é, portan- to, duplo: um desencanto do mundo ¢ uma saeralizagio do homem; os valores, retirados de um, serio confiados a0 outro. O novo principio, cujas conseqiléncias ainda nao terminamos sem divida de extrair inteiramente, é responsdvel pela face que apresentam nossa politica ¢ nosso direito, nossas artes ¢ nossas ciéncias. Bele também que preside os Estados modernos e, se os aceitamos, no podemos renunciar sem incoeréncia ao principio. Pode-se fazé-lo, em compensagio, em nome de um retorno a supremacia da religidio (como no fundamentalismo teocr’- tico) ou A primazia de uma ordem natural que nao reserva nenhum lugar especial a0 homem (como em certas utopias ecologistas). Na atualidade, concorda-se facilmente ao descrever, em termos mais out menos semelhantes, essa passagem dos Antigos aos Modernos, que se iniciou na Renascenga. O consenso desaparece, entretanto, quando se trata de analisar seus efeitos. A tese sobre a qual me basearei aqui € a seguinte: a propria modernidade no homogénea; em conseqiiéncia das eriticas que sofreu, revelaram-se em s seio varias tendéneias que constituem 0 quadro de pensamento social no qual vivemos hoje. Por essa razio, é desconcertante, « meu ver, empregar pata de nar essas reagdes uma tinica palavra, tal como “modernidade”, ou “individuali: mo”, ou “liberalismo”, ou “racionalidade”, ou “subjetividade", ou ainda “Ocidente”, tanto mais que o amdlgama imposto por tais termos & amitide utili- zado com fins polémicos. Chamo familia cada uma dessas grandes tendéncias, 4 mesmo tempo porque os diversos representantes de uma mesma familia tém por sua vez particularidades que lhes so proprias; e pelo fato de que as aliangas entre membros de familias distintas permanecem sempre possiveis. Essas famt- lias stio em ndmero de quatro, ¢ elas se desenharam claramente desde a segunda metade do século XVIII. Condorcet, Sade, Constant e Bonald nasceram os qua- tro na metade do século, entre 1740 ¢ 1767; ora, cles encarnam essas quatro familias distintas, que se revelam no dia seguinte & Revolugio, quando os que a recusam comegam a contestar o quadro de pensamento que a tornou possivel. Isso nao impede que nossas famifias, claro, tenham suas raizes numa longa tradi- go anterior. E sempre dificil reagrupar o pensamento de autores individuais sob etique- tas genéricas. Ninguém gosta das palavras terminadas em “ismo", e nao é para menos: cada reagrupamento tem algo de violento e de arbitrério (eu mesmo hesi tei até 0 dltimo momento em saber se era mais justo falar de tr€s, quatro ou cinco grandes familias modernas), pois sempre nos podem opor casos intermediarios ou hfbridos. Cada pensador auténtico possui sua individualidade e, ao amalgamé- laa outras, a simplificamos; cada obra por sua vez € tiniea, e merece ser conside- rada separadamente. $6 0s disefpulos os epigonos correspondem bem as étiquetas; os pensadores originais, por sua vez, sempre participam em mais de uma familia espiritual: como Montaigne, como Rousseau. Nao ignoro os incon- do procedimento, Decido-me, contudo, a me servir dele, pois também ‘suas vantagens: primeiramente, € preciso de algum modo dispor de gem comum para poder falar do passado (os nomes prOprios niio ); em seguida, a freqiientagdo dos textos me persuadiu, embora me seja ssivel prové-lo, que certas afinidades, certas diferengas sio mais importan- ‘que outras ¢ justificam, portanto, este ou aquele reagrupamento. Enfim, 0 igama entre familias distintas me parece ser um dos obsticulos principais & ¢ Iticida de nossa situagao atual. E por isso que gostaria de evocé-las agora is de perto. Para comegar, é preciso lembrar as principais censuras dirigidas & moderni em seu conjunto; elas permitirio, paradoxalmente, identificar a primeira nilia moderna. OS CONSERVADORES E no dia seguinte & Revolugdo Francesa que se farao ouvir claramente as es que condenam a revolugio anterior, a do pensamento. Nao que seus parti jos niio tenham sido combatidos anteriormente; mas esse debate puramente ol6gico permanecia limitado a um autor particular, a um tema isolado. Uma a idéias transformadas em atos e em instituigdes, elas suscitam uma reagiio ‘outro modo intensa ¢ uma resisténcia ferrenha. Esta consiste em afirmar que é possivel ver os individuos bem como as coletividades se dirigirem por si Os, mas que essa liberdade é demasiado perigosa e seus beneficios insuficientes ‘compensar os desgastes que provoca. Seria, portanto, preferivel retornar & dio anterior, com menos liberdade, mas sem os inconvenientes novos. Por essa raztio, poder-se-ia dizer que, sejam quais forem as nuangas nas ferentes formulagdes, estas procedem sempre de uma posigiio conservadora. © mesmo tempo, essa posicdo ndo nos remete pura ¢ simplesmente ao mundo Antigos; na realidade, a volta se tornou impossivel, ¢ s6 0s reaciondirios mais dieais recusam 0 mundo moderno em sua integralidade. Os conservadores ha- tuais so também uma familia moderna, a que aceita um minimo de modernida- , aquela para quem todas as outras familias modemas se confundem e merecem condenagio de conjunto. Sao também os conservadores que pensam que os ns modernos venderam sua alma ao diabo, e que deveriam arrepender-se, € até tentar resgaté-la. Mas ndo é por essa critica que eles mesmos definem-se de ja positiva. Eles se apresentam antes como os que apreciam © procuram ter a ordem existente, opondo-se, portanto, aos revoluciondrios ¢ aos refor- adores de todas as tendéncias, tanto no caso dos progressistas como no dos iondtios (0 projeto de uma “revolugio conservadora” é para eles uma contra- dio em termos). O que existe ja merece existir; as mudangas tém, via de regra, ais inconvenientes que vantagens. Os conservadores privilegiam, se nao a imo- lidade, pelo menos a lentidao. 2 TZVETAN TODOROV Para escolher um porta-voz dessa familia, tem-se o inconveniente da esco- Iha, pois as adverténcias conservadoras nao se esgotam, da Revolugdo até nossos dias. Decidi, para ilustrar sua variedade, limitar-me a dois de seus representantes entre os mais antigos, escolhidos de propdsito, tio diferentes quanto possivel um do outro. Sio um teocrata e um democrata; contudo, a substincia das censuras, futuras se encontra imutdvel em um e no outro. O primeiro é 0 visconde Louis de Bonald, inimigo declarado da Revolu- iio, que a ataca desde 1796, em seu tratado sobre a Théorie du pouvoir politique et religieux, ¢ que desenvolvera suas criticas durante as trés ou quatro décadas, que se seguem. Bonald parte do que para ele é um efeito desastroso ~ a realidade revolu- ciondria na Franga — para remontar a suas causas, ¢ ele as encontra na filoso- fia (a Revolugao, assegura ele, é a filha monstruosa da Filosofia ¢ do Atefsmo), a de Descartes ¢ de Rousseau, herdeira por sua vez da Reforma. De onde veio a revolugdo? “Dessa doutrina que substitufa pela raziio de cada um a religidio de todos, ¢ pelos célculos do interesse pessoal 0 amor ao Ser supremo ¢ 0 amor por seus semelhantes” (Théorie, I, 494-495). O pensamento carrega uma grande res- ponsabilidade: antes de manifestar-se nos atos, a liberdade esteve nos espiritos Ela agiu & maneira de um agente erosivo em duas diregdes, sempre associadas em Bonald: 0 amor por Deus e 0 amor pelos homens, a elevagiio acima de si e 0 apego pelo além de si; “religidio”, diz-se de bom grado, provém de “ligar”. “Cada im” substituiu “todos”: € culpa de Lutero e de Calvino, seguidos nesse ponto pelo vigdrio saboiano, que pretende que a consciéncia do individuo pode ser juiz final do bem e do mal. E a razao substituiu a religio: o culpado, aqui, é Descar- tes, pelo menos no que se refere a0 conhecimento do mundo. Como conseqiién- cia, passamos ao reino do interesse pessoal, ou seja, ao mesmo tempo, do que nio ultrapassa o individuo (ele é s6) e do que o serve (ele é egofsta). Em suma: 0 homem modemo, incubado por Calvino, Descartes e Rousseau, ¢ posto no mun- do pela Revolugio, niio conhece nada que seja exterior a ele mesmo. Nem acima dele (um ser superior), nem além (seres semelhantes); ele est condenado a per- manecer encerrado em si mesmo. O prego da liberdade é, portanto, duplo. De um lado, 0 homem moderno esti destinado a se tornar um “individualista”, no sentido corrente do termo: a s6 preocupar-se consigo mesmo, a ignorar os lagos que 0 prendem aos outros ho- io 0s fil6sofos do contrato social, sobretudo Rousseau, que julgaram ne- essa transformagao; so os revoluciondrios que quiseram imp-la. “A filosofia do século passado [isto &, do século XVIII] viu apenas 0 homem e 0 universo, ¢ jamais a sociedade. De um lado ela, se ouso me utilizar dessa expres- si familiar, reduziu a uma pasta os Estados e as familias, nos quais niio viu nem pais, nem mies, nem fithos, nem amos, nem servidores, nem poderes, nem minis- tros, nem stiditos, mas apenas homens, isto é, indivéduos, tendo cada um seus direitos, ¢ nao pessoas ligadas umas as outras por relagGes. [...] Do outro, propos 4 nossas afeigdes apenas 0 género humano” (Mélanges, Il, 246-247). Tal exten- (OJARDIM IMPERFELTO 2 impossivel qualquer apego verdadeiro. A prépria idéia de contrato, de basear tudo na vontade de individuos consentidores acarreta uma cepeilo “individualista” da humanidade, que é profundamente desconcertan- :“O autor do Contrato social na sociedade vé apenas o individuo” (Législation tive, 1, 123). "Por outro lado, esse mesmo homem moderno esté condenado a ser apenas n“materialista”, no sentido ainda comum da palavra, isto é, um ser que no tem s, que ndo estima nenhum valor acima de seu interesse pessoal, que niio ter moral alguma, Pois a tinica base posstvel da moral ¢ a religio, ou seja, a fé num poder infinitamente superior ao dos homens, capaz de sancionar seus atos este mundo terreno. “Os homens, escreve Bonald, se Deus niio existe, nada po- egitimamente uns sobre os outros, e todo dever cessa entre os seres, quando sa o poder sobre todos os seres” (II, 142). Se Deus esté morto, entiio tudo é jtido: esse encadeamento bem problemético, que Dostoiévski tornou fa- liar, j4 estd presente em Bonald. Diante do que ele julga ser o individualismo de todas as familias modernas, ‘conservador privilegia 0 social: os seres humanos individuais s6 adquirem sua tidade mediante os grupos, instituigdes, costumes de que participam. E por o que seus deveres (que decorrem de sua pertenca a esses corpos superiores em jimensGes) se sobrepdem aos direitos de que eles seriam providos na qualidade de simples individuos, membros da raga humana. © homem ¢ feito por sua comu- nidade, ele Ihe deve obediéncia. Essa exigéncia de submissio a coletividade poderia entrar em conflito com 0 apelo universal da religitio. Os conservadores modernos escapam a ela sepa- nitidamente politica e moral, O conservadorismo moral afirma valores ab- -solutos, fundados na vontade de Deus ou na ordem natural (a relagdo com a eligido é frequente entre os conservadores, mas facultativa). Entretanto, essa dem moral nao determina a ordem politica, como & 0 caso nas teocracias (¢ ‘como recomenda Bonald, que nesse aspecto é revolucionério demais para um onservador). A ordem politica é ditada pelo interesse nacional, e pode diferir de n pais para outro, mesmo que os dois vatham-se da mesma religido. No interior o pats, o conservadorismo nao procura submeter tudo a um prinefpio tinico, nem “controlar a vida inteira dos individuos, ele se contenta em garantir o reino da lei: _ ele ndo é um absolutismo, muito menos um totalitarismo. No plano internacio- 1,0 conservadorismo politico encarece acima de tudo a defesa do statu quo; ele ‘nio é movido por um espitito de proselitismo nem inicia cruzadas, tampouco tra- Ya guerras imperialistas nem procura impor seus valores em toda parte (os con- -servadores franceses do século XIX sio contra as guerras coloniais). Poder-se-ia dizer que para um conservador como Joseph de Maistre, 0 homem nao existe, _ Mas apenas os membros de diversas sociedades: os franceses, os alemies, os rus- m contrapartida, Deus existe (no singular), endo uma pretensa pluralidade, Mesmo uma guerra, dos deuses. Mesmo essa separagiio é solidaria da oposigaio tre moral ¢ politica, uM T2VETAN TODOROV Seja na perspectiva de uma ou de outra, o individuo deve submeter-se aos valores comuns, a0 grupo ao qual pertence. O homem é radicalmente mau e fra co: Bonald esta de acordo, nesse ponto, com a tradigio agostiniana, portanto, coms jansenistas, mas também com Lutero e Calvino, amaldigoados por cle: os Outros conservadores cristios, embora niio tenham uma visio tio negra da hu- manidade, no créem menos no pecado original. Por conseguinte, s6 uma forga maior que a do homem pode obrigé-lo a se conduzir virtuosamente. Nosso obje- tivo deveria ser, em vez de nos revoltarmos inutilmente, nos harmonizarmos com a ordem superior. E por esse motivo que a prépria idéia de escolha deve ser proi- bida: haveria sempre o risco de escolher em nome de seu interesse pessoal, en- quanto que, se um acontecimento sobrevém sem que o tenhamos desejado, & sinal que foi decidido por Deus. Aquele que quisesse dispor de seu destino colo. cando-se no lugar de Deus imitaria Sata. A obediéncia, nao a autonomia, é a virtude cardeal. AAs tentativas para fundar uma moral fora da religido estio fadadas ao fra- asso (Bonald sente apenas desprezo pela doutrina dos direitos do homem, que ele espera ver substituida por uma defesa dos direitos de Deus): como os homens, que sfio maus, poderiam encontrar em si mesmos forgas para reprimir essa mal- dade? “O atefsmo coloca o poder supremo sobre os homens nos préprios homens que ele deve conter, ¢ quer assim que o dique nasca da torrente” (I, 61) que loucura! De forma rigorosamente Iégica, Bonald pensa que os homens se torna- "do bons unicamente pela forga; para seu proprio bem, é preciso eliminar a liber- dade em vez de cultivé-la. Ele sonha entio com 0 Estado teocritico, cujos objet finais a Igreja define e cujo poder ela detém. Contudo, mesmo um espfrito tao radical quanto Bonald nio é verdadeira- mente um Antigo. Prova disso é seu gosto pelas construgées racionais, pelos pla nos de conjunto em vista da futura e auténtica teocracia—a mil léguas da verdadeira Sociedade antiga, acumulagio de tradigdes e de costumes heterdclitos. Nao se Pode imaginar Burke, o conservador exemplar, escrever uma obra cujo titulo co- mega por Théorie du... Essa incompatibilidade é tio forte que se pode mesmo hesitar em considerar Bonald como um conservador — ele é, em certos aspectos, um “filésofo” perdido entre os reacionérios. Se os conservadores prezam tanto as tradigdes, é que a consideram como o depésito da sabedoria coletiva, indubita- velmente superior & razio individual; & exatamente por isso que a autonomia do individuo, a liberdade que ele adquiriu pactuando com 0 diabo, deve ser proibida. Os homens nao sio apenas moralmente imperteitos, eles so intelectualmente fracos; as tradigdes por sua vez contém uma sabedoria que os individuos nao Podem explicar, mas que devem respeitar. Contrariamente ao que eréem os racio- nalistas, 6 0 julgamento que erra e 0 preconceito que € sébio, pois partilhado. Os velhos tém a experiéncia, os jovens tém apenas a razio: a vantagem cabe aos Primeiros. No decorrer dos anos, acumula-se no seio das tradigdes um saber in. tuitivo que nenhuma razio poderd jamais reduzir a prinefpios ¢ regras. E exata- ‘mente por isso que os verdadeiros conservadores, diferentemente de Bonald, niio (O.zaRDIn mMPERFEITO a escrevem tratados sistematicos, mas se contentam em comentar os acontecimen- tos correntes ou contar sua experiéncia. Bonald escolhe ser conservador ~e, por esse motivo, deixa de sé-lo intei- ramente. Seu pensamento é, de chofre, particularmente anacrénico e, mesmo que sob a Restauragao permanega um politico influente, sua utopia conservadora ja- mais receberd um infcio de realizagio. E por isso que suas profecias tomam facilmente o tom das maldigdes: se 0 mundo nao quer se recolocar no caminho correto, que ele saiba ao menos o que o espera! Em compensagio, os conservado- res futuros encontrario em seus escritos, como nos de seu contemporsineo Joseph de Maistre, uma fonte de inspiragio inesgotavel. A CADEIA ROMPIDA E apés a revolugiio de julho de 1830 que se situa a atividade do segundo autor que cu gostaria de evocar aqui, Alexis de Tocqueville. Nao é 0 gosto pelo paradoxo ou pela provocacdo que escolho para ilustrar 0 pensamento conserva- dor, aquele que é conhecido por seu compromisso intransigente em favor da berdade e pela defesa, ainda que seja a mais contrariada, da democracia; mas para mostrar que posigdes filos6ficas e politicas muito afastadas podem conciliar visdes do mundo moderno, finalmente, bastante préximas. Tocqueville é, mais exatamente, 20 mesmo tempo conservador e humanista; é nessa conjungiio para doxal que reside a singularidade de sua posigao. Seu ponto de partida ¢ inteiramente diferente daquele de Bonald. Primeira- mente, ele niio cré na possibilidade de um retrocesso. Colocando-se na perspe: ya da historia, ele constata que o advento da modernidade é irreversivel, que os franceses deixaram a idade aristocrética e entraram na idade democritica. Os habitantes dessa nova era so animados, a se crer nisso, por trés paixdes. A pri- meira é a paixo pela liberdade, o direito de decidir sozinho seu destino; contr tiamente a Bonald, préprio Tocqueville preza essa paixio mais que tudo. Ela no se explica, segundo ele, por um objetivo que Ihe seria superior ¢ que ela permitiria atingir, mas encontra sua justificagdo no prazer intransitivo experi mentado por aquele que a pratica. “E 0 prazer de poder falar, agir, respirar sem constrangimento, sob o nico governo de Deus ¢ das leis. Quem busca na liberda- de outra coisa além dela mesma ¢ feito para servir” (Ancien Régime, III, 3, 267). A segunda paixtio tem por objeto a igualdade, e o julgamento de Tocqueville a seu respeito € muito mais heteréclito. Enfim, a terceira é a paixao pelo bem-estar, que nao suscita em si nenhuma estima particular. O que teme Tocqueville nao é, portanto, absolutamente, 0 que receava Bo- hald. Este lamentava a erosiio da autoridade, (nico meio de instaurar 0 bem; aquele tem medo do futuro da liberdade. A fonte da ameaca, entretanto, é a mes ma: € a sociedade moderna oriunda da Revolucao. E a idéia de um pacto ignora- do, do prego que ele tera de pagar pelo que se obteve, ndo ests tampouco ausente: 26 T2vETAN TODOROV © homem moderno deverd pagar sua escolha da igualdade ¢ do bem-estar aceitan- do as taras do individualismo e do materialismo. Tocqueville deve ser um dos primeiros autores a servir-se dessa palavra nova, “individualismo”, para designar, diz ele, uma coisa igualmente nova, pr6- pria das sociedades democraticas, a saber, a preferéncia pela vida privada, levada no seio de sua familia ¢ de seus amigos, e a falta de interesse pela sociedade global na qual se vive. “Nossos pais no tinham a palavra individualismo, que forjamos para nosso uso, porque, em sua época, niio havia com efeito individuo que nao pertencesse a um grupo e que pudesse se considerar absolutamente sozi- nho” (II, 9, 176). A grande razio dessa evolugao nfo €, segundo ele, a livre von- tade, mas 0 prinefpio de igualdade. A sociedade tradicional, que repousa na hierarquia, toma necessdrias as relagdes entre pessoas. “A aristocracia fizera de todos os cidadiios uma longa cadeia que remontava do aldedio ao rei” (Démocra- tie, U2, 2, 126). A sociedade moderna, ou democritica, di o mesmo estatuto a todos; de golpe, seus habitantes ndo tém mais necessidade uns dos outros para constituir sua identidade. “A democracia rompe a cadeia e coloca cada elo d par- te”: ndio estamos aqui longe da sociedade “reduzida a uma pasta”, temida por Bonald. Os individuos nao vivem mais realmente juntos. “Cada um deles, posto & parte, € como que estranho ao destino de todos os outros [...], cle existe apenas em si mesmo e para si unicamente” (II, 4, 6, 385). Essa auséncia de relagdes Propriamente sociais € compensada apenas parcialmente por uma vida privada mais intensa, de um lado por um certo sentimento de pertenca i humanidade universal, do outro (“os deveres de cada individuo para com a espécie sfio muito mais claros”: nisso ainda Tocqueville segue Bonald). A tendéncia a dissocializagao, sugere Tocqueville, corre o risco de refor- arse ainda mais. Nao contando mais com um lugar atribufdo pela sociedade confirmado por virias geragGes de ascendentes, individuo comega por bastar-se a si mesmo e habitua-se a pensar isoladamente. Apés ter reduzido a sociedade apenas a seus préximos, ele nem pensa mais neles; a democracia “o conduz sem cessar para ele apenas ¢ ameaga encerré-lo enfim inteiramente na solidio de seu proprio coragio” (Il, 2, 2, 126-127). Lutando primeiro somente contra a vida Pablica, o espitito individualista acaba por corromper a vida social inteira. A outra ameaga que pesa sobre a sociedade democratica deriva do fato de 0s homens pensarem obsessivamente na satisfagiio de seus interesses materiais. Por esse motivo, eles abandonam os valores espirituais. “Enquanto o homem se compraz nessa pesquisa honesta e legitima do bem-estar, escreve Tocqueville, é de recear que ele perca enfim o uso de suas mais sublimes faculdades, e que que- rendo melhorar tudo & sua volta, termine por degradar a si mesmo.” Esse receio 6 mais que uma hipétese: a observar os costumes americanos, Tocqueville vé em toda parte o grande amor pelas riquezas, pois estas ocupam agora 0 pice da hie- rarquia, reservado nas sociedades aristocraticas 4s honrarias. “A democracia fa- vorece 0 gosto pelas fruig6es materiais”, explica ele. “Esse gosto, se ele torna-se excessivo, dispde logo os homens a crer que tudo nao passa de matéria; e 0 ma- (OJARDIM IMPERFEITO ” ismo, por sua vez, acaba por arrasté-los com um ardor insensato para esses smos prazeres” (II, 2, 15, 181). O materialismo é a tendéncia natural dos ho- }$ na democraci E nesse ponto que Tocqueville separa-se de novo de Bonald: é para prote- alliberdade e nao para anulé-la que ele nos alerta sobre os perigos que ence 6s outros tragos da vida na democracia. Pois ele descobriu que as condigées vida especificamente democriticas podem esvaziar de seu contetido as liber- laboriosamente adquiridas. O homem moderno, langado na busca de satis- materiais, exige do Estado que ele garanta sua seguranga, sua propriedade, bem-estar (ele é de fato o que chamamos um Estado-Providéncia); mas pe- he sempre mais, cle restringe proporcionalmente 0 dominio dus ages pelas ais ele proprio é responsdvel. “Assim é que todos os dias ele torna menos titil ¢ is raro 0 emprego do livre-arbitrio; que ele encerra a agio da vontade num spago menor, € subtrai pouco a pouco de cada cidadiio até 0 uso de si mesmo” I, 4, 6, 385-386). O resultado desse processo é um despotismo democritico (ou igualitirio) _ que se acomoda muito bem com a restrigo de todos os nossos interesses apenas ‘A vida privada: “O despotismo, longe de lutar contra essa tendéncia, a torna irre- _Sistivel, pois retira dos cidaddos toda paixiio comum, toda falta miitua, toda ne- ~ cessidade de se entender, toda ocasitio de agir em conjunto; ele os amadurece, por assim dizer, na vida privada” (Ancien Régime, “Avant-propos”, 51). © poder certamente, a expressio da vontade popular mais do que uma heranga da tradi- ‘gio; mas esse poder est ao mesmo tempo fora do alcance para o individuo isola- do. Este vota, evidentemente, e pode, portanto, renegar seus dirigentes; mas, logo aps as eleigdes, estd de novo entregue, de pés e miios atados, a seus dirigentes. De modo que “esse uso tio importante, mas tZo curto € to raro, de seu livre- arbitrio, néio impedird que eles percam pouco a pouco a faculdade de pensar, de sentir e de agir por si mesmos, e que caiam assim gradualmente abaixo do nivel da humanidade” (Démocratie, II, 4, 6, 388). Oexercicio da liberdade seria, portanto, para Tocqueville um trago distinti- Vo, nao s6 da sociedade moderna, mas até da espécie humana; ora, a democracia, que contudo 0 invoca, pode anular scus efeitos (entio é tao facil voltar a ser um animal como os outros? Um certo catastrofismo nao é estranho ao pensamento de Tocqueville). E nao se trata apenas de liberdade politica: de maneira ainda mais insidiosa, a sociedade democritica anula também a liberdade de gosto e de senti- mento, aumentando a uniformizagiio dos indivéduos e seu conformismo, estigma- tizados jé por Rousseau. O homem moderno muda constantemente de gostos; as essas mudangas neles so todas semelhantes. No interior de uma sociedade, 9s homens se parecem cada vez mais; a comunicaco entre os povos faz com que les se paregam também de uma sociedade para a outra. “Passeio meus olhares, escreve Tocqueville, por essa multidio inumeravel composta de seres parecidos, ‘Onde nada se eleva nem se abaixa. O espeticulo dessa uniformidade universal me Entristece © me gela, e me sinto tentado a sentir saudade da sociedade que no a a T2veTan ToDOROV existe mais” (II, 4, 8, 400). Se todos os desejos sitio semelhantes, pode-se ainda acrediti-los livres? ‘Tocqueville é tentado pela volta A sociedade aristocrética, mas é uma ma- neira de falar; na realidade, ele jamais cede a essa tentagiio. Sua visio do mundo moderno € a de um conservador, mas seu projeto politico continua a ser democra- tico. O que ele quer fazer, por meio de suas obras, é tornar o homem moderno consciente dos perigos que 0 ameagam e procurar remédios para eles. As as- sociagdes de cidadios, livremente formados, podem atenuar os efeitos do indivi- dualismo; uma pritica privada da religido tradicional pode contrabalanear utilmente 0s inconvenientes do materialismo. Hé um prego a pagar pela liberdade de fato, mas € preferivel tentar negoci-lo na baixa A revolugiio moderna tem, enfim, uma terceira conseqiiéncia que Ihe cen- suram os conservadores, depois da dissolugio da sociedade e a da moral: é 0 deslocamento do ego enquanto tal. Safmos aqui do quadro politico, para entrar naquele da anilise individual. Por essa razio, nao se encontrariio formulagées tao sistematicas quanto nos dois primeiras casos: essa censura seré enunciada por poetas ¢ romancistas antes que pelos te6ricos da sociedade. Esse individuo que se gabava de pensar, de sentir e de querer a partir de si mesmo nao seria mais uno: 0 abandono de seu lugar tradicional predeterminado abriu-o a todas as influéncias, a todas as mutagdes; mais que um sujeito autdnomo, ele tomou-se um indivéduo inauténtico e alienado, amadurecido por uma pluralidade de forgas contradit6rias, ¢ cambiantes. Assim, levando ainda mais longe o movimento que acreditava ob- servar Tocqueville, 0 individuo abandonou ni s6 seus préximos para se preocu- par apenas consigo mesmo, mas também a si mesmo para conhecer tio-somente 6s préprios ingredientes, as diversas pulsGes que o atravessam. O resultado final do individualismo seria, pois, 0 desaparecimento do individuo. OS CIENTISTAS Identifiquei a familia conservadora a partir de sua reagdo ao advento da modemidade, Esta afirma a liberdade do sujeito, individual ou coletivo, ao lado das outras causas de sua ago. A reagao conservadora consiste em dizer: 0 prego dessa liberdade € muito elevado, é preferivel renunciar & transagdo para nao ter que pagar. Nesse plano, a posigio dos conservadores é clara, O quadro se compli- ca quando se volta para as outras trés grandes familias; todas aceitam o prinefpio da modernidade, mas dela extraem conclusdes diferentes. O pensamento cientista comporta varias teses. Primeiramente, os cientistas aderem a uma visto determinista do mundo. Essa vistio manifesta-se na Franca na esteira do materialismo das Luzes, nos Enciclopedistas, de Diderot a Condor- cet; expande-se no século XIX, e sua doutrina ser reencontrada em Auguste Comte, Ernest Renan ou Hippolyte Taine. Mas tem antecedentes bem mais anti- 205, como de resto todas as outras fam/lias modernas, na filosofia grega e na osanbin wiPeRFErO o crista. E apenas por uma nova facilidade de linguagem que nos servimos 15 tiltimas etiquetas gerais, enquanto na realidade cada uma delas recobre ade to grande quanto a da modernidade. A familia conservadora, 10 afirmei de passagem [26], pode ja reclamar para si essa dupla heranga, - pagi, conforme ela privilegia a referéncia a Deus ou a natureza, o ensina- o da Igreja ou as leis da Cidade. O mesmo ocorre com a douttina determinista. Ela divide com a tradigao ‘a convicgao de uma ordem do universo que 0 homem pode conhecer; opde- la nas modalidades desse conhecimento (Galileu e Descartes no teriam ido surgir na Grécia antiga), como nos resultados que alcangou (o mundo da éria homogénea vem substituir 0 universo hierarquizado dos Antigos). Na igi crist@, aproxima-se de um dos dois grandes partidos que se opdem ao 0 de toda a sua histéria: o que defende a graga divina em detrimento da de humana; a aproximagtio consiste precisamente nessa recusa de admitir sténcia da liberdade. Siio Paulo emprega a metéfora da argila entre as mio oleiro (Romanos, 9, 21): se 0 homem € a matéria e Deus o artesdio, pode-se fa falar da liberdade e pode-se esperar que a salvagio venha de um lugar que ‘graca, 0 apelo, a f€2 Santo Agostinho fustigaré a heresia de Peligio que imagi- que as obras humanas bastam para nos garantir a salvagiio. Lutero ¢ Calvino se oltardo contra as priticas papistas, a possibilidade deixada aos homens de res- seus pecados por um simples ato dependente de sua vontade. Os jansenistas al combaterzio (em vio) os jesuftas que tentam arranjar um lugar para a ‘iativa humana. Segundo os doutrindrios da graga, a vontade € nula porque poder est em Deus; segundo os cientistas, pelo fato de a natureza (ou a st6ria) ja terem decidido tudo para nds: 0 veredicto do sangue, como se diz 9, ou 0 da sociedade substituiu a vontade divina. O homem ¢ impotente, pois destino esta nas mios de Deus, dir Pascal; pois ele € dirigido a sua revelia sua raga, sua hereditariedade, seu lugar na historia, corrigiré Taine. As forgas que conduzem os individuos podem ser de natureza diferente; essencial é que seu reino seja absoluto. O século XIX verd sucessivamente 0 to do poder de trés grandes formas de causalidade, que serdo objeto de tres ias distintas. A que se desenvolve no mesmo momento do desafio conserva- or é de inspiracZo social e histérica: os homens se ergem livres, eles na realidade 0 0 produto das circunstincias histéricas, das condigdes sociais, das estruturas econdmicas. A esse determinismo inicial se acrescenta, na segunda metade do culo, uma causalidade biolégica: 0 destino dos homens é decidido por seu san- (ou pela forma e pelo volume de seu crinio, ou por sua estatura - ou por out Aeristica fisica), ¢ portanto, por sua hereditariedade. No fim do século afirma- ainda uma terceira forma de causalidade, esta puramente psiquica ¢ individual: a conduta do individuo the é ditada nao, como ele ingenuamente acredita, por sua onsciéncia e sua vontade, mas por forgas que agem nele & sua revelia, e que sio, sua vez, o produto de sua histéria pessoal ~ assim, na psicandlise, a configura- io formada em volta dele por seus parentes préximos durante a primeira infancia, 30 T2VETAN TODOROV Esses trés determinismos lutam por vezes entre eles para assegurar a su- premacia, € outras vezes se combinam. Cada geragio pode sustentar sua forma de causalidade, que a geragio seguinte, fatigada, procurara renovar. Essas for- mas de pensamento estiio, de resto, sempre presentes entre nés: nao paramos de falar das leis da histéria nem das pulses inconscientes; e se nfo acreditamos mais na fatalidade do sangue, duvidamos muito menos do papel decisivo desem- Penhado por nossos genes. O pensamento racial reaparece também em nossos dias. A Gnica coisa que t8m em comum essas trés causalidades, social, biolégica © psiquica, é 0 fato de considerar a liberdade do individuo essen uma ilusio. Onipresente, a causalidade é também a mesma em toda parte: 0 cientismo é um universalismo. Isso no impede que se reconhegam as diferencas: se as leis (da natureza ou da hist6ria) sto em toda parte as mesmas, os fatos que elas regem nao 0 so. As ragas siio diferentes, assim como as épocas histérieas, mas ambas obedecem rigorosamente as forgas que as determinam e provocam conseqiléncias igualmente previsiveis essa primeira tese cientista referente 2 estrutura do universo junta-se uma segunda: 0 encacleamento inexoriivel de causas e de efeitos deixa-se conhecer de maneira exaustiva, € a ciéncia moderna constitui a via real desse conhecimento. Nisso, a doutrina cientista se opie & aceitagaio passiva do mundo como ele 6. Ela separa-se também, e essa ruptura é decisiva, do fatalismo dos Antigos. Nao se contentando em descrever o existente, mas remontando 20 mecanismo que o pro- duziu, ela pode considerar que outra realidade, mais bem adaptada a nossas ne- cessidades, surja a partir das mesmas leis. A liberdade, reduzida anteriormente a0 nada, renasce aqui; mas ela s6 pode existir gragas i mediago da cigneia. Aquele que penetrou no segredo das plantas pode produzir novas, mais férteis ¢ ma nutritivas; aquele que compreendeu a selego natural pode instituir a selecdio arti- ficial. Nao se contentard com vias de comunicagaio existentes, niio se aceitard que 08 rios correm numa diregtio na qual nao servem para nada, prolongar-se-i duragdo da vida humana. © conhecimento do existente conduz & técnica, que permite a fabricagao de um existente melhorado. Surge a tentagio de estender is sociedades humanas 0 mesmo principio: j4 que conhecemos seus mecanismos, Por que niio fabricar sociedades perfeitas? Entretanto, quem diz. produgio do novo diz também ideal em razio do qual se produz. © que é uma espécie vegetal ou animal melhor, como julgar que uma paisagem € superior a outra, por quais critérios decidimos que tal regime Politico seria preferivel aquele que existe? A resposta dos cientistas seria (¢ esta € sua terceira tese): 0s valores decorrem da natureza das coisas, elas so um efeito das leis naturais e histéricas que governam 0 mundo, cabendo, por- tanto, ainda & ciéneia fazer que as conhegamos. O cientismo consiste, com efei- to, em fundar, sobre o que se julga serem os resultados da ciéneia, uma éti uma politica. Em outras palavras, a ciénc d mente como, e I, OU O que € percebido como tal. ‘a de ser um simples conhecimento do mundo existente e torna-se geradora OuaRDIM IMPERFEITO a de valores, & maneira de uma religidio; ela pode, pois, orientar a ago pol moral, “Conhecer a verdade para afeigoar a ela a ordem da sociedade, tal 6 iinica fonte da felicidade publica”, escreve Condorcet (Vie de Turgor, 203). Tra- ta-se af de uma reconstrugao estabelecida com fins estratégicos; historicamen- te, é 0 desejo de conduzir melhor os homens que abre as portas de seu ;cimento “ ao cientismo nio elimina a vontade, mas decide que, jé que os resultados da eiéncia so vélidos para todos, essa vontade deve ser comum, ¢ nao individual Na pritica, o indivéduo deve submeter-se 2 coletividade, que “sabe” mais que cle; a autonomia da vontade mantida é a do grupo, no a da pessoa. Os cientistas agem como se houvesse uma continuidade entre 0s constrangimentos que 0 ho- mem softe por parte da natureza e os que Ihe inflige a sociedade, eles apagam a fronteira entre duas espécies de liberdade: a que se opde 2 necessidade e a que resiste a0 constrangimento; da auséncia postulada de uma concluem pela ausén- cia desejavel (para o individuo) do outro. Tendo descoberto as leis objetivas do real, os partidarios dessa doutrina decidem que podem colocé-las a seu servigo para conduzir o mundo para onde bem Ihes parecer; ¢ essa orientagiio, pretensamente imposta pelo préprio mundo. torna-se um motivo da marcha: age-se em beneficio da natureza, da humanidade, de determinada sociedade, nao dos individuos aos quais se ditige. Assim ocorre entre os grandes representantes da familia no século XIX, que sao “ativistas”, enquanto aderem as teses deterministas: Darwin recomenda 0 eugenismo, Marx, a revolugio social. O estudioso € tentado a se tornar demiurgo. No século seguinte (0 nosso), a ideologia cientista se expandiu em dois contextos politicos bem diferentes, que por sua vez a influenciaram tao fortemen- te que se pode hesitar em reconhecer os rebentos de uma s6 e mesma familia. A primeira variante do cientismo é a que se encontra empregada nos regimes total térios. Os dirigentes dos pafses em que esses regimes prosperaram acreditaram, 0u fizeram acreditar, que a evolugdio do mundo obedecia a leis estritas, de nature- za social ou bioldgica; mas, longe de ver nisso uma razo para se resignar e cruzar os bragos, eles julgaram que, estando a verdade alistada de seu lado, podiam prosseguir em scu objetivo com mais seguranga ainda. Tudo € necessario, certa- mente, mas tem-se a liberdade de acelerar a necessidade para ir no sentido da historia ou no sentido da vida. O cientista que se encontra na base do projeto totalitério conjuga dois extremos: um determinismo sistemdtico e um voluntaris mo ilimitado. O mundo € inteiramente homogéneo, inteiramente determinado, inteiramente cognoscivel, de um lado; mas, do outro, 0 homem é um material infinitamente maledvel, cujas caracterfsticas observaveis nfo constituem obsté culos sérios ao projeto escolhido. Tudo € dado e ao mesmo tempo tudo pode ser requerido: a reunizio paradoxal dessas duas afirmagdes passa por uma terceira, segundo a qual tudo € cognoscivel. E & essa reunido que torna 0 totalitarismo perigoso: somente o determinismo pode conduzir & resignagio, s6 0 voluntaris- mo pode ser combatido por um rival. a Passou-se aqui das utopias antigas, sonhos de uma sociedade ideal desti- nados a orientar a critica das sociedades reais, 20 utopismo moderno, tentativas para instaurar 0 paraiso na terra, aqui e agora. Conseqtiéncias brutais se seguem. Uma vez que as classes inimigas sio destinadas (pelas leis da hist6ria, reveladas pela ciéncia) a desaparecer, podem-se elimind-las sem escrdpulos. Jé que as ra- Sas inferiores sto a0 mesmo tempo nocivas ¢ condenadas a perecer na luta pela sobrevivéncia, como demonstram as leis da evolugio estabelecidas pela cién- cia, 0 exterminio dessas ragas é um beneficio para a humanidade, uma maneira de colaborar com o destino. © mesmo acontece com aspectos menos macabros dessas sociedades, desde a industrializagao até a organizagiio da vida cotidian: tudo € af decidido por uma vontade de ferro, ainda menos hesitante pelo fato de pretender se apoiar nas verdades do conhecimento cientifico. Controlando a sociedade em sua integridade, seus dirigentes podem ser animados por um ideal que nao é inteiramente estranho ao dos conservadores: eles tentam impor uma maior coesio social ¢ uma submissiio a valores comuns a to- dos. E exatamente assim que se procedeu nas revolugdes “socialistas”, inaugura- das pela de Outubro na Russia: vit6ria do coletivo sobre o individual, da submisstio sobre liberdade. Nisso elas evocam o pensamento dos contra-revoluciondrios, por exemplo, na Franga de Bonald, que tentam restabelecer pela forga o modo de vida do Ancien Régime. O mesmo aconteceré com revolugdes chamadas conservado- ras do século XX, 0 fascismo ou a “revolugo nacional” de Pétain, que procura- fo retomar valores caros aos conservadores. Poder-se-ia ficar surpreso com essa comparagio entre conservadores ¢ re- voluciondrios. Somos habitualmente mais sens{veis as diferenas entre eles: uns 2 TaVvETAN TODOROV invocam a estabilidade, outros a mudanga, uns situam seu ideal no passado, outros no futuro, uns se referem a religido revelada, outros & nagdio ou a classe. Contudo, Bonald e Saint-Simon (para nomear um dos primeiros representantes franceses da tendéncia cientista e utopista) ditigem as mesmas censuras ao pensamento encarnado por Benjamin Constant, defensor da democracia. A preeminéneia do “social” sobre 0 “individual”, a énfase dada & pertenga coletiva (a raga, a classe, & hagilo) sto tragos comuns aos socialistas revolucionirios e aos tradicionalistas conservaclores; ¢ o mesmo ocorre com a exigéncia de uma ordem pablica moral. Isso explica, em parte, a facilidade com a qual um bom niimero de pessoas pude- ram passar da “extrema direita” & “extrema esquerda”, ou inversamente. O segundo ramo da ideologia cientista se manifesta no Ambito das demo- cracias ocidentais. Seus elementos — tudo é determinado, tudo é cognosctvel, tudo pode ser melhorado — intervém em numerosos aspectos da vida piiblica: 0 esquecimento dos fins que presumivelmente perseguem as agdes politicas ou morais (ou o desaparecimento pura e simples de tais ages); a conviego segundo a qual esses fins decorrem automaticamente dos processos que a ciéncia descre- Ve; 0 desejo de submeter a ago ao conhecimento. Economistas, socislogos e Psicdlogos observam a sociedade € os individuos, e créem identificar as leis de seu comportamento, a ditegio de sua evolugiio; os politicos e os moralistas (os (O.JARDIM IMPERFEITO 8 ')incitam ent&o a populagio a se conformar a essas leis. O perito i 0 erudito enquanto provedor de fins tiltimos, ¢ uma coisa se torna boa. ples fato de ser freqiiente. A liberdade de escolha & preservada, observa oldschmidt, mas ela é exercida por “uma coletividade tecnicista”, tos autonomos (Ecrits, 1, 242). Essa proximidade ideoldgica nao impe- etanto, que os regimes democraticos se oponham as sociedades totalitérias esses Estados que asseguram a liberdade dos individuos nao impede itagaio se torne coergiio, € que a insubordinagao seja punida pelo encar- o ou pela morte. OS INDIVIDUALISTAS : © uni~ -O ponto de partida dos cientistas é um postulado epistemolég inteiramente determinado e cognoscivel. A familia seguinte se define no 0 quadro, mas fundando-se numa hipétese antropolégica: 6 que o indivi- ano é uma entidade auto-suficiente. E por essa razdo que eu Ihe dou 0 de individualista, um termo que emprego aqui num sentido muito mais 0 que quando é empregado para designar toda a modernidade (sigo neste oemprego de Alain Renaut). Se voltamos a nosso ponto de partida, a reve- do pacto das conseqiiéncias imprevistas da liberdade, a reagio indivi- consiste, no em negar a existéncia da liberdade, como nos cientistas, lamentar suas consequéncias, como fazem os conservadores, mas em re- cer a verdade da constatagio, invertendo ao mesmo tempo 0 juizo de v: Ihe est ligado: em vez de se desolar, os individualistas se rejubilam com O que, na boca dos conservadores, era ameaga ou injiiria —individualismo, ismo, dispersio do ego -, eles reivindicam em alto e bom som. Se ha s0isa que cles lamentam, é que o homem nao tenha ainda se livrado melhor fiegdes que sfio a moral, a vida em comum € 0 ego coerente. ‘Como as familias precedentes, a dos individualistas mergulha suas rafzes sado distante. A tradigio estdica apresenta 0 homem como um ser auto- i, ou pelo menos como capaz de tender para esse ideal. A sabedoria mostra a relatividade de todos os nossos julgamentos e « impossibilidade ficar uma posigo moral que niio seja por nossos habitos e nossos interes a tradicao agostiniana, no seio do cristianismo, sempre se faz questo de que a fraqueza é inerente A natureza humana, portanto, também que 0 sm é um ser solitério, agressivo e sem moral. O individualismo encontra de seus ingredientes no nominalismo de Guilherme de Occam. Se nada le fora dos corpos individuais, se as abstragdes silo apenas fantasmas, a enti- Social n’io é mais uma necessidade: cada ser est4 inteiro em si mesmo. As $ que estabelece com outros seres em torno dele nao © modificam, cle niio tui com eles uma entidade nova. “Para que uma coisa exista, é preciso que la por si mesma, e nenhuma outra” (Lagarde, V, 174). Occam, que trans- u T2VETAN TODOROV porta para a vida da cidade certos prinefpios da vida mondstica, em que o indivt- duo esti s6 diante de Deus, concebe 0 homem como independente de seus seme- Ihantes, devendo, portanto, atingir 0 bem inteiramente s6, “Ser uma pessoa é niio ter necessidade do concurso de uma outra realidade para subsistir” (VI, 42) Esse fundo de idéias tradicionais nutrira uma imagem do homem que se cristalizard na Franga, no século XVII, no pensamento de La Rochefoucauld. O ser humano € fundamentalmente solitario ¢ egoista, todas as suas ages so motivadas por seu amor-préprio e interesse pessoal. Mas no ousamos mos- trar nossa verdadeira face aos outros, com medo de que eles nos punam; tra- Yestimos, portanto, nossas agdes egofstas em gestos desinteressados e generosos. O papel do moralista consiste, entdio, em arrancar essa mascara de virtude ¢ revelar nossa verdadeira natureza. “Nao podemos amar nada que nao esteja em relagdo conosco” (Maximes, M 81). “E apenas o interesse que produz nossa amizade” (M 85). De tanto enganar os outros, acabamos por acreditar em no sas préprias ficgdes, e imaginamos que a vida em sociedade nos ¢ indispensa- vel, Ora “os homens nao viveriam muito tempo em sociedade se nao fossem enganados uns pelos outros” (M 87). Pascal, que participa da mesma tradi agostiniana, dird igualmente: “A unido que existe entre os homens baseia-se apenas nesse miituo engano” (Pensées, B. 100, L. 978). Mas La Rochefou- cauld como Pascal lamentam essa solidao e esse egoismo, e procuram ma: caré-los, quando nao eliminé-los: pela polidez e aprendizagem da honestidad para um (voltarei a isso) (244 s.]; pela graga, para o outro. Essa concepgdio do homem ser retomada no século XVIII por aqueles mesmos que deviam fundar a familia cientista, os materialistas-enciclopedistas; ¢ ela seri pouco a pouco despojada do julgamento negativo que a acompanhava em La Rochefoucauld e Pascal. O homem é um ser interessado, auto-suficiente, soli- (0? Pois bem, dir Helvécio, € preciso tomé-lo como ele é ao invés de se revol- tar inutilmente contra a natureza; é preciso aproximar o ideal do real. Contudo, a visio de Helvécio nio 6 ainda abertamente individualista, pois para ele o interes- se comum, o do grupo, deve sobrepor-se ao interesse pessoal © primeiro “individualista” franco, na tradigdo francesa, é ao mesmo tem- Po 0 mais extremo: trata-se de Sade. Ele observa primeiro, na linhagem de seus Predecessores, que 0 homem, a imagem dos outros animais, é um ser puramente egoista, que reconhece apenas os préprios interesses. Ea lei geral da natureza: “A natureza, mie de todos nés, fala sempre apenas de nds, nada é tio egofsta como sua voz" (La Philosophie dans le boudoir, IM, 123). A vida social é imposta 10s homens do exterior, ela niio Ihes & necessfria”. Nao nascemos todos isolados? digo mais, todos inimigos uns dos outros, todos num estado de guerra perpétua e teciproca?” (V, 173.) Como La Rochefoucauld, Sade pensa que nossas virtudes sdo apenas uma homenagem prestada pelo vicio as conveniéncias. “A beneficén- cia € antes um vicio do orgulho que uma verdadeira virtude da alma’ (III, 57). lamais, seno por si mesmo, é preciso amar as pessoas; amé-las por elas mes- ‘mas néio passa de engodo” (V, 178). OJARDIM IMPERFEITO 6 Ora, tudo 0 que existe é bom: € preciso, em tudo e em toda parte, submeter- se a “natureza”. Nao se trata mais de uma aproximagio entre ser ¢ dever ser, ‘como em Diderot ou Helvécio, mas do desaparecimento do segundo termo, em proveito do primeiro. “Toda lei humana que contrariaria as da natureza seria feita apenas para 0 desprezo” (II, 77) Felizmente, a natureza nos dew 0 prazer para nos permitir saber o que é exatamente de nosso interesse; ¢ é af que a experiéncia do individu ¢ irefutavel. 0 telaivismo dos valores, que em Helv6cio se detinha no grupo, atinge agora o individuo: 6 bom o que é bom para mim. O individuo niio tem de levar em conta convengdes sociais. “Poclemos nos entregar em paz a todos os nossos desejos, por mais singulares que possam parecer aos tolos que. ofendendo-se e alarmando-se com tudo, tomam imbecilmente as instituigies so- ciais como as divinas leis da natureza” (96). O individuo se basta a si mesmo, ele 86 deve, portanto, preocupar-se com seu prazer, “Somente nossos gostos, nossos temperamentos devem ser respeitados” (61). “Nenhum limite a teus prazeres a nao ser o de tuas forgas ou de tuas vontades” (66). O movimento de liberagao, que esta se realizando com a Revolugiio Francesa, deve continuar no plano pessoal 0 individuo se libertaré de toda coergio social. As leis comuns sio apenas um entrave ao prazer. Se 0 corpo desempenha um papel tio grande no imaginsrio de Sade € precisamente porque ele pertence exclusivamente ao individuo, “Teu cor- po pertence a ti, somente a ti; cabe somente a ti o direito de desfruta-lo e de fazer dele usufruir quem melhor te parecer” (68). Sabe-se que 0 proprio Sade tirard algumas conseqiiéneias especiais dessa doutrina: tendo descoberto que a dor de outrem Ihe dé mais prazer que sua ale- gtia, cle recomenda as situagdes em que o sujeito pode fazer sofrer esse outro ser humano ou, no limite, condend-lo & morte. “Nao se trata de saber se nossos pro- cedimentos agradardo ou desagradardio ao objeto que nos serve, trata-se apenas de abalar a massa de nossos nervos pelo choque mais violento possivel” (121). Mas essa variante sidica nio é indispensdvel d doutrina; o que a constitui é sua antropologia individualista, e sua moral, por assim dizer, hedonista, No século XIX, Sade seri percebido no seio da familia individualista como © primo comprometedor, cuja existéncia & preferivel ignorar: O hedonismo seri muito mais praticado do que reivindicado. O utilitarismo, que é a forma filos6fi- ¢a assumida pela doutrina individualista, invocard diretamente Helvécio ou, no além, Epicuro. O egoismo sera de resto reprimido ali, pois niio é a felicidade individual que sera seu objetivo declarado, mas o de todos os membros da co. munidade (da “maioria”). Essa extensio quantitativa niio transformard, todavia, ahipstese antropol6gica de partida: os individuos sito os dtomos da sociedade, €sta é obtida por sua justaposigao e sua adigéio, mais do que ser uma caracterfs- tica interna dela, . © aparecimento da palavra “individualismo”, destacada por Tocqueville, ilustra a grande difusio da doutrina. A familia individualista possui também ou- tros membros, tal como 0 estetismo ao qual retornarei [251 s.]; ela se manifesta igualmente na exigéncia de expansio de si mesmo ou de existéncia pessoal . ee - T2VETAN TODOROV auténtica, que € familiar a todos nds. Nao entrarei no detalhe dessas subdivisées, pois niio é esse meu objeto. O que aqui nos importa é apenas 0 lugar dos in dualistas no seio de outras familias: uma doutrina que satida com satisfagiio a liberaco do individuo em relagdo as tutelas anteriores, que deseja levé-la para mais longe ainda, mesmo que, para isso, se deva libertar dos elos sociais ou dos valores comuns — um sacrificio tanto mais facil porque o individuo, segundo essa doutrina, € um ser auto-sufici A FAMILIA HUMANISTA Uma vez reconhecidas essas trés grandes reagdes & revelagéo do pacto, falta ainda a que reveste a meus olhos mais importancia e & qual sera dedicado o Festante deste livro. E a dos humanistas, e ela consiste em negar que tenha havido algum dia um pacto, ignorado ou reconhecido; em outros termos, que haja uma telago necessaria entre, de um lado, a aquisigdo do direito de se autogovernar e, de outro, a dissolugdo da sociedade, da moral ou do eu. A palavra “humanista” possui pelo menos trés sentidos bem distintos, mes- mo que relagdes significativas existam entre eles. O mais antigo, 0 que se impos na Renascenga, corresponde as pessoas que se dedicam ao estudo das Humani- dades, 0 que quer dizer em particular a hist6ria ¢ as letras da Antiguidade grega € latina; elas valorizam, portanto, esse estudo ou seu objeto. O mais recente é um sentido puramente afetivo: sto “humanistas” os que se comportam com hu- manidade em relagdo aos outros ou que nos dizem que preciso tratar os ho- mens com benevoléncia; sao, em suma, filantropos. Mas niio é nem no sentido hist6rico nem no sentido moral que tomo aqui a palavra; sirvo-me dela para designar uma doutrina que confere ao ser humano um papel especial. Qual & cle exatamente? Ele consiste primeiramente em encontrar-se na origem de seus atos (ou de uma parte dentre eles), em ser livre para realizi-los ou nao, portanto, em poder agir a partir de sua vontade. O trago distintivo da modernidade é constitu tivo do humanismo: 0 homem também (e nfo apenas a natureza ou Deus) dec de sobre seu destino. Ele implica, ademais, ser o fim tltimo desses atos, que nao visam a entidades supra-humanas (Deus, 0 bem, a justiga) nem infra-humanas (0s prazeres, o dinheiro, 0 poder). Ele permite enfim desenhar o espago no qual evoluem seus agentes: 0 espago de todos os homens, e deles apenas. Para designar essas trés caracteristicas da familia humanista, recotrerei com freqlléncia a formulas mais breves: falarei entdo da autonomia do eu, da finali- dade do tu ¢ da universalidade dos eles. Utilizo aqui uma oposigio familiar aos te6ricos da linguagem entre 0 pessoal (eu, tu) ¢ 0 impessoal (a “terceira pes- soa”), de um lado; entre ego ¢ alterego, do outro ~ pois, naturalmente 0 homem que € aqui 0 fim (o objetivo) de minhas ages no é eu mesmo mas um outrem (0 humanismo niio é um egofsmo). O que assegura a unidade desses trés tragos, € a prépria centralidade conferida a espécie humana, encarnada por cada um de y 0s: ela € a0 mesmo tempo a fonte, 0 objetivo e o quadro de suas . na mesma época do Renascimento, passa-se do geocentrismo 10 € expulsa-se nossa Terra do centro do universo, no plano dos 1umanos vai-se do teocentrismo (ou de um “cosmocentrismo” pagiio) centrismo. Todo ser humano, sejam quais forem suas outras caracte- onhecido como responsiivel sobre o que ele faz e merece ser trata- fim ttimo. Eu devo ser a fonte de minha agio, tu deves ser 0 objetivo ‘todos pertencem a mesma espécie humana, Essas trés caracteristicas chamava as trés “formulas de uma s6 ¢ mesma lei”, Fundamentos, I, sempre se encontram juntas; um autor particular pode reter apenas ‘uma s6, para mesclé-las a outras fontes. Ora, apenas a reunitio das itui o pensamento humanista propriamente dito. pensamento € ao mesmo tempo uma antropologia (ele diz como os slo: uma espécie & parte cujos membros siio socidveis ¢ parcialmente jinados — e que por essa razio so levados a exercer sua liberdade), uma diz como eles devem ser: encarecendo os seres humanos por si mes onferindo a mesma dignidade a todos) e uma politica (ele privilegia os se pensar que a divisa da Revolugio Francesa, iberdade, igualdade, de, se refere, mesmo que aproximadamente, a essa tripla exigéncia hu- a liberdade designa a autonomia do sujeito, a igualdade, a unidade do thumano; quanto 2 fraternidade, tratar os outros. como se fossem nossos no € fazer deles ao mesmo tempo o objetivo de nossas afeigées e de 1s? Por sua vez, os Estados democriticos modernos adotam esses mes- princfpios, apés té-los transposto do plano individual aquele da coletivi tadispde de um poder soberano, expressiio da vontade popular; o bem-estar sjeitos € o objetivo tiltimo de sua ago; a universalidade da lei para todos 0s é a regra fundamental de seu funcionamento. Af reside a profunda entre pensamento humanista e democracia politica. set O regime politico concreto que corresponde mais de perto aos principios smo , portanto, a democracia liberal, tal como se constituiu progress ‘nos tiltimos duzentos anos, pois ela adota ao mesmo tempo a idéia de nia coletiva (a soberania do povo), a de autonomia individual (a liberdade lividuo) e a da universalidade (igualdade de direitos para todos os cida- Humanismo e democracia nem por isso coincidem. Primeiro, porque as sracias reais estio longe de encarnar com perfeigdo os prinefpios humanis- se, € como, criticar a realidade democritica em nome de seu proprio , €m seguida, porque a afinidade entre humanismo e democracia néio é uma 0 de implicagdo miitua, exclusiva de qualquer outra. Na verdade, as familias dora, cientista e individualista prosperam igualmente no interior das de- ius; estas, por sua vez, ndo sio ameacadas pela presenga, em seu seio, tras familias. Herdeiras do espitito de tolerancia religiosa, as democracias # T2vETAN TODOROV aceitam um certo pluralismo dos valores: diferentes ideologias podem contribuit para a perseguiciio do mesmo fim, o bem-estar comum, Nao hé correspondéncia simples entre familias ideoldgicas ¢ regimes politicos odavia, enquanto 0 pensamento humanista é central para a democraci liberal, as outras ideologias modernas se acomodam com a democracia, mas pos suem também tendéncias centrifugas que as afastam dele. Os individualistas sao tentados por aspiragées anarquistas e libertarias; preferem que a regra comum, encarnada nas leis ¢ no aparelho de Estado, seja tio fraca, to limitada quanto possivel. Os conservadores, que niio eréem na forga e na justeza da vontade in- dividual, preferem os regimes autoritarios. Um Estado fundado nos prineipios cientistas corre o risco de evoluir para o totalitarismo: se dominamos a integrali- dade dos processos biolégicos ¢ histéricos, nfio mais nos incomodamos em con- sultar a vontade dos individuos. Conservadores e cientistas podem, em iltima instancia, reconhecer-se no mesmo tipo de regime ideocritico, enquanto as just ficativas ideolégicas dadas seriam contradi iéncia aqui, a teologia ali, a utopia de um lado, a tradigtio do outro. $6 a familia humanista esté livre dessas tendéncias centrifugas. Se nos voltarmos para 0 lado da moral, uma nova distingiio se impde. O humanismo politico com seus corolarios (sufrdigio universal, protecdo do indi- viduo, ete.) constitui, evidentemente, apenas um humanismo minimo, que se poderia qualificar de passivo. A recusa do arbitrério regalista, da redugdo A esera vido ou da doutrinag’io forgada do individuo sao clementos necessirios pl tica humanista, mas eles ndo nos dizem ainda nada sobre valores positivos aos quais se deve aspirar. O humanismo ativo, por sua vez, baseia-se na finalidade do tu, na aceitagao do ser humano particular (que no si mesmo) como finalida- de tltima de nossas agées. Aqui, 0 proprio termo de moral jé nao basta, pois a via preferida pelos humanistas no é a das injungdes morais, mas a que valoriza 08 apegos humanos, a amizade, o amor. Por sua vez, tal “moral” intervém na “politica”: nfio se conduz mais os negécios do pais da mesma maneira caso se decida levé-la em conta, Quanto & antropologia prépria da doutrina humanista, ela é relativamente pobre. Pondo de lado a identidade bioldgica da espé Ja reduz-se a um s6 trago, a sociabilidade; mas suas consequiéncias so numerosas. A mais importan- te, em nossa perspectiva, é a existéncia de uma consciéncia de si, qual os ani- ‘mais nao tém jamais acesso, enquanto o filhote do homem comeca a adquiri-la muito cedo, desde que ele consegue captar o olhar do adulto que se inclina pa ele: tu olhas para mim, portanto, eu existo. Essa consciéncia de si, indissociavel da do outro, terd por sua vez efeitos decisivos. De um lado, uma complexidade crescente da relago intersubjetiva, cujo emblema seré a linguagem humana. Do Outro, uma nao-coincidéncia consigo mesmo, igualmente constitutiva do huma- ho: o individuo 6 a0 mesmo tempo um ser vivo como 08 outros e a consciéncia desse ser, que Ihe permite desligar-se dele, e até opor-se a ele. Este é o fundamen- to da liberdade humana (¢ da exigéneia de autonomia, que sera a tradugao politi- a (0 JARDIM IMPERFEITO » o homem caracteriza-se por esse traco biolégico, a capacidade de sepa- préprio ser. Sociabilidade ¢ liberdade estdo intrinsecamente ligadas, ¢ da propria definigao da espécie. QUERELAS DE FAMILIAS roder-se-ia agora, para completar ¢ precisar um pouco a doutrina, situar os stas em relagiio 3s outras familias modernas e identificar sua resposta 3s s do diabo. Os humanistas renunciam aos valores (mas estes siio s, nflo divinos), nem A sociedade (cujas formas sdo miiltiplas), nem & bilidade do sujeito (este seria plural). Diferentemente dos individualis- ortanto, os humanistas ~ Montesquieu, Rousseau, Constant ~ afirmam a idade constitutiva dos homens (0 homem sem a sociedade no é 0 ho- ontrariamente ao que sustenta Occam). Os homens nio sio dtomos que se rreunido, somente depois, ao seio da sociedade; sua interagtio é constitutiva ria identidade da espécie (0 tu & colocado ao mesmo tempo que 0 et!) ¢o {duo irredutivel pressupse a intersubjetividade. Contra os cientistas, os hu- las sustentam niio s6 a autonomia dos valores (eles niio decorrem dos fi ‘mas também a possibilidade da liberdade: o ser humano nio é joguete de as quais cle ndo pode subtrair-se em caso algum. "Ha uma espécie de simetria na oposigao entre os humanistas e os membros duas outras famflias. Os individualistas créem na autonomia pessoal, mas nciam a pertenca social dos individuos. Os cientistas aceitam a autonomia sm, mas a atribuem & espécie e ao grupo mais do que ao individuo: para a autonomia pessoal néio tem mais grande sentido. Por seu lado, os humanis- sam que o individuo pode aleangar a autonomia, isto é em raziio da pr ade e de acordo com leis que cle mesmo aceita, sem que seja necessario concebé-lo fora da comunidade humana, Os humanistas separam-se tam- dos conservadores, a0 mesmo tempo porque nio deploram a liberdade dos. luos € porque os valores aos quais se apegam sao puramente humanos. se Conjunto de razGes, a resposta humanista parece-me a mais satisfatsria, niio a mais valida, ao desafio do diabo. ® A critica habitual que se dirige & doutrina humanista provém das familias tista e conservadora, e consiste em dizer que os humanistas ignoram, volun- inte ou ni, a forga das determinagdes que dirigem as ages humanas, as biolégicas, sociais ou culturais. A resposta dos humanistas desdobra-se lois planos. No primeiro, a pluralidade a complexidade das séries eausais is que alcangam no fim das contas a indeterminagHo: nossa espécie, earac- -se por sua plasticidade, sua capacidade de se adaptar-se a todas as cireuns- sias, de mudar. “O homem, esse ser flexivel”, dizia Montesquieu (L'Esprit des “Préface"). Aos olhos dos humanistas, o homem é uma potencialidade mais ima esséncia: ele pode se tornar isto ou aquilo, agir desta ou daquela manei-

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