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YL-Fu Tuan Espaco © Lugar A Perspectiva da Experiéncia Tradugao de Livia de Oliveira (Professora-Adjunta do Departamento de Geografia do Instituto de Geociéncias e Ciéncias Exatas da UNESP — Campus de Rio Claro) mB] DIFEL +339 bo/muuLioveck ue Gieauan ec SS ivmantn & orstassyivony cUnITIBA LTDA SS ory 1,080.00 “SS Tovmo No, 501/93 Registro:212, 907 gs sins § BH 000 273673 $F oon: SF Spe end act The Propel Bxperinee SS conyrighe @1977 by the University of Minnesota SS SB Capa: Natanae de Oliveira (CW. Brasil. Catalogagao na-Publicagto (Cimara Brass do Livro, SP ‘Tuan, YEP, 1930 ‘THe Bapago e lugar : a perspectiva da experincia 7 Yiu Tuan tradugto de Livia de Oliveira. — Sto Paulo: DIFEL, 1983, 1. Bspago — Percept 2, Peroepsdo gegritica L. Tul, epp.133.752 3.0607 155.96 Inaices para catsogo sistem 1 Bspago: Influgncias:Picoloyia 155.96 2. Espago: Pereepedo humana: Psicologia 153.752 3. Homem: Pereepgto do espaco : Psicologia 153.752 4 Lagares: Imagens ments: Priclopi 155,96 5. Percepytogoogriicn Psicologia 135.96 1983 Diretos de wadugio reservados para Bra por wp) DIFEL. Sede Av. Wisin de Carat, 40 — 5° andar EP O1210 — Sto Paulo SP “Telex: 32294 DFEL-AR “els 21-6923 6293-4619 Vendan: Rus Doze de Setembro, 1.205 — V. Guilherme CEP 02052 ~ Sto Paulo— SP ‘Tok: 267.0301 Prefacio vida das idéias é uma est6ria continua, como a propria A vida: um livro se origina de outro assim como, na esfera do compromisso politico, uma ago conduz a outra. Escrevi um livro intitulado Topofilia premido pela necessidade de separar e ordenar de alguma maneira a ampla variedade de alitudes ¢ valores relacionados com 0 meio ambiente fisico do homem. Embora apreciasse observar a riqueza e a amplitude da experiéncia do homem.com o-meio-ambiente, no pude nessa época encontrar um tema ou conceito abrangente com © qual estruturar o meu heterogéneo material; e, portanto, mui tas veres tive de recorrer a categorias convenientes e conven- cionais (como subjirbio, vila, cidade, ou tratar separada~ mente os sentidos humanos) em vez de usar eategorias que cevoluissem logicamente de um tema central. Neste livro pro- euro alcangar uma posigao mais coerente. Para tanto re duzi meu enfoque para “espago” e “tugar" enquanto ele~ mentos do meio ambiente, intimamente relacionados. Ainda mais importante, procurei-desenvolver meu material de-tma ‘inica perspectiva —a_da experitneia. A complexa natu- feza da experiéncia humana, que varia do sentimento prima- rio até a concep¢ao explicita, orienta 0 conteido e os temas deste livro. 7 g Oe G8OOLObe -- leew eves ee Prefacio Freqiientemente, tem-me sido dificil 0 devido reconheci- mento das obrigagdes intelectuais. Uma razio 6 que devo tanto ¢ Lantos. Um problema ainda maior 6 que posso dei de agradecer as pessoas a quem devo mais. Eu as “devorei"! Suas idéias se transformaram em meus pensamentos mais profundos. Os meus mentores an6nimos sio os estudantes € colegas da Universidade de Minnesota. Confio que eles sejam indulgentes com qualquer apropriag%o inconsciente de seus insights, ¢ todos os professores sabem que esta 6 a forma mais sincera de reconhecimento. ‘Tenho, também, agradecimentos espeefficos e 6 com pra. zer que os faco. Sou profundamente grato a J. B. Jackson e P. W. Porter por terem encorajado meus esforgos iniciais; a Su-chang Wang, Sandra Haas ¢ Patricia Burwell pelos dia- gramas que atingiram a elegincia formal que em meu texto ficou apenas no nivel da intencio; e a Dorian Kottler da University Press pelo meticuloso trabalho-de revisio. Desejo, também, agradecer as seguintes instituigdes pelos recursos ‘que me permitiram trabalhar no Espaco e Lugar, com peque- nas interrupg®es, nos dois tiltimos anos: & Universidade de Minnesota, por conceder-me a licenga para viagem de estu- dos, seguida de mais um ano de afastamento; A Universidade do Havai, onde pela primeira vez explorei os temas deste livro, com um pequeno grupo de estudantes de pés-graduagio, inte- ressades no assunto; 4 Fundag&o Educacional Australiano- Americana (Programa Fulbright-Hays), por me ter possibili- tado uma visita A Australia; ao Departamento de Geografia Humana, da Universidade Nacional da Australia, por ter me propiciado um ambiente agradavel e estimulante para pensar e escrever; © Universidade da California, em Davis, por um ano de sol e calor, tanto humano como climético. Yi-Fu Tuan Ano Novo Chinés, 1977. Preficio V Iustragdes 1X 1 Introdugao 3 2__ PerspectivaExperiencial 6 Espago, LugareaCrianga 4 Corpo, Relagdes Pessoais ¢ Valores Espaciais 9 22 Sumario 5, Espaciosidade e Apinhamento $8 6 | Habilidade Espacial, Conhecimento ¢ Lugar 7) Espace Mitico ¢ Luigar 8 Espago Arquitet6nico ¢ Conhecimento 9. Tempo no Espago Experiencial 132 10° Experigneias Intimas com Lugar 151 L) A\ io pela Patria 165 96 12. Visibilidade: A Criagdo de Lugar 179 13° Tempo e Lugar 198 14 Epilogo 220 Notas 227 113 39 16 < an/a1sLiOTEOA DE CHENCIA E TECKOLOGLA = (aanta € o1STR1ei100n« CURITIBA LTDA BS cry 1.00.00 , SZ Terna Ho 501/93 Regist ro:242, 901 tie = sS 3S ‘Titulo Original: BA 000 P7364? © Space and Pace: The Peepctvof Experience Copyright © 1977 by the University of Minnesota Capa: Natanael L, de Over (CIP.Brasil Catalogugto-ma-Pblicago (Chara Brasileira di Tuan, YEP, 190: T82e Bsa e lngne 8.0007 teadugde de Livia de Olvera. ine, SP 1 permpectiva da experincia 7 YiFw Twan j ‘Sto Paulo DIFEL, 1983, peo goografieaL, Titulo, epp.1s3.732 1155.96 Indies para catiogo sistemitcn 1. Bspago acs: Psicologia 155.96 2. spago: Percepgto mana Psicologia 153.752 3. Homem : Percepedo do espago Psicologia 183.752 44. Lugar Imagens menta: Psicologia 155,96 5. Pereepeaoweogritia: Psicologia. 158.96 1983 ‘Diretos de wadugto reservados parao Bras por wa] OIL Sade ‘Ay. Vieira de Cara, 40 — CEP 01210 — Sto Palo — SP “Telex: S294 DFELAR Tale 22-6923 « 21-4619 ve Ru Doze de Setembro 1.305 (CEP 02052 ~ Sto Paulo — SP ‘Tel: 267.0501 V. Guilere Prefacio vida das idéias € uma est6ria continua, como a propria vida: um livro se origina de outro assim como, na esfera do compromisso politico, uma ago conduz a outra. Escrevium livro intitulado Topofitia premido pela necessidade de separar ¢ ordenar de alguma maneira a ampla variedade de atitudes e valores relacionados com 0 meio ambiente fisico do homem. Embora apreciasse observar a riqueza ea amplitude da experiéncia do homem_com-o-meio-ambiente, nao pude nessa época encontrar um tema ou conceito abrangente com 0 qual estruturar o meu heterogéneo material; e, portanto, mui- tas vezes tive dé recorrer a categorias convenientes e conven cionais (como subiirbio, vila, cidade, ou tratar separada- mente 03 sentidos humanos) em ver de usar categorias que evoluissem logicamente de um tema central, Neste livro pro- curo aleancar uma posigiio mais coerente, Para tanto re- duzi meu enfoque para “espaco" e “lugar” enquanio ele- mentos do meio ambiente, intimamente relacionados. Ainda mais importante, procurei-desenvolver meu material de_tima nica _perspectiva — a da experiéncia. A_complexa Feza da experiéneia humana, que varia do s rio até a concepeao explicita, orienta o contetido e os temas deste livro, woeoe - + -wvevves Prefacio | Freqientemente, tem-me sido dificil o devido reconheci- | mento das obrigagdes intelectuais. Uma razaio é que devo tanto a tantos. Um problema ainda maior é que posso d de agradecer as pessoas a quem devo mais. Eu as "devort Suas idéias se transformaram em meus pensamentos mais profundos. Os meus mentores andnimos sfo os estudantes j colegas da Universidade de Minnesota. Confio que eles sejam | indulgentes com qualquer apropriacZo inconsciente de seus insights, e todos os professores sabem que esta é a forma mais sincera de reconhecimento. Tenho, também, agradecimentos especificos e é com pra ver que 0s fago. Sou profundamente grato a J. B. Jackson € P. W. Porter por terem encorajado meus esforgos iniciais; a Su-chang Wang, Sandra Haase Patricia Burwell pelos dia- gramas que atingiram a elegincia formal que em meu texto — ficou apenas no nivel da intengdo; e a Dorian Kottler da ; setae University Press pelo meticuloso trabalho'de revisio. Desejo, | siaruinl também, agradecer as seguintes instituigSes pelos recursos { Sumario Hustragdes 1X ‘que me permitiram trabalhar no Espaco e Lugar, com peque- 1 Introdugao 3 nas interrupgdes, nos dois diltimos anos: 4 Universidade de 2_ PerspectivaExperiencial 9 Minnesota, por conceder-me a licenga para viagem de estu- G Espago, LugareaCrianga 22 dos, seguida de mais um ano de afastamento; & Universidade | 4. Corpo, Relagtes P ‘Valores Espaciais 39 do Hayat, onde pela primeira vez explorei os temas deste livro, a Hayat onde vag pnts 3 5. Espaciosidade e Apinhamento 58 com um pequeno grupo de estudantes de pos-graduacao, inte- ressados no assunto; A Fundagio Educacional Australiano- Americana (Programa Fulbright-Hays), por me ter poss | 6 | Habilidade Espacial, Conhecimento e Lugar 76 (7, Espago Mitico e Lugar 96 tado uma visita a Austrilia; ao Departamento de Geografia 8 Espago Arquiteténico ¢ Conhecimento 113 Humana, da Universidade Nacional da Australia, por ter me 9. Tempo no Espaco Experiencial 132 propciado um ambiente agradéve estimulante para pensar AG" Bxpecibiictas Intimine coe Lugar 151 e escrever; € & Universidade da Califrnia, em Davis, por um Ol podpress ano de sol e calor, tanto humano como climatic. ie 12 Visibilidade: A Criagdo de Lugar 179 YiFuTuan 13 Tempo e Lugar 198 ‘Ano Novo Chines, 1977. 14 Eptlogo 220 { Notas 227 1. 18, 19. - Espago definido como localizagao rela . De espago a lugar . Distorgdes nos lal . Mito cosmogdnico e espago orientado: viagens mitol ILUSTRACOES va € como espaco ik. demareado. Mapas do mundo dos A\ . A estrutura do corpo humano, espago e tempo. “Centro” sugere “elevagio" e vice-versa: 0 exemplo de Pequim. Organizagbes egocéntricas ¢ etnocéntricas do espago, @ aprendizagem de um labirinto. intos desenhados. Elak — nayegago celeste micronésia. 1. Concepedo do espaco como lugar-repleto (oceano Pact- fico) de Tupaia. |. Espacos mitico-conceituais. |. Cosmos ptolomaico. . Casas com patios intern © grande contraste entre 0 “interior e o “exterior” . Oyurt mongol ¢ 0 pantedio de Adriano: o-domo simbélico e suas expresses arquitet@nicas. A casa como cosmos € mundo social: 0 exemplo da casa dos Atoni no Timor indonésio, - Acampamento pigmeu: a separagio do espago social sagrado. Espago € tempo dos Hopi: os reinos subjetivo e objetivo, gicas dos herdis ancestrais dos Walbiri na Austrélia cen- tral. Espago sagrado simétrico (Ming ‘T’ang) ¢ Cidade do Ho- mem assimétrica. O lugar como um simbolo piblico nitidamente visivel: as places royales de Patis, segundo 0 plano de M. Patte. Lugares duradouros: rochedo de Ayers Stonehenge. faivanvenvanvenvenvenvenven =e oo DACARHEECE COLE aeeccer ‘A A ~- Swe wevr vee ved: 20. a1. 2. Aldeias, cidades comerciais e areas comerciais: lugares visiveis e “invisiveis”. Movimento, tempo e lugar: a. caminhos ¢ lugares linea- res; b. caminhos e lugares ciclicos/pendulares. s anéis de crescimento (tempo) das muralhas de Paris, Espago e Lugar A Perspectiva da Experiéncia t Introdugao GG FEN 00007 £ tase sto termes familiares que indi- m experiéneias comuns. Vivemos no espaco. No ‘ha lugar para outro edificio no lote. As Grandes Planicies dio a sensagao de espaciosidade. O lugar é seguranca e.o-espaco é liberdade: estamos ligadios a0-p ja tyos outro, Nao ha lugar como o lar. O-que é tar? Ba velha isa, 0 velo bairro, a velha cidade ou.a patria. Os geégrafos es tudarit 0s lugares. Os planejadores gostam de evocar “um sen- tido de luga silo componentes biisicas do mundo vivo, ‘Quando, no entanto, pensamos sobre eles, po- significados inesperados ¢ levantam questées que ‘ndio nos ocorreria indagar. Que é espago? Vejamos um episédio, da vida do tedlogo Paul Tillich que servira de enfoque & questao sobre v signi ficado do espago na experiéncia. Tillich nasceu ¢ cresceu em uma pequena cidade da Alemanha Oriental em fins do século passado. A cidade tinha caracteristicas medievais. Circun- dada por uma muralha e administrada do edificio da prefei- tura municipal construido na Idade Média, dava a impressio de um pequeno mundo, protegido ¢ auto-suficiente. A uma. crianga imaginativa, a cidade pareceria estreita e limitadora. 3 ~ eee ewe eevee ves ‘Todos os anos, no entanto, o jovem Tillich podia eseapar com sua familia para o mar Baltico. A viagem para o litoral — 0 espago aberlo © 0 horizonte sem limites — era um grande acontecimento. Mais tarde Tillich elegeu um lugar no oceano ‘Atlintico para viver apés a aposentadoria, decisto esta que sem chivida deve muito as experiéncias da juventude. Quando crianga, Tillich também pOde eseapar as limitacbes da vida de uma cidade pequena fazendo viagens a Berlim. As visitas & grande cidade curiosamente the ‘lembravam o mar. Berlim, também, deu a Tillich a sensagio de amplidao, de infinito, de espaco sem limitagdes.' Experiéncias deste tipo nos levam novamente a refletir sobre o significado de uma palavra como “espaco” ou “espaciosidade”, que pensamos conhecer bem. Que é um lugar? O que dé identidade e aura a um lugar? Estas perguntas ocorreram aos fisicos Niels Bohr e Werner Heisenberg quando visitaram o castelo de Kronberg na Dina- marea. Bohr disse a Heisenberg: Ito ¢ interessante como este castelo muda to logo 1 gente imagina que Hamlet vireu aqui? Como cientistas, aereditamos que um eastelo consiste $6 ‘em pedras, © admiramos a forma como 0 arquiteto as ordencu. As pedras, ‘ teto verde com a patina, os entalhes de madeira na igreja constituem tastelo todo, Nada disto deveria mudar pelo fato de que Hamlet morou tqui f, no entanto, muda completamente. De repente os muros ¢ os baluartes {alam uma linguagem bem diferente, O proprio pttio se transforma em um ‘mundo, um eanto escuro not lembra a escuridto da alma humana, ¢ escu- ‘amos Hamlet "No entanto tudo 0 que realmente sabemos sobre Hamlet € que seu nome aparece em uma crOnice do séeulo XI. [Ninguém poderé provar que ele realmente existiu, e menos ainda que aqui viveu. Mas todo munda conhece as questBes que Shakespeare o fer per- inuntar, a profandeza humana que fol seu destino trazer & luz; assim, teve também que encontrar para si um lugar na Terra, aqui em Kronberg. Uma vyer que sabemos disto, Kronberg se torna, para nos, um eastelo bem dite rente.? Estudos etol6gicos recentes mostram que animais ndo humanos também tém um sentido de territério ¢ lugar. Os ‘espacos sto demarcados e defendidos contra os invasores. Os lugares sto centros aos quais atribuimos valor ¢ onde sito satisfeitas as necessidades bioldgicas de comida, Agua, des | canso e procriagio, Os homens compartilham com outros ani: 5 Introdugao mais certos padres de comportamento, mas como indicam as reflexdes de Tillich e Bohr, as pessoas também respondem ao espago e a0 Tugar de maneiras complicadas que-nao.se.conce- ‘bem no reino animal. Como € possivel que tanto 0 mar Béltico como Berlim evoquem uma sensagto de vastidao ¢ infinito? ‘Como € possivel que uma simples lenda assombre o castelo de Kronberg e transtaita uma sensagao que permeia as mentes de dois cientistas famosos? Se ha seriedade em nossa preocu- pagao com a natureza e qualidade do meio ambiente humano, estas so, certamente, perguntas basicas. Entretanto, poucas vezes elas tém sido levantadas. Ao contratio, estudamos ani- mais, como, por exemplo, ratos € lobos, dizemos que 0 comportamento humano ¢ as seus valores so bem parecidos com os deles. Ou_medimos e mapeamos 0 espago.e lugar, € adquirimos leis espaciais e inventarios de recursos através de amgssosesforcos. Estas so abordagens impo precisam ser complementadas por dados experienciais que pOSSAMIOS iterpretar com fidedignidade, porque nos nnjesmos somos humanos. Temos 0 privilégio de acesso a esta- os de espirito, pensamentos e sentimentos. Temos a visto do interior dos fatos humanos, uma asserg#o que n@o podemos fazer a respeito de outros tipos de fatos. ‘As pessoas As vezes se comportam como animais encur- ralados e desconfiados. Outras yeres também podem agit como cientistas frios dedicados A tarefa de formular leis ¢ mapear recursos. Nenhuma das duas atitudes dura muito, As pessoas sio seres complexos. Os dotes humanos incluem 6r- aos sensoriais semelhiantes aos de outros primatas, mas sto coroados por uma capacidade excepcionalmente’ refinada para a ctiagao de simbolos. Saber como o ser humano, que esti ao mesmo tempo no plano do animal, da fantasia e do cilculo, experiencia e entende o mundo & o tema central deste livro. Considerando os dotes humanos, de que maneira as pes- soas atribuem significado e organizam 0 espaco eo lugar? ‘Quando se faz esta pergunta, o cientista social é tentado a ver ‘cultura como um fator explicativo. A cultura € desenvolvida unicamente pelos seres humanos. Ela influencia intensamente Inirodutiio © comportamento ¢ os valores humanos. A sensagio de espago € lugar dos esquimés é bem diferente aa dos americanos. Esta abordagem é vitida, mas nao leva em conta problema dos tragos comuns, que transcendem as particularidades culturais nto, refletem a condi¢Ao humana. Na obseryagdo dos 0 cientista comportamental provavelmente se volta para o comportamento anilogo do primata. Neste tra: balho, reconhecemos nossa heranga animal, bem eomo a im: portancia desempenhada pela cultura. A cultura & inevitavel, sendo explorada em todos os capitulos. Mas 0 propdsito deste ensaio nao é escrever um manual sobre a influéncia das cul. turas nas alifudes humanas em relagéo a espaco e lugar. antes um prélogo & cultura em sua infinita diversidade; nfoca que: dias aptides humanas, capacidades ¢ idades, e como a cultura as acentua ou as distores ‘és (omas se entrelagam: - 1) Os fa icos. As criangas t@m apenas nogbes muito grosseiras sobre espago e lugar. Com o tempo adqui- rem sofisticago. Quais sio os estigios da aprendizagem? O corpo humano ou esté deitado, ou ereto. Em posigdo ereta tem alto e baixo, frente e costas, direita e esquerda. Como estas posturas corporais, divisbes e valores so extrapolados para 0 espace circundant 2) As relagdes de espago e lugar. Na experiencia, o sig ficado de espago freqiientemente se funde com 0 de lugar ““Espago" € mais abstrato do que “lugar”, O que comeca ‘como espaco indiferenciado transformasse.cm lugar A medida nos melhor ¢ 0 dotamas.de.yalor. Os arquitetos iS qualidades espaciais do lugar; podem igual- mente falar das qualidades locacionais do espago. As idéias de “espago” e “ugar” no podem ser definidas uma sem a outra. A partir da seguranca e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidao, da liberdade © da ameaga do espaco, e vice- versa. Além disso, se pensamos no espago como algo que permite movimento, entdo lugar é pausa; cada pausa no movi- ‘mento torna possivel que localizagao se transforme em lugar. 3) A amplitude da experiéncia ou conhecimento. A expe- rigneia pode ser direta e intima, ou pode ser indireta ¢ con- 7 Introdugio ceitual, mediada por simbolos, Conhecemos nossa casa inti mamente; podemos apenas conhecer algo sobre o nosso pais se ele € muito grande. Um antigo habitante da cidade de Minneapolis conhece a cidade, um chofer de taxi aprende a andar por ela, um gebgrafo estuda Minneapolis € a conhece conccitualmente, Estas sio trés formas de experienciar. Uma pessoa pode conhecer um Ingar tanto de modo intimo como ‘conceltual. Pode articular idéias, mas tem diliculcade de ex- pressar 0 que conhece através dos sentidos do tato, paladar, olfato, audigio, e até pela visto. As pessoas tendem a eliminar aquilo que nfo podem expressar. Se uma experiéneia oferece resisténcia a uma comunicacio rapida, a resposta comum entre os. praticos (“fazedores") 6 consideré-la particular — se nao idiossinera- ica — e portanto sem importincia. Na extensa literatura sobre qualidade ambiental, relativamente poucas obras-ten- tim compreender-o que as pessoas sentem. sobre.espago. e lugar, considerar as diferentes. maneiras.de experienciar (sen- sbrio-motora, tail, visual, conceitual) e interpreta: espago-e lugar como imagens de sentimentos.complexos — muitas vezes ambivalentes. Os plancjadores profissionais, com sua necessidade urgente de agir, apressam demais a produgio de modelos e inventérios, Por sua vez, 0 leigo aceita sem muita hesitagdo, dos planejadores carismaticos e, dos propagan- distas, slogans sobre 0 meio ambiente que tenha recebido atrayés da midia, esquecendo-se facilmente a rica informagio derivada da experiéncia, da qual dependem estas abstragdes. No entanto, 6 possivel articular sutis experiéncias jnumanas, tarefa a que os artistas vém se dedicando — freaiientemente com éxito, Em obras literdrias, bem como em obras de psico- logia humanistica, filosofia, antropologia e geografia, esto registrados intrineados mundos de experiéncias humanas. Este livro chama a atencio para as questdes formuladas pelos humanistas sobre espago ¢ lugar.’ Procura sistematizar 8 insights humanisticos, expd-los em sistemas conceituais (aqui organizados na forma de capitulos), de modo que sua importincia seja evidente para n6s, nao somente como seres ensantes interessados em saber mais sobre a nossa prépria SvuUsEEUEEUEEEY 8 Introdugao natureza — nossa potencialidade para experimentar — mas também como arrendatarios da Terra, preocupados na pri- tica com o projeto de um habitat mais humano. A abordagem € descritiva, visando mais freqientemente a sugerir do que concluir. Em uma rea de estudo que ¢ em grande parte experimental, talvez cada colocago devesse terminar por um ponto de interrogacio ou ir acompanhada de oragbes adje- tivas. Pede-se ao leitor que as supra. Um trabatho explorat6- rio como este deve ter a virtude da clareza, mesmo que para isso seja necesshrio sacrificar o detathe erudito e a qualifi- cagiio. ‘Um termo-chave neste livro ¢ “experiéncia’”. Qual € natureza da experiéncia e da perspectiva experiencial? Perspectiva Experiencial neiras através das quais uma pessoa conhece e constréi a realidade. Estas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e passives como o olfato, paladar ¢ tato, até a percepeao visual ativa e a maneira indireta de simbolizagiio.* E xperiéncia 6 um termo que abrange as diferentes ma- Experiéneia ‘sensago, percepgiio, concepgao —<——— EMOCAO emogao CN eRe pensamento PENSAMENTO ‘As emogbes dito colorido a toda experiéncia humana, incluindo os niveis mais altos do pensamento. Os matemé- ticos, por exemplo, afirmam que a expressio de seus teoremas € orientada por ctitérios estéticos — nogdes de elegincia € simplicidade que respondem a uma necessidade humana. O pensamento dé colorido a toda experiéncia humana, ineluindo as sensagdes primirias de calor e frio, prazer e dor. A sen- sagaio é rapidamente qualificada pelo pensamento em um tipo 9 aa Perspectiva Experiencial especial. O calor é sufocante ou ardente; a dor, aguda ou fraca; uma provocacio irritante, ou uma forga brutal. A experiéncia esti veltada para o mundo exterior. Ver e pensar claramente yao. além.do_eu, O sentimento € mais ambiguo. Segundo Paul Ricoeur, “O sentimento é (...) sem diivida intencional: € um sentimento por ‘alguma coisa’ — © amordvel, 0 odioso, (por exemplo]. Mas é uma estranha intencionalidade: por um lado indica qualidades sentidas quanto as coisas, quanto as pessoas, quanto ao mundo, por outro manifesta ¢ revela @ maneira pela qual o eu 6 afetado intimamente”’. No sentimento, “uma intengao e uma afeiio coincidem em uma mesma experiéncia”? A experigncia tem uma conotagao de passividade; a pa- lavra sugere o que uma pessoa fem suportado ou sofrido. Um homem ou mulher experiente é a quem tém acontecido muitas coisas. No entanto, nao falamos das experiéncias das plantas €, mesmo-Hos Féferindo aos animais inferiores, a palavra -xperiéncia” parece inapropriada. Porém existe um con- traste entre um cachorrinho e um experiente mastim; e os seres humanos so maduros ou imaturos dependendo de terem ou nio tirado vantagens dos acontecimentos. Assim, a expe- riGneia implica a capacidade de aprender a partir da propria Vivencia.’ Experienciar ¢ aprender; significa atuar sobre. o dado criar a partir dele. O dado no pode ser conhecido em sia esséncia. O que pode ser conhecido é uma realidade que 6 um constructo da experiéncia, uma criagdo de seniimento pensamenio, Como afirmou Susanne Langer: “O mundo da fisica € essencialmente 0 mundo real interpretado pelas abs- tragdes matemiticas, ¢ v saundo do sentido é 0 mundo real interpretado pelas abstragées imediatamente fornecidas pelos 6rgztos dos sentidos."* Experienciar é vencer os perigos. A palavra “experiéncia” provém da mesma raiz latina (per) de “experimento”, “ex- perto” e “perigoso”.? Para experienciar no sentido ativo, 6 necessario aventurar-se no desconhecido ¢ experimentar o ilu- sério e 0 incerto. Para se tornar um experto, cumpre arris- car-se a enfrentar os perigos do novo. Por que alguém se arrisca? O individuo & compelido a isso. Esti apaixonado, u Perspectiva Experiencial a paixdo é um simbolo de forga mental, O repertério emo- cional de um molusco € muito restrito quando comparado com o de um cachorrinho; e a vida afetiva do chimpanzé € ‘quase to variada ¢ intensa quanto a do homem. Uma crianga nos primeiros anos de vida se distingue de outros filhotes de mamiferos tanto por seu desamparo como pelas suas bruscas reagSes de medo. Sua amplitude emocional, do sorriso a0 aacesso, insinua a extenso de seu potencial intelectual. experiéneia é constitufda de sentimento e pensamento. sentimento humaio mao € uma sucessao de sensacdes dis- tintas; mais precisamente a meméria ¢ a intuigao sto capazes de produzir impactos sensoriais no cambiante fluxo da expe- rigncia, de modo que poderiamos falar de uma vida do semti- mento como falamos de uma vida do pensamento, E.uma-ten- déncia comum referir-se ao sentimento e pensamento como opostos, um_registrando estados subjefivos, o outro repor- tando-se a realidade objetiva. De fato, esto proximos as duas extremidades de_um continuum experiencial, ambos sao ‘maneiras de conhecer. Ver e pensar sio_processos. intimamente_relacionados. Em ingiés, “eu vejo” significa “eu entendo”. Ha muito tempo, que ja nao se considera a visio apenas um simples registro do estimulo da luz; ela é um processo seletivo e eriativo em que os estimulos ambientais s0 organizados em estruturas fluentes ue fornecem sinais significativos ao 6rgio apropriado, Os sentidos do olfato e do tafo sao educados mentalmente? Ten- demos a negligenciar poder cognitivo desses sentidos. No entanto, 0 verbo francés savoir ("‘saber”) esta intimamente relacionado com v ingles savour. © paladar, 0 olfato e o tato podem atingir um extraordindrio refinamento. Eles discrimi- nam em meio a riqueza de sensacdes e articulam os mundos gustativo, olfativo e textural, A inteligéncia & necessiria a estruturagio dos mundos. Do mesmo modo que os atos intelectuais de ver e ouvir, os sentidos do olfato e tato pdem ser methorados com a pratica até chegarem a discernir mundos significantes. Os adultos podem desenvolver uma extraordinaria sensibilidade para uma ampla variedade de fragrancias florais’ Apesar de ser 0 eee ee eee er verve Perspectiva Experiencial nariz humano muito menos agucado que o nariz dos cies para detetar certos odores de baixa intensidade, as pessoas podem ser sensiveis a uma gama maior de odores do que os cies. Cachorros ¢ criangas nao apreciam o perfume das flores da mesma forma que os adultos. As criangas preferem 0 cheiro das frutas ao das flores? As frutas sto boas para comer, assim a preferéncia .é compreensivel. Mas qual €0 valor, para a sobrevivéncia, da sensibilidade aos dleos quimicos langados pelas flores? Esta sensibilidade nfo serve a um propésito biolégico definido. Pareceria que 0 nosso nariz, tanto quanto nossos olhos, procura ampliar e compreender 0 mundo. Alguns odores tém um poderoso significado biolbgico. Por exempio, os odores do corpo podem estimular a atividade sexual, Por outro lado, por que muitos adultos acham repul sivo 0 cheiro de putrefagio? Mamiferos, com narizes muito miais agugados que o do homem, toleram e até apreciam cheiros de carne putrefata, que desagradariam ao homem. As criangas pequenas, também, parecem ser indiferentes aos cheiros fétidos. Langer sugere que os odores de putrefagao sio memento mori* para os adultos, mas que nao tém essa cono- tagdo para os animais e as criangas.* O tato articula outra classe de mundo complexo. A mao humana € incomparavel em sua forga, agilidade © sensibilidade. Os primatas, in- cluindo o homem, usam as maos para conhecer e confortar os membros de sua propria espécie, mas 0 homem também usa as mos para explorar 0 meio ambiente fisico, diferenciando-o cuidadasamente pelo tato da casca e da peda’ Os homens adultos no gostam de ter sobre a pele substncias pegajosas, talvez, porque elas destruam a capacidade de discernimento da pele. Tais substincias entorpecem, como dculos embagados, afaculiade de exploragio. O meio ambiente arquitetOnico moderno pode agradar aos olkos, mas freqiientémente carece da personalidade esti- (©) Expresso lating que se traduz por: “Lembra-te que irs morrer’ Designa particularmente um objeto simbilico que sirva. ao homem como advertézcia de sua condigho mortal (N. da .). 1B Perspectiva Experiencial mulante que pode ser proporcionada pelos odores variados © agradaveis. Eles imprimem carter aos objetos ¢ lugares, tor- nando-os distintos, féceis de identificar ¢ lembrar. Os odores sdo importantes para os seres humanos. Fizemos referéncia a um mundo olfativo, mas podem as fragrancias € perfumes constituir um mundo? “Mundo” sugere estrutura espacial; ‘um mundo olfativo seria aquele em que os odores esto espa- cialmente arranjados, e no simplesmente aquele onde apa- regam em sucessao acidental ou como misturas rudimentares, Podem outros sentidos, além da visio e do tato, proporcionar um mundo espacialmente organizado? E possivel argumentar que o paladar, o odor ¢ mesmo a audigao nao nos dao, por si mesmos, a sensagio de espaco.® A questtio € muito acadé- mica, porque a maioria das pessoas fazem uso dos cinco sen: tidos, que se reforgam miitua ¢ constantemente para fornecer © mundo em que vivemos, intrineadamente ordenado e carre- gado de emogbes. O paladar, por exemplo, envolve quase invariavelmente 0 tato e 0 olfato: a lingua rola ao redor da bala, explorando sua forma enquanto 0 olfato registra 0 aroma de caramelo. Se podemos ouvir e cheirar algo, pode- mos muitas vezes também vé-lo, slo os érgios sensoriais © experiéncias que. per~ seres humanos ter sentimentos intensos pelo espaco jas_qualidades espaciais? Resposta: cinestesia, visio ¢ tato.* Movimentos to simples como esticar os bragos e as pernas so bésicos para que tomemos consciéncia do espago. 0 espago'€ éxperienciado quando h& lugar para se mover. Ainda mais, mudando de um lugar para outro, a pessoa adquire um sentido de dirego. Para frente, para tris e para ‘5 lados so diferenciados pela experiéncia, isto 6, conheci- dos subconscientemente-no ato de movimentar-se. ‘O espago assume uma organizagio coordenada rudimentar-centrada no eu, que se move e se direciona, Os olhos humanos, por terem superposicZo bifocal e capacidade estereascdpica, proporcio- am As pessoas um espaco vivido, em_trés dimensdes. A expe- rigncia, contudo, € necesséria. Uma crianga ou um adulto cegos de nascimento mas que tenham recentemente recupe- rado a visto, precisam de tempo e pratica para perceber que 0 “ Perspectiva Experiencial wundo se constitui de objetos tridimensionais estareis e dis- postos no espago, em vez de padroes mutiveis e cores. Locar e manipular coisas com a mao produyz.um mundo de sbjetos — ‘objetos que conservam sua constancia de forma ¢ tamanho. Ayangar até as coisas e brincar com elas revela a sta descon- tinuidade e a sua distancia relativa. O movimento intencional € a percepeio, tanto visual como hiptica, dao aos seres hu- manos seu mundo. familiar. de_objetos dispares_no_espaco. O lugar é uma classe especial de objeto. valor, embora nao seja uma coisa valiosa, que posse ser facil- ‘ménte manipulada ou levada.de-um.lado.para.o objeto no qual se_pode morar. O espaco, como ji mencio- namos, ¢ dado pela capacidade de mover-se. Os movimentos freaiientemente sio dirigidos para, ou repelidos por, objetos & lugares. Por isso 0 espago pode ser experienciado de vin aneiras: como a localiz lativa de objetos ou lugares, ‘como as distancias e extensies que. separam ou ligam. os-lu- gares, e — mais abstratamente — como a area definida por uma rede de lugares (Fig... a O paladar, o olfato, a sensibilidade da pele © a audigio ndo podem individualmente (nem sequer talvez juntos) nos tornar cientes de um mundo exterior habitado por objetos. No entanto, em combinagito com as faculdades “‘espacializantes” da visio e do tato, estes sentidos essencialmente nio distan- ciadores enriquecem muito nossa apreensio do cariter espa- cial e geométrieo do. mundo. Em inglés, por exemplo, qual ficam-se alguns sabores como sharp, € outros como flat.* O significado destes termos geométricos € realcado peio uso metaférico no reino do paladar. O odor € capaz. de sugerir massa e volume. Alguns cheiros, como de almiscar ou de angélica, so “fortes”, ao passo que outros sto “delicados”, “finos”, ou “eves”. Os carnivoros dependem do sentido agu- (*) Os adjetivos sharp ¢ flat signficam neste contexto, respectiva- mente, “picante™ e-"insfpido”. Quando se referem, porém, a ormas, sto ‘outros os termos eorrespondentes em nosso idioma. Sharp equivaleria a ‘pontudo”, "em ingulo agudo”; e flat, a “plano”, “liso” (N. da E.). ‘A. Bypago deftnido dos entveporton (anther Abvik) ‘equlig Alvi Is Perspectiva 1 Limites do expago da eacudor SOL Figura 1. O espago como localizagho relativa e como espago demarcado, © espago da malher esquim6 (Aivilik) é definido essencialmente pela loc liragao e pela distancia de pontos significantes, na maioria entrepostos (A), como percebidas do ponto de vista da sede na itha de Southampton, ao Passo que a id€a de limite (a linhs da costa) & importante para o sentido de ‘espago do horem esquim6 (B). Edmund Carpenter, Frederick Varley © Rober Faherty, Eskimo, Toronte, Univesity of Toronto Pres, 1989, p. 6 ipresso cor! permissto da Un versity of Toranto Press ado do olfato para seguir ¢ capturar a presa, ¢ pode ser que seu nariz seja capaz de articular um mundo espacialmente estruturado — pelo menos aquele que se diferencia pela dire- cio e distancia. O nariz do homem é um érgio bastante atro- fiado. Dependemos da vista para localizar as fontes de perigo ede atracao, mas, com o aurilio de um mundo visual anterior, © nariz do homem também pode discernir diregdo e caleular distéincia relativa através daintensidade de um cheiro, ‘Umia pessoa que manipula um objeto, sente no apenas sua textura mas suas propriedades geométricas de tamanho forma. Prescinclindo da manipulagdo, a sensibilidade da pele, e 6 & & e 6 e € 6 © € & & & s & & & S o ° & o © e e © o cS e ce ©e 16 Perspectiva Experiencial por si s6, contribui para a experiéncia espacial do homem? Ela contribui, embora de forma limitada. A pele registra sensagies, Informa sobre sua propria condigio e ao mesmo tempo sobre a condigao do objeto que a esta pressionando. Porém a pele no sente a distancia. Neste aspecto a pereepeao t4til esté no extremo oposto da visual. A pele é capaz de transmitir certas idéias espaciais e pode fazé-lo sem o apoio dos outros sentidos, dependendo somente da estrutura do corpo e da capacidade de movimento. O comprimento rela- ivo, por exemplo, é registrado quando diferentes partes do corpo silo tocadas ao mesmo tempo. A pele pode transmitir uma sensagio de volume e massa. Ninguém duvida de que “entrar em uma banheira com Agua moma dé A nossa pele ‘uma sensagao mais maci¢a do que uma alfinetada”.” A pele, quando entra em contato com objetos achatados, pode avaliar aproximadamente a sua forma e tamanho, Em pequeno nivel, ‘a aspereza ¢ suavidade so propriedades geométricas que a pele reconhece facilmente. Os objetos também siio duros ou moles, A percepgio titil diferencia estas caracteristicas na evidéncia espacio-geométrica. Assim, um objeto duro, sob pressdo, retém a sua forma, enquanto um objeto mole nio a retém.”” O sentido de distancia ¢ de espago se origina da capaci: dade auditiva? O mundo do som parece estar espacialmente estruturado, embora sem a agudeza do mundo visual. E possi- vel que 0 cego que pode ouvir, mas nao tem maos € apenas pode mover-se, careca de sentido de espaco; talvez para tais pessoas todos os sons sejam sensagdes corporais e nao indi- ‘caches sobre o cardter de um meio ambiente, Poucas pessoas tém deficigncias (o sérias. Tendo visio ¢ possibilidade de mover-se e de usar as maos, 0s sons enriquecem muito 0 sentimento humano em relagio ao espago. As orelhas do homem nao sao flexiveis, por isso esto menos aparelhadas para discernir direco do que, por exemplo, as orelhas de um lobo. Mas, virando a cabeca, uma pessoa pode aproximada: mente dizer a dirego dos sons. As pessoas identificam sub: conscientemente as fontes de ruido, e a partir dessa infor- mago constroem 0 espaco auditivo, Perspectiva Experiencial s sons, embora vagamente localizados, podem transen tir um acentuado sentido de tamanho (volume) e de distancia, Por exemplo, numa catedral vazia, 0 rufdo de passos res. soando claramente no chi de pedra cria a impressio de uma vastidao cayernosa, A respeito do poder do som em evoear distancia, Albert Camus escreveu: “A noite, na Algéria, po- demos ouvir 05 latidos dos cies a uma distincia dex. vezes maior do que na Europa, Assim, o ruido assume uma nos- talgia desconhecida em nossos paises confinados.’" Os cegos desenvolvem uma aguda sensibilidade para os sons; sio capa zes de usiclos © a suas ressonfincias para avaliar carter espacial do meio ambiente. As pessoas que podem ver so menos sensiveis aos indicadores auditivos porque nao depen: dem tanto deles. Todos os seres humanos aprendem a relacio- nar som distincia ao falar. Alteramos o tom da nossa voz, de baixo para alto, de intimo para piblico, de acordo com a fincia social e fisica percebida entre n6s ¢ os outros. O volume e a expressio da nossa voz, tanto como 0 que procu ramos diner, sto lenbrees permanentes de proximidade ¢ de distincia, proprio som pode evocar impressves espaciais. Os es- trondos do trovao so volumosos; 0 estridulo do giz. no quadro negro & “comprimido” © fino, Os tons musicais baixos sa0 volumosos, enquanto 0s agudos parecem finos e penetrantes.. Os musicélogos falam de “espago musical”. Em misica criam-se ilusBes espaciais completamente independentes do fendmeno de volume ¢ do fato de © movimento logicamente implicar espago:" Com freqiiéncia se diz. que « musica tem forma, A forma musical pode dar ver.a uma confirmagio do sentido de orientagio. Para o musicélogo Roberto Gerhard, “forma na miisica significa saber exatamente, a cada ins- tante, onde se esta, A consciéneia da forma é realmente uma sensagio de orientagio”* Os diversos espagos sensoriais parecem-se muito pouco entre si. O espaco visual, com a sua nitideze tamanho, difere profundamente dos difusos espacos auditivo e titil-sensorio- motor. Um homem cego cujo conhecimento do espago deriva de indicadores auditivos e tateis nao pode, por algum tempo, Perspectiva Experiencial apreciar 0 mundo visual quando recupera a visio. O interior abobadado de uma catedral e a sensagio de entrar em uma banheira com 4gua morna significam volume ou espaciosi- dade, apesar de serem as experiéncias dificilmente comp: riveis. Da mesma forma, o significado de distincia é tao va- riado quanto as maneiras de experieneié-la: adquirimos 0 sentido de distancia, pelo esforgo de mover-nos de um lugar para outro, pela necessidade de projetar nossa voz, por ouvir 0 latido dos cies & noite, e pelo reconhecimento dos indicadores ambientais da perspectiva visual. ‘A dependéncia visual do homem para organizar 0 espago no tem igual. Os outros sentidos ampliam ¢ enriquecem o espago visual. Assim, 0 som aumenta a nossa consciéncia, incluindo areas que estao atras de nossa cabera e nao podem ser vistas. E 0 que € niais importante: o som dramatiza a ‘experincia espacial. Um espaco silencioso parece calmo e sem vida nao obstante a sua visivel atividade, quando obser- vamos, por exemplo, acontecimentos através de bindculos ou na tela da televisio com 0 som desligado, ou em uma cidade abafada por um manto de neve fresca.” /> Osespacos do homem refletem a qualidade dos seus sen- ‘tidos e sua mentalidade. A mente freqtientemente extrapola além da evidéncia sensorial. Considere-se a nogio de vastidao. A vastidaio de um oceano nao é percebida diretamente. “Pen- Samos no oceano como um todo", diz William James, “multi- plicando mentalmente a impressio que temos a qualquer ins- tante em que estamos em alto mar.""* Um continente separa Nova York de Sto Francisco. Uma distancia desta magnitude € compreendida através de simbolos numéricos ou verbais calculados, por exemplo, em dias de viagem. “Porém o sim. bolo freqilentemente nos dard o efeito emocional da percep- do. Expresses como a abismal absboda celeste, a vastidao infinda do oceano, etc., resumem muitos céleulos da imagi- nacdo, ¢ doa sensacdo de horizonte imenso,” Alguém com a imaginagio matematica de Blaise Pascal olhara para 0 céu € se sentird consternado pela sua infinita vastidao. Os cegos sto capazes de conhecer 0 significado de um horizonte distante. 's podem extrapolar de sua experiéncia de espago auditivo © 19 Perspectiva Experiencial da liberdade de movimento para contemplar com os olhos da mente vistas panoriimicas e 0 espaco infinito. Um cego contow. a William James que “ele acreditava que poucas pessoas que véem poderiam desfrutar, mais do que ele, o cenario do cume de uma montanha.”® A mente discrimina desenhos geométricos ¢ prineipios de organizagio espacial no meio ambiente. Por exemplo, os in- dios Dakota acham em quase todas as partes da natureza a evidéncia de formas circulares, desde a forma dos ninhos dos passaros até 0 trajelo das estrelas. Ao contrério, os indios Pueblo, do Sudoeste do Estados Unidos, tendem a ver espa- gos de geometria retangular. Estes sto exemplos do espaco interpretado, que depende do poder da mente de extrapolar muito além dos dados percebidos. Tais espacos esto no ex- tremo conceitual do continunm experiencial. Existem trés tipos principais, com grandes areas de superposicaio — o mi tico, 0 pragmatico, ¢ o abstrato ou tebrico. O espaco mitico 6 um esquema conceitual, mas também é espago pragmatico no sentido de que dentro do esquema 6 ordenado um grande niimero de atividades priticas, como o plantio e a colheita. Uma diferenga entre o espaco mitico e o pragmético € que este € definido por um conjunto mais limitado de atividades eco- némicas. O reconhecimento de um espaco pragmitico, como cinturdes de solo pobre e rico, é sem diivida um feito inte- lectual. Quando uma pessoa habilidosa procura deserever cartograficamente 0 padrao do solo, usando simbolos, acorre ‘um progresso conceitual. No mundo ocidental, os sistemas geomeétricos, isto €, espacos altamente abstratos, foram cria- dos a partir de experiéncias espaciais primordiais. Conse- qiientemente, as experiéncias sensbrio-motoras e tateis pare- cem estar na origem dos teoremas de Euclides concernentes & congruéncia de forma e 0 paralelismo de linhas distantes; e a percepgio visual é a base da geometria projetiva. Os homens nio apenas discriminam padrdes geométricos nna natureza e criam espagos abstratos na mente, como tam- bém procuram materializar seus sentimentos, imagens e pen- samentos. O resultado € 0 espaco escultural ¢ arquitetural e, em grande eseala, a cidade planejada. Aqui o progresso vai OOCHFMEOLOEOEEAEAOHOEOBROMMO DED OP MABE 20 Perspectiva Experiencial desde sentimentos rudimentares pelo espaco e fugazes discer- nimentos na natureza até a sua concretizacio material e pi- blica. O lugar é umn tipo de objeto. Lugares e objetos definem 0 espago, dando-lhe uma personalidade geométrica. Nem a crianga recém-nascida, nem 0 cego que recupera a visto, aps uma vida de cegueira, podem reconhecer de imediato uma forma geométrica como o triangulo. A principio, o tridingulo é “espago”, uma imagem embagada, Para reconhecer 0 trian- gulo € preciso identificar previamente os Angulos — isto é, lugares. Para 0 novo morador, 0 bairro € a prinefpio uma confusio de imagens; espago embagado. Aprender a conhecer 0 bairro cxige a identificagdo de locais significantes, como esquinas e referenciais arquitetOnicos, dentro do espaco do bairro. Objetos e lugares so nticleos de valor. Atraem ou tepelem em graus variados de nuangas. Preocupar-se com eles mesmo momentaneamente é reconhe- cer a sua realidade e valor. O mundo do bebé carece de objetos permanentes ¢ esti dominado por impressoes fugazes. Como as impressdes, recebidas através dos sentidos, adqui- rem a estabilidade de objetos ¢ lugares? A inteligéncia se manifesta em diferentes tipos de reali- zacio. Uma é a capacidade de reconhecer e sentir profunda- mente o particular. A diferenga entre os mundos esquemé- ticos dos animais e os dos homens que os destes estio densa- ‘mente poroados com coisas pessoais e coisas permanentes. AS coisas pessoais que valorizamos podem receber nomes: um Jogo de cha 6 Wedgewood e uma cadeira ¢ Chippendale. As pessoas tém nome proprio. Elas silo coisas especiais que po: dem ser os primeiros objetos permanentes no mundo do bebé, de impressbes instaveis. Um objeto como um precioso vaso de cristal é reconhecido por sua forma inigualavel, seu desenho decorativo € seu tilintar quando batido levemente. Uma ci- dade como Sao Francisco é reconhecida pelo ceriario sem par, topografia, skyline, odores ¢ ruidos das ruas.” Um objeto ou lugar atinge realidade concreta quando nossa experiéncia com le ¢ total, isto &, através de todos os sentidos, como também com a mente ativa ¢ reflexiva, Quando residimos por muito 2 Perspectiva Experiencial tempo em determinado lugar, podemes conhecé-lo intima- mente, porém a sua imagem pode nao ser nitida, a menos que possamos também yé-lo de fora e pensemos em nossa expe- rigneia, A outzo lugar pode faltar o peso da realidade porque 0 scemos apenas de fora — através dos olhos de turistas € da leitura de um guia turistico. E uma caracteristica da espé- cie humana, produtora de simbolos, que seus membros pos- sam apegar-se apaixonadamente a lugares de grande tama- nho, como a nagdo-estado, dos quais eles sé podem ter uma experiencia direta limitada. Espago, Lugar ea Crianga mentos ¢ idéias relacionados com espago ¢ lugar. Ori- ginam-se das experiéncias singulares'¢ comuns. No entanto cada pessoa comeca como uma crianga. Com o tempo, do confuso e pequeno mundo infantil, surge a visio do mundo do adulto, subliminarmente também confusa, mas sustentada pelas estruturas da experiéncia ¢ do conhecimento conceitual. Apesar de estarem as criangas, logo apés 0 nascimento, sob influéncias culturais, os imperativos biol6gicos do erescimento impdem curvas crescentes de aprendizagem © compreensiio ‘que sao semelhantes e podem, portanto, transcender a énfase especifica da cultura. Como uma crianga pequena percebe ¢ entende 0 seu me ambiente? Existem respostas bastante satisfatdrias. O equi pamento biol6gico da crianga, por exemplo, fornece indicios «los limites de seus poderes. Ainda mais, podemos observar como se comporta a crianga em situagdes controladas ou de vida real. Podemos também nos perguntar qual é a qualidade do sentimento do mundo da crianga? Qual é a natureza de suas afeigdes pelas pessoas e pelos lugares? Estas questdes sio mais dificeis de responder. Um retorno introspectivo & nossa propria infancia é freqtientemente decepcionante, porque ten- N © homem adulto so extremamente complexos os senti- 2 Espaco, Lugar ea Crianga dem a desaparecer as paisagens luminosas e sombrias de nossos primeiros anos, e perduram apenas alguns aconteci- mentos importantes, como aniversarios e o primeiro dia de escola. Esta capacidade da maioria das pessoas de recapturar clima do seu mundo infantil sugere até onde os esquemas do adulto, aparelhados principalmente para as exigéncias préti- cas da vida, diferem daqueles da crianga.' Porém a crianga 60 pai do homem, e as categorias perceptivas do adulto sto de vez em quando impregnadas de emogdes que procedem das primeiras experiéneias. Estes momentos do passado, carre- gados de emogao, as vezes so captados pelos poetas. Como instantaneos naturais extraidos do Album de familia, as suas palayras nos lembram uma inocéncia e um temor perdidos, uma proximidade de experiéncia que ainda nao sofreu (ou se beneficiou) do distanciamento do pensamento reflexivo. A biologia condiciona nosso mundo perceplivo. Quando ser humano nasce, seu c6rtex cerebral tem apenas 10.2 20% do complemento normal de células nervosas de um cérebro maduro; além disso, muitas das células nervosas existentes nao esto conectadas umas as outras.? A crianga ndo tem mundo. Ela nao é capaz de distinguir entre 0 eu e 0 meio ambiente externo. Ela sente, mas suas sensagdes nao esto localizadas no espaco. A dor esta af simplesmente, ¢ ela Ihe responde chorando; nfo parece que ela a localiza em uma parte especifica de seu corpo. Apenas por um curta tempo, os homens, quando criangas, conheceram como é viver em wm mundo nio dualista. Durante as primeiras semanas de vida, os olhos do recém-naseide nfo foealizam adequadamente, Ao final do primeiro més, 0 bebé é capaz de fixar o olhar em um objeto que esteja em sua visada, e ao final do segundo més comega a aparecer a fixagao binocular com convergéncia? No entanto, ainda no quarto més, a crianca mostra pouco interesse em explorar visualmente o mundo além de um raio de um metro. A crianga nao se locomove e somente pode fazer pequenos movimentos com a cabeca e os membros, Moyer 0 corpo seguindo.uma linha mais ou menos reta é essencial para a construgio do espago experiencial mediante as coordenadas ee ee SS See 4 Espago, Lugar ea Crianga bisicas de frente, atrés © lados. A maioria dos mamiferos, logo apés o nascimento, adquire um sentido de orientagio, dando alguns passos seguindo a mie. A crianga deve adquirit esta habilidade mais gradualmente devido & sua lenta matu- Fagao. Que acontecimentos e atividades podem dar & crianga a sensagdo de espago? Um bebé, no mundo ocidental, passa grande parte de seu tempo deitado, De vez em quando é carregado para arrotar, brincar e fazer agrado. A partir desses acontecimentos pode advir a distingio experimental entre horizontal e vertical. No nivel de atividade, uma crianga co- nhece 0 espaco porque pode mover scus membros: chutar o cobertor que a incomoda é uma amostra da liberdade que, no adulto, est associaca com a idéia de-ter espaco. Uma erianga explora o meio ambiente com sua boca.’ A boca se ajusta a0 contorno do seio da mae, Mamar é uma atividade muito statificante, pois requer a participacao de diferentes sentidos: tato, olfato e paladar. Além disso, mamar alimenta o bebé, dando-Ihe uma sensacao de prazer. O estémago se dilata e se contrai a medida que o alimento entra e & digerido. Esta fungio fisiolégica, 0 contrério de respirar, & identificada conscientemente com estados alternados de desconforto e sa- tisfagdo, “Vario” ¢ “cheio” sto experiéncias viscerais de im- portancia definitiva para o homem. O bebé as conhece e res- ponde com choro ou sorriso. Para o adulto, tais experiéncias corriqueiras adquirem um significado metaférico adicional como sugerem as expressdes: "'chorar de barriga cheia", “sen- tir um vazio por dentro”, “estar na plenitude da vida". A crianga usa suas mos para explorar as caracteristicas titeis ¢ geométricas de seu meio ambiente. Enquanto a boca agarra o bico do seio ¢ adquire a sensagdo de espaco bucal, as maos movem.se ativamente sobre 0 seio, Bem antes que os olhos da crianca possam se fixar em um pequeno objeto e discriminar sua forma, suas mAos j4 o apreenderam ¢ conheceram suas propriedades fisicas através do tato. (© mundo visual da crianga é especialmente dificil de 4 descrever porque somos tentados a atribuir-lhe as categorias \ bem conhecidas do mundo visual do adulto. A maior parte 25 Espaco, Lugar a Crianga das vezes nos eseapa como os sentidos do olfato, paladar e tato estruturam 0 meio ambiente; até mesmo as pessoas cultas ni tém um vocabulirio diversificado para descrever os mundos olfativo e tatil. Mas nao enfrentamos problema algum com o visual. Gravuras e diagramas, tanto quanto as palavras, esto. & nossa disposigto. O mundo visto através dos olhes dos | adultos ou das criancas mais velhas 6 vasto e nitido nele os } objetos estao claramente ordenados no espago, Isto nao acon | tece com o bebé. Falta.ao seu espaco visual estrutura e perma | néncia. Os objetos neste espago sto impressdes; portanto ten | dem a existir para elesomente enquanto permanecem em seu campo visual.’ As formas e tamanhos dos objetos carceem de consténcia, que as criangas mais velhas jé identificam. Piaget afirma que um bebé pode nao reconhecer a mamadeira quando é dada ao contrétrio; com cerca de vito meses aprende aviri-la” Para uma crianga mais yelha, com experiéncia, um objeto parece menor a distancia, e a diminuigdo em tamaaho de um objeto que recua é sem pensar interpretada como um aumento da distancia. Para o bebé, no entanto, um objeto que Parece pequeno porque esté distante pode ser tomado como um outro objeto, O bebé possui uma capacidade inata para Feconhecer as qualidades rudimentares das coisas tridimen- sionais, sua consténcia de tamanho e forma ea distingao entre Jonge perto, mas o reconhecimento age dentro de um campo muito restrito comparado com 0 de um bebé que jé esta enga~ tinhando’ A capacidade de ver esta intensamente firmada em expe- rigneias nao visuais. Mesmo para uma crianga mais velha, a lua no alto 6 facilmente considerada como um objeto dite rente da lua no horizonte. Que a Lua se move ao redor da Terra € uma abstracdo alheia a experiéncia da erianca: a Laa é vista apenas em dados momentos, separados por intervalos de tempo que a crianca sente quase como eternos. A gravura de uma estrada que leva a um distante chalé parece facil e interpretar; contudo-a estrada s6 tem sentido completo para alguém que a tenba percorrido. Uma crianga que nao anda, nao pode tor sentido de disléincia quanto ao gasto de encrgia Para veneer uma barreira espacial. Uma crianga aprende de- 26 Espaco, Lugar ea Crianca pressa a ler os indicadores espaciais ambientais, mesmo ‘quando Ihe sao apresentados em forma de gravura. Um jovem apreciador de livros, de trés ou quatro anos, ja pode olhar em ima gravura um caminho que desapareze na mata e ver a si ‘mesmo como o her6i de uma iminente aventura, FO primeiro ambiente que a crianga deseobre é seus pais. ; O primeiro objeto permanente e independente que ela reco- | pphece é talvez.outra pessoa. As coisas aparecem ¢ continuam & fexistir somente quando a crianca thes dé atenco; mas logo se introduz em sua consciéncia nascente a realidade indepen- dente do adulto, que existe com ou sem sua atengio? Os adultos so necessirios, nfo somente para a sobrevivéncia iolbgica da crianga, mas.também para desenvolver seu sen- tido de mundo objetivo. Uma crianga de poucas semanas ji aprendeu a prestar atencfo A presenca de gente. Ela comeca a adquirir o sentido de distancia directo através da necessi- dade de julgar onde possa estar o adulto, Ao final do primeizo més, 6 capaz de seguir com os olhos apenas um percepto distante — 0 rosto do adulto, Um bebé com fome e chorando se acalma e abre a boca ou faz movimentos de suegio quando vé aproximar-se um adulto, ‘Um bebé de oito meses est atento aos ruidos, especial- mente os dos animais ¢ das pessoas no quarto vizinho. Ele presta atengdo neles; a sua esfera de interesses se expande falém do que é visivel e do que the preocupa. No entanto, ‘© seu espaco comportamental permanece pequeno. Parece (que se desanima facilmente com as dificuldades percebidas. Segundo Spitz, ao redor dos oito meses o horizonte espacial da ‘rianga esta limitado pelas grades do seu bergo ou do qua- drado, “Dentro de seu quadrado, ela pega seus brinquedos ‘com facilidade. Se o mesmo brinquedo Ihe é oferecido de fora das grades do seu quadrado, ela estende as maos, mas estas se detém nas barras; néo continua o movimento além delas; poderia facilmente fazé-lo, porque as barras tém suficiente espaco entre si. E como se 0 espaco terminasse com 0 seu quadrado. Duas ou trés semanas ap6s os oito meses, repenti- namente compreende e € capax de continuar seu movimento além das barras ¢ pegar seu brinquedo, 27 spaco, Lugar a Crianca © bebé que engatinha pode explorar 0 espaco. O movi- | mento além da vizinhanga imediata da mae ou fora do berco facarrela riscos que 0 bebé nao est preparado para enfrentar. 0s instintos de sobrevivéncia nao estio bem desenvolvidos. ‘O medo de estranhos aparece entre seis oito meses. Antes desta etapa, 0 bebé nao distingue os rostos familiares dos nao, familiares; partir dai vira a cabeca ou chora quando um estranho se aproxima!" O ambiente inanimado fornece pou- cos sinais claros de perigo para intrépido bebé explorador. Qualquer coisa que pode ser agarrada é agarrada ou colo- cada na boca para um conhecimento mais intimo; 0 medo do fogo e da 4gua tem que ser aprendido. Para a crianga que engatinha, 0 espaco horizontal parece seguro. Fla esti cons- tiente de um tipo de perigo no ambiente fisico: o precipicio. Experimentos t@m demonstrado que um bebé no engatinbaré em cima de uma placa de vidro colocada sobre um buraco com lados verticais apesar do encorajamento da mae. Seus olhos reagem aos sinais de mudanga brusca de declividade.” "A erianga pequena, tio logo aprende a andar, quer ir tras da mie e explorar o ambiente dela. Quanto mais hostil ambiente, maior a dependéncia da protecto do adulto. Por exemplo, bebés bosquimanos do sudoeste da Africa sto menos propensos a perder-se da mae quando estao brincando e cor- rem mais faciimente para ela do que as criangas ocidentais." Em um estudo sobre o comportamento ao ar livre de eriancas inglesas, de um ano e meio a dois anos, Anderson notou que raramente elas se distanciam mais de sessenta metros de suas mies. A crianga, caracteristicamente, se move em pequenas investidas de ndo mais do que poucos segundos. Blt para centre as investidas por periodos semethantes. Quando cami- nha, a crianga gusta a maior parte do seu tempo aproxi- mando-se ou distanciando-se de sua mie. Os objetos eos acontecimentos no meio ambiente nao parecem afetar a ma- neira como a crianga se move. A crianga necessariamente n&o se distancia da mie porque foi atraida por um objeto, nem’ yolta correndo por causa de um objeto. Os movimentos tém tum carter brincalhao de experimentacdo. A crianga ‘se dis- tancia um pouco da mie, se detém para olhar ao redor, presta 28 Espago, Lugar ea Crianca ‘atencXo as causas dos sons ¢ dos estimulos visuais.¢ em alguns ‘casos atrai a atengio da mie. Entremeado com o distante passar dos olhos, est um exame do chito: pega folhas, grama, pedras e sujeira; rasieja ou pula para frente e para tris sobre ‘0s pause tenta sacudir ou trepar em obsticulos.”" Apontar & um gesto comum. Qualquer cena ou barulho que chama a ‘tengo da crianga ¢ suficiente para esse gesto. Freqiiente- mente 0 adulto nao consegue discernir a fonte do estimulo, Pode ser imaginario, “Uma crianga pode apontar para um lado do horizonte onde nada se move e dizer A mie que um homem vem vindo."* E interessante observar a aparente preocupagio da crianga com o distante ¢ © proximo. Ela aponta para o horizonte e brinca com as pedras a seus pés, ‘mas mostra pouco inleresse com 0 que esti no meio. Os bebés e as eriangas pequenas tendem a articular 0 mundo em categorias polarizadas. Reparam e classificam as coisas com base nos contrastes maiores. A propria linguagem omega quando a crianca para de balbuciar indiscriminada- mente e passa a fazer experiéncias com sons altamente dife- renciados. A primeira yogal 6 0 a bem aberto ¢ a primeira consoante é a oclusiva p ou b feitos com os labios. A primeira oposigao consonantal é entre as oclusivas nasal ¢ oral (mamii/ pap); em seguida vem a oposigdo das labiais ¢ dentais (papa/ tata ¢ mami/nand). Juntas, elas compreendem o sistema consonantal minimo de todas as linguas do mundo. Entre 0 sexto € oitavo més, como ja mencionamos, o bebé comega a separar as pessoas entre “familiares” ¢ “estranhos". Pouco depois discrimina os brinquedos inanimudos. Quando os brin- ‘quedos sfo colocados em sua frente, ele pega o que prefere em ver do que esti mais proximo. Uma crianga de um ano, no colo, levanta seus bragos para indicar “para levantar”; con- torce-se ¢ olla para baixo quando quer dizer “para descet Os opostos espaciais so claramente diferenciados por uma crianga de dois a dois anos € meio de idade. Estes incluem em ‘cima e embaixo, aqui e la, longe¢ perto, topo c fundo, sobre ¢ sob, cabega ¢ cauda, frente e atrés, porta da frente © porta de tris, botdes da frente © bolGes das costas, casa ¢ exterior.” Umia crianga que engatinha é capaz de verbalizar algumas 29 spago, Lugar ea Crianca destas oposigdes. Nao so muito especificas. Uma crianga pequena distingue entre “casa’" ¢ “‘exterior” como seus luga- res de brinquedo mais do que “meu quarto” e ‘‘jardim”. Os extremos opostos niio sfio entendidos tio bem; por exemplo “aqui” lem um significado maior do que “Ia”, e “em cima” 6 mais rapidamente compreendido do que “embaixo"" Os trabalhos de Piaget e seus colaboradores tém repeti- damente mostrado que a inteligéncia sens6rio-motora pre- cede, as vezes por varios anos, a apreensao conceitual. Du- rante as alividades do dia-a-dia, a crianca revela habilidades espaciais que esta muito além de sua compreensao intelec- ‘tual, Um bebé de seis meses pode discriminar entre um qua~ drado e um trifngulo, mas o conceito de quadrado como uma formi determinada nZo aparece até ao redor dos quatro anos, quando também pode desenhé-lo. Além disso, uma crianga pequena pode ter a nogio da linha reta como a trajet6ria de uum objeto em movimento (0 caminhZo que ela empurra 20 Iongo da borda da mesa), mas o conceito geométrico de linha eta nao aparece antes dos seis ou sete anos.” Antes dessa idade, a crianga nao desenha espontaneamente uma linha reta ‘enio consegue aprender a idéia de diagonal.” A crianga que ‘comega a andar, logo anda com um propésito: sai de um ponto-base, dirige-se para 0 objeto desejado ¢ volta ao ponto de saida por um caminho diferente, Uma crianga sadia de trés ‘ou quatro anos nfo se perde dentro de sua casa ¢ de vez em quando visita os vizinhos. Estas realizagdes sensbrio-motoras, contudo, nao implicam um conhecimento conceitual das rela- Ses espaciais, Criangas suigas de cinco a seis anos de idade podem ir a escola e voltar para casa sozinhas. Elas tém difi- culdades em explicar como fazem isto. Uma crianga “lembra apenas de onde ela parte e aonde chega, e que tem de dobrar ‘uma esquina em seu caminho. Nao consegue se lembrar de nenhum referencial, eo desenho de seu trajeto nao apresenta nenhuma relagio com a planta da escola e do bairro.” Outra crianga “lembra os nomes das ruas, mas nao sua ordem ou os lugares em que deve virar. Seu desenho é apenas um arco com virios pontos aleatoriamente assinalados para corresponder ‘aos nomes que ela lembra."” Espago, Lugar a Crianga © quadro de referéncia espacial de uma crianga é limi- ' tado. Os desenhos das eriangas fornecem abundantes suges Wes dessa limitagao. Por exemplo, no desenho da crianca, nivel da éigua em um copo inclinado aparece em fingulo reto com os lados do copo em vez de paralelo a superficie da mesa due fornece a linha basiea horizontal para o desenho, Ou, quando se pede a uma crianga que desenhe uma chaminé no elhado inclinado de uma casa, ela pode colocar a chaminé em Angulo reto com a inclinagdo do telhado em ver de com a superficie plana na qual esta a casa” “Separagdo” 6 outro tipo de evidéncia que sugere a inabilidade da erianga para detetar as relagOes espaciais entre os objetos, ou apenas sua indiferenga para com elas..Por exemplo, o desenho do va. ueiro em seu cavalo pode mostrar uma grande lacuna entre chapén ¢ @ cabega do vaqueiro e outra entre 0 vaqueiro €0 cavalo Exros deste tipo sugerem que a crianga pequena esté mais preocupada com as coisas em si— a 4gua no copo, © vaqueiro e o cavalo — do que com as suas exatas relagdes espaciais. Os pais sabem como é facil seus filhos se perderem em um ambiente nao familiar. Os adultos adquiriram o ha- bito de tomar nota mentalmente de onde as coisas esto ¢ de como ir de um lugar para outro. As criancas, por outro lado, excitam-se com as pessoas, coisas e acontecimentos ‘um lugar para outro nao é de sua responsabilidade. Os homens virem no chao e véem as drvores e casas de lado. Eles nao véem de cima, a no ser que escalem uma montanha alta ou viajem de avido. As criangas pequenas dift- mente tém a oportunidade de supor uma paisagem vista de cima. Elas sto seres pequenos em um mundo de gigantes ¢ de coisas gigantescas que nao foram feitas em sua escala. No en- tanto, criancas de cinco ou seis anos revelam uma extraoy dinaria compreensio de como seriam as paisagens vistas de cima. Elas podem “er” fotografias aéreas verticais em braneo ¢ preto de poyoados e campos de cultivo com uma acuidade ¢ Seguranca inesperadas. Podem reconhecer casas, caminhos drvores nas fotogratias aéreas ainda que estes aspectos apare- gam em uma escala muito reduzida e sejam vistos de um Angulo e posi¢ao desconhecidos-em sua experiéncia, E possivel 31 Espaco, Lugar 4 Crianga ANE as criangas da cidade tenham tido a experiencia de olhar {ctografias em revistas ou na televisto, mas as etiangar do Eampo que no tém contato com esses veiculos, também eon. pzuem interpretar as fotografias verticais do’seu meio am. biente* Talver uma razao pela qual as criangas pequenas conse- shan realizar estas faganhas de extrapolagao é porque te. nham brincado com brinquedos. As eriangas so miniata no mund9 dos adultos, mas gigantes em seu mundo de briny quedos. Otham do alto as casas e os trens de brinquede c ‘Arectitmeasestavam entregues A modelagem com plasticina de cenas com Blcas de lugares conhecidos, como, por exemplo, «piscina natural ens oy a, om Pessoas. Um dia, quando estavam trabalhando nisto, passer an athascrobt, 2 ard, como acontecia freqdentemente, Todat at anrar thai para cna e, como de costume, gritaram: "Desa, desl". [Osea ance] disse: “Serf que ele nos v8?" E outra: “Gostaria de saber o que ait Je. como nos vé." Entto eu suger: “E se a genie fizesse war magne oo to topo da escada para saber como se vé do avito." Um manac ce aay aos © melo compreendeu espontaneamente que do avito apones Serer gallo de suas cabepas ¢desenhou vérias bolas achatsdas uc es ‘dos camintos do modelo: “Estas sto as criangas correnda = simples brinquedos de armar podem ter ajudado esta tendé cia progressiva. Por outro lado, durante o mesmo periade de {empo, as criangas ndo apresentaram nenhum sinal de maior Sofisticagao para compreender os pontos de vista dos lndog 9postos de um quarto ou terreno.® E mais fii crianga como para 0 adulto, ae 32 Espago, Lugar ea Crianga perspectiva de outro mortal no mesmo nivel em que estamos Além disso, a compreensio do meio ambiente sofre menos apés 90° de rotacdo da perspectiva da horizontal do que depois da rotacio de 40 a 50°. A cena obliqua é mais dificil de ser interpretada do que a vertical Para a crianga, uma foto tirada de lado ou de um pe: queno angulo acima do chao tem uma grande vantagem sobre © mapa ou a fotografia aérea: apela mais diretamente para a ago imaginativa. Uma crianga de trés anos e meio de idade jé é capaz de se projetar cinestesicamente na ilustragio ¢e seu livro. Bla olha para uma gravura e em sua imaginagio per- corre 0 camino até a casa e penetra furtivamente através da sua pequenina porta?” A perspectiva central cria uma ilusio de tempo ¢ movimento na cena: as margens convergentes dle um caminho que desaparece na porta de uma casa distante siio poderosos indicios de acao. Ao contritio, a fotografia vertical favorece a compreensio das relagdes espaciais. A crianga nio est preparada para iniciar a agao imaginativa — a nfo ser para atirar bombas na escola. Uma gravura em perspectiva daquelas que aparecem nos livros infantis esti- mula um ponto de vista egocéntrico: a erianga se vé como her6i do palco, e nao tem condigdes ou vontade de imaginar como outro ator — 0 menininho no fim do caminho, por exemplo — o yeria quando se aproximasse. Uma fotografia aérea, ou mapa, por outro lado, incentiva um ponto de vista objetivo. Um ponto de vista objetivo desencoraja a aco, espe- cialmente aquelas aventuras precipitadas e dramiticas que sio naturais & crianga, ‘Como uma erianga pequena entende um lugar? Se defi- nirmos lugar de maneira ampla como um centro de valor, de alimento ¢ apoio, entao a mae 6 0 primeiro lugar da crisnga, A mae pode bem ser o primeiro objeto duradouro e indepen- dente no mundo infantil de impressdes fugazes. Mais tarde ela 6 reconhecida pela crianga como o seu abrigo essencial e fonte segura de bem-estar fisico ¢ psicolégico. Um homem sai de casa ou da cidade natal para explorar o mundo; a erianga que engatinha sai de perto da mae para explorar 0 mundo, Os lugares permanecem af, Sua imagem é de estabilidade e per- Espago, Lugar ea Crianga manéncia, A mae se move, mas para a crianga, nfo obstante, ela represents estabilidade e permanéncia. Ela esti quase sempre perto quando necesséria. Um mundo estranho in- funde pouco medo a crianca pequena sempre que a mie esteja perto, porque ela é seu ambiente ¢ refiigio familiar. A crianga fica desnorteada — sem lugar — na falta da protecdo dos pais {._ A.medida que a crianga cresce, vai-se apegando a obje- / tos, em lugar ée se apegar a pessoas importantes, e finalmente ja localidades. Para a criange, lugar € um tipo-de objeto (grande ¢ um tanto imével., A prinefpio as coisas grandes tém | menos significado para ela do que as pequenas porque, 20 contrério dos brinquedos portiteis ou dos cobertores prefe- Fidos, elas nao podem ser manipilladas e transportadas facil- ‘mente; podem nao estar disponiveis nos momentos de crise ara dar conforto e apoio. Além do que, a criauga pode desen- volver sentimentos ambivalentes por certos lugares — objetos grandes — que the pertencem. Por exemplo, a cadeira de bebé € seu lugar. Ela come af e comer da satisfagdo, mas também the dio de comer coisas de que no gosta e esté presa em sua cadeira. A crianga pode ver seu bergo com ambivaléncia. O ergo ¢ seu aconcheyante pequeno mundo, mas quase todas as noites vai para ele com relutancia; precisa dormir mas tem edo do escuré e de ficar sozinha, ‘Tao logo a crianga é capaz de falar com certa fluéncia, / quer saber 0 nome das coisas. As coisas nio so bem reais até Jdue tenham names e possam ser classificadas de alguma {maneira. A curiosidade pelos lugares faz parte de uma curio- ‘sidade geral sobre as coisas, surge da necessidade de qual \ficar as experiéacias; adquirem assim um maior grau de per- manéncia e se ajustam a algum esquema conceitual. De acor- do com Gesell, a crianga de dois ou dois inos e meio de idade Ela nao tem uma imagem clara do es- jo enire aqui ela, mas adquire um sentido de lugar e seguranca quando 0 seu “onde?” é respondido com “lar”, “escrit6rio”, ou “edificio grande". Depois de mais ou ‘menos um ano, a crianga mostra um novo interesse nos refe- renciais, Ela os reconhece ¢ adianta-se quando sai para um W Espaco, Lugar ea Crianga passsio ou uma volta de carro. O egocentrismo se manifesta na tendéncia em pensar que todos os carros que vio na mesma diregdo devem estar indo para o lugar dela. A crianga também ‘aprende a associar pessoas com lugares especificos. Ela se confunde quando encontra a sua professora do jardim de in- fancia no centro da cidade, porque segundo ela a professora ‘est deslocada; esta perturba seu sistema de classificagao” ‘A idéia de lugar da crianca torna-se mais especifica e geogrifica A medida que ela cresce. A pergunta “onde gosta de brincar?”, uma crianga de dois anos provavelmente diré casa" ou “fora”. Uma crianga mais velha responder “no ‘meu quarto” ou “no quintal”. As localizacdes tornam-se mais precisas. “Aqui” ¢ “Id” so ampliadas por “aqui mesmo” “ld mesmo”. Aumenta o interesse por lugares distantes © consciéncia de distincia relativa. Entao, uma crianga de trés a quatro anos de idade comega @ usar expresses como “la Jonge” ¢ “la pra baixo” ou "bem fonge”. A pergunta “onde voc’ mora?”, uma crianga de dois anos provavelmente dir “casa”, Mais ou menos um ano depois, ela pode dar o nome da rua ou até o nome da cidade, 0 que nio é freqiiente.” 'Na escola priméria, como o conhecimento de lugar de ‘uma crianga se aprofunda e se expande? Um estudo de alunos da primeira e sexta séries em duas comunidades do meio- este americano 6 sugestivo>® Mostram-se as criangas gravu- ras de quatro tipos de lugares que formam parte do ambiente maior delas: vila, cidade, fazenda ¢ fabrica. A respeito de cada lugar pergunta-se: “Que historia conta esta gravura?” ‘As respostas revelam grandes diferencas individuais, Em ge- ral, as respostas das criangas mais velhas sie muito mais sofisticadas. Vila, cidade, fazenda e Fabrica sto categorias de lugares familiares aos alunos da sexta série; descrevem-nas com cerceza € facilidade compariveis as dos adultos. Quando se mostra uma gravura a um aluno mais yelho, ele 6 freqtien- temente capaz nao apenas de dizer o que 6 (vila, ‘cidade, ete.), em que consiste, mas também de colocar o lugar no seu cortexto geogrifico maior; ndo somente descreve 0 que estto fazando as pessoas que aparecem na gravura (cortando grama, fazendo compras, etc.), mas também procura explicar como 35 ‘spaco, Lugar ea Crianca funciona o lugar. Em comparagio, quando um aluno de primeira série olha a gravura da vila, € mais provavel que ignore seu ambiente espacial mais amplo; pode mesmo nao reconhecé-1o como uma vila, sa alengdo se prende as partes =a igreja, a escola, a loja e o caminho. A crianga pequena pouco tem a dizer sobre 0 significado social e econdmico das coisas que vé na gravura, De fato, 0 principal interesse dos alunos de primeira série parece ndo ser o ambiente, mas as pessoas: 0 que est fazendo o homem ou a menininha. Em geral, estes alunos nio mostram tanto entusiasmo pelos luga- 's, Como 0s mais velhos. ‘O horizonte geografico de uma crianga expande a medida {que ela cresce, mas ndo necessariamente passo a passo em \diregdo a escala maior. Seu interesse e conliecimento se fixam primeiro na pequena comunidade local, depois na cidade, saltando o bairro;-e da cidade seu interesse pode pular para a nagdo e para lugares estrangeiros, saltando a regio. Na idade de cinco ou seis anos, a erianga pode demonstrar curiosidade sobre a geografia de lugares remotos. Como pode apreciar locais exéticos se nfo tem experiéncia direta? A teoria da aprendizagem ainda nao explica satisfatoriamente estas apa- rentes transigdes bruscas na compreensdo. Nao é de surpreen- der, entretanto, que uma crianga possa demonstrar interesse pelas noticias de lugares distantes, pois a sua vida é rica em fantasia ¢ se sente & vontade no mundo da fantasia antes que 5 adultos venham Ihe exigir que viva imaginariamente nos paises reais do livro de geografia. Para uma crianga intel gente e esperta, a experiéncia é uma procura ativa e em que algumas vezes faz extrapolages surpreendentes para além dos fatos: ela nfo se prende ao que vé ou sente em sua casa e em seu bairro, ‘© que caracteriza 0 laco emocional da erianga pequena com 0 lugar? Os akunos norte-americanos de primeira série podem reconhecer como entidades: vila, esquina ¢ fazenda, ‘mas temos observado que 0s alunos mais novos tém menos a dizer e s40 menos entusiasmados com tais lugares do que os mais velhos. Com excegio das creches ¢ dos playgrounds, poucos lugares puiblicos esto feitos na escala das criangas eee ee ere nenaeenereerererrterrerre 36 Fspaco, Lugar ea Crianca pequenas, Seré que elas sentem necessidade de ester em luga- res de acordo com seu tamanho? Supde-se que ecistam tais necessidades. As criangas pequenas, por exemple, como se sabe, metem-se embaixo do piano de cauda, onde se sentam num visivel estado de alegria. Ao brincarem, as eriangas mais yelhas procuram cantos e esconderijos tanto em ambientes Construidos pelo homem como na natureza. Passar a noite no Quintal, em uma barraea ou em uma casa na dryore € para clas uma verdadeira festa, como se estivessem realmente fa- zendo uma longa viagem para uma cabana de cagador. (© sentimento por lugar € influenciado pelo conheci- mento de fatos basicos: se o lugar é natural ou construido © se Erelativamente grande ou pequeno. A crianga de einco ou seis anos nao tem este tipo de conhecimento, Ela pode falar com tntusiasmo sobre a cidade e 0 lago de Genebra, mas a apre- ciacao destes lugares, com certeza, € muito diferente da de um adulto culto. Nessa idade é provavel que ela suponha que nto a cidade como o lago sao artificiais. E bem provavel que cla ache, também, que ambos tenham tamanhos comparé- C__ Aseriangas, pelo menos as do mundo ocidental, desen- § volver um profundo sentido de propriedade. Elas tornam-se extremamente possessivas. Uma crianga afirma que certos brinquedos sio dela, que a cadeira perto da mae é seu lugar ¢ se apressa em defender o que considera que Ihe pertence, Entretanto, grande parte da luta da crianca pela posse nio & evidéncia de uma genuina afeico, Nasce da necessidade de fgarantir 0 se proprio valor e de conscguir status entre os companheiros. Um objeto ou um canto do quarte, sem valor para a crianca em um momento, de repente adquire valor, {quando outra crianga ameaga tomar posse. Uma vez que @ crianga readquire o controle absoluto, seu interesse pelo brin- ‘quedo ou lugar rapidamente acaba.” Isto nfo quer dizer que ‘as pessoas, jovens ¢ velhas, ndo sintam necessidade de apoiar sua personalidade em objetos ¢ lugares. Todos os seres u- manos tém seus proprios pertences ¢ talvez todos tenham necessidade de um lugar seu, quer seja uma cadeiza no quarto ‘ou um canto preferido em qualquer veiculo, Espaco, Lugar ea Crianca Robert Coles acredita que, nos Estados Unidos, os filhos dos trabalhadores rurais volantes sofrem porque, entre outras raz6es, nio tém durante um perfodo de tempo um lugar que possam identificar como deles. Pedro, por exemplo, ¢ um menino de sete anos que viaja com seus pais, para cima e para baixo, na costa Leste, Raramente permanecem muito tempo em uma fazenda, Pedro ajuda a colher frutas ¢ verduras. Vai Aescola quando pode. Coles escreve: Para um menino como Pedro, 0 prédio da escola, mesmo velho ¢ no bem mobiliado, € um mundo novo — com grandes janelas, sblidos assoalhos & pportas, fotos rebocadlose partdes com gravaras, ¢ uma carteira que é dele, ‘qe Ihe & designada, que se supe the pertenee, ov virtualmente Ihe per tence, dia apos dia, quase came um certo tipo de dircito. Depois de sua primeira semana, na primers série, Pedro disse: “Falaram que ev podis, Fentar nesta cadeirae ne dasieam que a carteira 6 pera mim, e que todos os ins ow deveria vir para o mesmo lugar; jeira ela disse que ern minha enquanto ev estiver aesia escola — isto foi o que disseram as professoras." O lugar pode adquirir profundo significado para 0 adulto através do continuo acréscimo de sentimento ao longo dos anos. Cada peca dos méveis herdados, ou mesmo uma man- ha na parede, conta uma est6ria. A crianga nfo apenas tem um passado cttrto, mas seus olhos, mais que os dos adultos, \estdo no presente ¢ no futuro imediato, Sua vitalidade para fazer coisas e explorar 0 espago no condiz com a pausa refle- xiva e com a olhada para tras que fazem com que os lugares parecam saturados de significdncia. A imaginagfo da crianca 6 de um tipo especial. Fst4 presa A atividade. Uma crianca cavalga um pau como seestivesse sobre um cavalo de verdade, ¢ defende uma cadeira virada como se fosse um verdadeiro castelo. Ao ler um livro ou ao ver suas figuras, ela entra rapi- damente na fantasia de um mundo de aventuras. Porém um espelho quebrado ou um triciclo abandonado nao the transmi tem nenhuma mensagen de tristeza. E as criangas ficam des- concertadas quando solicitadas a interpretar o estado de espi- rito de uma paisagem ou de uma pintura de paisagem. As pessoas tém estados de espirito; como pode uma cena ou lugar parecer feliz, ou triste?® Porém, os adultos, especialmente os 38 Espaco, Lugar ea Crianga cultos, ndo tém dificuldade de associar objetos inanitados com estados de espirito. As criangas pequenas, tao imagi tivas em suas esferas de aco, podem olhar prosaicamente para os lugares que aos adultos thes trazem tantas recor. dagoes. Corpo, Relagdes Pessoais e Valores Espaciais 6 E spago" 6um termo abstrato para um conjunto com- plexo de idéias. Pessoas de diferentes culturas dife- rem na forma de dividir seu mundo, de atribuir va~ lores as suas partes e de medi-las. As maneiras de dividir 0 es- Pago variam enormemente em complexidade ¢ sofisticagao, assim como as téenicas de avaliagdo de tamanho e distin Contudo existem certas semelhangas culturais comuns, e elas repousam basicamente no fato de que o homem 6 a medida de todas as coisas. Em outras palavras, os pri fundamen- tais da organizacao espacial encontram-se em dois tipos de fatos: a postura ¢ a estrutura do corpo humano e as relagoes (quer préximas ou distantes) entre as pessoas. 0 homem, como resultado de sua experiéncia intima com seu corpo ¢ com outras pessoas, organiza o espace a fis de cuuforma-lo a ‘suas necessidades biol6gicas e relagdes sociais. A palavra “corpo” sugere de imediato antes um objeto que um ser vivo e espiritual. O corpo é uma “coisa” € esté no espago ou ocupa espago. Ao contririe, quando usamos os termos “homem’” e “mundo, no pensamos apenas no ho- mem como um objeto no mundo, ocupando uma pequena parte do seu espaco, mas também no homem como habitando © mundo, dirigindo-o e criando-o. De fato, 0 simples termo 39 Ce wer ere wwe wees 40 “Compo, Relagées Pessoais e Valores Espaciais inglés world (“mundo") contém e conjuga homem e seu am- iente, porque o seu radical etimolégico Wer significa ho- mem. Homem e mundo indicam idéias complexas, Ora, ne- cessitamos também examinar idéias mais simples abstraidas do homem e do mundo, principalmente corpo ¢ espaco, lem- brando, no entanto, que aquele nao apenas ocupa este, porém © dirge e 0 ordena segundo sua vontade. O corpo € “corpo vivo’ ¢ © espago é um constructo do ser humano, Entre os mamfferos, 0 corpo humano é impar, porque se mantém com facilidade na posigao ereta. Na posicao ereta, © homem esti pronto para agir. O espago se abre diante dele ¢ imediatamente pode diferencit-lo nos eixos frente-atrés e di- reita-esquerda de acordo com a estrutura de seu corpo. Verti- cal-horizontal, em cima-embaixo, frente-atras ¢ dircita-es- querda so posigdes ¢ coordenadas do corpo que sio extra poladas para 0 espaco (Fig. 2). No sono profundo, o homem CORPO HUMANO ERETO, ESPAGO E TEMPO Figure 2. Corpo humano ereto, espago e tempo. O espago projetado do sorpo propende para a frente € para a direita. O futuro esth & frente © “acima”, O passado esthatrbs © “abaixa”. 4 Corpo, Relacdes Pessoais e Valores Pessoais continua a ser influenciado pelo seu meio ambiente, mas perde seu mundo; ele é um corpo ocupando um espago, Acor- dado e em pé, ele recupera seu mundo, ¢ o espaco 6 articulado de acordo com seu esquema corporal. O que significa dominar ‘© espago e sentir-se A vontade nele? Significa que os pontos de referéncia reais no espago, como os referenciais e as posigbes cardeais, correspondem a intengdo e as coordenadas do corpo humano. Kant escreveu em 1768: Meso nossos julgamentos sobre as ogides edtmicas estio subordinados ao coneeito que temos de regides em geral, na medida em que elas estao Seterminadas pela relago com os lados do corpo (..) Nto importa quite bbem eu conhega a ordem.dos pontos cardeais, somente posso determings as regides ce acordo com essa ordem na medida em que conheya part qual 0 esta ordem se dirige; ¢ a mais completa carta celestial, nto importa ‘quio perfeito seja 0 plano que dela eu tenha em mente, no me ensineré sobre uma regito eonherida, digamos o Norte, para que lado procurat o nnascer do sol, a nfo ser que, além das porigdes das estrelas entre si, esta regio seja também determinada pela posiglo relative ao plano de minhas ‘mos. Igualmente, nosso conhecimento geogréfico, até 0 nosso conheci- ‘mento mais corriqueiro das posigdes dos lugares, lo nos servirh de nad, se nido pudermos, pela referéncia’ aos Indes de nossos corpos, ateibuir, As regides esta mesma ordem e todo o sistema de posigbes mutuamente rel fivas.! © que significa estar perdido? Sigo uma trilha na flo- testa, saio da trilha, e de repente sinto-me completamente Sesorientado, O espaco ainda esta organizado de acordo com 9s lados do meu corpo. Ha regides & minha frente e as minhas costas, A minha ditcila ¢ 2 minha esquerda, mas no funcio- nam em relagio aos pontos de referéneia externos, e portanto sio iniiteis. As regites em frente e atrés de repente parecem arbitrarias, pois tanto faz.eu ir para frente ou para tris. Basta aparecer uma luzoscilante atras de umas firvores distantes. Eu continuo perdido, no sentido que ainda nfo sei onde estou na floresta, mas 0 espaco recobra dramaticamente sua estrutura. luz oscilante estabeleceu uma meta. Movendo-me para essa meta, para frente, para tras, a direita e & esquerda readqui- rem seu significado: avanco para frente, alegro-me em deixar Para tras 0 espago escuro e cerlifico-me de nao virar nem para a direita nem para a esquerda, 42 Corpo, Relagoes Pessoais ¢ Valores Espaciais O homem, pela simples presenca, impde um esquema no espaco. Na maioria das vezes, ele no est consciente disto. Sente a sua falta quando esta perdido, Marca sua presenga nas ocasides rituais que elevam a vida acima do cotidiano e forgam-no a uma consciéneia dos valores da vida, inchuindo aquelas manifestadas no espago. As culturas diferem bastante na elaboragdo dos esquemas espaciais. Em algumas culturas, estes s40 rudimentares; em outras podem se tornar uma mol- dura magaffica que integra quase todos os aspectos da vida. Porém, apesar das grandes diferencas aparentes, 0s vocabu- lirios da organizagao espacial e do valor tém certos termos em ‘comum. Estes termos comuns sio basicamente derivados da estrutura e valores do corpo humano. Em pé e deitado: estas posigdes produzem dois mundos opostos. Gesell e Amatruda dizem que, quando um bebé de seis meses de idade se senta, “seus olhos se arregalam, 0 pulso fica mais forte, a respiracao se acelera ¢ ele sorri.” Para o bebé, a mudanca da posigio supina horizontal para a perpen- dicular sentada jé é “mais do que um triunfo postural. E a ampliagao de um horizonte € uma nova orientagio social.” Este triunfo postural e a conseqiiente ampliagao do horizonte sto repetidos diariamente durante toda a vida da pessoa, A cada dia desafiamos a gravidade e outras forgas naturais para criar e manter um mundo humano ordenado. A noite cedemos ‘estas forcas e deixamos 0 mundo que haviamos criado. A posigao ereta 6 afirmativa, solene e altiva. A posicto deitado € submissa, significando a aceitacdo de nossa condi¢ao biol6- wgica. A pessoa assume sua otal estatura humana quando esté em pé. A palavra “em pé” (stand) é 0 radical para um grande miimero de palavras relacionadas que incluem “status”, “esta- ura”, “estatuto”, “estado” e “instituto”. ‘Todas implicam realizagdo ¢ ordem? ‘Alto” e “baixo”, os dois polos do eixo vertical, sto pala- vyras que na maioria das linguas transcendent o significado literal. Tudo que é superior ou excelente € elevado, associado ‘com um sentido de altura fisica. De fato, “superior” deriva de uma palavra latina e significa “mais alto”. “Excelso” é outra palavra latina para “alto”. A palavra brakman do sanscrito é 43 Corpo, Retacdes Pessoais ¢ Valores Espaciais derivada de um termo que significa “altura”. “Degrau", no sen sentido literal, é um esealo pelo qual subimos e descemos social é designado “alto” ou “baixo” em lugar de “grande” ou “pequeno”. Deus mora no céu. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, Deus foi as vezes iden- tificado com o céu, Edwyn Bevan escreveu: “A idéia que considera 0 eu como a morada do Ser Supremo, ou como idéntico a ele, € tio universal na humanidade como pode ser ‘qualquer erenga religiosa."* Em arquitetura, os edificios importantes so colocados sobre plataformas, e, quando existe a tecnologia necesséria, tendem a ser os mais altos. Quanto aos monumentos, isto € talvez. sempre verdadeiro: uma piramide ou coluna de triunfo alta impoe maior estima do que uma baixa, Na arquitetura residencial aparecem muitas excegbes a esta regra. A razio clara: as vantagens simbolicas dos andares mais altos de uma casa podem ser facilmente anuladas pelos problemas de ordem pritica, Antes da instalagao de sistemas adequados de encanamento, a Agua tinha que ser carregada para cima e os lixos tinham que ser trazidos com as maos. Viver nos andares superiores era muito trabalhoso. Nao somente na antiga Roma, mas também na Paris do século XIX, 0 andar de pres- tigio era o que estava sobre as lojas que davam para a rua. Nos prédios ao longo dos Campos Eliseos, quanto mais altos eram 0s eémodos, mais pobres eram seus ocupantes: empregados domésticos ¢ artistas pobres ocupavam as mansardas. Nos altos edificios modernos, a desvantagem da disténcia vertical 6 superada com maquindria sofisticada, resultando na reatir- magiio do prestigio da altura. ‘As localizagSes residenciais (@m a mesma hierarquia de valores. Assim como em uma casa as Areas de servigo estio escondidas no pordo, também em uma cidade a érea indus- trial e comercial esto perto da Agua; e as casas particulares aumentam de prestigio com a elevagio? Os ricos e poderosos, ndlo somente possuem mais bens iméyeis do que os menos privi legiados, como também dominam mais espago visual. O sta- tus deles se torna evidente aos estranhos pela localizagaio supe- rior de suas residéncias; e de suas residéncias os ricos reafir- 44 Conpo, Relagies Pessoais ¢ Valores Espaciais ‘mam sua posiglo na vida @ cada vez que olham pela janela e véem o mundo aos seus pés. Mas ha excegdes. Uma bem conhecida ¢ 0 Rio de Janeiro, onde os altos e luxuosos edificios buscam a conveniéncia ¢ atrativos da praia, enquanto as favelas estao penduradas nas encostas dos morros. O prestigio do centro est bem determinado. As pessoas, em todos os lugares, tendem a considerar sua terra natal como © “lugar central”, ou 0 centro do mundo." Entre alguns povos, ha também a renga, sem evidéncia geografica, de que eles vivem no topo do mundo, ou de que seu lugar sagrado esté no cume da Terra (Fig. 3). As tribos ndmades da Mon- gélia, em épocas passadas, acreditavam habitarem 0 topo amplo de um morro, cujas encostas estavam ocupadas por outras ragas.” Uma crenga comum na literatura rabinica é que a terra de Israel esté mais alta do que qualquer outra terra acima do nivel do mar, e que a colina do Templo é 0 ponto mais alto de Israel." A tradicdo islamica ensina que o santuario mais sagrado, a Caaba, nao € apenas o centro e ‘umbigo do mundo, mas também o seu ponto mais alto. A posigio espacial da Caaba corresponde ao da estrela polar: ‘nenhum lugar na Terra esté mais perto do eéu que Meca."” Por isso as oragdes feitas no santuatio so ouvidas mais elara ‘mente. Quando o explicito simbolismo religioso do centro e da altura € fraco, a elevagao fisica da Terra mantém, contudo, um certo prestigio. As nagSes modernas gostam de pensar que tum alto cume, mesmo que nao seja 0 mais alto do mundo, fica dentro de suas fronteiras. A falta de medigoes acuradas per- mite deixar solta a imaginacao, insuflada pelo fervor patri tico. Mesmo no século XVIII, os brilénicos cultos podiam considerar 0 Ben Nevis como uma das montanhas mais ele- vadas da Terra.” India, Nepal ¢ China gostariam, sem dé- vida, que o monte Evereste Ihes pertencesse. ‘Além das polaridades vertical-horizontal ¢ alto-baixo, a forma e a postura do corpo humano definem o seu ambiente espacial como frente-atris e direita-esquerda. O espago fron- tal é basicamente visual. £ nitido e muito maior do que 0 ‘espaco posterior, que s6 podemos experienciar através de indi cadores nao visuais. O espaco frontal é “iluminado” porque 45 Corpo, Relacoes Pessoais ¢ Valores Espaciais CIDADE SETENTRIONAL DE PEQUIM Figura 3, “Centro” sugere “clevaglo", vice-versa: o exemplo da cidade Setentrional de Pequim © comprimenti da avenid (ral) deve ser lido como altura. “Na China, nfo importa qual é ¢ confi guragto do terreno natural, sempre se vai para cima, para Pequim” (N. Wa). Reimpresso com permissto de Nelson 1, Wu, Chinese and Indian Architecture. New York, George Braziller, 1963, fig. 136, "Pleno de Pe- ‘quim interpretado como volume”. pode ser visto; 0 espago posterior é “escuro”, mesmo quando sol brilha, simplesmente porque no pode ser visto. A crenga de que os olhos projetam raios luminosos remonta, pelo me- nos, até Plato (Timeu) ¢ persiste além da Idade Média. 46 Corpo, Relagdes Pessoais ¢ Valores Espaciais Outro sentimento comum é que a prépria sombra cai para trés do corpo, mesmo quando, de fato, muitas vezes ela se projeta para frente, Em um plano temporal, o espago frontal & Percebido como futuro ¢ 0 espago posterior como passado, A frente significa dignidade. O rosto humano impde respeito, até temor. Os seres inferiores se aproximam dos superiores com os olhos baixos, evitando a face atemorizante, O poste rior é profano (Fig. 2). Os seres inferiores permanecem atras (e na sombra) de seus superiores. Na China tradicional, 0 governante fica de frente para o sul e recebe de cheio os raios do sol do meio-dia; deste modo assimila 0 masculo e luminoso principio do yang. Disto.se depreende que a frente do corpo também é yang. Ao contririo, as costas do governante e a area atras dele sao yin, feminino, escuro e profano."* Toda pessoa esti no centro do seu mundo, € 0 espaco circundante 6 diferenciado de acordo como esquema de seu corpo. Quando ele se move e vira, também o fazem as regides frente-atras ¢ direita-esquerda ao seu redor. Mas 0 espago objetivo também assume estes valores somaticos. Os quartos em um extremo da escala, ¢ as cidades no outro, freqiien temente tém frente ¢ atrés. Nas sociedades grandes e estrati- ficadas, as hierarquias espaciais podem ser claramente arti culadas pela arquitetura, através da planta, desenho ¢ tipo de decoragio. Consideremos algumas das maneiras como sio diferen- ciadas, no mundo ocidental, as dreas anteriores e posteriores, Os cémodos so mobiliados assimetricamente: seu centro geo- étrico no é geralmente a panto focal do espaco interior. Por exemplo, 0 ponto focal da sala pode ser a lareira, que esti localizada em um extremo do cdmodo, Um anfiteatro tipico € nitidamente separado em frente e atras pela posigio da cate- dra c pela localizagao das poltronas. A relagio entre os cb- modos, mais do que a forma como esta arranjada a mobilia dentro deles, pode estabelecer diferengas no espago interior: assim um quarto de dormir tem frente ¢ atrés, apesar da disposigdo simétrica dos méveis, janelas e portas, simples: mente porque uma porta abre para a sala e outra para o banheiro. Em muitos edifieios, as partes da frente e de tris 7 Corpo, Relagoes Pessoais ¢ Valores Espaciais esto claramente diferenciadas. As pessoas padem trabalhar no mesmo prédio e exoerienciar mundos diversos, porque as diferencas de status ascolocam em rotas de cireulacao e Areas de trabalho diferentes, Homers da manutencao e zeladores tram pela porta de servigo, na parte dos fundos, e transitam pelos “corredores escuros” do prédio, enquanto os executivos © suas secretarias entram pela porta da frente, cruzam o ariplo saguao e os corredores ber iluminados até seus eseri- \Grios elegantemente mobiliados.” Uma tipica residéncia da classe média tem uma fachada atrativa para impressionar e receber as visitas, e um fundo despretensioso para o uso de pessoas de baixo status, como os entregadores e erianga: ‘Tém as cidades regides anteriores e posteriores? Na ci dade chinesa tradicional, frente e atrés eram bem diferen- ciados: nao havia possibilidade de confundir frente e sul, com sua ampla avenida cerimonial, com atrés e norte, que era reservado (pelo menos no planejamento te6rieo) para 0 uso comercial profano.® No Oriente Proximo e na Europa, as diferencas expressas ne plano urbano eram menos sistema- ticas. No entanto, as antigas cidades muralhadas ostentavam vias para procissdes que eram usadas em ocasiGes reais. € triunfais; estas vias provavelmente tinham entradas impo- nentes. No fim da Idade Média e durante o Renascimento, os certros urbanos de importancia politica ¢ eclesidstica cons- truiram portais suntuosos nas murathas que ndo mais cum- priam uma finalidade militar. A monumentalidade do porto simbotizava © poder do governante, Também funcionava como um ideograma para toda a cidade, apresentando uma faciada que pretendia impressionar os visitantes e os poten- tados estrangeiros,” Na moderna cidad: econdmica nao foi planejada uma parte anterior e uma posterior; no ostenta uma via para as procissdes Ou portio cerimonial, e seus limites freqiiente- meate sdo arbitrarios, marcados por um insigaificante letreiro indicando, como nos Estados Unidos, 0 nome ¢ a populagao do distrito, Porém o sentido de “frente” e “atras” nao esta de todo ausente. A amplidio e a aparéacia das auto-estradas (projetadas e marcadas com cartazes gigantescos) indicam ao a Sees se eee VEsESsEasn 8 Corpo, Relacbes Pessouis ¢ Valores Espaciais motorista que ele esté entrando na cidade pela porta da frente Sc a cidade moderna nos da a impressio de ter frente e atrés, esta impressio é tanto resultado da diregdo e volume do trnsito como dos simbolos arquitetOnicos. Em um quadro mais amplo, veja como 0 movimento histérico de um povo pode dar a impressao de uma assimetria espacial a toda uma regidio ou pats. St. Louis é 0 portal preeminente para 0 Oeste. A cidade ergueu um arco alteroso para ressaltar 0 seu papel como a entrada para as Grandes Planicies e mais além. A maioria das pessoas nos Estados Unidos provavelmente con: sidera as costas nordeste como a frente da nacido. A histéria da nagio é percebida como comegando af. Em especial, New ‘York passou a significar 0 portio da frente, Entre os intimeros cognomes da cidade, um 6 0 Escritério Principal dos Negécios Americanos. Porém, mais importante do que o tamanho e 0 poder dos negécios, New York deve sua imagem de portio de entrada para o fato de que através dele entraram tantos imi- grantes na terra da promissio, As pessoas nio confundem de brugo com a posig#o em pé, nem frente com atras, mas os lados direito e esquerdo do corpo, assim como os espagos deles extrapolados sfio facil mente confundidos. Em nossa experiéncia como animais que se locomovem, frente e atris so basicos e direita e esquerda silo secundarios. Para conseguir andar, primeiro nos levan- tamos e depois avancamos. O andar para frente 6 periodica- mente interrompido para virar para a direita ou esquerda. Suponha que estou descendo uma rua © apés um tempo viro para a direita. Um observador pode agora dizer que estou indo para a direita. Mas, em absoluto, tenho a sensagdio de que a minha diregao para a direita. Eu fiz. uma virada para a direita, mas continuo indo para frente. Direita e esquerda sii diferengas que tenho que reconhecer. Séo meios, para atingir meu objetivo que fica sempre & frente. Os lados direito € esquerdo do corpo humano sao bem semelhantes em aparéncia ¢ fungo. Existem algumas assi- ‘metrias: por exemplo, um cacho de cabelo na cabega vira para a direita; 0 coraco esta ligeiramente deslocado para 0 lado 9 Corpo, Relag esquerdo do corpo; os dois hemisférios cerebrais nao esto igualmente bem desenvolvides, e tém fungies ligeiramente diferentes; a maioria das pessoas sio destras e quando andam ‘ém tendéncia de inclinar-se para a direita, talvez como resul- tado de um pequeno desequilibrio no controle vestibular, Estas pequenas assimetrias biol6gicas nao parecem suficientes para explicar as n{tidas diferengas de valor atribuidas aos dois lados do corpo © aos espagos social e cosmoldgico, que se derivam do corpo. Em quase todas as ct sobre as quais ha infor- magdo disponivel, o lado direito € considerado como muito superior ao esquerdo. A evidéncia deste preconceito é part cularmente abundante na Europa, Oriente Médio e Africa, mas 0 preconceito é também bem documentado para a India ¢ sudeste da Asia! No fundo, a direita é pereebida como signi- ficando poder sagrado, o principio de toda atividade efetiva, ea fonte de tudo que € bom e legitimo, A esquerda é a sua antitese; significa © profatto, 0 impuro, o ambivalente e 0 débil, que é maléfico ¢ deve ser temidor No espago social, 0 lado direito do anfitriao é 0 lugar de honra. No espago cosmo- ogico, “a direita representa o que esti no alto, 0 mundo superior, o céu; enquanto a esquerda esti relacionada com 0 baixo mundo © com a Terra.” Cristo, em telas do Juizo Final, tem sua mao direita levantada apontando para a regio Juminosa do Céu, ¢ sua milo esquerda apontando para baixo, ara a escuridao do Inferno. Uma idéia semelhante de cosmos aparece entre os simples Toradja habitantes da Célebes cen- tral. O lado direito € dos vivos, um mundo de luz; 0 lado esquerdo € 0 escuro mundo subterraneo dos mortos.” No plano geogrifico, os antigos arabes equacionavam a esquerda com o norte a Siria. A palavra gimal indica tanto norte como lado esquerdo. A palavra érabe para Siria é Sam: o seu radical significa “‘desgraga”” ou "mau agouro” e “esquerda”. Um verbo derivado, sa'ma, significa “trazer mé sorte” e “virar para a esquerda”. Ao contrério, o sul e o lado direito do lar arabe estdo saturados de béngios. O sul é a terra florescente do Témen, ¢ seu radical ymn implica idéins de felicidade “direita’." No oeste da Africa, os Timne consideram o leste Corpo, Relagaes Pessoais e Valores Espaciais como a orientagio fundamental. O norte, portanto, est a esquerda e € considerado escuro; o sul para a direita € a luz. Para os Timne, trovao e relimpago so preparados no norte, 40 passo que as “boas brisas” vém do sul.” ‘A visio chinesa tem un: interesse especial porque parece ser uma exceg2o importante A regra. Como a maioria dos ores, 0s chineses so destres, mas para eles o ado honorével € 0 esquerdo. Na grande classificagao bipartida yin e yang, o lado esquerdo & yang e pertence ao homem, o lado direito yin e pertence & mulher. A razao principal para isso é que 0 espaco social e cosmolégica chines esté centrado no gover- nante que serve de mediador entre o céue a terra, O gover: nante olha para o sul e para o sol. Portanto, no seu lado esquerdo esti o leste, o lugar em que o sol nasce e do homem (ang); no seu lado direito esté o oeste, o lagar em que 0 sol se poe e da mulher (in). O homem é a medida. Em sentido literal, 0 corpo hu- mano é a medida de diregao, localizagao e distancia. No Egito Antigo, a palavra para "‘rosto”” & a mesma para “sul”, e a palavra ‘“nuca” est associada com “norte”." Muitas linguas da Africa e dos Mares do Sul extraem suas preposigbes espa- ciais diretamente de termos das partes do corpo como “eos- tas” para “tras”, “olho” para “em freate de”, “pescoco” para “acima”, e “est6mago” para “dentro”. Na lingua Ewe, da Africa ocidental, a palavra para “cabega” tanto significa “pico” como as denominacdes espaciais gerais de ‘em cima"* e“acima’” O costume de usar substantivos como preposi ges para oxprossar relagBes espaciais pode extrapolar 0 corpo: por exemplo, em lugar de “costas”, uma palayra como “ras- to" pode ser usada para indicar “atrés " pode ser designado por “chao” ou “terra”, e “em cima” por “ar"2* ‘As preposigdes espacia's so necessariamente antropo- céntricas, quer sejam substantivos derivados de partes do corpo humano ou nao. Comoafirma Merleau-Ponty: “Quando digo que um objeto esti sobre a mesa, sempre me coloco, mentalmente, quer na mesa, quer no objeto, e Ihes atribuo uma categoria que teoricamente ajusta a relagio de meu corpo aos objetos externos. Sem esta associagao antropoldgica, a pa- Corpo, Relagdes Pessoais € Valores Espaciais layra sobre € indistinguivel da palavra sob ou da palavra ao lado.’® Onde esta 0 lvro? Esta sobre a escrivaninha. A res- posta é apropriada porque de imediato nos ajuda a localizar 0 livro dirigindo nossa atengdo para a grande eserivaninha. E dificil imaginar uma circunstancia na vida real na qual seja apropriada a resposta “a escrivaninha est sob 0 livro”. Di- zemos que um objeto esta sobre, em, acima ou sob outro objeto como resposta a preocupagies pritices e urgentes. Entretanto, frases de localizagdes, normalmente, exprimem ‘muito mais do que simples fatos locacionais. “Deixei minhas chaves dentro do carro” diz. onde as chaves esto, mas é tam- bam uma expressio de angiistia. “Estou em meu escritério” pede significar, depencendo do contexto, ou “vena me ver" ‘ou “nao me incomode”. Somente no hospicio, frases como esas sto estritamente locacionais; no hospicio, “0 livro est soore a escrivaninha” e ‘a escrivaninha esta sob o livro” so partes equivalentes e permutaveis na conversa:* As medidas populares de comprimento sao derivadas de partes do corpo. Sa0 muito usadas a largura e o comprimento ds dedos ou do polegar; a distancia, quer do polegar até a ponta do dedo minimoou até a ponta do indicador; da ponta do dedo médio até 0 cotovelo (c6vado), ou a distancia entre as pontas dos dedos, com os bragos estendidos e as maos abertas (braga), Objetos, de uso corrente, feitos pelo homem, servem ‘cono medidas fixas de comprimento, por exemplo, a vara usida para espicagar ¢s bois, a langa e pedagos comuns de corda ou corrente. As estimativas de distancias maiores se bbaseiam na experiénciae na idéia de esforgo. Assim, a jarda & ‘uma passada larga, a milha so mil passos ¢ 0 furlong, equi- valente a um oitayo de milha (sulco longo), € a extensio que a junta de boi pode comodamente arar. O arremesso da langa ‘ou 0 alcance da flecha sto unidades aproximadas de dis- tincia, € mesmo no mundo moderno falamos de “até 0 al- cance de uma pedra atirada”’, e “até a distincia de um grito” ‘As medidas de capacidade “incluem a concha da m&o, 0 pu- nhado ow a bracada, a carga de um homem, animal, vagto ou navio; 0 contetido de um ovo, cuia, ou qualquer outro objeto natural; ou de alguns objetos fabricados, de uso comum, 52. Corpo, Relacdes Pessoa e Valores Espaciais como uma cesta.”" As medidas de area sio expressas em unidades como um couro de boi, uma esteira ou capa; 0 campo que uma parelha de bois pode arar em um dia; ¢ a terra que podia ser semeada com uma determinada quantia de sementes.* ‘O corpo humano e suas subdivisdes parecem nao fornecer as unidades comuns para estimativas de area, como 0 fazem para a estimativa de comprimento ¢ volume ou capacidade, Area é provavelmente um conccito mais abstrato do que com- primento e volume. Mesmo nas sociedades mais simples, as pessoas precisam calcular comprimento ¢ distancia. “Capa- lade" & igualmente basica. O proprio corpo humano é um receptaculo. Sabemos o que é sentir-se “cheio” ou “vazio” Experienciamos diretamente a quantidade de alimento ou gua na concha de nossas maos ou em nossa boca. Os adje- tivos de tamanho como “grande” © “pequeno”, se referem principalmente a volume e secundariamente a érea. A palavra “grande” deriva do latim “bochecha inflada”. Apesar de que nas aulas elementares de geometria aprendemos sobre drea antes de volume, na experiGneia diiria, area é uma idéin sofisticada abstraida do sentido mais primitivo de capacidade. “Distdncia” tem conotacio de graus de acessibilidade e também de preocupacao. Os seres humanos estio interes- sados em outras pessoas € nos objetos importantes em suas vidas. Querem saber se as pessoas que thes sto importantes estiio longe ou perto deles e umas das outras. Quando um objeto importante € designado por uma palavra ou descrito em uma frase, a palavra ou frase sugcre algumas qualidades do objeto: “um cachorro feroz”, “uma langa partida”, “um homem doente”. Quando usamos estas expressves, estio im- plicitas localizagao e distancia, embora nao sejam dadas expli- citamente. “Um cachorro feroz!” & um cachorro que esti bem perio de mim para protego, ou amarrado em um poste, de maneira que estou fora de seu aleance, “uma langa partida” & a langa a0 aleance da mao, porém par- tida e por isso intitil, Em melanésio e em certas linguas dos anos, localizagao e distancia em relagio a lugar ou pessoa so requisitos indispensiiveis na descrigao de obje- Corpo, Relacdes Pessoais ¢ Valores Espaciais tos. Codrington observou tanto entre os melanésios como entre os polinésios © habito de introduzir constantemente advérbios de lugar e de diregao como: para cima e para baixo, para c& ¢ para li, para o mar para a terra, “Tudo que diz respeito a coisas e pessoas é visto como vindo ou indo, ou rela- cionado com lugar, em uma maneira que nao é natural para 0 curopen, a que ele nao esti acostumado.”® Sobre kwakiutl, uma lingua indigena da costa do Pacifico, Boas escreveu: “A exatiddo com a qual a localizagio é expressa tanto nos substantivos como nos verbos, em relago a quem fala, é uma das caracterfsticas fundamentais da lingua.”® Diversas lin- suas dos indios americanos apenas podem expressar um pen. samento como “o homem'esté doente” dizendo ao mesmo tempo se o sujeito da oragdo est a uma distincia maior ou menor de quem fala ou de quem escuta ¢ se 0 sujeito ¢ visfvel ou invistvel para eles.** Distincia é distancia da propria pessoa (Fig. 4). Em mui- {as linguas, os demonstrativos espaciais e os pronomes pes- soais estao intimamente relacionados, de maneira que é dificil r que classe de palavras vem antes ou depois, ou quais 820 itivas ou derivadas. As palavras nas duas classes sio atos de indicagdes semimiméticos, semilingiisticos. Os pronomes pessoais e demonstrativos ¢ os advérbios de lugar esta inti- mamente inter-relacionados.” Eu estou sempre aqui, 0 que est aqui eu denomino este. Ao contrario do aqui onde eu estou, vood esti Id e ele esté acold. O que esté la ou acold eu denomino aquele. “Este” ¢ “aquele" aqui desempenham a funcao de tripla diferenca no alemio dies, das ¢ jenes. Em Ifnguas ndo-curopéias, uma gama sutil de variagdo de prono- mes demonstrativos pode ser usada para indicar distincias relativas a partir do eu. Assim em tlingit, uma Kingua indigena ‘americana, ke indica um objeto que esta muito perto e sempre presente; ya indica um objeto muito perto e presente, mas um pouco mais distante; yw indica algo t20 remoto que pode ser usado como um artigo impessoal; we indica uma coisa extre- mamente remota ¢ geralmente é invisivel.” Os Chukchi do nordeste da Sibéria tém até nove termos para expressar a posigao de um objeto em relagaio a quem fala. Ss Corpo, Relagoes Pessoais ¢ Valores Espaciais ,) ‘A, Pronomes pesonis © ddemonstratvosexpacais B. O mundo de Hecaton . Cosmografia eigoss na Asta Ortetal (520 antes de Cet). Figura 4. Organizagdes do espaso eyocéntricas (A) ¢ etnoctntricas (B-G) dos tempos antigos até os modernos, nas sociedad letradas e iletradas. A Figura 4G foi reimpressa con permissto de Torsten Higerstrand, - tion and area: survey of a sample of Swedish migration fields and hypo- thetical considerations on their genesis, Lund Studies in Geography, Series B, Human Geography, v. 13,1957, p. $4. 55 Corpo, Relacdes Pessoais e Valores Espaciais D, Linda mite dos inion oro, bape de de ‘Citte) E, Mapa 0-7 segun ‘Yara da Caria Seva (570-836 dep. 1, Hemistrion castnentale ocnen ‘centro na Frangnaetenttonal G. Mapa com distance zine! lgaritmlea, ‘entrada a Suscla centeal. 56 Corpo, Relacdes Pessoais e Valores Espaciats Em inglés, os demonstrativos “este” e “aquele” sio ape- nas um par e, portanto, carecem de amplitude locacional; talvez. como resultado disto seus significados se tornam pola- rizados e podem transmitir uma grande carga emocional. “Falamos disto ¢ daquilo, mas principalmente daquilo.” A palavra “aquele” sugere sem diivida t6picos de conversago remotos ¢ triviais2’ Em Ricardo I, Shakespeare consegue cyocar um sentimento de fervor patridtico, em parte através do uso insistente de “este”, que é identificado com “nds os ingleses”, “Esta afortunada estirpe de homens, este pequeno mundo, esta pedra preciosa, [--} Uma diferenga que todos fazem 6 entre “‘nés” e “eles” Nés estamos aqui; nos somos esta afortunada estirpe de homens, Eles esto /é; eles no so completamente humanos ¢ vivem naquele lugar. Os membros do grupo-nés sto amigos chegados entre si, esto distanciados dos membros do out grupo (eles). Agui vemos como 0s significados de “chegado: e“distanciados” sao uma combinacao de graus de intimidade interpessoal ¢ distancia geografica. Nao seria possivel deci qual sentido € 0 primitivo © qual € © derivado™ "Somos amigos chegados” quer dizer que temos intimidade, nos vemos muitas vezes e vivemos no mesmo bairro. Ser chegado com- na os dois significados de intimidade e proximidade geogré- fica, A medida que o amigo se muda cada vez mais para longe geograficamente, também declina o calor emocional: “longe dos olhos, longe do coragio”. F claro, h4 imimeras excegdes. ‘A distancia social pode ser o inyerso da distancia geogrifica. criado vive perto do patrao, mas ambos nao sao amigos chegados. Psicologicamente, a auséncia (distincia espacial) pode aumentar 0 afeto. Tais excegbes nao invalidam a regr: ‘Temos apontado que certas divisdes ¢ valores espaciais devem sua existéncia e significado ao corpo humano, e tam- bém que a distincia — um termo espacial — est intima- mente ligada a termos que expressam relagdes interpessoais Este tema pode facilmente ser ampliado. Poderiamos pergun- tar, por exemplo, como 0 espago ¢ a experiéncia de espacio- sidade esto relacionados com 0 sentido humano de compe- téncia e liberdade. Se 0 espaco é um simbolo de amplidio ¢ 37 Corpo, Relages Pessoais ¢ Valores Expaciais liberdade,'como se afetard com a presenga de outras pessoas? | Que experiéncias coneretas nos permitem atribuir cignificados diferentes ao espago e a espaciosidade, a densidade de popu- Jago e apinhamento? 5 Espaciosidade e Apinhamento nados, como so densidade de populagdo ¢ apinha- mento; mas espago amplo nem sempre 6 experienciado como espaciosidade, e alta densidade necessariamente nlo significa apinhamento. Espaciosidade e apinhamento sio sen- timentos antitéticos. O ponto no qual um sentimento se trans- forma em outro depende de condigées dificeis de generalizar. Para compreender como estio relacionados espago e nimero de pessoas, espaciosidade e apinhamento, precisamos explo- rar seus significados em condigdes especificas.* Consideremos 0 espago. Enquanto unidade geométrica (4rea ou volume), é uma quantidade mensurivel ¢ precisa, Falando mais informalmente, espaco significa lugar (room); @ palavra alema para espago 6 Raum. Hi lugar para outro engradado de méveis no deposito? Ha lugar para outra casa na propriedade? A faculdade tem lugar para mais estudantes? Apesar de terem estas questées uma forma gramatical seme- thante e todas usarem a palavra “lugar” adequadamente, o significado de “lugar” é diferente em cada caso, A primeira questo indaga se mais objetos podem ser colocados e a res- posta requer uma medicao simples e objetiva, A segunda e a terceira questdes mostram que lugar pode significar mais do E spago e espaciosidade sto termos intimamente relacio- 58 Espaciosidade e Apinhamento ‘que espago fisico: sugere espaciosidade. A questo nto é se a ssa pode eaber fisicamente na propriedade, mas se o sitio 6 suficientemente espagoso. E uma faculdade nao somente deve ter salas de aula adequadas, bibliotecas ¢ laborat6rios, mas deve parecer espacosa ¢ livre aos estudantes que nela ingres. sam para ampliar suas mentes, Espaciosidade esta intimamente associada com a sensa- so de estar livre. Liberdade implica espago; significa ter poder ¢ espago suficientes em que atuar. Estar livre tem di- versos niveis de significado. O fundamental & a capacidade | para transcender a condigio presente, a forma mais simples \em que esta transcendéncia se manifesta € 0 poder basico de Jocomover-se. No ato de locomover-se, 0 espago e seus atri- ‘butos siio experienciados diretamente, Uma pessoa imével tera dificuldade em dominar até as idéias elementares de espaco abstrato, porque tais idéias se desenvolvem com o movimento — com a experiéncia direta do espaco através do. movimento, ‘Um bebé nao é livre, assim como os prisioneiros ¢ os acamados. Eles nao podem, on perderam a capacidade de moyer-se livremente; vivem em espacos confinados. Uma pes- sea idosa moye-se com dificuldade crescente. O espago parece fechar-se sobre ela, Para uma crianga sadia, a escada 6 uma ligagao entre dois andares, um convite para subir e descer; para um velho & uma barreira entre dois andares, um aviso Para no sair do lugar, Os fisicamente fortes — criangas atletas — desfrutam de uma sensagao de amplidao espacial pouco conhecida dos que trabalham em escritério, os quai ‘ovven as narrativas de proeza fisica com um misto de admi- ragdo e inveja. Eric Nesterinko, um jogador de héquei do To- ronto Maple Leafs, descreveu que mesmo quando erianga a alegria de mover-se erasuperior a alegria de ganhar. “Quando era crianga’, ele recorda, ‘*mover-me bastante era o que me encantava. Sentia-me solto porque podia me mover ao redor de qualquer um. Era livre,” Como um homem de meia-idade, 45 trinta e oito anos Nesterinko continua se sentindo encan’ tado com a liberdade espacial. Recorda como em uma tarde fri, clarae agradivel, ele viu um enorme manto de gelo na } Cee ee ee ae 60 “Espaciosidade e Apinhamento rua, Sem pensar, dirigiu seu carro para o gelo, desceu e colo- ‘cou seus patins. O jogador de héquei disse: ‘*Tirei meu casaco de pélo de camelo. Fiquei s6 de terno, E voei. Nao havia niaguém. Estava tao livre como um passaro. [...] Incrivel! S lindo! Vocé est ultrapassando as fronteiras da gravidade, Fu acho que este € 0 desejo inato do homem."” Instrumentos e maquinas ampliam a sensago de espaco ¢ espaciosidade do homem. O espaco que 6 mensuravel pelo alcance dos bracos estendidos torna-se um mundo pequeno quando comparado com aquele que é medido pela distancia do arremesso da lanca ou 0 tiro de uma flecha. O corpo pode sentir ambas as medidas. Tamanho € 0 que a pessoa sente \quando estende seus bracos; € a experiéncia do cagador ‘quando arremessa sua langa, sente-a sait de sua mio € a ve desaparecer a distincia. Um instramento ou méquina au- menta o mundo da pessoa quando ela sente que é uma exten- sto direta de seus poderes corporais. Uma bicicleta amplia a sensagio de espago do homem, assim como um carro esporte. ‘Sio mAquinas comandadas pelo homem. Um carro esporte responde ao menor desejo do motorista. Descortina um mundo de yelocidade, vento € movimento. Acelerando em uma reta 1 fazendo uma curva, momento e gravidade — estes termos ficidos tirados de um texto de fisica — tornam-se as quali- dades sentidas do movimento. Pequenos aeroplanos do tipo usado na década dos vinte so capazes de aumentar a liber- ‘dade do homem, seu espaco, como também de colocé-lo em ‘uma relagio mais fntima com a vastidao da natureza. O eseri- tor francés piloto Antoine de Salnt-Exupéry assim se ex: pressou: ‘A miquina que & primeire vista parece um meio de isolar 0 homem dos trablemas dx natureca na verdade mergulha-o mais profundamente nels {Tanto para o camponés como para o piloto, a aurora o crepiseulo tor Irie acontecimentos importantes. Seus problemas essencais sho mar- fades pela montanha, mar e vento, Sé diante do vasto tribunal do ebv fempestuoso, o plato defende sua correspondncia sic e dscute em termos {eigualdade com aqucas trésdivindades elementares? Quando o cagador paleolitico deixa a sua acha ¢ pega 0 arco € a flecha, ele avanca um passo na conquista do espago, § O espago é um Espaciosidade e Apinhamento contudo 0 espaco se expande diante dele: as coisas que antes estavam além do seu alcance fisico e horizonte mental agora fazem parte do seu mundo. Imagine um homem de nosso tempo que aprende primeiro a andar de bicicleta, depois « guiar um carro esporte e finalmente a pilotar um pequeno aeroplano, Ele obtém progressos sucessivos de velocidade; vence distancias cada vez. maiores. Ele conquista 0 espago, ‘mas no aniquila 0 seu tamanho sensivel; a0 contrario, 0 espaco continua a abrir-se para ele. Quando o transporte € ‘uma experiéncia passiva, a conquista do espaco pode signi- ficar a sua diminuigao, A velocidade que da liberdade a0 homem, faz com que ele perca a sensagho de espaciosidade. Pense em um avido a jato de passageiros. Ele eruza 0 conti- nente em poucas horas; no entanto, a experi¢ncia dos passa- geiros com a yelocidade ¢ 0 espago é provayelmente menos nitida do que a de um motociclista que desce ruidosamente uma auto-estrada. Os passageiros nfo tém controle sobre a mAquina ¢ ndo podem senti-la como uma extensao de seus poderes corporais. Os passageiros silo pacotes luxuosos — amarrados com seguranga em seus assentos — transportados passivamente de um lugar para 0 outro. mbolo comum de liberdade no mundo icidental, O espaco permanece aberto; sugere futuro ¢ con- vida & aco. Do lado negativo, espaco e liberdade sto uma |ameaga. Um dos sentidos etimologicos do termo bad ("*maus") E"aberio”, Ser aberto ¢ livre ¢ estar exposto e vulnerével. O espaco aberto ndo tem caminhos trilhados nem sinalizacao. Nao fem padrées estabclecidos que revelom algo, 6 como uma

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